Etiqueta: Dom Quixote

  • Polifonias de um território literário

    Polifonias de um território literário

    Título

    História Global da Literatura Portuguesa

    Autores

    ANNABELA RITA, ISABEL PONCE DE LEÃO, JOSÉ EDUARDO FRANCO E MIGUEL REAL (orgs.)

    Editora

    Temas & Debates (Outubro de 2024)

    Cotação

    20/20

    Recensão

    A Literatura, como a História, há muito deixou de estar enclausurada nos cartapácios das bibliotecas reais ou das monásticas, confinada aos escrivães e aos monges, ou em bibliotecas particulares. O códice exigia um trabalho moroso, delicado, e a invenção da tipografia permitiu a multiplicação de livros. Hermão de Campos, Paulo de Craesbeeck, Valentim Fernandes de Morávia e João Pedro de Cremona foram alguns dos tipógrafos mais conhecidos do reino.

    A diáspora e a interrelação entre os povos – ainda que nem sempre poética ou amistosa –, permitiu o triunfo da globalização, facto que, inextricavelmente se repercute na criação artística, de que a literatura é exemplo. Na contemporaneidade, o modo como se observa o mundo e os fenómenos tende a alterar-se, vertiginosamente. As escalas, as fronteiras nacionais, as fronteiras disciplinares e a noção espaço-tempo cederam a uma percepção dos fenómenos em interação, em rede, onde o longínquo ecoava, sem relevância, e o lateral repercutia sem linearidade, como afirma a teoria do caos. Considerado um dos precursores da História recente, Fernand Braudel  (1902-1985) sustenta (um)a visão  da coexistência de diversas escalas, admitindo a multiplicidade de olhares e de perspetivas sobre o mundo. Na mesma senda, o pensamento de Edgar Morin incide, entre muitos outros eixos temáticos ou fenomenológicos, sobre a conceção de (um)a História Global permeável, descentralizada, polifónica, plena de assimetrias e de assincronias. A historiografia emergente assume o “global” como chave hermenêutica, interpretativa, mas não totalizante, e centra-se nas relações que, de alguma forma, vinculam todos os seres humanos, nas suas especificidades ou nas suas semelhanças. Na ótica de Chloé Maurel (2014: 111), a história global implica influências recíprocas entre sociedades e culturas, ressalvando, todavia, a existência de “circulações culturais” e “circulações de saberes que se estabelecem entre espaços dominados e espaços dominantes». A rede tecnológica, acelerada e imparável, afeta(ou) drasticamente o pensamento dos historiadores e a linguagem por si utilizada, que largamente se distancia da escrita do passado. Por todas as (r)evoluções que Vida e História têm sofrido, e que são hoje factos inquestionavelmente admitidos, os profissionais da História buscam, persistentemente, métodos conformes e adequados ao estudo dos grandes problemas que afetam a contemporaneidade, como refere Sebastian Conrad, na obra What Is Global History? (2016). Cônscios da intersecção que mescla as mais diversas áreas do saber, a cultura e as artes, enquanto axis mundi, alguns dos mais relevantes historiadores coevos, como Emanuel le Roy Ladurie, interrogam-se se “a História não acabará por ser uma mistura entre as Ciências Humanas, por um lado, e a literatura, o romance, as belas artes, o cinema, o teatro e a ópera, por outro.» (in Le Goff et al., 1986: 33).

    Também em Portugal se repercute esta dupla noção de globalização. São disso testemunho a criação do Centro de Estudos Globais da UAb e o surgimento da revista e-Letras com Vida — Revista de Estudos Globais: Humanidades, Ciências e Artes [e-LCV], publicação científica semestral do Centro de Estudos Globais da Universidade Aberta (CEG/UAb), em parceria com o Instituto Europeu de Ciências da Cultura Padre Manuel Antunes (IECCPMA) e a Associação Internacional de Estudos Ibero-Eslavos (CompaRes), periódico que visa divulgar, estudos originais sobre Literatura, especialmente encarada na sua inscrição cultural e em diálogo com História, a Filosofia, as Artes e as Ciências. Outros pensadores e filósofos se destacaram por uma visão abrangente das Humanidades. Aristóteles, Leonardo da Vinci, Johann Wolfgang von Goethe, Miguel de Cervantes ou Fernando Pessoa questionam a unilateralidade da História e das Artes, em geral, e, particularmente, da Literatura. O projeto em foco assume um caráter “mais possibilitante do que totalizante”, declara Isabel Ponce de Leão, em entrevista ao Jornal As Artes entre as Letras (2024: 4), evocando o trajeto de autores como Jean Piaget (1970) ou Jantsch e Bianchetti (2008), que obrigam os leitores a refletir sobre a relação ou interação entre literatura(s) e sociedade(s). Assim, sob a égide da inter e da transdisciplinaridade, e porque cientes das mudanças velozes que caracterizam o nosso tempo, os autores da obra em foco apontam e apelam ao estímulo de um olhar mundividente.

    Sob o estímulo de Edgar Morin (Penser Global, 2015), e na sequência da História Global de Portugal, de José Eduardo Franco, José Pedro Paiva, Carlos Fiolhais, e da História Global da Alimentação Portuguesa, de José Eduardo Franco, Isabel Drummond Braga, e da História Global da Ciência Portuguesa, de Carlos Fiolhais, Henrique Leitão e José Eduardo Franco, a História Geral da Literatura Portuguesa, obra “interdisciplinar, interepocal e interespacial”, cujo projeto foi anunciado pelos Diretores e Coordenadores na revista e-Letras com Vida, em 2020. Nessa abordagem, já se aludia ao princípio de que “a construção global(izante) do mundo coevo se repercute na imagem metafórica da literatura.” (2024: 21). Por essa ocasião, num artigo intitulado “A literatura como medianeira entre a política e os valores”, Fernando Cristóvão definia a literatura como a “antropologia das antropologias” (2010: 17). José Eduardo Franco encara a literatura como um território global, pregnante de significados e de interpretações, e aponta para mutações epistemológicas que obrigam a (re)pensá-la enquanto espaço universal e universalizante. À semelhança de um ritual mágico antigo, na Introdução deste livro os Diretores abjuram literaturas monológicas, centralizadas sobre si mesmas. Fazendo a apologia da multiplicidade, sancionam que nesta obra “não há começos nem conclusões, há a vida no entreser e no entrelugar.» (2024: 23). Relegam, portanto, a ideia de silêncio e de insularidade da(s) literatura(s) e frisam a emergência das novas humanidades, veiculando a teoria de que cada literatura – consciente disso ou não – comunica com todas as outras. Na senda deste pensamento, evoquemos o dialogismo literário, preconizado por Mikhaïl Bakhtin (2003), e as teorias da intertextualidade, que defendem que todos os textos convocam outros textos. Assim acontece com a História. E assim sucede com a Literatura.

