É-me de todo impossível falar da AMI – Assistência Médica Internacional sem pensar no sonho/utopia (“Deus quer, o homem sonha e a obra nasce!”) que eu me lembro de ter tido desde a minha tenra meninice por terras de África (nasci em Angola/Luanda, há 73 anos ainda então província ultramarina portuguesa): um dia ser médico, o primeiro da minha família, e ter um hospital no mato para tratar das pessoas mais desvalidas, isoladas e esquecidas.
Filho de miscigenações e multiculturalismos muito alargados, como genuíno português que sou, sempre olhei para o nosso Planeta como sendo uno e, já na adolescência, no Congo ex-Belga, ansiava por um mundo sem fronteiras e governado por um conjunto de sábios, éticos, altruístas e com vastíssima cultura humanista e espiritual e simultaneamente com uma enorme mundividência e multividência.
Sim, sonhava com o surgimento de um Mundo ““Justo” e “Bom” onde todos colaborassem, cada um pondo à disposição dos outros, gratuitamente, os seus conhecimentos e saberes…
Foto: PÁGINA UM
De Luanda, aos 12 anos, findo o 2º ano no Liceu Salvador Correia de Sá e Benevides, fui com os meus pais para Leopoldville, República Democrática do Congo, e aos 15 anos fui enviado pelos meus pais para Bruxelas para continuar os meus estudos liceais já que o Ateneu Belga que frequentava tinha fechado, devido a uma guerra fratricida com mercenários à mistura no Verão de 1967.
Foi o segundo choque violento na minha curta vida, já que no período da Páscoa de 1961 tinha sofrido a perda do meu melhor amigo e condiscípulo da 4ª classe em Luanda, filho único, o Janeiro; tinha sido morto à catanada numa fazenda de uns tios no norte de Angola… Com 15 anos percebi que o meu sonho/utopia de um Mundo de fraternidade e ético não iria ser fácil de concretizar. Não sabia é que o pior, o muitíssimo pior, estaria para vir e que eu estaria nas primeiras filas para assistir ao impensável!
Dos 15 aos 34 anos (final de 1985) vivi em Bruxelas.
Fernando Nobre, presidente e fundador da Fundação AMI, na sede da instituição, em Lisboa. (2024) / Foto: PÁGINA UM
Aí acabei o liceu, fiz o curso de Medicina na Universidade Livre de Bruxelas, com professores de excelência, assistindo a aulas de Ilya Prigogine, Prémio Nobel da Física, Albert Claude, Prémio Nobel da Medicina. Especializei-me depois em Cirurgia Geral e em Urologia, esta última com o melhor mestre europeu, e um dos melhores do mundo, Willy Gregoir, que dá o nome ao maior prémio, a medalha com o seu nome, da Associação Europeia de Urologia. (Tinha aliás pensado antes em Cirurgia Cardíaca, mas nessa altura seria impossível exercer no mato…)
Em 1984 com o Dr. Frank Collier, também do serviço do Prof. W. Gregoir, ganhei o melhor prémio no Congresso Europeu de Urologia em Copenhaga.
Durante esse longo período em Bruxelas, nunca abandonei o meu sonho primeiro: fazer como o meu herói e colega, Albert Schweitzer, que morreu quando eu tinha 15 /16 anos, e que desenvolveu uma obra notável, que conheci, no atual Gabão em Lambarené e que lhe valeu, e muito bem, o Prémio Nobel da Paz.
Foto: D.R.
Com um fortíssimo sentido de humanismo e de solidariedade, empenho-me desde há 50 anos na cidadania ativa.
Comecei, ainda jovem estudante de medicina, como voluntário numa associação de apoio a crianças autistas (hoje sabe-se que a multiplicidade de vacinas, com excipiente de alumínio, dadas na infância estão na origem do crescimento exponencial do autismo, e não só, como clama Robert Kennedy Jr., futuro Ministro da Saúde do recém eleito Presidente dos EUA!
Depois, já jovem médico, com a Amnesty Internacional na Bélgica, enviei múltiplas cartas de apoio a colegas presos em hospitais/prisões psiquiátricas na então URSS.
De seguida participei em missões de emergência cirúrgicas (guerras) com os MSF França e depois MSF Bélgica de que fui Administrador! Estive nas guerras Irão/Iraque, Chade/Líbia duas vezes, Beirute…
Foto: D.R.
