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  • Mais armas, menos crimes

    Mais armas, menos crimes


    No conforto das nossas casas e na segurança ilusória de um Estado paternalista, é fácil acreditar que a polícia está sempre pronta para nos salvar. No entanto, essa crença não resiste ao teste da realidade. Em situações de perigo iminente, onde a vida e a morte se decidem em segundos, a polícia – com todo o respeito aos seus esforços – chega invariavelmente tarde demais. Para o cidadão comum, esta realidade deveria ser suficiente para repensar a questão do livre porte de armas. Afinal, como se proteger quando o auxílio oficial simplesmente não chega a tempo?

    Em tempos de crescente insegurança, é curioso observar como a sociedade portuguesa ainda prefere confiar cegamente na protecção estatal enquanto os índices de violência crescem. O livre porte de armas para os cidadãos, um tema tabu nas conversas ditas “civilizadas”, oferece uma solução que os detractores, movidos por emoções e não por lógica, insistem em ignorar. Contudo, há evidências robustas que demonstram como cidadãos armados contribuem significativamente para a diminuição da criminalidade.

    black and silver semi automatic pistol

    O monopólio da violência pelo Estado é um conceito aceite, mas raramente questionado. Enquanto isso, os cidadãos são deixados à mercê de criminosos que não têm qualquer respeito pelas leis restritivas de armas. Portugal, que se orgulha da sua baixa criminalidade, cerca de 0,8 homicídios por 100 mil habitantes, precisa urgentemente de uma revisão das suas leis. Apesar de ser um país onde as armas de fogo têm uma elevada penetração, cerca de 22 armas de fogo por 100 habitantes, metade são ilegais.

    Estatísticas globais indicam que a posse de armas de fogo não está necessariamente associada a maiores taxas de homicídio ou violência. Vejamos alguns exemplos ilustrativos, conforme apresentado na Figura 1. A Suíça, com uma taxa de 0,49 homicídios por 100 mil habitantes — inferior à de Portugal —, possui 27 armas de fogo por 100 habitantes. A Sérvia, com 1,02 homicídios por 100 mil habitantes, um valor ligeiramente superior ao de Portugal, apresenta uma elevada posse de armas: 39,1 por 100 habitantes. Já os Estados Unidos, um caso extremo, contam com 120,5 armas de fogo por 100 habitantes e uma taxa de 6,38 homicídios por 100 mil — elevada, mas longe dos piores índices globais.

    Contrastemos isso com o Brasil, que, com apenas 8,3 armas de fogo por 100 habitantes, sofre uma impressionante taxa de 21,26 homicídios por 100 mil habitantes. Ainda mais alarmante é a Jamaica, onde, mesmo com uma baixa posse de armas de fogo, os homicídios atingem níveis exorbitantes. Esses dados evidenciam que o aumento na posse de armas não resulta necessariamente em maior violência, contrariando o discurso simplista de que legislações restritivas são o caminho único para a segurança. Essa realidade desafia a crença de que leis, meros enunciados num papel, oferecem maior protecção do que a capacidade de autodefesa de um cidadão preparado.

    Armas por 100 habitantes vs. Homicídios anuais por 100 mil habitantes. Fonte: World Population Review. Análise do autor.

    O Estado português, com as suas taxas de criminalidade relativamente baixas, vende aos seus cidadãos a narrativa de que não precisam de armas para se proteger. O Estado cuidará de tudo. Mas a matemática não mente: com uma densidade de aproximadamente 4,56 polícias por 1.000 habitantes, a quarta mais elevada da União Europeia (EU) – é evidente que não necessitamos de mais polícia, ao contrário do propagado pela “direita” – e, mesmo assim, é impossível garantir a presença policial em todos os locais de risco. Nos momentos críticos, a polícia é mais frequentemente um serviço de documentação pós-crime do que uma força de intervenção preventiva.

    Não se trata de desrespeitar o trabalho das autoridades, mas sim de encarar a limitação logística que caracteriza os sistemas de segurança modernos. A verdade nua e crua é que ninguém, excepto o próprio cidadão, está na linha de frente da sua defesa pessoal, da sua propriedade e família.

    As emergências não esperam pela burocracia. Durante um assalto, uma tentativa de homicídio ou um acto de violência doméstica, as vítimas têm apenas segundos para reagir. O que resta a um cidadão sem meios de defesa? Suplicar pela misericórdia de um criminoso? O sistema estatal é incapaz de prevenir a violência em tempo real. Isso porque, por natureza, a polícia não é omnipresente e resulta de uma contratação colectiva paga com o confisco à população. Na verdade, não são mais que funcionários de um grupo de mafiosos organizados em partidos políticos.

    Estudos realizados indicam que o tempo médio de resposta policial varia entre 10 e 15 minutos em zonas urbanas. Em áreas rurais, esse número pode chegar a 30 minutos ou mais. Agora considere: o que pode acontecer em 15 minutos? Para quem é vítima de um ataque, 15 minutos não são uma eternidade. São uma sentença.

    Número de polícias por 1.000 habitantes para diferentes países europeus em 2022. Fonte: Eurostat. Análise do autor.

    Embora a legislação de armas em Portugal seja rigorosa, a criminalidade não é inexistente. Segundo dados recentes, os assaltos violentos e os crimes cometidos com armas ilegais estão em ascensão. Mesmo em países com baixa criminalidade, como a Suíça e a Noruega, a posse de armas entre cidadãos comuns é reconhecida como uma ferramenta legítima para a defesa pessoal. Nestes países, a confiança no cidadão armado como parte da segurança colectiva é maior, e os resultados são claros: taxas de homicídios extremamente baixas e uma cultura de responsabilidade.

    Nos Estados Unidos, observa-se que estados com legislações mais permissivas quanto ao porte de armas frequentemente registam taxas de criminalidade mais baixas do que aqueles com restrições mais severas. Em Vermont, onde o porte de armas é amplamente permitido, a taxa de homicídios é de apenas 1,8 por 100 mil habitantes. Em contrapartida, Illinois, um estado conhecido por um controlo rigoroso de armas, apresenta uma realidade distinta: Chicago, uma das suas principais cidades, destaca-se como um epicentro de violência. Esses dados sugerem que a rigidez legislativa nem sempre se traduz em maior segurança pública.

    Os críticos do porte de armas frequentemente sustentam que sua presença aumenta os conflitos violentos. Embora esse argumento possua apelo emocional, carece de fundamentação nos dados disponíveis. Países como o Japão, onde as armas de fogo são praticamente inexistentes, apresentam taxas de homicídio semelhantes às da Suíça, onde a posse é amplamente difundida. A variável determinante não é a arma em si, mas sim a cultura de responsabilidade e a formação associada ao seu uso.

    Em Portugal, a insistência no monopólio estatal da força deixa os cidadãos em posição vulnerável. Enquanto armas ilegais continuam a circular livremente entre criminosos, o cidadão comum permanece desarmado pela força da lei. Um caso emblemático ilustra essa realidade: o proprietário de uma ourivesaria, que agiu em legítima defesa ao disparar contra um assaltante, foi detido pelas autoridades. A legislação portuguesa, ao exigir um rigoroso critério de proporcionalidade na reacção defensiva, coloca limites questionáveis à protecção da vida, da propriedade e da família. Essa abordagem, além de insuficiente, desconsidera a necessidade de assegurar aos cidadãos o direito pleno à autodefesa.

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    No cerne desta discussão reside uma questão moral fundamental: um cidadão tem o direito de defender a sua vida e a dos seus entes queridos? A resposta é clara, mas a legislação vigente ignora esse direito essencial, transferindo a responsabilidade pela protecção individual para um Estado que, na prática, opera como a organização mais eficiente na extracção compulsória de recursos, oferecendo aos cidadãos apenas a ilusão de que tal arrecadação serve para protegê-los.

    Quando um agressor invade uma residência, o cidadão enfrenta duas escolhas: esperar pela polícia ou agir. A primeira é uma aposta arriscada, semelhante a uma roleta russa; a segunda, sem acesso a ferramentas adequadas de autodefesa, equivale a uma missão suicida. Nesse cenário, a arma de fogo deixa de ser um símbolo de violência para tornar-se um instrumento de igualdade, equilibrando a balança entre o cidadão e o criminoso. A protecção da vida não pode ser uma concessão estatal; é um direito inalienável que exige meios concretos para a sua garantia.

    No Brasil, onde a criminalidade é endémica, estudos indicam que a posse responsável de armas por civis teve um impacto positivo na redução de homicídios em algumas regiões. Nos EUA, estima-se que armas de fogo sejam usadas para defesa pessoal entre 500 mil e 3 milhões de vezes por ano, muitas dessas sem disparos, mas como mera dissuasão.

    E em Portugal? As vítimas de crimes violentos podem apenas esperar. Esperar por uma força policial sobrecarregada. Esperar por uma burocracia que trata cada cidadão como culpado até prova em contrário. Esperar, enquanto a sua segurança é comprometida por legislações criadas para “proteger”, mas que na prática desarmam a pessoa errada.

    Proprietários de armas por 100 habitantes vs. Homicídios anuais por 100 mil habitantes nos diferentes estados dos EUA. Fonte: World Population Review. Análise do autor.

    O livre porte de armas não é uma solução para todos os males da sociedade, mas é uma ferramenta essencial para garantir que o cidadão tenha a capacidade de proteger-se a si mesmo quando mais precisa. Portugal deve reavaliar o seu compromisso com a segurança dos seus cidadãos e entender que o Estado, por mais eficiente que seja, não pode estar presente em todos os momentos críticos. O Estado português desarmou a população e não pretende reverter essa posição, pois cidadãos armados são sempre um perigo para mafiosos e ladrões.