    Contrariando a árvore defendida por Descartes, que faz ressaltar as formas, Gilles Deleuze e Félix Guatarri (1999: 28) chamam às ciências humanas rizoma – noção provinda da botânica –, porque, tal como o rizoma, a mundivivência escapa à linearidade. O rizoma procura desbravar e desvendar o seu próprio caminho de microfendas, por onde possa esgueirar-se e disseminar-se. Os rizomas enxertados nesta obra (100 autores/verbetes) constroem novas linhas epistemológicas, que anunciam a transversalidade ao nível cultural, disciplinar ou temático, na urdidura de um mosaico de dinâmica nexológica que os subtítulos denotam e antecipam: “De Finis Patriae à Renascença Portuguesa: Do sentimento do fim de século ao saudosismo redentor”, “Literaturismo – Casas-museus, museus, roteiros, lugares, saraus, festivais, tradições…”, “Clio hoje: Ficções no centenário da república”, ou “Hipermédia e transmédia: Tecno-arte-poesia”. No que à metodologia concerne, da obra em análise despontam, com a mesma coerência e com o mesmo rigor, todas as idades.

    A trajetória histórico-literária que se vai desenhando “traduz-se em movimentos distintos em que o tempo e o espaço ora se contraem ora se dilatam consoante as dinâmicas de disseminação observadas pelos autores.” (34). Consideremos exemplos diversificados, trazidos à colação por Carlos Clamote Carreto: “Assim, vemos a tradição lírica cultivada no Gharb al-Andalus expandir-se pela Idade Média peninsular até à poesia de Ary dos Santos ou de Natália Correia, passando pelo Padre António Vieira e o século XIX de Herculano (Isabel Ponce de Leão), ao mesmo tempo que continua a florescer uma pujante Respublica Christiana das letras (António Rebelo) baseada na imitatio dos modelos literários da produção latina; acompanhamos as repercussões da peste de 1348 cujo imaginário ressurge periodicamente na literatura ocidental até à recente pandemia da Covid-19 (Sofia de Melo Araújo).” (2024: 34).

    O eixo ideológico por que se pautam as doutrinas que defendem os estruturalistas mais radicais refuta a oposição entre realidade e ficção, porque, na sua ótica, a “realidade”, a escrita da História também se realiza pela construção verbal, como refere Bernard Bergonzi (1980: 43). Na esteira do pensamento aristotélico, o teórico realça, ainda, que o romancista e o poeta são mais livres na construção da realidade, que não tem de obedecer estruturalmente às leis da verdade, mas da verosimilhança (ibidem). Mais do que outrora, na contemporaneidade, a literatura impõe-se como a arte de transformar a linguagem verbal (sistema semiótico primário), moldando-a, construindo novas realidades, revelando-se, simultaneamente, como um fenómeno “translinguístico de significação e de comunicação” (Pereira, 2024: 17). Entendidas como “sistemas modelizantes [secundários] do mundo”, as literaturas têm resgatado historicamente os excêntricos e os marginalizados, os subalternos – de entre os quais ressaltam os negros e as mulheres, “e operam numa grande cena fenomenológica com papel relevante dos bens simbólicos e da cultura” (2024: 17), como sugere José Carlos Seabra Pereira, autor da autor da incontornável e ambiciosa obra As Literaturas em Língua Portuguesa (2019). Prefaciador deste (também) extenso trabalho, caracteriza-o como “uma obra qualificadamente insólita, que nem teme afastar-se do regime tradicional de narrativa e anotação contínuas, nem o ignora no palimpsesto do seu horizonte de inscrição.” (19). A obra que vê a luz do dia aborda questões e temáticas diversas, até agora arredadas ou relegadas da perspetiva imprimida pela História da Literatura.

    Ao olhar “sabiamente esculpido” na História da Literatura Portuguesa, de António José Saraiva e Óscar Lopes – sem olvidar outras, igualmente valorosas, à época verdadeiramente transformadoras – Almeida Garrett, Teófilo Braga, António Quadros, Carlos Reis, faltava a consciência cognoscente de um olhar específico sobre um mundo diferente, em mudança. Faltava (um)a visão poliédrica – a verdadeira matriz palimpséstica – que subjaz à literatura, enquanto área específica do conhecimento, da ética e da criação estética: a polifonia, a heterodoxia, a subjetividade e a alteridade. Urgia a criação de uma História da Literatura que pudesse ser percebida pelos milhares de aprendentes do Português em todas as longitudes, com os seus condicionalismos próprios: uma obra acessível, mas rigorosa, útil a quem se limita à superfície das coisas, mas não menos instrumental para quem pretende descer mais fundo na sua reflexão e no seu conhecimento, declara Annabela Rita. Por todos os argumentos aduzidos, a obra confirma que, enquanto espaço metafórico, aglutinador de saberes, de ideias e de culturas – tal como a História – a Literatura se institui como um território global.

    Urge sublinhar que História Global da Literatura Portuguesa se edifica como uma tapeçaria polifónica, que ostenta redes intertextuais e dialógicas entre universos só aparentemente inconciliáveis. Trazendo à colação uma plêiade de obras ou de autores relegados pela historiografia canónica literária, os autores dos verbetes, oriundos de diversos centros de estudo e de diferentes universidades, colocam-nos em diálogo com obras referenciais e perspetivam a sua análise numa dinâmica profunda, revelando como principal escopo a vigência de um novo paradigma, inclusivo e abrangente, de onde nascerão “novas luzes”.

  • A tragédia como forma de silêncio

    A tragédia como forma de silêncio

    Título

    Naquele dia

    Autora

    LAURA ALCOBA (Tradução: Luísa Benvinda Álvares)

    Editora

    Dom Quixote (Março de 2025)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Há livros que parecem escritos não para serem lidos, mas para nos confrontarem com o que preferíamos não saber. Naquele Dia, da escritora Laura Alcoba, é um desses livros. Evita o alarido, recusa a grandiloquência, abdica de qualquer manobra de sedução narrativa — e, no entanto, impõe-se com a força de um sismo moral. Baseado num caso verídico ocorrido em Paris em 1984, Naquele Dia propõe uma reconstrução fragmentária, mas obsessivamente delicada, de um acto de violência doméstica que escapa a toda a lógica e que, por isso mesmo, exige escuta.