No final dessa fase da minha vida, já casado e com dois filhos nascidos em Bruxelas, percebi que o meu sonho de ter o meu hospital no mato em África era de todo impossível.
E foi então em 1983 que uma grande reportagem no Chade com o meu, desde então, querido amigo José Manuel Barata Feyo, o destino me desviou para Portugal quando andava a pensar instalar-me na Costa do Marfim.
Fundei a AMI com 32 anos, a residir ainda em Bruxelas, e decidi mudar-me para Portugal continental, onde nunca tinha vivido, e recomeçar uma nova vida…
Há 40 anos, quando embarquei nesta Missão, não sabia quanto tempo duraria a viagem, mas o propósito era muito claro: lutar contra a intolerância e a indiferença e contribuir para um mundo mais justo.
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Parecia-me inconcebível ficar impávido e sereno perante tanta desumanidade que grassa no Mundo e tinha a certeza que era possível tentar construir um futuro melhor, alicerçado em bondade, equidade e respeito pelos Direitos Humanos. Não era simples, mas também não era impossível.
Arrisquei, dei um salto de fé, sonhei e acreditei. Era jovem, com muito ainda para aprender, e acabava de aterrar num país desconhecido quando decidi regressar de Bruxelas, onde vivia há 20 anos, e criar a AMI em Portugal. Mas o risco faz parte de todos os sonhos e a AMI, que soube sempre reinventar-se, também arriscou quando alargou a sua atuação de África para outros continentes, quando começou a intervir socialmente em Portugal, ou a desenvolver projetos na área do Ambiente.
Costumo dizer que “não há montanha inacessível, não há obstáculo inultrapassável nem fortaleza inexpugnável …” E com base neste lema, a AMI, uma instituição que se quer de ação e de reflexão, antecipou-se sempre às dificuldades e inovou nas respostas para que a Missão pudesse continuar.
Foto: D.R.
Em 40 anos, a AMI desenvolveu a sua intervenção nas áreas da Ação Humanitária e Cooperação para o Desenvolvimento, Ação Social, Ambiente e Alertar Consciências, em 82 países do Mundo (incluindo Portugal), mais precisamente 31 missões em África, 16 na América, 15 na Ásia e Oceania, 10 na Europa e 10 no Médio Oriente, num total de mais de 460 projetos e mais de 780 expatriados enviados para o terreno, tendo sido apoiados mais de 7 milhões de pessoas. A primeira missão arrancou em 1987 na Guiné-Bissau.
Em Portugal, a AMI começou a atuar em 1994, ano em que abriu o primeiro Centro Porta Amiga localizado nas Olaias, em Lisboa. Desde então, e face às necessidades existentes no país, a AMI abriu vários equipamentos sociais e desenvolveu várias respostas em todo o país, nomeadamente 9 Centros Porta Amiga (Lisboa (2), Porto, Coimbra, Almada, Cascais, Funchal, Vila Nova de Gaia, Angra do Heroísmo), 2 Abrigos Noturnos (Lisboa e Porto), 2 Equipas de Rua (Lisboa e Vila Nova de Gaia/Porto), 1 Equipa de Apoio Domiciliário (Lisboa), e 1 polo de distribuição alimentar (Porto). Desde 1994, já foram apoiadas mais de 80.000 pessoas pela AMI em Portugal, das quais 14.229 em situação de sem-abrigo. E desde 2015, já foram entregues bolsas de estudo a cerca de 500 estudantes universitários.
E porque a AMI acredita que um futuro mais justo e digno para todos é indissociável de um planeta mais sustentável, desenvolve também vários projetos na área ambiental, designadamente na área da recolha de resíduos para reciclagem e reutilização, reflorestação e energias renováveis. Foram já recolhidas 1.700 toneladas de radiografias, quase 2.000 toneladas de óleo alimentar usado, mais de 400 mil quilos de papel e cartão e mais de 16 mil quilos de resíduos elétricos e eletrónicos; e reflorestados mais de 410 mil metros quadrados) de terreno em Portugal.
Foto: D.R.