    Deixar a população desarmada enquanto se confia cegamente num sistema imperfeito é não apenas ingénuo, mas perigoso. Quando segundos contam, o cidadão precisa de mais do que boas intenções: precisa de meios. Afinal, quem melhor para garantir a nossa segurança do que nós mesmos?

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


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  • O cronista Ralha, ufando e rufando o Almirante

    O cronista Ralha, ufando e rufando o Almirante

    Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM solicitou o registo da marca para Portugal ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), cujo longo processo foi já concluído. No contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas quinzenais pareceu-nos não somente conveniente como necessário. Nesta décima quarta edição, o piparote de Brás Cubas afinfa no cronista Leonardo Ralha, que compõs um panegírico ao Almirante Gouveia e Melo no Diário de Notícias.


    Entre as vantagens diversas de se estar morto — e olhem que há muitas, incluindo a ausência de contas por pagar e desacreditar nas promessas de um equilíbrio orçamental –, está o prazer de poder observar os vivos e as suas excentricidades com um olhar superior, sem dano nem mácula. E foi assim que, num repente, me vi folheando um jornal da terrinha, que nasceu quando eu ainda era vivo, e que me admira muito por não estar já enterrado como eu.

    Falo-vos do vetusto Diário de Notícias e de um artigo do escriba Leonardo Ralha, que, talvez por queda de assunto importante, teve de despachar um ‘calhau’ de três páginas em forma de prosa, mas que se assemelha a poema épico barroco, dedicado ao novo Aquiles Português, ou melhor, ao Ulisses da Farda Lusitana, o senhor Henrique Gouveia e Melo.

    Ralha, cujo nome já prenuncia o riso forçado e a incoerência (ah, como é irónica a Providência Divina), quis ontem erguer-se como o novo Homero das redacções, depois do saudoso Serpa na Bola, mas sem o discernimento de um cego inspirado. Em vez de nos dar um herói crível, mesmo se pouco credível, brindou-nos com uma figura tão sobrecarregada de atributos e qualidades que nem mesmo os deuses gregos, mestres em vaidades e falhas, ousariam reclamar para si.

    Gouveia e Melo à caça de narcotraficantes.

    Ralha, o jornalista cujo apelido já se imagina num boteco de esquina – “Mais um copo, pró Ralha!” –, resolveu transformar um Almirante em mito antes mesmo de o bom senso o permitir. O seu texto torna-se quase um insulto à própria ficção, que exige, por convenção, alguma verosimilhança. Pois se até os romances mais audaciosos de Balzac, as óperas mais dramáticas de Verdi e os épicos mais delirantes de Camões se sustentaram numa base mínima de lógica, deveríamos exigir que Ralha não fizesse um falso emplastro a que deu o horroroso título de “Coragem, visão e foco são marcas do ‘nada suave’”.

    O ‘nada suave’ é, sabido está, o cognome envernizado e estapafúrdio aplicado ao Almirante, um disparate de marketing retórico que tenta mascarar o óbvio: o marujo, na verdade, apenas tropeçou em obrigações rotineiras, mas o alçaram por empenhos ao Olimpo político como se tivesse, à semelhança de Rousseau, redigido um novo Contrato Social que refundasse os laços entre o indivíduo e o Estado, ou, como Locke, lançado as bases de um governo guiado pela razão e pelos direitos naturais. Nanja! O homem destacou-se por ser um operador de logística afortunado de um só produto já em sezão de abastança vacinal.

    Pois, mas que importa a substância da realidade quando podemos criar ditirambos – esses cânticos fervorosos dignos de Dioniso – em honra à gloriosa epopeia das insónias do Almirante, como faz Ralha na sua croniqueta? Sobre as suas madrugadas de mente vagueante, mais perdida que Ulisses sem Ítaca à vista? A cosmovisão de Gouveia e Melo não se mede, no ralhómetro do Ralha, em feitos concretos, em acções valorosas ou mesmo numa ideia que se sustente por mais de dois parágrafos. Não, o verdadeiro herói do nosso tempo não precisa de façanhas épicas, mas de noites mal dormidas! Que se erga um monumento à sabedoria ‘insonesca’, essa prodigiosa habilidade de responder a mensagens às três da manhã como se o destino do Mundo repousasse na ponta de um dedo vigilante.

    Leonardo Ralha. Foto: DR.

    Imaginemos o novo panteão dos deuses modernos: Apolo, com a sua lira, é dispensado; Atena, com sua lógica, é irrelevante; Deméter, com a sua abundância, é ignorada; Afrodite, com o seu encanto, é desprezada; e eis que entra em cena o Deus da Insónia, barbas brancas, farda marítima irrepreensível, coroado não com louros, mas com olheiras profundas, a segurar não uma espada, mas um telemóvel. Que paradoxo sublime! A coragem, antes reservada aos que enfrentavam sanguissedentos leões ou mares procelosos, é agora definida pela bravura de quem encara um ecrã luminoso no silencioso trevor.

    Ora, não sei quanto a vós, mas cá deste lado do além, conheci gente de todas as épocas que dormia pouco, e nenhuma delas foi endeusada por isso. César, dizem, mal pregava olho enquanto cruzava o Rubicão, mas foi imortalizado pelo seu génio estratégico, não pelas olheiras. Da Vinci, que dividia o sono em curtos intervalos para maximizar o tempo, deixou-nos a Mona Lisa e o Homem Vitruviano, não um tratado sobre a arte de responder a mensagens nocturnas. Beethoven, surdo e insoniado, compôs a Nona Sinfonia, mas ninguém o coroou rei dos insones por isso. Churchill, que fazia sestas intermitentes durante a guerra, é lembrado pelas suas decisões históricas, não pelas noites em claro com charutos e conhaque. E até o meu ‘pai’, Machado de Assis dormia mal e deu-nos Capitu e Bentinho, e a mim próprio, mas ninguém o tratava como um semideus por mor das noites em claro.

    Porém, para o Ralha, insónia é sinal de génio, de visão superior. Se ao menos essas insónias fossem produtivas! Se delas tivessem saído, como da caverna de Platão, ideias que iluminassem o Mundo… Mas não: o Ralha celebra o simples facto de o não-dormir ser virtude divina, quando é apenas um capricho humano elevado à categoria de mito por quem, incapaz de entender a grandeza real, decide fabricar heróis com barro de mediocridade. Poderei estar, confesso, a ser exigente, por mal ventura, às custas da minha ignorância: às tantas, o Almirante, entre mensagens nocturnas, já planeou o fim da fome, a paz mundial e o segredo da vida eterna. Lamentavelmente, não lhe tem sobrado tempo para nos informar disso.

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    Alguém sem importância…

    Portanto, mesmo sem esse desfecho, cantemos, ó leitores, um novo ditirambo, não sobre o vinho ou a dança, mas sobre a nobre arte de perder horas de sono. E que ninguém ouse perguntar se essas insónias valem mais do que o sono profundo de quem, descansado, depois de acordar, constrói pontes, descobre curas ou, pelo menos, escreve algo que não seja uma ode ao vazio. Pois, no reino das insónias endeusadas, a lógica está a dormir profundamente.

    Segue-se, no garrancho do Ralha, uma cascata de superlativos sobre o Almirante que causariam um rubor insuportável até aos mais fanáticos hagiografistas do Barroco. “Foco fora do normal”, “linguagem transversal a toda a sociedade”, e capacidade de “estar com 30 mil coisas ao mesmo tempo“, assim entre aspas por ser citação de uma ignota testemunha. Ou inexistente. Ao que parece, Gouveia e Melo não é apenas um homem, mas um híbrido de Leonardo da Vinci, Bismarck e Bill Gates, tudo numa só farda. Se ele tivesse vivido na Grécia Antiga, Sócrates teria parado de questionar a vida para apenas admirá-lo. Aristóteles teria rasgado a ‘Ética a Nicómaco’ e dito: “Já temos o modelo da virtude perfeita.” Platão, por sua vez, teria abandonado o ‘mundo das ideias’ e proclamado: “Eis aqui a forma encarnada do Belo e do Justo”.

    Ah, mas que interessa a verdade, se com a ficção se consegue, sem escopro nem cinzel, erigir monumentos ao barroquismo jornalístico? Como não nos deleitarmos com uma ode à hipérbole descontrolada de Ralha que nos revela, sem citar vivalma nem corar de vergonha, que Gouveia e Melo identifica “primeiro coisas que mais ninguém estava a ver, o que tanto se aplica, ao que parece, no seu inédito delineamento de centros de vacinação (coisas nunca vistas em terras lusitanas) como na ousada escrita da obra ‘Preservativo das Bexigas e dos Terriveis estragos ou Historia da Origem e Descobrimento da Vaccina, dos seus Effeitos ou Symptomas, e do Methodo de Fazer a Vaccinação & c.’, embora ilegalmente apropriada pelo médico, certamente charlatão, Manuel Joaquim Henriques de Paiva, que se apropriou e a publicou em seu nome em 1801. E isto claro, mesmo sem gritar hosanas à missiva instrutora de autarcas para se uniformizarem procedimentos, ou à “antecipação da importância que os drones teriam em operações de guerra e patrulhamento”.