    Não é um romance no sentido clássico, e também não se entrega à crueza documental. Laura Alcoba faz — e fá-lo com uma contenção que roça o ascetismo — uma reconstituição de um espaço de ruína emocional através de três figuras: a mãe, Griselda, que mergulha num estado de desespero absoluto; o pai, Claudio, impotente e ausente; e a filha, Flavia, que sobrevive. Mas o verbo “sobreviver” aqui não é simples estatística vital: Flavia sobrevive à morte física, mas não ao colapso do mundo. A sua voz — ou melhor, os seus gestos, os seus silêncios, os seus desenhos infantis — atravessam o livro como restos de uma linguagem interrompida.

    Há neste gesto literário algo de Truman Capote, mas sem teatralidade. A escritora argentina, exilada desde a infância, inscreve-se na tradição da literatura do real, mas recusa o voyeurismo. Não há aqui nenhum esforço de dramatização. Nem julgamento, nem explicação. Alcoba compreende — como poucos — que há actos que não podem ser reduzidos a uma lógica causal, nem sequer à linguagem da psicologia. Aquilo que houve naquele dia — e nos dias que o antecederam — foi um paroxismo. Um termo árido, sim, mas talvez o único que se aproxima da natureza do que se passou: o colapso súbito, íntimo, surdo, da humanidade numa mulher. A maquilhagem de Griselda, obsessiva, torna-se não apenas máscara mas metáfora. E o frio de Paris, omnipresente, nunca é apenas meteorológico.

    A escrita, depurada até ao osso, é também um acto ético. Laura Alcoba não toma o lugar de ninguém: recolhe, escuta, recompõe. Nunca tenta explicar o que não é explicável. Nunca escreve em nome das vítimas — escreve perto delas. E, talvez por isso, Naquele Dia se torne mais do que um livro: uma forma de presença, uma tentativa de devolver ao espaço público uma história que parecia ter sido soterrada por neve e silêncio.

    Não deixa de ser significativo que a escritora, embora vivenda na França há décadas, ainda guarde um olhar argentino sobre o Mundo. Há no seu estilo uma densidade hispano-americana, uma estranheza dos exilados que vivem entre línguas. E se o livro nos fala de um drama familiar, fala-nos também do exílio — esse estado permanente de perda de referência e de reconstrução forçada da identidade. Perguntar se Laura Alcoba ainda se sente argentina é talvez redundante: aquilo que ela escreve só poderia ser escrito por alguém que traz um país inteiro dentro da memória.

    Naquele Dia não é um livro agradável, mas é um romance necessário. Não nos reconcilia com o mundo, mas também não nos entrega ao desespero. Obriga-nos apenas — e já é tanto — a parar, escutar e reconhecer que há actos humanos que não devem ser julgados à pressa, nem esquecidos em silêncio. Devem, isso sim, ser habitados. E, com a delicadeza quase litúrgica que lhe conhecemos, é isso que Laura Alcoba faz — e nos convida a fazer com ela.

  • Uma faca de dois gumes

    Uma faca de dois gumes

    Título

    O coração pensante

    Autor

    DAVID GROSSMAN (tradução: Lúcia Liba Mucznik)

    Editora

    Dom Quixote (Novembro de 2024)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Uma das vozes literárias mais profundas e complexas de Israel, David Grossman é reconhecido tanto pela sua ficção quanto pelos seus ensaios e intervenções públicas. Nascido em Jerusalém em 1954, a sua carreira literária nota-se pela exploração das vulnerabilidades humanas e pelos dilemas éticos da sociedade contemporânea, transitando entre a dor íntima e o trauma coletivo, sempre com uma abordagem literária de fino recorte. Por isso, a sua obra transcende as fronteiras do conflito israelo-palestiniano – mas não a esquece, pelo contrário – e foca-se, amiúde, em questões universais como a perda, a memória e a procura de sentido em tempos de adversidade.

    Nesta colectânea de ensaios intitulada ‘O coração pensante’, Grossman reafirma o seu compromisso com uma literatura que questiona e ilumina. A obra reúne reflexões, que se iniciam em 2017 e se prolongam até ao presente ano, com enfoque aos acontecimentos após 7 de Outubro de 2023, o enfoque do prólogo. Acreditando que a literatura deve ser um espaço de resistência à indiferença, uma forma de capturar a essência humana mesmo em contextos de desumanização. Os textos de ‘O coração pensante’, reflectem uma sensibilidade que vai além da emoção imediata para integrar pensamento, ética e acção.

    Aliás, Grossman não se limita a explorar o sofrimento pessoal, não o explora para comover. Embora a dor seja um tema constante na sua obra, essa questão nunca aparece isolada; ela é contextualizada, analisada e, muitas vezes, transformada num convite à empatia, aparentemente impossível entre palestinianos e israelitas.

    Embora ‘O coração pensante’ não seja um manifesto político, Grossman não se esquiva das questões mais prementes deste seu e nosso tempo. O conflito israelo-palestiniano atravessa as suas reflexões, mas não como uma mera análise directa, mas como cenário e palco inevitável, sendo que David Grossman se posiciona como um crítico tanto das políticas de ocupação israelitas quanto da violência por parte de extremistas palestinianos.

    Em todo o caso, trespassa, desde logo no prólogo, escrito no dia 10 de Outubro do ano passado, um tom avassaladoramente crítico ao Governo de Netanyahu, que fere pela justa crueza: “Vejo também um profundo sentimento de traição. A traição dos cidadãos pelo seu governo. Traição a tudo o que nos é caro, a nós enquanto cidadãos, enquanto cidadãos deste Estado. Traição no sentido específico e vinculativo da palavra. Traição à garantia mais cara de todas – a lei nacional do povo judeu – que foi entregue aos seus dirigentes para salvaguarda, e que eles deviam ter tratado com reverência. E em vez disso, o que vimos? O que é que nos habituámos a ver como se fosse normal e inevitável? O que vimos foi o abandono deste país em benefício de interesses mesquinhos, de uma política cínica, tacanha de espírito e delirante. O que acontece hoje é o preço que Israel paga por se ter deixado seduzir durante anos por uma governação corrupta, que o conduziu de fracasso em fracasso. Que corroeu as suas instituições de direito e justiça, os sistemas militar e de educação; que estava disposta a colocá-lo perante um perigo existencial, a fim de salvar o primeiro-ministro de ser preso. Basta pensarmos naquilo em que colaborámos durante anos. Na energia, pensamento e dinheiro que desperdiçámos vendo a família Netanyahu representar o seu drama estilo Ceaușescu. Nas fraudes grotescas que ela encenou perante os nossos olhos estupefactos.”