Falar da AMI é, sem descurar o nosso passado, sobretudo olhar para os desafios (pobreza/exclusão, equilíbrio ambiental, migrações, guerras) que se vislumbram, e para as esperanças (sociedade civil, cidadania) que nos incentivam a continuar. E a verdade é que estes 40 anos não estariam agora a ser celebrados se não tivéssemos podido contar com uma sociedade civil participativa, interessada, empenhada, altruísta e solidária. Por isso, obrigado a cada um de vós, que acompanham e acreditam na Missão da AMI. Estou imensamente grato pelo vosso apoio, carinho e ativismo. Agora mais do que nunca em tempos de Distopia trágica.
Tenho imenso orgulho na obra da AMI, embora tenha perfeita consciência que mercê de algumas opções que tomei em 2011 (politica) e 2020 (médicas, éticas e de consciência) compliquei a sua missão! Arrependido? Não! Voltaria a fazê-lo para não perder o respeito pelo Ser Humano que sempre procurei ser e o médico que sempre fui! Por isso fui “cancelado”. O futuro julgará!
Foto: D.R.
A AMI está preparada para os próximos 40 anos e espero que um dia possamos celebrar o facto da AMI já não ser necessária, porque significará que conseguimos alcançar um mundo justo, empático, digno e feliz para todos. Até lá, continuemos a trabalhar e a sonhar juntos.
Há 40 anos que fazemos AMIgos junto das pessoas cujas vidas conseguimos transformar, das pessoas que contribuem para esta Missão, sejam colaboradores ou voluntários, das pessoas que ajudam a concretizar esta Missão através de donativos e parcerias, sejam doadores coletivos ou individuais, de todos os que nos acompanham e multiplicam o alcance da nossa mensagem.
A missão da AMI vai continuar, sim. Contra a Intolerância. Contra a Indiferença. São estas as duas piores doenças da humanidade.
Fernando de La Vieter Nobre é Fundador e Presidente da Fundação AMI
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Alterações Mediáticas, podcast da jornalista Elisabete Tavares sobre os estranhos comportamentos e fenómenos que afectam o ‘mundo’ anteriormente conhecido como Jornalismo. No 13º episódio, analisa-se o fenómeno bizarro que levou os media a esconderem que a maioria dos Prémios Nobel que não querem ver Robert F. Kennedy Jr. na liderança da ‘pasta’ da Saúde na administração Trump são os mesmos que defenderam a organização caída em desgraça, EcoHealth Alliance, que conduziu pesquisas perigosas em Wuhan, na China. Também se analisam dois casos em que a SIC Notícias e o Correio da Manhã cometeram lapsos de tradução que totalmente alteraram as notícias em causa.
Há uma penada de anos conheci um mestre-de-obras romeno, o Adriano. Naqueles meses a revirar-me a casa do avesso, a picar, estocar, pintar, derrubar e levantar paredes, abrir rossos, fazer argamassa, barrar cimento, instalar cabos, acartar baldes, afagar, polir e instalar as traquitanas, descobri uma inusitada faceta do mestre Adriano.
Certo dia, ao subir a escada para ver o andamento da obra, ouvi os trinados de uma guitarra e o Ai Mouraria cantado com voz roufenha. Entrei, pé ante pé, e lá estava o mestre Adriano, sentado num par de tijolos, de olhos semicerrados, a dar no fado como um fadista de Alfama. Quando me viu, à falta de melhor desculpa, esticou a mão para me passar uma bucha de torresmos. Enquanto os trolhas, três eslavos e um cearense, se deliciavam nas bifanas, a ouvir o mestre, limitei-me a dizer-lhe, prossiga. Nesse dia fiquei a saber que tinha em casa, além de um trolha, um fadista, que passei a frequentar, entre pincéis, martelos e ferramenta.
Quis saber de onde lhe tinha brotado a paixão por coisa tão portuguesa. Era daí que lhe vinha o dedilhar e o canto, do território da paixão. Contou-me, no seu português de quem rodara por bairros populares, que trinta anos antes embalara a trouxa e zarpara de Bucareste, depois de ouvir Amália Rodrigues cantar na rádio. Foi, disse-me, como se Deus o tivesse chamado à terra onde só podia ter nascido tal melodia. Entre ouvir Amália e abalar passaram menos de cinco dias.