    Ora, aqui jaz, perante a nossa admiração, um monstro da clarividência divina. Gouveia e Melo não é apenas um almirante, é um verdadeiro vidente, um oráculo vivo, o Delfos de farda. E o cronista está para celebrar. Onde todos vêem a banalidade do mar, Ralha vê que ele vê a Atlântida; onde outros vêem uns papeluchos bolorentos e esburacados pelas traças, Ralha vê que ele vê os manuscritos de Sun Tzu; onde outros vêem um militar burocrata rabugento, Ralha vê que ele vê um inventivo Leonardo da Vinci da logística.

    Embarcação turística algures nos mares polares…

    É como se o almirante tivesse óculos de realidade aumentada, não aqueles comuns; antes umas gafas que permitem perscrutar até os pensamentos mais obscuros de Poseidon. Mas, atenção, não confundamos: estas visões reveladoras estão reservadas apenas àqueles iluminados que “trabalham com ele”. Para o resto de vós, meros mortais, sobra a escuridão da ignorância.

    Além disso, reparem: o seu Almirante não sabe apenas dirigir uma frota ou enfrentar piratas modernos (ou narcotraficantes), mas criar composições dignas de uma exposição de arte naval, como seja centros de vacinação testados em plena Academia Militar. Imaginemos mais longe: Gouveia e Melo, pincel em punho, esboçando, não hospitais já, mas sim caravelas futuristas enquanto declama sonetos de Camões sobre a glória marítima na Capela Sistina. Nem sei como o Ralha não viu no Almirante um verdadeiro Miguel Ângelo dos estaleiros do Alfeite!

    E se houvera pincéis, também haveria de haver penas com tinta feita à moda antiga, com vinho tinto, pau de figueira e bugalhos de carvalho. Também na arte da epístola, diz o Ralha, se sobressai o nosso Admiral das terras de Viriato (ou de Quelimane, ali mesmo ao lado), nem que seja na comezinha função de uniformizar procedimentos junto de autarcas. Ah, gritem louvores ao heroísmo burocrático! Eu nem sei o que mais me impressiona, se o acto da redacção escolar ou a transmutação, pelo louvaminheiro Ralha, de uma corriqueira carta em façanha titânica. Alexandre, o Grande, conquistou o Mundo; Gouveia e Melo, por sua vez, conquista os corações de autarcas com o poder de uma carta bem alinhada. Qual será o segredo? Uma caligrafia impecável? Metáforas náuticas? Selos com aroma de maresia? Parvoíces do cronista?

    close up photography of blue peacock painting
    Alguém com importância..

    E que dizer de Ralha quando elogia a visão de Gouveia e Melo – por certo incrementada em horas passadas nas profundezas, quando o Albacora, o Barracuda e o Delfim despejavam óleo nos mares, de tão velhos que andavam no crepúsculo da pretérita centúria – em antecipar a importância de meios aéreos em operações de guerra e patrulhamento? Que descoberta revolucionária! É como se Gouveia e Melo tivesse inventado o avião, o radar e a própria ideia de patrulhar os céus, ou até a Passarola do Padre Bartolomeu de Gusmão. Vou dar ali um peteleco ao Saramago por se ter esquecido de meter um Gouveia Sete-Faróis no seu ‘Memorial do convento’…

    Ademais, imagino a vergonha dos Wright Brothers que devem andar escondidos no canto do purgatório, a murmurar: “Que desperdício, não antecipámos nada disto!” E eu aqui a pensar que o mundo militar viveu séculos de penumbra – que digo! –, de obscurantismo, sem perceber que os meios aéreos têm algum valor na paz e nas guerras! Que visão mais celestial, mais divina trazida por Gouveia e Melo, justamente agora alavancada pelo Ralha.

    Na sua exaltação desenfreada, o Ralha até entroniza o Almirante ao símbolo dos “marinheiros de silício” em detrimento dos “marinheiros de carbono”. Que metáfora engenhosa! Que profundidade analítica! Que nada!… Pois, se me permitem um aparte filosófico, vos acrescento que até Platão sabia ser preferível um simples carpinteiro, que faça mesas úteis, ao poeta, que fabrica metáforas vazias. E cá entre nós, sejam os marinheiros de silício ou de carbono, estes sempre precisam de ventos e bússolas, ou equivalentes, e, acima de tudo, juízo. Já o Ralha, por outro lado, navega em mares de retórica vazia, onde o único farol é a adulação descabida.

    Mas há mais. Ralha vendeu o bom senso, e meteu o processo das vacinas a par de um suposto combate aos narcotraficantes. Ou seja, Gouveia e Melo, depois de derrotar o vírus, tornou-se o terror dos cartéis. Seria a personagem perfeita para um filme de acção de segunda categoria. Imaginemos o título: “Almirante Implacável: Do Cabo das Tormentas ao Cabo do Medo”. Dirigido, claro, pelo próprio Leonardo Ralha, com uma trilha sonora que inclui hinos patrióticos e baladas épicas.

    Mas há algo ainda mais delicioso neste escrito: o tom messiânico. Ralha, como os pregadores medievais, já não escreve apenas para informar; escreve para converter. O Almirante não é apenas bom; é perfeito. Não é apenas competente; é infalível. Não é apenas humano; é inumano. Isso faz-me lembrar a história da Carochinha, que, em busca de um noivo, enfeitava-se com moedas e promessas até atrair o rato para a panela de feijoada. Assim também vai o jornalismo, caro leitor, transformando os seus protagonistas em deuses, esperando que o público salte de cabeça no caldeirão da credulidade.

    Mas no fundo, embora talvez apenas nas Fossas das Marianas, Ralha tem razão neste obelisco ao vazio inflado, onde veste ao seu Dionísio um fato épico por tarefas triviais: Gouveia e Melo é mesmo uma figura única. E ele, Ralha, também. Afinal, só um almirante de tão sublime mediocridade, cuja maior proeza parece ser a capacidade de respirar e existir em simultâneo, poderia ser catapultado a tamanhas esferas celestiais pelas mãos febris de um jornalista tão delirante que o ordinário ele transforma em prodígio, a monotonia em epopeia e o corriqueiro em cântico de louvor digno de um Homero embriagado a vinho carrascão.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM registado no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, usado em exclusivo por Pedro Almeida Vieira, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.


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  • O melhor vendedor português da Ferrari é… o jornalismo do Expresso

    O melhor vendedor português da Ferrari é… o jornalismo do Expresso


    Eu bem que tento ficar sossegado, retrair a unhas e dormir umas sestas, que o frio já convida a longas tardes deitado no sofá. Mas, semana após semana, multiplicam-se acontecimentos que me dão genica, me tiram do sono e convidam a afiar as unhas. Ora, um desses recentes eventos que chamou a minha atenção foi uma ‘notícia’ do jornal Expresso, bem catita e nada suspeita. Aliás, é clara como a água.

    Falo do ‘Exclusivo’ que o jornalista Vítor Andrade conseguiu e que o obrigou a fazer ao enorme sacrifício de viajar até Madrid, a convite da Santogal. A ‘notícia’ teve honras de destaque na capa do caderno de Economia do Expresso, com direito a foto gigante do administrador da Santogal encostado a um Ferrari vermelho (como só podia ser).

    Mas se até aqui a coisa já ‘cheira a esturro’, vejamos o título da ‘notícia’: “O melhor vendedor de Ferraris do mundo é português”.

    Convenhamos que o jornalista poderia ter disfarçado melhor a viagem e as mordomias pagas pela Santogal. Podia, enfim, ter procurado transmitir a ideia de como aquela viagem a Espanha se mostrava essencial para um jornalista que se diz em reportagem mas que até as fotos são da Santogal e só fala na Santogal e, no fim, ainda faz uma entrevista ao responsável da Santoga. Afinal, os leitores do Expresso ‘precisam’ de saber deste tão relevante acontecimento que foi a entrega de um galardão à Santogal Ferrari Madrid, concessionário gerido pelo responsável da Santogal em Portugal, Luís Pessanha, o tal português que se farta de trabalhar para conseguir vender muitos Ferraris, mas que depois diz que só não vende mais porque não lhos enviam da Ferrari? E não podia ser só umas linhas? Fazer a coisa aqui por Lisboa? Não. Tinha de envolver a deslocação do jornalista, uma entrevista, enfim, todo o ‘pack’ de comunicação, perdão, jornalístico.

    Não se queixem. Se não fosse a ida de Vítor Andrade a Madrid não se conseguiriam belas pérolas do jornalismo de reportagem, contra ventos e tornados, como esta: “Foi numa terça-feira algo chuvosa e pouco convidativa a saídas de casa ou do escritório, mas pudemos constatar que passaram por ali talvez perto de uma dúzia de clientes, de sorrisos rasgados no rosto. Se todos foram contemplados com o Ferrari dos seus sonhos, não pudemos apurar. O que ficámos a saber foi que, no último mês e meio, a Santogal Ferrari Madrid conseguiu 56 encomendas do novo Ferrari 12 Cilindri, no valor de cerca de €40 milhões. Estas encomendas somam-se aos 90 carros que a Santogal Ferrari Madrid vai entregar em 2024 (dos quais, cerca de 50 são novos e 40 são usados).”

    Mas, mais do que a ‘notícia’ em si, o que mais chamou a atenção foi o destaque dado pela agência de comunicação que presta serviços à Santogal, a ‘poderosa’ JLM & Associados fundada pelo ‘spin doctor’ João Líbano Monteiro.

    Na sua conta na rede social profissional LinkedIn, a JLM&A destacou a notícia a capa do Expresso acompanhada de um texto sobre o evento e que, no final remetia para um link para o ‘press release’ mais completo… perdão, para a ‘notícia’ do Expresso. E a agência de comunicação anunciou mesmo, num post do LinkedIn, que entretanto apagou, que “fomos com o Expresso perceber como é que a Santogal Ferrari foi eleita como o Top Showroom da Ferrari”. Sério? Foram com o jornalista do Expresso de mão dada? Ou foram com o livro de cheques na mão?