    E, não esquecendo a barbárie do Hamas, há muitas críticas mais que sibilinas a Netanyahu, a quem os ataques terroristas serviram para a sua salvação política. “Nos últimos nove meses”, salienta Grossman, “milhões de israelitas manifestaram-se semanalmente contra o governo e contra o   homem que o chefia. Foi um processo extremamente importante que exigia devolver Israel a si próprio, à grandiosa ideia que está na base da sua existência: criar um lar para o povo judeu. E não um lar qualquer: milhões de israelitas queriam criar um estado liberal, democrático, amante da paz, pluralista, respeitador das crenças de todos os homens. Em vez de escutar o que o movimento de protesto propunha, Netanyahu preferiu desacreditá-lo, chamar-lhe traidor, incitar contra ele e aprofundar o ódio entre as partes. Mas aproveitou todas as oportunidades para declarar o quanto Israel era forte, determinado e, acima de tudo, preparado, preparado para enfrentar qualquer perigo. Diz isso agora aos pais loucos de dor, ao bebé atirado para a berma da estrada. Diz isso aos reféns, pessoas partilhadas como rebuçados entre as diferentes organizações terroristas. Diz isso aos que te elegeram. Diz isso às oito brechas no muro de fronteira mais sofisticado do mundo”. 

    E continua, assertivo, virando-se para o Hamas: “Mas não se pode errar e confundir: com toda a ira contra Netanyahu, os seus pares e os seus métodos, não foi Israel que causou aquele horror. Foi o Hamas quem o causou. A ocupação é certamente um crime, mas prender centenas de cidadãos, crianças, pais, idosos e soldados, e depois passar por eles um a um e disparar sobre eles a sangue-frio – é um crime muito mais horroroso. Na hierarquia do crime também há ‘graus’”.

    Lidas as crónicas, fica-se no fim com uma estranha sensação sobre a impossibilidade para um fim do conflito. Num dos ensaios, um discurso pronunciado na Praça Habima, em Telavive rem Maio de 2021, um Grossman profético sentencia: “Nós, os israelitas, ainda recusamos entender que terminou a era em que a nossa força pode decidir uma realidade cômoda apenas para nós, para as nossas necessidades e interesses. Será que a última guerra nos convencerá finalmente que, de certo ponto de vista, a nossa força militar já quase não é relevante? Que não importa quão grande e pesada é a espada que empunhamos, no final de contas qualquer espada é uma espada de dois gumes?”

    No final de 2024, vemos que essa faca de dois gumes continua a dilacerar a Humanidade.

  • A arte como instrumento de superação

    A arte como instrumento de superação

    Título

    Faca − Meditações na Sequência de Uma Tentativa de Homicídio

    Autor

    SALMAN RUSHDIE (Tradução: J. Teixeira de Aguilar) 

    Editora

    Dom Quixote (Maio de 2024)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Salman Rushdie é um autor tão amado quanto odiado. Sobre ele foi decretada uma sentença de morte. Foi em Fevereiro de 1989 que o aiatola Ruhollah Khomeini, o líder supremo do Irão, ordenou, através de uma fatwa, que o escritor fosse assassinado. Trinta e três anos depois desse decreto, a 12 de Agosto de 2022, Rushdie subia ao palco do anfiteatro de Chautauqua, Nova Iorque, para falar sobre a importância de manter os escritores fora de perigo, quando foi atacado por um jovem armado com uma faca. O autor de ‘Os Versículos Satânicos’ sobreviveu ao atentado e decidiu responder ao violento ataque escrevendo este livro.

    A obra acaba por ser uma espécie de exorcismo combinado com a decisão de expurgar a ‘vítima’ existente no escritor, fruto da experiência de ser um alvo a abater por fundamentalistas.  Rushdie expõe ao detalhe a experiência traumática por que passou, naquele fatídico dia de Agosto, numa catarse. Ao mesmo tempo que liberta a dor e as recordações, o autor procurou, sobretudo, usar a escrita como instrumento para superar a dor, a injustiça, a perseguição e a violência de que foi alvo (e continua a correr perigo diariamente). De resto, o escritor dedica a obra aos homens e mulheres que lhe salvaram a vida. 

    As páginas dedicadas ao ataque em si, e aos dias em que esteve internado, são difíceis de ler e de digerir. São íntimas, pessoais e gráficas em muitos aspectos. “Abri os olhos − apenas o olho esquerdo, conforme parcialmente percebi; o olho direito estava tapado com uma ligadura macia − e as visões não desapareceram, tornando-se, ao invés mais fantasmagóricas, translúcidas, e comecei a tomar consciência da minha verdadeira situação. A primeira descoberta, a mais premente e menos confortável foi o ventilador. Mais tarde, quando mo retiraram e pude dizer coisas, disse que era como se me enfiassem a cauda de um tatu pela garganta abaixo”. Relatos como este atingem-nos de uma forma brutal e fria. São relatos contados na primeira pessoa por alguém que foi atacado de forma vil. Os detalhes sucedem-se, página após página, e tocam-nos de uma maneira desconfortavelmente íntima. “O meu pescoço e a minha face direita tinham sido retalhados pela faca e eles podiam ver ambos os bordos do corte unidos por agrafos metálicos”.

    Mesmo as páginas dedicadas à recuperação nos catapultam para um dia-a-dia de alguém que é, no mais profundo sentido, um sobrevivente. “Era entusiasmante fazer coisas tão ‘normais’ como ir a casa de amigos”. O ‘regresso’ ao mundo é descrito ao pormenor; como foi sentido, por dentro; as impressões. Mas era um novo mundo. Uma nova vida. Uma entrevista publicada na The New Yorker, em Fevereiro de 2023, simbolizaram como que o ‘anúncio’ desse regresso.  “Quando a entrevista a fotografia foram publicadas, foi como uma reentrada no mundo após meio ano no Limbo. Fevereiro significava tudo isso. Além disso, 14 de Fevereiro era o 34º aniversário da fatwa. Eu deixara de me recordar dos aniversários da fatwa, mas agora tinha de recomeçar.”