Adriano nada sabia de Portugal ou da diva. Na Roménia tocava viola de ouvido, as canções dos Beatles, The Who, dos Led Zeppelin. Ao chegar a Lisboa, a primeira coisa que fez, antes de se instalar na pensão Girassol, foi ir aos fados. Entre uns biscates e aperfeiçoar a arte do estuque, passou a ser assíduo do Luso, da Parreirinha, da Tasca do Chico. De então para cá, ouviu e bebeu de tudo e de todos, até eleger Joel Pina para o altar do seu panteão. Nada lhe passou ao lado. A todos acolheu, de todos aprendeu, a ouvir e a ver, todos os que pôde. De Beatriz da Conceição a Marceneiro, de Carlos do Carmo a Argentina Santos. Era um fadista e não sabia.
Tenho admiração por quem sente o que é dos outros como seu, todo aquele que torna o estrangeiro a sua morada. Não apenas por razões que o bolso conhece, mas por emoções desconhecidas. Gente que desce às profundas de genes tomados por adopção. Desde o meu achado na obra da Rua Correia Teles, passei a ir ouvir o mestre Adriano às tascas do fado, onde acompanha fadistas de todos os quilates, de aspirantes a veteranos. Pedem-lhe um dó maior e ele dá tudo de si. Alguns, creio, não saberão estar ali um romeno que largou a sua terra por causa do fado. Adrián e não Adriano. Não darão conta pela sua fala sem sotaque ou por ser tão raro meter galgas como é próprio do mais virtuoso. E se as mete, logo as disfarça como fazem os indígenas do ofício, sem dar parte fraca.
Adriano diz caralhadas com o deleite de um gimbra. Tal como sabe de cor e salteado as deixas e os intervalos de dar ou não dar as notas. Ou quem foram o Pacheco, o Pina, o Paredes, as guitarras do Grácio, as madeiras, os seus veios, nervuras e as suas minudências de onde só uma alma unida a outra pode tirar os sons mais límpidos.
Quando um estrangeiro se instala num país por motivos de uma força maior, fazendo da terra que o adopta a sua pátria sentimental, aí está o significado de um mundo sem fronteiras. Nós demos-lhe o fado, ele devolve-nos a dádiva como se fosse nascido no seu caldeirão. Limpinho.
Tiago Salazar é escritor e jornalista (com carteira profissional inactiva)
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A expressão “vida artificial” (cara aos transhumanistas), é um oxímoro. Ou há Vida ou há um “artifício”, ou um simulacro de vida. A Vida não pode ser nunca artificial. Nada é mais oposto à Vida que as manipulações do mundo vivo pela tecnologia”[1].
A apreciação das dimensões macro e micro espaciais desse abismo pode passar pela avaliação da sua qualidade molecular. Setenta por cento da nossa constituição é água, e é essa a percentagem também da sua presença no planeta. Não será despiciendo sublinhar o quanto a qualidade das suas memórias e condição ambiental podem divergir e ser determinantes no mundo vivo.
Para alguns, uma molécula de água de uma cascata montanhosa é indistinguível de uma molécula de água que sai de um tubo de escape. Os caminhos do materialismo científico conduziram a ciência a uma visão de tal forma estratificada da realidade que o mais elementar requisito duma Análise Global de Sistemas é ignorado. É possível provar com métodos como a cristalização sensível ou o efeito Kirlian[3] que, apesar de terem a mesma estrutura química, aquelas duas moléculas não são iguais. Um mesmo meio aquoso submetido a diferentes circunstâncias dá origem a formas geométricas dos cristais respetivos que são harmoniosas ou, pelo contrário, caóticas, como o provaram os trabalhos de Masaru Emoto (Japão). Jacques Benveniste e Luc Montagnier (França)[4] estudaram também a capacidade que tem a água de memorizar as características da matéria com que esteve em contacto. A água manifesta e transmite a qualidade vibratória das frequências que a percorrem e guarda memória delas[5]. Para estudar essa realidade da água é preciso aceitar ir para lá do dogma materialista da estrita composição química. Se dúvidas houver sobre a realidade ondulatória (a par da corpuscular) duma molécula, vejam-se por exemplo os trabalhos de Luc Montagnier que permitiram duplicar e reconstituir à distância uma molécula sem nenhuma base material[6].