    Aliás, as ‘boas’ e certamente só cordiais relações do Expresso com a JLM&A vão mais além. Afinal, não é qualquer um que paga ‘notícias’, perdão, concede “Exclusivos” sobre Ferraris com viagens e entrevistas fáceis à mistura. Assim, Vítor Cunha, presidente-executivo (CEO) da agência de comunicação, foi obrigado a deslocar-se (não sei se de Ferrari), com sacrifício (acredito), até Laveiras para participar no ‘Expresso da Meia-Noite’, e perorar sobre o filosófico tema: ‘Nada é eterno e o estado de graça do Governo também não’. O debate foi moderado por Ricardo Costa, que acaba de ‘subir’ a administrador da Impresa, e por Bernardo Ferrão, que herda do seu colega no programa a ocupar o lugar de director de informação do grupo.

    Também esta ‘parceria’, perdão, participação na SIC foi partilhada pela JLM&A numa publicação que remetia para o link do programa.

    De facto, mesmo que se seja terno, nada é eterno, e há muito que o Expresso e a imprensa, de um modo geral, deixaram de estar em estado de graça – agora, estão mais em estado de desgraça. Trocar a ‘alma’ por um “Exclusivo” com benefícios ou uma ‘borla’ para estar num programa de TV, parece-me poucochinho. Ainda se fosse um Ferrari… Nem que fosse um de miniatura, daqueles que o Vítor Andrade diz que custam 150 mil euros paras as crianças dos pais ricaços. Mas isto já sou eu a invejar, que já me fartei do Royal Canin Urinary s/o e as ‘saquetas de mousse’ do Minipreço são somente aceitáveis, e eu acho que merecia um melhor dono, um dono como o ‘gajo’ da Santogal que ganha prémios da Ferrari e tudo…


    Serafim é o Mascot do PÁGINA UM, conveniente e legalmente identificado na Ficha Técnica e na parte da Direcção Editorial, possível pela douta interpretação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Qualquer semelhança entre os assuntos relatados e a realidade é pura factualidade.


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  • Crónica de um guru urubu, ou o lacrau ofendido (‘editio princeps’)

    Crónica de um guru urubu, ou o lacrau ofendido (‘editio princeps’)

    Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. o PÁGINA UM solicitou o registo da marca para Portugal ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), cujo longo processo foi já concluído. No contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas quinzenais pareceu-nos não somente conveniente como necessário. Nesta edição especial, o piparote de Brás Cubas mima o guru urubu Luís Paixão Martins, agora lacrau mercenário, o conhecido ‘agente de comunicação’, que ficou ‘arreliado’ com um ‘furo’ jornalístico do PÁGINA UM sobre o encontro nocturno entre o Chefe do Estado-Maior da Armada e o ministro da Defesa, Nuno Melo, num bar, em Lisboa.


    Não há criatura mais fascinante que um guru urubu, essa figura moderna e versátil que povoa o mercado de opiniões e as antecâmaras do poder. Ora rapina, ora rasteja, ora saltita, mas nunca se esquece da sua natureza – sempre calibrado para bicar e a chafurdar em nome de quem lhe paga a conta.

    É, afinal, um agente de comunicação do século XXI: um escultor de narrativas, um virtuoso da manipulação, e, por vezes, um malabarista das aparências. Um velhaco, que aparenta ser uma ave de rapina, mas, na verdade, só rapina. Porém, no caso em questão, o nosso ilustre guru urubu mostrou que, quando mordido por palavras que doem mais que o seu próprio bico, a compostura pode falhar como uma velha ponte ao vento.

    Eis o caso: num cenário digno de crónica do absurdo, o guru da nossa estória – profissional de “construir imagens” para políticos de gestos tão firmes como gelatina e para empresários de ética tão rígida quanto um elástico – viu-se confrontado por uma sentença proferida pelo director do PÁGINA UM, que ousou nomeá-lo não guru urubu, como deveria, mas, chamando o ‘boi pelo nome’, o fez descer do topo dos brilhantes ares para a lúgubre aba de um calhau, dando-lhe epíteto de lacrau mercenário. Não que tal caracterização seja inaudita; é preciso dizer que a fauna comunicacional está repleta de sevandijas equivalentes, embora, eufemisticamente, os nomeiem com expressões mais cândidas, variando entre ‘spin doctor‘ e ‘traficante de influências’.

    Desta vez, o veneno das palavras atravessou as espessas escamas do dito lacrau. O insulto, ao que parece, feriu-o como um espinho peçonhento, talvez porque, na sua infinita ironia, acertou o alvo com precisão cirúrgica. “Maldito negacionista!” – presumo que tenha gritado o guru lacrau antes de partir para o seu golpe final, que, convenhamos, foi menos de mestre e mais de aprendiz: bloqueio nas redes sociais. Ah, que doce vingança é esta de um clique, que elimina o adversário do horizonte digital como quem apaga uma mosca irritante com um peteleco. Mas, como em tudo na vida, o bloqueio tem o efeito de um ‘boomerang’: longe de silenciar, ainda causa mais vontade de amplificar o eco do conflito.

    E que não se pense que o lacrau ficou apenas no bloqueio. A ofensa ainda latejava como artrose em dia de frio. Talvez o movimento dos ferrões o tenha deixado em dores crónicas, porque não só bloqueou, como decidiu, num raro ataque de prolixidade digital, lançar não um, mas dois posts inflamados sobre o PÁGINA UM.

    A ironia, aqui, é tão espessa que quase pode ser cortada à faca: o lacrau, especialista em gerir crises de imagem, acaba ele próprio preso no turbilhão de uma crise que já não sabe controlar. Talvez por excesso de zelo, ou por uma confiança desmesurada no poder do seu ferrão.

    Agora, sejamos justos: o lacrau mercenário não é figura recente na zoologia social. Desde os tempos de Roma, sempre houve aqueles que vendiam os seus talentos retóricos ao melhor licitador. Mas há algo de tragicómico no seu destino contemporâneo. Imagine-se: passou a vida a vender políticos e empresas aos média, a moldar manchetes e fabricar consensos. E agora, neste pequeno escândalo, vê-se desnudo perante a plateia pública, o veneno de outros a corroer-lhe a reputação que tanto cuidou em maquilhar.

    O director do PÁGINA UM – chamado de “negacionista” por esta mesma criatura – sai incólume, exactamente porque não o conhece, o que só o abona por estar longe da peçonha. Afinal, ele não é feito de artifícios comunicacionais, mas de palavras, e estas são as armas que melhor maneja.

    Resta perguntar, por fim: e se o director do PÁGINA UM o tivesse chamado de serpente venenosa em vez de lacrau mercenário? Seria o lacrau capaz de suportar tamanha metáfora? Ou morderia a própria língua, de tão enraivecido, selando assim o seu destino num ciclo irónico de auto-envenenamento?

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM registado no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, usado em exclusivo por Pedro Almeida Vieira, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.


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  • Brasil: entre a amnistia e a democracia

    Brasil: entre a amnistia e a democracia


    Na língua portuguesa, o vocábulo “amnistia” adquiriu ao longo do tempo feições diferentes. De inspiração divina, a noção de amnistia está de certo modo associada à idéia de perdão. Quando Pedro pergunta-lhe se deveria perdoar até sete vezes o irmão que pecasse contra si, Jesus responde-lhe: “Não te digo que até sete, mas até setenta vezes sete” (MT 18:21-22).

    No contexto histórico, o termo quase sempre esteve associado a transições pacíficas de poder, quando um sistema autoritário cedia passo – por pressão ou por exaustão – a regimes democráticos. Foi assim que a Espanha deu adeus ao franquismo (1977). Foi assim que o Uruguai despediu-se de quinze anos de ditadura (1986). E foi assim que a África do Sul conseguiu superar, sem enfrentar uma guerra civil, a pesada herança do Apartheid (1995).

    O Brasil, contudo, preferiu outra toada. Ou, por outra, levou ao paroxismo o conceito de amnistia. Como se quisesse dar razão à canção de Chico Buarque, o Brasil adotou o lema segundo o qual não há pecados ao sul do equador. Tudo valia para olvidar o passado, desde que não fosse necessário encarar suas cicatrizes históricas. Por pior que fosse o delito, sempre haveria uma pedra para colocar em cima do assunto.

    Christ Redeemer statue, Brazil

    A “teoria da pedra” era, a um só tempo, simples e sedutora. Simples, porque resolvia numa só canetada todas os imbróglios que porventura existissem entre diferentes facções políticas. E sedutora porque, não sendo possível punir infratores, dispensavam-se os próceres do novo regime de contrariar poderosos. Daí, por exemplo, a amnistia aos golpistas de 1955, que se levantaram contra a eleição de Juscelino Kubitschek, impedidos tão-somente pelo contragolpe do Marechal Henrique Teixeira Lott. Daí, também, a amnistia aos sediciosos da Força Aérea, que tentaram derrubar o mesmo JK alguns meses depois, na Revolta de Jacareacanga, no Pará.

    Foi com esse mesmo espírito que se arquitetou o último perdão da qual se tem registro no Brasil: a amnistia de 1979. Uma vez que a ditadura não estivesse fraca o suficiente para sucumbir, nem a oposição forte o suficiente para derrubá-la, o retorno à normalidade democrática ficou vinculado a um arranjo de bastidores entre a turma da caserna e aquela liderada por Tancredo Neves. Coube a Tancredo negociar um arreglo através do qual se aceitava a autoamnistia requerida pelos militares, condicionada a uma transição pacífica de poder após o fim do governo de João Figueiredo.