    Rushdie é o vencedor; sobreviveu e vive, recusando submeter-se ao peso da sentença decretada. Recusa esconder-se. Recusa render-se. E vive. “Mas 14 de fevereiro era também o Dia dos Namorados e Eliza e eu decidimos comemorá-lo indo jantar a um restaurante pela primeira vez em seis meses. Fomos com segurança, mas fomos. Pareceu-me um momento profundo. olá, mundo, estávamos a dizer. estamos de regresso, e depois do nosso encontro com o ódio estamos a celebrar a sobrevivência do amor. Depois do anjo da morte, o anjo da vida.” 

    Ler este livro não nos atira apenas para dentro da vida de um escritor que foi retalhado física e emocionalmente por um ataque de ódio e recuperou. Recorda-nos da brevidade da vida e da liberdade que temos para a viver. Uma liberdade diferente da de quem olha por cima do ombro e sai com um segurança atrás, como Rushdie. E o escritor, mesmo assim, escolhe viver. Livre.  

  • Sou outro, não sou outro

    Sou outro, não sou outro

    Título

    Manual para a obediência

    Autor

    SARAH BERNSTEIN (tradução: Maria de Fátima Carmo)

    Editora

    Dom Quixote (Junho de 2024)

    Cotação

    15/20

    Recensão

    O mote é dado logo nas primeiras páginas:

    Eu era a filha mais nova, a mais nova de muitos – mais do que gostaria de me lembrar – de quem tomei conta desde a mais tenra idade, antes, de facto, de ter eu própria a faculdade da fala e não obstante as minhas capacidades motoras estarem na altura pouco desenvolvidas, estes, os meus muitos irmãos, foram deixados a meu cargo. Eu satisfazia todos os seus desejos, aliviava o menor desconforto com perfeita obediência, com o maior grau de devoção, de modo que com o passar do tempo os desejos deles se tornaram os meus, de modo que eu conseguia antever necessidades ainda nem formuladas, porventura sequer imaginadas, providenciando aos meus irmãos o maior auxílio possível, satisfazendo-os apenas o suficiente para que depois me pudessem exigir mais, sempre mais, exigências a que eu acudia com alacridade e discreta prontidão, ministrando os complexos caldos terapêuticos que lhes eram prescritos por vários médicos, servindo refeições e lanchinhos, cigarros e aperitivos, últimas bebidas da noite e copos de leite à cabeceira da cama.”

    Uma jovem mulher muda-se da sua terra natal para uma remota região, para ser governanta do irmão que foi, recentemente, abandonado pela mulher e filhos.

    Embora seja a filha mais nova de uma série de irmãos, foi ela que sempre teve a seu cargo servi-los o que lhe moldou desde cedo o espírito, aprendendo a anular a sua existência. Mesmo no trabalho conta-nos: “(…) saí sem estardalhaço. Ninguém lamentou ver-me partir. O trabalho que tinha antes de ir para casa do meu irmão, no país dos nossos antepassados, e que continuaria a desempenhar remotamente de lá era transcrever documentos áudio em texto para um escritório de advogados, função em que era exímia, datilografando com rapidez e rigor e conhecendo bem o meu trabalho. Apesar disso, sentia que não era bem-vinda no escritório, onde se alinhavam os habituais aprestos legais, dossiês e diplomas, couro e madeira. Eu sabia que as minhas exibições hesitantes de humanidade, a minha insistência miserável em continuar a aparecer no escritório dia após dia, não podiam deixar de causar desalento aos juristas e assistentes jurídicos cujas vozes eu datilografava num processador de texto com rapidez, precisão, devoção e até amor, e por isso acolheram o anúncio da minha saída com indisfarçada alegria, organizando uma festa de despedida em minha honra, dando uma espécie de banquete e oferecendo presentes generosos.”

    A esta espécie de não-existência junta-se, conforme as peças se ligam, e a narradora discorre sobre a sua vida, o facto de a própria família parecer sentir por ela uma certa aversão.

    Voltando aos dias onde começa a narração, quando, a certa altura, o irmão a deixa sozinha na casa, para viajar numa das suas muitas viagens de negócios  “dedicado à bem-sucedida venda e comercialização, importando e exportando, de uma variedade de bens e serviços, cujas especificidades permanecem ainda hoje uma incógnita para mim”, muito pouco tempo depois de ela ali ter chegado, ocorrem vários acontecimentos inexplicáveis, na povoação próxima da casa e as suspeitas dos habitantes recaem sobre ela, uma estrangeira recém-chegada. O crime do qual ela é acusada é de ser a culapada de uma série de catástrofes ambientais locais: uma “gravidez fantasma” de uma cadela; uma porca depressiva que esmaga os seus leitões; e um rebanho de gado enlouquecido. “Foi no ano em que a porca erradicou os leitões. Viviam-se tempos céleres e inquietantes. Uma das cadelas da terra estava a ter uma prenhez fantasma. As coisas saíam de um sítio e apareciam noutro. Era primavera quando cheguei ao campo, soprava um vento de leste, um vento aziago, como se viu depois. Começaram a dar-se certas coisas. Os leitões vieram mais tarde mas não muito, e mesmo que eu não tivesse chegado há pouco, não tivesse os animais a meu cargo, só tivesse lá ido ver, a salvo do outro lado da vedação elétrica, eu sabia que eles tinham razão quando afirmavam que era responsável.”