Quando Marie e Pierre Curie utilizavam a radiestesia na sua prática laboratorial, percebiam já que, para além de um comportamento corpuscular, toda a matéria tem também um comportamento ondulatório (ou vibratório), i.e. uma irradiação. A química desenvolveu uma compreensão própria dessa realidade ao abrir o capítulo da estereoquímica: o estudo da qualidade das moléculas que acrescenta à sua fórmula química, a configuração e arrumação dos átomos que as constituem no espaço tridimensional. As propriedades óticas duma molécula (comportamento do plano de luz polarizada que a atravessa quando cristalizada) diferem entre moléculas com a mesma constituição química. Umas são levogiras (têm um movimento rotativo para a esquerda), outras dextrogiras (para a direita) e outras sem nenhum desvio ou movimento. A título de exemplo, na molécula de ADN, 19 das 20 moléculas de aminoácidos que compõem as proteínas, assim como todos os açúcares naturais, são levogiras[7].
As noções de quiralidade, isomeria, enantiomeria e de mistura racémica[8] permitiram estabelecer diferenças fundamentais entre a acção biológica (e por extensão farmacológica) de umas e outras[9]. Genericamente, Young, Pasteur e Fresnel demonstram que a matéria viva é assimétrica e quiral (a duplicação duma molécula no espelho não lhe é sobreponível, como as nossas duas mãos também não o são), e a matéria inerte, simétrica (ou aquiral)[10].
A quiralidade só pode ter origem em fontes naturais. As moléculas artificiais nunca são quirais. Das quatro forças que existem no Universo, a força nuclear fraca será aquela na qual a quiralidade tem origem.
Os seres vivos têm a capacidade de ir buscar moléculas aquirais ao exterior (alimentos naturais) e fabricar com elas compostos quirais de carbono, ou seja, elevar a frequência vibratória (qualidade ondulatória) dos alimentos de forma a transformá-los em matéria viva[11]. Mas não pode fazê-lo com as moléculas artificiais que, por isso, os intoxicam. Um organismo vivo caracteriza-se por trocar informação, matéria e energia com o exterior e por poder reproduzir-se: é preciso que nos interroguemos sobre o que possibilita esses saltos quânticos (a transformação da matéria inerte digerida em matéria viva ou a reprodução) e reconhecer que uma análise in vitro e outra in vivo apresentam forçosamente resultados muito diferentes. É preciso, simultaneamente, reconhecer que a distinção mais subtil entre matéria natural e não natural parece residir na quiralidade. A resistência do mundo vivo às inúmeras ameaças a que é submetido todos os dias há várias décadas, é aferível a partir dela. No coração da matéria, a vida natural é movimento predominantemente rotativo e a inércia é um indicador da sua ausência ou de uma inadequação biológica.
A dissimetria especular que caracteriza a vida a este nível acontece também a nível macro cósmico. O eletrão é tendencialmente levogiro e a energia que liga as moléculas levogiras é maior do que aquela que liga as moléculas dextrogiras.
O mesmo princípio funda a estereobotânica: a planta é uma sinergia num todo (princípio do Totum vegetal); a extracção duma molécula reduz o seu efeito. Entre elas, as plantas têm também sinergias. Na alimentação, em fitoterapia, gemoterapia ou aromaterapia o mundo vegetal oferece ao Homem os nutrientes e curativos mais importantes e a fonte desse conhecimento foi encontrada pelos ocidentais junto dos povos que colonizaram para depois dizimar e ridicularizar: as populações índias e aborígenes dos continentes americano e australiano. O mesmo tipo de conhecimento foi encontrado nos xamãs da Sibéria e dos Himalaias, nas heranças milenares da medicina tradicional chinesa e indiana, etc. O isolamento, por extracção, de uma molécula das outras que constituem a planta (agravado pela sua replicação sintética) altera e diminui a sua capacidade de actuação: a planta como um todo é adaptogénica, enquanto o princípio isolado actua numa só direção. A norma são as sinergias, segundo o princípio mais lato de “entourage”.
Na sua lógica de poder, dominação e lucro, o ser humano não percebeu que o que a natureza dá não existe para ser patenteado e propriedade de alguns, e achou que podia recriar a molécula natural em processos de síntese laboratorial ignorando a importância da quiralidade, do totum vegetal, das sinergias intra e extra-espécies, das leis naturais e da ética a que estamos obrigados perante elas. Aventurou-se, desse modo, na criação de milhares de moléculas de síntese que hoje circulam em todo o planeta, intoxicando e desregulando a biodiversidade, o ar, a água, os minerais, as plantas, os animais, os seres humanos: os seus sistemas endócrinos, o seu terreno e meio interno, a sua eletrofisiologia e a sua imunidade. A criação de moléculas artificiais não permite a obtenção da qualidade quiral nem garante a separação dos duplos indesejados (pares de enantiómeros em compostos), e existem provas de que as misturas racémicas não são favoráveis à biologia dos seres vivos. Mas a comercialização de um racémico é muito mais barata do que a de um desdobrado[12].