    Os militares, claro, cumpriram apenas parcialmente o prometido. Dois anos depois da Lei da Amnistia, integrantes da linha dura do Exército tentaram literalmente explodir a abertura política, ao colocar uma bomba no show de 1 de Maio de 1981. Enterrado sem exéquias em um inquérito policial-militar de fancaria, o atentado do RioCentro entraria com desonras no panteão de maiores vergonhas da historiografia nacional. A morte dos incompetentes militares terroristas – que deixaram a bomba explodir ainda dentro do carro que guiavam – foi atribuída a “elementos de esquerda” e nunca mais investigada, a despeito de ser cronologicamente impossível que o crime estivesse sob o abrigo da lei de 1979.

    Obviamente, as sucessivas amnistias retiraram dos golpistas tupiniquins a percepção de perigo. Como as ações ilegais praticadas por paisanos ou militares golpistas jamais eram punidas, o risco de ir para a cadeia deixou de ser considerado nessa equação. Ao contrário da Argentina, onde os militares foram condenados em um julgamento histórico, aqui a idéia sempre foi a de colocar uma pedra em cima do assunto e simplesmente esquecê-lo. Com todas as desgraças que já se abateram sobre nuestros hermanos desde a última ditadura – e elas não foram poucas –, nunca se ouviu sequer sussurro de gente propondo golpe de Estado por aquelas bandas. Por quê? Porque Jorge Rafael Videla, o mais emblemático dos presidentes-generais portenhos, morreu aos 87 anos sozinho e esquecido na prisão, sentado em um vaso sanitário imundo e fétido, siderado por uma diarréia.

    A close up of a barbed wire with a blurry background

    Cá no Brasil, ao contrário, ao invés de ser exorcizado, o fantasma da intervenção militar ficou apenas trancado no armário. Bastava alguém disposto a abri-lo para que ele voltasse a assombrar-nos. Foi exatamente o que aconteceu com a eleição de Jair Bolsonaro, ele próprio um elemento subversivo da tropa, “expulso a convite” depois de um julgamento absolutamente bizarro do Superior Tribunal Militar, por ameaçar colocar bombas em quartéis e na adutora do Guandu, no Rio de Janeiro (para quem quiser se aprofundar no assunto, recomenda-se a leitura do livro O cadete e o capitão: a vida de Jair Bolsonaro no quartel, de Luiz Maklouf Carvalho). Tudo que se sucedeu no país após sua eleição é reflexo directo dessa “cultura do perdão” expressa na “teoria da pedra”.

    Que houve uma tentativa de golpe no dia 8 de Janeiro de 2023, parece inteiramente fora de questão. O roteiro para a ação golpista – e, portanto, criminosa – é claro como água de bica: os “patriotas” invadiriam a Praça dos Três Poderes, detonariam tudo e clamariam pela “intervenção militar constitucional”. No melhor cenário (para os golpistas), os comandantes mandariam tirar seus homens dos quartéis, tomariam de assalto (literalmente) o poder e prenderiam Lula e todo o seu governo. Bolsonaro, então, faria um regresso triunfal do seu autoexílio na Disney, descendo ao campo de batalha para “matar os feridos”, isto é, iniciar o expurgo contra a ordem derrubada. O primeiro da lista, evidentemente, seria Alexandre “Xandão” de Moraes. Depois dele, Luís Roberto “Boca de Veludo” Barroso e Edson “Advogado do MST” Fachin. O resto a combinar.

    No “pior cenário”, os militares não dariam um golpe clássico, mas o governo – pego de calças curtas pela destruição das sedes dos três poderes – convocá-los-ia através de uma operação de Garantia da Lei e da Ordem (as famosas GLOs) para “pôr ordem na casa”. Nesse caso, depois de ver a ordem restabelecida pelos mesmos militares a quem os golpistas pediam intervenção, Lula estaria magnificamente emparedado. Ou bem seria obrigado a renunciar, em prol de uma suposta “pacificação nacional”; ou então ficaria na Presidência como um animal empalhado, sem poder algum, tutelado pelo pessoal da caserna. Felizmente, contudo, ocorreu o “pior pior cenário” para os golpistas: o golpe malogrou e a maioria foi em cana. O que se desenrola, agora, é a tentativa de saber até onde vai a responsabilidade de cada um pelo que sucedeu naquela fatídica data.

    Mesmo a saber de tudo isso, parte da mídia especializada e da classe política insiste na concessão de uma amnistia à cúpula do golpismo. Segundo essa gente, somente assim seria possível “moderar” o bolsonarismo e diminuir a temperatura da polarização política que nos aflige. É o tipo do raciocínio que só pode ser produto de tabagismo com cannabis apodrecida. A uma, porque não existe “bolsonarismo moderado”, eis que o próprio movimento depende, para sobreviver, de um estado de tensão e provocação institucional permanentes. A duas, porque o que modera golpista é cadeia. Repetindo: CADEIA. Bolsonaro não foi condenado quando capitão. Deu no que deu. Donald Trump saiu ileso da intentona golpista do 6 de Janeiro. Deu no que está dando.

    A esperança de que uma amnistia traga um futuro melhor, de calma e tranquilidade, já foi desmentida vez após vez. Ela só funciona – quando funciona – se for fruto de um pacto genuíno em que a parte amnistiada exerce um ato sincero de contrição. Isso no Brasil nunca houve. Em todos os casos, a amnistia serviu apenas de muleta jurídica para resolver sem grandes traumas nosso crônico problema de accountability.  Deixar impunes os pecados pretéritos não representa senão um convite à repetição desses mesmos pecados no futuro. Errar é humano. Insistir no erro tem outro nome.

    Por todas essas razões, se, ao final do processo, ficar comprovado que Bolsonaro e seus generais estiveram de facto envolvidos numa tentativa de golpe de Estado, que a espada da Justiça caia sobre as suas cabeças com todo o rigor que dela se pode exigir. Não se pede nada além disso. Não estamos mais em 1964. Não estamos mais em 1979.

    Amnistia?

    Nunca mais.

    Arthur Maximus é advogado no Brasil e doutorado pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa


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  • X e o ‘Guardian-costas’ da censura

    X e o ‘Guardian-costas’ da censura


    Alterações Mediáticas, podcast da jornalista Elisabete Tavares sobre os estranhos comportamentos e fenómenos que afectam o ‘mundo’ anteriormente conhecido como Jornalismo. No 11º episódio, analisa-se o anúncio do jornal britânico The Guardian de sair da rede social X (antigo Twitter), depois da vitória do candidato republicano, Donald Trump, nas presidenciais norte-americanas. No tempo em que o Twitter censurava vozes conservadoras e até jornalistas o The Guardian nunca viu problema nenhum naquela rede social…

    Acesso: LIVRE, mas subscreva o P1 PODCAST com um donativo mensal de 2,99 euros. Ajude o PÁGINA UM a amplificar o seu trabalho.

  • Mariana Mortágua propõe novo roubo

    Mariana Mortágua propõe novo roubo


    Esta semana, a líder do Bloco de Esquerda, Mariana Mortágua, em mais um brilhante acto de altruísmo estatal, presenteou-nos com uma proposta de espoliação renovada. Dividida em duas nobres frentes, a primeira visa as empresas que, desavergonhadamente, ousam lucrar com os dados dos utilizadores – esses ingratos que, por algum milagre de raciocínio, nunca estranham a gratuidade do serviço, esquecendo que, sendo grátis, o produto são eles mesmos.

    A segunda investida recai sobre as temíveis fortunas acima de três milhões de euros, os culpados favoritos da narrativa redistributiva. Naturalmente, os órgãos de propaganda, fiéis escudeiros desta nobre cruzada, rejubilaram de entusiasmo, conferindo-lhe, como era de esperar, o devido e obsequioso destaque.

    De que proposta se trata? Um imposto com uma taxa de 1,7% para patrimónios entre três e cinco milhões de euros, 2,1% para aqueles entre cinco e 10 milhões de euros e, a partir dos 10 milhões de euros, uma taxa majestosa de 3,5%. Eis aqui mais um tiro de misericórdia no agonizante conceito de propriedade privada. Preparemo-nos, pois, para dissecar esta última inovação fiscal com a deferência que tão brilhante ideia merece.

    É digno de nota que o Estado se revele um verdadeiro virtuoso na arte de inflacionar a sua própria moeda, em resultado do seu monopólio na produção de dinheiro, garantido pelo seu todo-poderoso Banco Central e bancos comerciais subordinados. Esta prodigiosa capacidade de criar dinheiro do nada gera um efeito interessante: a escalada generalizada dos preços – como vimos na falsa pandemia – que, em seguida, é habilmente confiscada através de um novo imposto sobre as grandes fortunas. É uma obra-prima de criatividade: roubar, para poder roubar outra vez!

    Outro aspecto fascinante desta proposta é a seguinte questão: como o Estado pretende determinar o valor dos bens de um cidadão? Imaginemos, por exemplo, um dos nossos “afortunados” milionários, detentor de uma sociedade não cotada em bolsa. Como se calculará o valor desse activo? Será que o Estado recorrerá ao auxílio de burocratas iluminados, adivinhos experientes, peritos ou talvez místicos fiscais para fazer este serviço? No improvável caso de um erro na avaliação, quem ressarcirá o montante cobrado em excesso?