    E é nesta toada que o livro acontece. Ela rapidamente descobre que todos os habitantes da povoação a odeiam. Ou temem-na. As mães cobrem os olhos dos filhos quando ela passa. Num café, incapaz de falar a língua local, aponta para o café de uma mulher porque também quer um e ela começa a chorar enquanto os outros clientes secretamente fazem o sinal da cruz. Mais tarde, um lojista agacha-se atrás do balcão enquanto ela examina as prateleiras. O que há nesta mulher que provoca respostas tão extremas? A única resposta é que ela é judia. O que acontece à narradora é por ela aceite passivamente. Afinal ela estava “naquele remoto país setentrional, o país, veio a saber-se, dos nossos antepassados, uma gente obscura embora ultrajada que fora arrastada através de fronteiras e metida em valas (…)”. Só lhe acontece o medo. O medo do que lhe pode acontecer e a dúvida do que serão capazes os habitantes da povoação? Realmente pouca coisa acontece  mas, espelhando as divagações diárias da protagonista pela floresta que circunda a casa, o romance é composto de divagações filosóficas, às vezes rapsódicas, registadas numa prosa meticulosa mas contida e oferece-nos uma meditação sobre a sobrevivência, os perigos de absorver as narrativas dos que têm o poder e um aviso de que a autoculpa dos oprimidos muitas vezes volta para se vingar. “Manual para a Obediência” de Sarah Bernstein, pois, uma obra que mistura elementos de ficção literária com pitadas filosóficas e psicológicas, abordando temas como autoridade, conformidade e rebelião.

  • Outro livro que vai irritar libertários e conservadores

    Outro livro que vai irritar libertários e conservadores

    Título

    São favas contadas

    Autor

    GUIDA CÂNDIDO

    Editora

    Dom Quixote (Outubro de 2024)

    Cotação

    18/20

    Recensão

    Nada como um par de brócolos para tirar conservadores do sério. Como bónus, também funciona para deixar libertários à beira de um ataque de nervos. É verdade: as dietas e opções nutricionais transformaram-se numa das armas a usar nos vastos campos de batalha em que se tornou o espaço público mediático e digital. Como quando éramos crianças, hoje, não há meio termo: ou se é do Benfica ou do Sporting. Nada de ser do Belenenses ou do Académica. A rivalidade é a valer. Assim, é também esse o cenário que encontramos no mundo de uma vasta camada de adultos ocidentais. Se não és do meu ‘clube’, és do ‘clube’ rival. Não há cá meio termo.

    Estará o leitor a questionar se me enganei no texto e a indagar o que é que isto tem a ver com o livro analisado nesta recensão. Tem tudo a ver. As dietas sempre foram sintomas de credos e religiões e dão pistas para a origem familiar de cada um. O indiscutível bacalhau e o embaixador pastel de nata que o digam. Mas a dieta é também um sintoma ideológico. Ninguém que se diga conservador se assume como vegetariano numa qualquer rede social. Ficava mal. O mesmo vale para um libertário. É tudo gente que come carne ao pequeno-almoço, ao almoço e ao jantar. Se, por acaso, algum for apanhado a comer uma saladinha vegetariana ao almoço, está frito. Irão surgir suspeitas de tiques de wokismo com uma pitada de extrema-esquerda, caviaríssima, naturalmente. 

    Por isso, este livro é tão bom… Permite, de uma só cajadada, ‘matar dois coelhos’, irritando conservadores e libertários. Traduzido para a realidade ‘tuga’ corresponde, mal comparado, à malta que usa polo ou roupa boa de marca, bem como todos os amantes de tourada, caça e monarquia, com socialistas e social-democratas à mistura. Mas, na realidade, este livro permite ‘matar três coelhos’ com uma só cajadada. É que vai também irritar a malta woke, da extrema-esquerda e ‘liberal’. Em linguagem lusa, apanha parte dos que votam no PAN, dois ou três do Bloco e toda a seita da Climáximo. Isto, porque o vegetarianismo está ali no limbo, ideologicamente falando. Num mundo ocidental polarizado ideologicamente, ser vegetariano é não ser nem carne nem peixe. Literalmente. Ou se é vegan ou totalmente carnívoro. No fundo, qualquer vegetariano vai ser odiado pelos wokistas de cabelo rosa e, em simultâneo, pela malta da ‘direita’, em geral. 

    Claro que há excepções. Aliás, acabei de me lembrar de uma amiga ultra-conservadora que não come carne. Mas é um caso e vamos ver quanto tempo resiste à pressão dos pares ‘liber-cons’.

    Em resumo: com tantos bónus, acresce que se trata de uma obra que dá gosto ler, ver e sentir. O papel é daqueles que já pouco se vê. Tem fotografias catitas e ‘cheira a livro’. Está recheado de receitas e, como acompanhamento, apresenta uma componente histórica sobre a arte da cozinha, dos saberes antigos, daqueles que misturam nutrição com mezinhas milagrosas.

    Apesar de ser um livro sobre vegetarianismo, pesa que nem um naco de carne para assar. Com osso. Por isso, não é aconselhável para se levar de trotinete até à Baixa ou de bicicleta até aos Anjos, a não ser que se tenha aquele acessório tipo cesto, próprio para mostrar na vizinhança os legumes biológicos comprados a cada Sábado, depois do brunch e antes do almoço-piquenique com manta adequada. É que isto de ser de esquerda, hoje, em dia, é muito trabalhoso. Além de caro.

  • As (últimas) lições de Calvino

    As (últimas) lições de Calvino

    Título

    Seis propostas para o próximo milénio

    Autor

    ITALO CALVINO (Tradução: José Colaço Barreiros)

    Editora

    Dom Quixote (Abril de 2024)

    Cotação

    20/20

    Recensão

    São as últimas ‘lições’ de um grande escritor. Trata-se dos textos sobre literatura, os rascunhos, que Italo Calvino preparou em 1985, no âmbito de um ciclo de seis conferências que iria apresentar em Harvard, nos Estados Unidos. Antes de partir, teve de ser internado e já não voltou a sair do hospital. 

    Lendo o livro, senti que estava a assistir às conferências que Calvino planeava dar. Detive-me na página 79 e numa das suas ‘lições’: a ‘exactidão’ na literatura. Só a introdução que faz, antes de ‘atacar’ o tema, é de nos transportar para Harvard e, cerrando os olhos, conseguimos imaginar o orador a expor a sua posição. “Exatidão para mim quer dizer sobretudo três coisas”, escreveu Calvino. A saber: “um projeto da obra bem definido e bem calculado; a evocação de imagens visuais nítidas, incisivas, memoráveis […]; uma linguagem o mais precisa possível como léxico e na sua capacidade de traduzir as nuances do pensamento e da imaginação”.  O parágrafo seguinte é revelador do pensamento do escritor e do seu modo de viver a literatura e a escrita, à luz das exigências da sua ‘exatidão’. “A literatura […] é a Terra Prometida em que a linguagem se torna o que realmente deveria ser.” (Mais adiante, contrapõe: “Giacomo Leopardi afirmava que a linguagem é tanto mais poética quanto mais vaga e imprecisa for”.)