Não satisfeito com isso, o ser humano manipula geneticamente todos os estratos e cadeias da vida; ignora que ele próprio é uma realidade complexa em que interagem espírito, alma e corpo[13] e tende a considerar credíveis apenas os estudos científicos financiados e instrumentalizados pelas grandes indústrias[14].
O DOGMA MATERIALISTA
O entendimento das partículas da luz (fotões) ou da matéria em geral como tendo uma natureza e um funcionamento quânticos surge no início do século XX nas áreas da mecânica e da física, mas desenvolve-se, mais recentemente, nas ciências da vida como a biologia e a medicina. Aplicados à realidade complexa e global do ser humano, a interferência do investigador no seu objeto de estudo e os princípios de superposição, de entrelaçamento e de incerteza têm implicações filosóficas e antropológicas profundas[15]. Como vários autores sublinham, a dificuldade da física quântica reside no facto de ser uma espécie de metafísica e de perturbar, por isso mesmo, os dogmas mais sólidos e persistentes da ciência dos séculos XIX e XX.
Diz-nos a Cosmologia que a matéria é apenas 4% de tudo o que existe no Universo[16]. É a expressão mais densa da energia. O espírito é o seu contraponto mais subtil. Isso significa que 96% de tudo o que existe escapa aos cinco sentidos a que a nossa educação e civilização nos restringem. Mas esse lado invisível e inaudível à grande maioria existe, é determinante e é suscetível de ser conhecido e estudado. A educação para essas funções do espírito, erradicada pela ciência positivista e atomista do século XIX, era frequente em grandes civilizações tradicionais.
Num congresso realizado em 2014 em Canyon Ranch (E.U.A) vários cientistas de todo o mundo foram convidados a partilhar experiências de teor espiritual significativas que informaram o seu ponto de vista pós materialista da ciência. As discussões incluíram informação em neurociência, espiritualidade e doença, experiências de morte iminente (EMI) ou NDE (versão inglesa), parapsicologia e paradigmas psiquiátricos e antropológicos alternativos.
No Manifesto para a Ciência Pós materialista que delas resultou é feita uma síntese do impacto da ideologia materialista na ciência e da influência do paradigma pósmaterialista emergente[17]. Um dos organizadores, Mario Beauregard, é autor de livros dedicados à ponderação da consciência como uma realidade independente do corpo e suscetível de se constituir como objeto de estudo[18].
A importação da física quântica para a biologia permite, hoje, ver a célula como um suporte ou campo de ressonância e perceber que os mecanismos profundos da biologia são regidos por campos eletromagnéticos. A esta noção deve associar-se a de campos morfogenéticos de Rupert Sheldrake, a de campos magnetobiológicos de Émile Pinel, os estudos do ADN como campo de ressonância e teleacção por Lakhovsky, David Bohm, Luc Montagnier ou Garaiev e Poponin. Cannenpasse-Riffard[19] aborda questões fundamentais sobre a vida, o Universo e a consciência num livro pouco convencional de medicina e biologia quânticas. A separação entre espírito e corpo (ou entre energia e matéria) é o quadro geral dentro do qual a doença é lida atualmente como causada exclusivamente por agentes exógenos. Ultrapassada, para o autor, a física do século XIX continua a influenciar a biologia e a neurologia. Mas é a física quântica que, segundo ele, vai permitir um entendimento dos fenómenos de consciência[20].
A Teoria Geral dos Sistemas (Ludwig von Bertalanfy 1968) e a Teoria dos Sistemas Abertos e dos Processos Irreversíveis (IlYa Prigogine), sublinham o princípio de emergência: um sistema aberto (como um ser vivo) interage em permanência com o exterior e, contrariamente aos fechados, que estão submetidos ao princípio da entropia (segunda lei da termodinâmica), é regido por uma força contrária à entropia, levando o sistema à regeneração, reorganização e homeostasia, para assegurar a sua perenidade: a neguentropia. Essa força tem de provir de alguma fonte, uma fonte de vida. Já descobrimos qual e onde se encontra?