    Agora, consideremos aqueles bens móveis que, pela sua própria natureza, são facilmente ocultáveis: obras de arte, jóias e, claro, criptomoedas. Como será que o Estado pretende avaliar o valor desses tesouros? Podemos imaginar os nossos zelosos fiscalizadores a mobilizar esquadrões especializados para vasculhar cofres pessoais, munidos de tabelas de valores e instrumentos de precisão patrimonial; ou, quem sabe, de arma em punho, prontos para exigir a chave privada da carteira digital da vítima. Uma autêntica caça ao tesouro, tudo, é claro, em nome do bem comum!

    O próximo ponto encantador é a linha de corte absolutamente arbitrária que decide quem paga e quem escapa a novo assalto. Se é um dos “sortudos”, com exactamente 3 milhões de euros em património, prepare-se para abrir a carteira em prol do “bem comum”. Mas, caso o seu património seja “apenas” de 2,99 milhões de euros, respire de alívio! Está a salvo de um assalto anual superior a 50 mil euros, isto se deixar de trabalhar para não correr o risco de enriquecer ou sofrer uma nova onda de inflação que o eleve à categoria de feliz assaltado.

    Propostas do Bloco de Esquerda

    Vamos agora reflectir sobre a moralidade implícita nesse tributo. O cidadão que acumulou património por meio de trocas pacíficas, voluntárias, sem recorrer à coerção ou à violência, vê-se agora alvo da mais pura e destemida violência estatal. No fundo, a lógica é clara: qualquer riqueza que não foi roubada pelo Estado, seja através de impostos sobre o rendimento, sobre mais-valias ou sobre propriedade, ainda é potencialmente confiscável.

    É igualmente imperativo salientar o impacto económico devastador que este imposto terá sobre o capital produtivo, sendo os mais atingidos, ironicamente, os pequenos e médios empresários. O seu património, longe de ser líquido ou especulativo, está maioritariamente imobilizado em equipamentos, infra-estruturas e outros activos indispensáveis à produção – muitas vezes concentrado em empresas não cotadas em bolsa.

    Para pagar este confisco, esses empresários serão forçados a vender parte do que possuem, comprometendo a continuidade do seu negócio. Enquanto isso, os verdadeiros milionários, com acções cotadas em bolsa, podem simplesmente liquidar parte desses activos, perdendo propriedade, mas sem qualquer impacto na capacidade produtiva.

    Aqui reside a ironia fatal: Portugal é composto por um tecido de pequenos e médios empresários, não por um escol de multimilionários ao estilo norte-americano. Contudo, a ilustre comunista Mariana, inspirando-se no ódio ao grande capital, aplica com zelo uma receita que não só saqueia a população, mas também dinamita as bases da economia nacional.

    Um imposto sobre fortunas tem o mérito questionável de desincentivar a acumulação de capital, precisamente o pilar essencial para o investimento produtivo e o crescimento económico. Em vez de poupar e reinvestir, os indivíduos passam a consumir desenfreadamente ou, como bons estrategas, a dedicar-se à arte da evasão fiscal – uma prática que, diga-se de passagem, é incentivada por políticas tão visionárias.

    O resultado é duplamente perverso: não apenas se reduz a quantidade de capital disponível para a economia, como também se distorce profundamente o comportamento daqueles que ainda ousam desejar acumular riqueza. Um verdadeiro manual de como sabotar o motor económico sob o pretexto de “justiça social”.

    stack of books on table

    Além disso, quem acumula uma fortuna geralmente possui um planeamento de longo prazo, pensando em investimento, inovação e, em muitos casos, em deixar um legado para gerações futuras. O imposto sobre fortunas interfere nesse planeamento, forçando a liquidação de activos e, muitas vezes, inviabilizando a continuidade de empresas familiares ou projectos de longo prazo.

    O imposto sobre fortunas passa a mensagem de que o sucesso e a eficiência devem ser punidos. Em lugar de reconhecer e valorizar os indivíduos que acumulam capital – e que, em última análise, financiam inovações, negócios e empregos – o imposto coloca todos os ricos como “inimigos do povo,” ignorando as suas contribuições económicas.

    Apenas indivíduos que dedicaram toda a sua existência ao parasitismo alheio, que desde os tempos em que saíram da faculdade vivem do assalto sistemático aos cidadãos produtivos, moldados por ideias trotskistas e subversivas, poderiam conceber tamanha aberração tributária. São mestres na arte de propor um roubo atrás do outro, tudo para que o monopolista da força – o Estado – possa exercer extorsão ainda maior, sempre sob o aplauso entusiástico dos habituais órgãos de propaganda.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


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  • Trump M&M: mentiras e megalomania

    Trump M&M: mentiras e megalomania


    Este texto deveria ter sido publicado no ‘day after‘ à eleição de Donald Trump. Felizmente, o ‘Windows‘ rebentou (ou não fosse o ‘Windows‘) e o texto desapareceu, sendo substituído por uma neura que me fez desligar o computador e ir ver o Bayern – ‘Arouca’, para a Liga dos Campeões.

    E digo felizmente porque aquilo que lá estava já não aparece aqui hoje. Nesse dia estava chateado, a pensar como é que tantos milhões podem votar num criminoso condenado (é facto, já não é domínio da opinião) e, principalmente, num homem que faz do racismo, do ódio e da divisão, os seus principais argumentos. Hoje, vejo a coisa de forma ligeiramente diferente e numa perspectiva menos emocional.

    Já tinha escrito anteriormente que a escolha entre Kamala Harris e Donald Trump se resumia ao clássico ‘mal menor’, de que esta tão propalada democracia bipartidária é pródiga. De quando em vez, lembro-me que a diferença entre uma ditadura e a democracia americana está reduzida à unidade. Um partido separa-os.

    Nesta escolha do ‘mal menor’, para mim, não existiam dúvidas. Kamala, com todos os defeitos, é um ser pensante, com alguma decência e dentro do perfil de bom senso que, pelo menos eu, imagino necessário a qualquer líder. Trump é um ser abjecto, sem o mínimo de cultura ou bom senso para administrar o condomínio do prédio, quanto mais os Estados Unidos.

    Esta seria a análise fácil e aquela que escrevi antes do ‘Windows’ ter ‘eliminado’ o meu texto original. Hoje, tento colocar-me nos sapatos dos americanos que votaram, sem o habitual preconceito de serem todos ignorantes como pneus.

    De um lado, tinham Kamala Harris, simpática, bem humorada, a prometer seguir a linha de Joe Biden, sem nunca conseguir explicar algo que se parecesse a um programa. A aposta total dos democratas, depois de conseguirem correr com um desgastado Biden, foi apenas a de mostrar bondade e amor, contra o ódio irradiado por Trump. É pouco. Foi pouco.

    Trump, por seu lado, explicou exactamente ao que vinha. Inventou, mentiu, exagerou, mas disparou ideias: deportar imigrantes, acabar com as guerras que o Biden financiou, bloquear as entradas de produtos da China, descer os impostos.

    O discurso de ódio contra os imigrantes foi abraçado, de imediato… por outros imigrantes. Num país onde todos são imigrantes, nada mais popular do que dizer que é altura de mandar alguém fora, porque, se pensarmos bem, há sempre alguém descontente com o vizinho.

    Acabar com a guerra da Ucrânia com um telefonema, e antes de tomar posse, foi outra das promessas. Tendo em conta que a guerra gera emprego interno nos Estados Unidos, não sei bem se as pessoas queriam sequer esta medida ou se perceberam o seu impacto. Mas, se cumprir a promessa, já estará a dar uma ajuda aos europeus que pagam, com juros, a ‘conquista’ do Donbass e, de caminho, ainda têm de comprar energia mais cara aos Estado Unidos. Mas duvido que um norte-americano de classe média se deite a fazer estas contas ou discuta seja lá o que for que aconteça do Maine para o lado do Atlântico.

    Já a promessa de bloquear os produtos chineses pareceu-me um tiro em cheio. Enquanto chamava marxista a Kamala Harris, Trump fazia promessas socialistas, daquelas que se fossem feitas na Venezuela dariam origem a sanções. Mas, melhor do que isso, foi ver norte-americanos na rua a pedirem o fim da entrada dos produtos ‘made in China’, quando os gigantes americanos já fazem as suas produções por lá. Apple, Boeing, Ford, GM, entre tantos outros, já produzem e optimizam os seus lucros graças à China. Ao impor um bloqueio, Trump está, na prática, não só a prejudicar o investimento norte-americano como a aumentar o custo dos produtos ao consumidor final. Ou seja, diz que lhes baixa os impostos e, em simultâneo, aumenta o custo de vida.

    E as pessoas deliram, aplaudem, acreditam e… votam.

    Foi esta a grande diferença. Trump mentiu, prometeu coisas que não sabe se pode cumprir e inventou, muito. Mas disse qualquer coisa. Mostrou uma espécie de plano. Kamala andou a fazer discursos de ‘Miss Mundo‘ e, depois de quatro anos da Administração Biden, enlameada directa ou indirectamente pela guerra da Ucrânia, o genocídio em Gaza e vários problemas internos (com a Economia e a imigração à cabeça), a saturação do eleitorado atingiu o pico.

    Entre quem não diz nada, e promete a continuidade dos problemas, ou um lunático que dispara para todo o lado, as pessoas arriscam pensando: “o que há para perder?”