    E o que dizer sobre a ‘lição’ acerca da ‘leveza’? E da homenagem a Cyrano de Bergerac? “É um escritor extraordinário, Cyrano, que mereceria ser mais recordado, e não só como o primeiro verdadeiro precursor da ficção científica, mas pelas suas qualidades intelectuais e poéticas.” E ainda: “Cyrano celebra a unidade de todas as coisas, inanimadas ou animadas, a combinação de figuras elementares que determina a variedade das formas vivas, e acima de tudo dá-nos o sentido da precariedade dos processos que as criaram […]”.

    Ainda sobre a ‘leveza’, recorda que Cyrano chegou a “proclamar a fraternidade dos homens com as couves”, imaginando o protesto de uma couve prestes a ser cortada. E cita Cyrano: “Homem, meu querido irmão, que te fiz que mereça a morte? […] Desabrocho, estendendo-te os braços, ofereço-te os meus filhos em semente e, como recompensa da minha delicadeza, cortas-me a cabeça!”

    Muito teria ainda por contar, aqui, sobre as ‘lições’ de Calvino, que abrangem ainda a ‘rapidez’, a ‘multiplicidade’, a ‘visibilidade’ e o ‘começar e acabar’. Mas termino aqui, recomendando a leitura deste livro, tenha ou não interesse em literatura, nem que seja pelo prazer de ler Calvino. E, só por isso, já vale a pena. (Os olhos e a carteira, neste caso.)

  • Explicar um drama sem fim

    Explicar um drama sem fim

    Título

    Holocaustos

    Autor

    GILLES KEPEL (tradução: Luís Filipe Pontes)

    Editora

    Dom Quixote (Julho de 2024)

    Cotação

    16/20

    Recensão

    A análise de um tema complexo do quotidiano – excluindo assim visão distante do historiador – varia significativamente conforme o meio utilizado, cada um oferecendo diferentes níveis de profundidade e tempos de abordagem. As notícias diárias de um jornal, por exemplo, oferecem-nos informações ‘frescas’ e imediatas sobre eventos atuais, mas com uma profundidade superficial, focando os factos essenciais devido à necessidade de atualidade. Por outro lado, uma reportagem longa numa revista mensal proporciona um espaço maior para investigação, permitindo uma visão mais detalhada e contextualizada, embora ainda limitada pela extensão e pelo público-alvo.

    Os documentários, por sua vez, podem exigir semanas ou meses de produção, concedem uma análise ‘conduzida’ por imagens, entrevistas e uma narrativa envolventes.

    Em contraste, um livro, dependendo do autor e do tema, oferece, geralmente, uma exploração abrangente e crítica, permitindo captar a complexidade de um determinado assunto com uma profundidade que os outros ‘géneros’ não alcançam. Mas um livro, tal como também um documentário, corre um elevado risco de desactualização em assuntos de grande ‘dinamismo’ ainda não concluído.

    É esse o caso de ‘Holocaustos’, uma interessantíssima obra de Gilles Kepel, um reconhecido cientista político e arabista francês, especializado no Médio Oriente contemporâneo e antigo director do Programa Oriente Médio e Mediterrâneo da Université Paris Sciences et Lettres. Publicado em finais de Março deste ano em França, e logo traduzido em Julho para português, pela Dom Quixote, este livro debruça-se sobretudo sobre os acontecimentos posteriores ao ataque do Hamas a Israel em 7 de Outubro do ano passado, contextualizando-se, de forma excelente (com mapas bastante elucidativos, nas suas diversas ramificações, incluindo fora da região de Israel e Palestina, nomeadamente nos países muçulmanos adjacentes, e não apenas no Líbano ou Irão, e também na Turquia, no eixo China-Moscovo e, claro, nos Estados Unidos.

    E, por esse motivo, a análise de Gilles Kepel, embora não falhe absolutamente nada naquilo que este conflito se está a tornar – uma guerra (quase) global, não apenas bélica mas de valores –, começa a torna-se desactualizada por, entretanto, terem saído de cena, inopinadamente ou não, alguns dos ‘protagonistas’, como são o caso de Joe Biden, que já não será o candidato democrata às eleições presidenciais norte-americanas, e de Hassab Nasrallah, o líder do Hezbollah, morto no passado dia 27 de Setembro em Beirute num ataque israelita.

    Independentemente destes ‘percalços’ dos acontecimentos, esta obra de Gilles Kepel ajuda bastante a compreender o que está, e estará, em jogo, incluindo o misticismo religioso, e sobretudo abre portas sobre o papel dos Estados Unidos na maior radicalização da posição israelita em torno de uma narrativa nacional fundamentalista e belicista. Mesmo com Kamala Harris agora em jogo, o cientista político francês não tem dúvidas em concluir que Benjamin Netanyahu estará a torcer por uma vitória de Donald Trump, o que revela que ‘isto’ vai, infelizmente, continuar nos próximos meses, não sendo de admirar porque não pára há mais de sete décadas.

  • O início do regresso a casa

    O início do regresso a casa

    Título

    Deus, a Ciência, as Provas

    Autores

    MICHEL-YVES BOLLORÉ E OLIVIER BONNASSIES (tradução: José Mendonça da Cruz)

    Editora

    D. Quixote (Setembro de 2024)

    Cotação

    20/20

    Recensão

    Será que Deus existe? É possível demonstrá-lo com a ajuda da Ciência? Pode a ideia de um Deus criador do Universo andar de mãos dadas, em harmonia, com a Ciência? Os autores deste livro (um engenheiro informático e Mestre em Ciências e um empresário e teólogo) propõem responder a estas questões com uma voz científica.

    A obra, que é já um best seller com mais de 300 mil exemplares vendidos, resulta de “três anos passados a trabalhar com 20 cientistas e especialistas do mais alto nível” e conta com um prefácio de Robert W. Wilson, Prémio Nobel de Física.

    Na verdade, o que compreendemos durante a leitura do livro é que, afinal, Ciência e Deus não têm estado, assim, tão afastados um do outro. Nem que seja porque muitos cientistas são crentes e praticam alguma religião. Os autores citam, designadamente, um estudo realizado pelo geneticista Baruch Aba Shalev sobre as crenças dos laureados do Prémio Nobel desde a sua origem, intitulado “100 anos de Prémios Nobel”. O cientista estimou que 90% dos Prémios Nobel científicos se identificavam com uma religião, sendo que para dois terços deles a sua religião era o cristianismo. E os autores citam outros estudos que demonstram que ser cientista e crente é algo viável.