    Se Trump se virar para dentro e tentar isolar um pouco mais os Estados Unidos, seja no comércio, na defesa, na Economia, nos muros da imigração ou nos bloqueios imaginários a produtos americanos vindos da China, por mim tudo bem. Aliás, quanto mais problemas internos ele arranjar e menos chatear no resto do Mundo, tanto melhor. Como isso não acontecerá, e os norte-americanos continuarão a meter a colher em todas as panelas, pode ser que a Europa aproveite esta oportunidade única para voltar a ter um lugar à mesa e deixe de ser um fantoche dos Estados Unidos. Que trate da sua defesa sem depender da NATO, que faça as suas relações comerciais com quem seja mais vantajoso, que tome posição nas decisões e nos conflitos, em vez de andar a distribuir lamentos e repúdios.

    É tempo de a Europa assumir, novamente, o seu potencial. É certo que a tarefa se complica com gente como Macron, Meloni, Von Der Leyen, Orban, Scholz ou Borrell à frente dos destino europeus mas, enfim, é o que se arranja por agora.

    text

    Uma última nota para a hecatombe das previsões que, uma vez mais, se verificou na comunicação social portuguesa. A ‘coisa’ começa a criar alguma tradição. Andei semanas a ouvir que Kamala Harris tinha uma ligeira vantagem e, mesmo na noite eleitoral, ainda ouvi falar em empate técnico durante umas horas. Acabou numa ‘tareia republicana’ em todas as disciplinas de voto.

    Como podem esperar manter a credibilidade, a seriedade e até a atenção dos espectadores quando falhas épicas começam a ser o prato do dia? A última vez que ouvi falar em empates técnicos, durante semanas, o acto eleitoral acabou numa maioria absoluta do Partido Socialista. Pensei se, desta vez, o Sebastião Bugalho voltou a fazer análises ou se lançaram apenas os búzios aí nas redacções.

    Para a próxima é que é…

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


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  • A falta de acento

    A falta de acento


    Forçados a uma grossa e bruta alteração climática, dez graus a mais em tão-só três horas de viagem, poderia ter ocorrido aos milionários futebolistas do Manchester City, mais aos seus brilhantes penteados, delicadas tatuagens e adubadas maçãs-de-adão, irem preparar o jogo para os areais da Caparica. Faziam uma peladinha cinco contra cinco, mais o Haaland sempre à mama, a jogar para os dois lados, a ver se resgatava o moral e reparava a autoconfiança. No final, lambuzavam-se com um arroz de polvo no Barbas, onde os atletas das camadas jovens do Benfica têm dez por cento de desconto vitalício e direito a um gelado de morango ou framboesa por conta da casa.  

    Para despeito e frustração da nação benfiquista, um já desenraizado e por consequência desarrazoado Bernardo Silva, guia turístico da equipa celeste dentro e fora dos relvados, optou por sentar os afamados craques e o catalão detentor do record de 279 cuspidelas no banco de suplentes num só jogo da Premier League, à mesa do Solar dos Presuntos. E foi assim que o dito melhor treinador deste e do mundo do além, desembrulhou a sua infalível tática, para a história da Liga dos Campeões, em todas as línguas menos o castelhano, no famoso restaurante onde os lisboetas adentram esfaimados e se retiram satisfeitos, de barriga cheia e o espírito a entornar de sonhos com uma casinha em Ponte de Lima, ou da Barca, e muitas papas de sarrabulho nos anos de reforma.

    Ai carago, no Minho é que é bom!

    Para lá da rasteira, para cartão vermelho, à devoção do hirsuto e histórico adepto das águias, o pequeno em estatura mas de alto gabarito Bernardo também começou, logo na véspera do jogo, a desperdiçar escandalosamente as fidalgas ofertas do clube anfitrião. A primeira dessas condescendências, só para amigos dispostos a colaborar na farra, teria sido uma viagem, exclusiva e personalizada com camisolas antigas do Cristiano Ronaldo e as edições do dia do Record e do Correio da Manhã, no divertido e espaçoso autocarro anfíbio HIPPOtrip, passe a publicidade, de ida e volta entre o estádio de Alvalade e a praia do CDS. O glutão da Silva, cada vez com mais olhos do que barriga e cabelos para pentear, imaginando já ter à frente os adversários, soltou um grito barulhento de guerra aos empregados, registado em acta nas páginas electrónicas da revista NiT.

    Tragam tudo o que é nacional, porque o que é nacional é que é bom!

    O referido periódico sempre-em-linha relata que começaram a sair da cozinha, logo de entradas, “pratos tipicamente portugueses” como um “Polvo à Galega” (sic).  O octópode marinho foi servido em finas rodelinhas com molho muito picante, a fim de aquecer as hemorroidas dos comensais para 90 minutos de esforços e tropelias na fofa relvinha de Alvalade.

    Nas entrelinhas da NiT, não tanto nas minhas, com este polvo à galega tipicamente português fica a sugestão ao senhor ministro da Defesa, também ele um minhoto com ares e memórias de grandes noitadas em Vigo: se justamente anseia por uma recomposição de fronteiras, não seria mais interessante a conquista do Cabo Finisterra, em detrimento do promontório seco de Olivença?

    Como segunda entrada, os refinórios cityzens chuparam com concupiscência umas ameijoas à moda do poeta Raimundo de Bulhão Pato, que tão bem antecipara em verso aquela festa vespertina – e o jogo do dia seguinte –, com a precisão dos gastrónomos de novecentos:

    Amigos, à formosura

    Que nos cerca neste instante,

    Erga-se a taça escumante

    De purpurino licor.

    Vivo enthusiasmo rebente

    Agora de nossas almas,

    Caiam palmas sobre palmas

    Cada vez com mais ardor!

    Dito o poema pelo padeiro Matheus, num acento luso-tropicalista que soa a fado em inglês, encheram-se os copos de uma “selecção” de vinhos nacionais, “ao gosto de cada um”, e a sala transbordou em entropigaitados brindes: ao nevoeiro de Manchester, à independência da Catalunha e à bola de ouro do castelhano Rodri, que tanta falta lhes tem feito no meio do campo, quanto mais à mesa.

    Os pratos principais do banquete conservaram fresca a sofisticada frugalidade dos ilustres confrades.  Bernardo declinou a célebre “foda” em favor do cabritinho assado, também “à moda de Monção”. E condescendeu num arroz, mas de lavagante, sem saber que é um prato do dia corrente e alegadamente barato nas tascas de Oeiras.

    Para uma constelação de estrelas, um pijama de sobremesas. No meio do mesmo, a espreitar ousado, pudim Abade de Priscos, outro gastrónomo minhoto, eternizado por uma tão premonitória como franciscana frase, que hoje em dia daria direito imediato a coluna permanente no jornal A Bola e lugar cativo no Estádio da Luz:

     – Todo o burro come palha, a questão é saber dar-lha!

    No Minho, no tempo de padre Manuel Rebelo, o Abade de Priscos, os velórios eram um óptimo pretexto para fartos banquetes. Os amigos reuniam-se na casa do falecido para se despedir dele e desfrutar de uma última refeição “à pala”. As famílias mais abastadas contratavam um cozinheiro para confeccionar iguarias para dezenas de pessoas. Um desses mestres em bodas de despedida para a eternidade, salvo erro de Lanhelas, terra de boas solhas e afamadas bandas de música, ficou famoso por irromper nas salas a cheirar a cera e a defunto, a anunciar os paladares mais aromáticos da chouriça e do toucinho caseiros:

     – E então, choramos ou jantamos?

    Com um inexplicável travo a vinho verde branco dos beiços à garganta, os milionários futebolistas do City largaram do Solar dos Presuntos já bem anestesiados, directamente para o xixi e cama, no mais obscuro desconhecimento da íntima relação futebolística entre bandulhos cheios e tristes resultados. Fiados na cor das camisolas e embriagados de sono, nem rezaram ao anjo da guarda nem pediram a Deus perdão pelos pecados da gula, alardeado às Portas de Santo Antão, e de exibicionismo de taças, em pleno Terreiro do Paço.

    Em campo, sofreram o castigo da metamorfose. Entraram como lobos, esfomeados mas sem maneiras. Assim que fizeram um golo, atraiçoando indecentemente um samurai pelas costas, passaram a exibir as penas como pavões.

    No estádio, começou a cheirar a queimado. Pareceu um velório aos espíritos mais fracos, a carpir Rubem Amorim por tão triste e velhaca despedida.

    Aos 38 minutos, deu-se o regresso à normalidade. Geovany Quenda dominou a bola no peito com a perícia de um anjo e articulou um passe de magia, a rasgar linhas e impossíveis. Acordou a equipa, levantou o estádio e fez disparar o cometa Gyökeres para a baliza do topo Norte, como a estrela polar.

    É golo!

    Ao intervalo, com o jogo naquele empate manhoso, Morten Hjulmand fechou a porta do balneário ao treinador e mostrou os dentes brancos e o domínio das tradições portuguesas que fazem dele o capitão:

    E então, choramos ou rebentamos com eles?

    O resultado não estava escrito nas estrelas, mas antes nas botas do mágico Pote e do Trincão, a serpente do Minho, assim como na trela invisível com que o génio Catamo enforca defesas atrás de defesas nos minutos finais de cada desafio decisivo. Num espeto luso-nórdico, os pavões cityzens assaram como cordeiros, daqueles que são servidos em Monção pela Páscoa, com muita malícia e uma pitada de limão.

    Na conferência de imprensa, à falta de explicações para a táctica do 4-1 porque não entrou no balneário, o treinador de abalada falou do plano de jogo para a sua carreira.

    Ruben é sem acento.

    Não sabíamos, jamais o poderíamos ter imaginado, mas é mesmo. Falta a Ruben o acento no “é”, de José. E as cedilhas de ambição e de confiança em si próprio, para lutar e ser campeão da Europa, com uma equipa portuguesa bem nutrida de saboroso talento, que até dá gosto ver jogar.