    Além do próprio propósito do livro, que pode causar acesos debates, os autores tocam em temáticas sensíveis para os crentes, nomeadamente os cristãos. Num dos capítulos, questionam “Quem será Jesus?”. Uma das hipóteses colocadas é que “era um louco, um iluminado”. Seria “um aventureiro falhado”? Ou terá sido “um profeta”? Mas os autores também fazem uma análise ao “único povo eleito de Deus”: os judeus. Nem Fátima escapa e um dos capítulos debate se se trata de uma “ilusão, embuste ou milagre”.

    Também é abordado o materialismo, enquanto “crença irracional”. E aqui os autores chegam à “alvorada de uma revolução” pré-anunciada na capa do livro. Isto porque, segundo os autores, “estamos perante uma mudança completa de paradigma sobre a questão das provas da existência de Deus”. Na sua obra, concluem que as provas que apresentam aos leitores são “inegavelmente modernas, claras, racionais, multidisciplinares, confrontáveis objectivamente com o Universo real e, além disso, são numerosas”.

    Segundo os autores, para os crentes, “esta obra permitirá compreender a que ponto as suas convicções assentam em alicerces racionais sólidos, embora a nossa época lhes diga o contrário”. Ademais, “este panorama de provas dar-lhes-á as armas necessárias para responder ao diktat do ‘intelectualmente correcto’ que vai repetindo dia após dia que a crença em Deus pertence ao domínio do irracional, e que deve, por isso, ficar limitada à esfera inferior”.

    Aos que se interrogam sobre a existência de realidades espirituais, “este livro permitirá compreender a que ponto a hipótese materialista é, na verdade, irrealista e, pelo contrário, a que ponto a tese teísta é fundada”.

    Os autores também deixam uma consideração sobre os materialistas “que tenham tido a paciência e a coragem” de ler o livro. “Esta obra permitir-lhes-á tirar as medidas ao desafio perante o qual estão desde agora confrontados”. E avisam: “com efeito, este desafio não consiste em refutar esta ou aquela prova apresentada da existência de Deus, mas antes todas elas ao mesmo tempo!”

  • Ir de vela

    Ir de vela

    Título

    Como construir um barco

    Autora

    ELAINE FEENEY 

    Editora

    D. Quixote (Julho de 2024)

    Cotação

    17/20

    Recensão

    Peguei no livro e saí a correr. Só mais tarde, quando me sentei para o ler, me dei conta do equívoco. Pensava que era um livro sobre como construir um barco. Literalmente. Daqueles livros práticos sobre ‘como fazer sozinho’. Não era. Não sei porque me equivoquei. Afinal, bastava olhar para a capa com reduzida atenção para perceber que se trata de uma obra de ficção. A etiqueta que diz que a obra foi nomeada para o The Booker Prize de 2023 era outra pista esclarecedora. Não estou a ver um livro que ensine a construir um barco a ser nomeado para um prémio do género (por muito que adore livros práticos sobre como fazer coisas). Adiante, ultrapassado o meu espanto (parvo) causado pela desatenção, aceito a situação: tinha um romance pela frente para ler.

    A capa era auspiciosa. Além da etiqueta de nomeação para o tal prémio, tinha uma recomendação de um vencedor do The Booker Prize, Douglas Stuart. Diz que se trata de “um romance cheio de esperança e de humanidade”. Na contracapa, prossegue: diz que é uma “daqueles raros livros que nos fazem sentir menos sós” e que se trata de “uma história inspiradora sobre uma comunidade e as pequenas coisas que podem mudar uma vida.”

    Não consegui ler o livro sentada, sossegada. Mexi-me muitas vezes no meu lugar no sofá. Para alguns, será talvez menos fácil de ler. (Percebi, depois, que a autora publicou também obras de poesia e teatro, o que explica alguns dos caminhos que percorreu para contar esta história.) Alguns parágrafos ganham vida e as palavras escorregam para as linhas seguintes, em sequência, exigindo atenção e abertura mental. Reli algumas partes para ver se tinha compreendido bem (mas admito que possa ser, também, feitio meu e da minha ocasional parca concentração). Acredito que cada um, seja neurodivergente ou neurotípico, ‘ouve’ as palavras que lê de forma única e compreende (ou não) e vivencia de modo próprio cada história, cada linha. 

    Posto isto, acabei a marcar várias páginas para as mencionar ao leitor desta recensão. Só tinha o marcador que vem com o livro e uma caneta. Acabei por marcar as restantes páginas com as caixinhas compridas de incenso que tinha comprado e que ainda aguardavam na almofada do sofá para ir para o armário. O resultado foi um livro gordo (mas sem páginas dobradas) e com as páginas devidamente seleccionadas.

    A obra tem como personagem central um rapaz, Jamie O’Neill, com 13 anos, que tem dois desejos ou sonhos. Mas seria muito redutor dizer que é disto que o livro trata. Entre histórias de personagens paralelas e o percurso do rapaz, há muitas enseadas, ondas, mergulhos, marés baixas e altas e redemoinhos.  O leitor é confrontado consigo próprio e com a sua vida (eu, pelo menos, fui). Simples frases levam-nos em viagens por novos mares, que não os do enredo do livro. Como no parágrafo que fala que a construção de um barco não é um processo aleatório, “tem muitas fases, vamos eliminar todas as irregularidades” e, “se alguma coisa estiver mal feita, a camada seguinte vai revelá-lo”. Como a vida? Ou o parágrafo que diz que “tudo o que é bom começa com um bom impulso”. Ou aquele que garante que “para criar é preciso sentir-se e estar desconfortável, e por vezes sentir-te-ás desacompanhado”. (Fico por aqui e, afinal, não precisava usar todas as caixinhas de incenso como marcador.) 

    Concluindo, tirando-se os inúmeros “foda-se” e “merda”, que detesto (distraem-me na leitura como uma mosca a ziguezaguear junto aos olhos), é um livro a ler. Com calma e paciência, devagar. O ‘slow reading‘, que é avesso ao consumo de papa-livros de Verão para mostrar, depois, nas redes sociais, a foto da pilha de obras lidas). Mas também esses leitores o lerão bem. Com asneiras e tudo (ou, sobretudo, porque as asneiras talvez ainda estejam na moda, não só na capa de livros, como no seu interior).