    N.D. Esta crónica do Carlos Enes é publicada sob protesto, e apenas graças ao meu espírito de abertura à liberdade de expressão. Não que a crónica esteja mal escrita, pelo contrário; mas por glosar em torno de comida, quando, por falta dela (lembram-se do leitão de Negrais?! Nunca mais houve nada disso naquela pequena varanda cerca do Campo Grande), fui convencido pelo Carlos Enes a ir debicar algo ao intervalo fora do estádio. Acabámos a comprar asas de frango no McDonald’s, à falta de um Solar dos Presuntos nas proximidades, ou uma roulotte de torresmos, e perdemos, à conta disso, dois golos do Sporting. Podia ser pior? Podia. Por um triz, não houve um acidente de trabalho porque alguém, aventureiro, se quis meter em atalhos, ribanceira acima, ignorando umas escadas cinco metros à frente. Mas isso é outra história. De resto, ressalvo como um benfiquista de coração conseguiu pôr tantos sportunguistas felizes e agora a suspirarem pelo seu regresso ao estilo de um D. Sebastião de Alcochete.

    Pedro Almeida Vieira


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  • Os arabescos retóricos em negação de Maria Luís Albuquerque: uma reflexão

    Os arabescos retóricos em negação de Maria Luís Albuquerque: uma reflexão

    Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. o PÁGINA UM solicitou o registo da marca para Portugal ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), cujo longo processo foi já concluído. No contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas quinzenais pareceu-nos não somente conveniente como necessário. Nesta décima primeira edição, o piparote de Brás Cubas arremete contra Maria Luís Albuquerque, a nova comissária portuguesa na Comissão Europeia, por mor da logorreia de negações durante a sua apresentação em Bruxelas.


    Aprecio deveras frases retumbantes e grandiloquentes vocábulos, com dotes para se alcandorarem sobre os muros da volátil memória da plebe, impondo-se como lapidares axiomas que, mesmo se de calcanhares de barro, sempre dignas serão de um Panteão em preito ao efémero, encravando-se nos neurónios como epitáfios para aí se perpetuarem, embora por breves momentos, na impossibilidade de se eternizarem. Por exemplo, o mais famoso Sócrates, José de nominata, aprecia proclamações fortes, que muito eu estimo pelo vigoroso e impetuoso léxico, como “golpada judicial”, “sinistro aparelho de produção das mentiras mais escabrosas”, “profunda canalhice” e “cobardia moral”. São autênticos torpedos retóricos, crivados de paixão e despeito, que erguem o insulto ao nível da arte e transformam uma acusação em epopeia.

    Aliás, com amarga nostalgia relembro tropos seus que, lamentavelmente, caíram em desuso na língua de Camões, como infâmia, acinte e azedume, que outrora envergavam uma dignidade ácida mas sedutora. Num cenário ideal, esses vocábulos deveriam reviver nas vossas pragas diárias, para elevar os impropérios ao sublime, à erudita perfídia, de sorte que o insulto se fizesse com elegância, minorando, ou tornando mesmo elogiosa, a ofensa, e confortando o vexado.

    Esse Sócrates não fez escola neste estilo político, na arte da verborreia, mas há um outro mal, que atinge os políticos, e que, aparentemente, copiaram de um Sócrates menos conhecido, o grego: a logorreia.

    Ora, como sabeis, o tal grego clamou, certo dia, a hora incerta, pelo que poderia ser já noite, um axioma: “Só sei que nada sei”. A frase carrega um irónico paradoxo, fundando-se numa autocontradição ao se afirmar uma sabedoria que, curiosamente, se resume à negação do próprio saber. Trata-se, contudo, de um axioma da negação: em vez de destruir, a negação ilumina. Ao declarar que sabe nada, Sócrates professava o conhecimento de uma única certeza: a da sua ignorância.

    Essa afirmação gera, hélas, um efeito de ouroboros filosófico, a mítica serpente que morde a própria cauda, pois se alguém sabe que nada sabe, então possui pelo menos o conhecimento da própria ignorância. Assim, a máxima não é uma rejeição da verdade, mas uma celebração da humildade intelectual, uma abertura ao desconhecido, que torna o saber genuíno possível ao reconhecer as suas fronteiras.

    Porém, sendo certo que o “só sei que nada sei” funciona como uma vacina contra o dogmatismo e a arrogância, tornando o filósofo num D. Quixote do saber, lançado ao mundo não para possuí-lo, mas para questioná-lo, caiu-se na exageração: negar a negação passou a ser, em circuitos políticos, um exercício de prestidigitação retórica, onde as palavras giram sobre si mesmas, como num bailado de lógica invertida, até que o sentido, ou a falta dele, se dissolve nas sombras do absurdo.

    É como se o próprio ouroboros do discurso devorasse o seu rabo de razão, num ciclo infindável de “eu disse o que disse, mas não disse o que queria dizer”, em que se afirma e desmente com a fluidez de uma brisa maliciosa, deixando no ar apenas um rasto de dúvidas. E, ao fim desse malabarismo verbal, talvez a única certeza seja a incerteza – ironicamente, estamos em face do derradeiro triunfo do sofista.

    E assim chegamos a Maria Luís Albuquerque, a indigitada comissária para os Serviços Financeiros e a União de Poupança e Investimentos, que, em Bruxelas, não poupando palavras, investiu no helénico axioma socrático e saiu-lhe tripla negação para o grau de espinhosidade das suas fiduciárias tarefas: “Não tenho ilusões de que não será nada fácil”.

    A pretexto desta intervenção da ex-ministra das Finanças da ‘terrinha’ em Terras de Brabante, mesmo se dita na língua de Shakespeare, merece uma breve reflexão esta arte política – ou melhor, esta ciência ardilosa – de multiplicar negativas para produzir, não clareza, mas um nevoeiro espesso de ilusões.

    Desde o túmulo, convencido cada vez mais estou, e mais até do que estava quando sobre a terra perambulava, de que o engenho e a nobreza de espírito podem existir tanto nas sinapses que sublimaram Kant, a ponderar sobre a ‘coisa-em-si’, ou nas que afundaram Hegel, a decifrar os labirintos da dialética, como nos impulso da mioleira dos políticos que verborreiam uma alquimia discursiva onde a afirmação se dilui e a verdade se suspende, transformando cada frase numa teia impenetrável de nulidades, como se o objetivo último fosse o de não dizer absolutamente nada, mas disfarçado com eloquência e pompa.

    Ora, mas direis: Maria Luís Albuquerque não esteve ali a enganar ninguém, mas apenas a comunicar. Porém, é aí que entra a questão da negativa sobre a negativa: um duplo ou triplo “não”, ao invés de anular-se como nos manuais de álgebra de um professor entediado, apenas atira a audiência numa espiral de perplexidade. Vejamos antes a palavra como “ilusão” – que evoca imagens platónicas e poéticas de sombras e luzes, com uma leve pitada de Rousseau – precedeu logo duas ou três construções que apenas se justificam para confundir.

    Talvez, ao fim do turbilhão gramatical, o pobre cidadão, exausto, já aceite o discurso como uma verdade intrínseca, como uma segunda natureza. Afinal, se algo é repetido, mesmo com tamanha tortuosidade, quem ousará dizer que nada, absolutamente nada, ali faz sentido?

    Julgo ter sido Nietzsche que, em tirada cínica, defendeu que a mentira serve, em primeira e última instância, para proteger o mentiroso, ou o político faltoso. Assim, se mentir, dissimular, forjar e deturpar são artesanias da política, então nada mais justo que sejam temperadas de pitadas generosas de logorreia com a profundidade de tripla negação e complexidade gramatical bastante para causar tremores a qualquer noviço das letras.

    Na verdade, as negativas dobradas e triplicadas que pululam nas frases políticas, como se quisessem lançar poeira aos olhos do ouvinte, funcionam como uma espécie de defesa prévia contra a indagação; tornam-se uma cortina de fumaça densa, atrás da qual se esconde o mesmo velho temor de que o discurso revele uma fragilidade desconcertante.

    Ao invés dos escritores e poetas, que lançam mão da multiplicidade de significados e da riqueza vocabular para compor as suas obras numa tapeçaria em filigrana, o político limita-se a driblar e desviar, a “não dizer” com prolixidade. Afinal, se como nos diz Fernando Pessoa, “navegar é preciso, viver não é preciso”, para um político “complicar é preciso, cumprir não é preciso”.

    O discurso político hoje deve dizer, ao mesmo tempo, tudo e nada: é como o gato de Schrödinger, presente e ausente na mesma frase. A retórica é tanta, o rodeio tal que talvez o próprio político já nem saiba o que quis dizer. Estamos defronte de um verdadeiro campo minado de palavras, onde o objetivo é deixar um rastro que nada explica, mas que evita o apedrejamento público.

    Prevejo assim que Maria Luís Albuquerque queira, em tom de introspecção perfomativa no final do seu mandato em Bruxelas, declarar sobre o seu desempenho: “Não posso deixar de não acreditar que não há razão para não duvidar de que o meu projecto não tenha fracassado.”

    Poupo-vos ao labor de discernir este enigma de penta-negações digno de teatro do absurdo, onde qualquer personagem, aí sim, deve cair no ridículo, mas com elegância. Sugiro, por isso, à Maria Luís que declare somente: “Acho que fracassei”. Sem pirotecnia verbal nem arabescos retóricos. Inteligível. E fiel à realidade.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM registado no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, usado em exclusivo por Pedro Almeida Vieira, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.


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