OUTROS FACTORES DE INTOXICAÇÃO
Nas telecomunicações móveis são usadas frequências muito altas (radio frequências ou micro-ondas, não ionizantes), em ondas pulsadas, bastante agressivas para o organismo. A eletrofisiologia e a eletrobiologia do corpo humano são radicalmente perturbadas na sua voltagem natural, pela voltagem induzida por este tipo de radiação. O stress oxidativo é permanente. A generalização do 5G (a que se seguirão o 6 e 7 G) será letal para toda a vida no planeta. Tudo o que já foi possível investigar até ao presente nesta área justificaria largamente e, no mínimo, a aplicação de um princípio de precaução[21].
Por outro lado, múltiplos programas têm sido desenvolvidos na área da geo-engenharia, com a acção conjugada de metais pesados em rastos químicos e de ondas eletromagnéticas[22]. As nuvens artificiais e a modificação intencional da ionosfera (Cf. projeto HAARP) modificam o clima da Terra e o seu equilíbrio; interrompem ciclos naturais; afetam a fotossíntese; interferem nos ventos e na pressão atmosférica; alteram a ressonância das ondas de Schumann[23] no ser humano; causam problemas ligados à alteração dos ciclos circadianos e à ingestão e inalação de metais tóxicos.
A questão alimentar é também nuclear: os modelos nutricionais e a nossa relação com os animais. Uma conexão com a Natureza conforme à das tradições e culturas ancestrais, com valores existenciais e utilitários harmonizados, favorece uma visão positiva da humanidade e da fruição do planeta. Havendo vontade política, é possível implementar a conversão da agricultura química e da monocultura em agricultura biológica e em biodiversidade e contribuir para a proibição de dezenas de milhar de moléculas sintéticas introduzidas no planeta.
A carência em micronutrientes essenciais que hoje se verifica advém de produtos naturais adulterados, desvitalizados, mal conservados e intoxicados; a emancipação local e regional deveria favorecer a proximidade entre consumidor e produtor, a auto-suficiência económica e a verdadeira sustentabilidade[24].
A jornalista francesa Stéphane Horel é uma das principais vozes de denúncia do funcionamento dos lobbies e dos bastidores da decisão política em matéria de consumo agroalimentar, química, petrolífera farmacêutica e industrial. Em dois livros que publicou[25] a autora expõe a estratégia das grandes indústrias mundiais no sentido de impedir, confundir, adiar, desacreditar qualquer estudo científico não pago e não enquadrado pelas próprias indústrias; ou qualquer projeto de lei ou normativo inspirado pelo princípio de precaução, nomeadamente na área dos perturbadores endócrinos e dos produtos cancerígenos.
A MATRIZ UTÓPICA
A ideologia do progresso alimenta, há pelo menos dois séculos, o imaginário de um permanente crescimento económico, logicamente insustentável; exalta a revolução tecnológica para lá do seu enquadramento ético; exacerba a pulsão territorial e as patologias do poder. De uma forma muito idealizada, presidiu a vários projetos arquitectónicos e urbanos utópicos dos anos 60: Ant Farm, na América que seguia Buckminster Fuller; “Helix City”(1961), de Os Metabolistas, no Japão; Archigram, de um grupo anglo-saxão de arquitetos.; Arcosanti, fundada por Frank Lloyd Wright, na sequência de Broadacre City. Auroville, criada em Pondichéry (Índia, 1968). Na mesma época, Germano Celant designa por “Arquitectura Radical” as iniciativas de grupos italianos como Archizoom, SuperStudio, 9999 e UFO[26].
Mas a grande revolução que está por fazer é outra. Da micro realidade química, magnética e vibratória da molécula à macro realidade duma sociedade que polui, desresponsabiliza, adoece e aliena, a ciência, a medicina, a agricultura, a alimentação e a utilização prometeica da tecnologia já colocaram a atual civilização à beira de um colapso muito provável. A natureza extrema do seu malefício também acordou muitas consciências.
A grande revolução que está por fazer é incrivelmente microscópica: tem a dimensão de uma molécula. A sua condição e contrapartida macroscópica surgirá da elevação dos níveis de consciência de todos aqueles que estiverem em condições de promover, em cadeia, as mudanças sociais que se impõem.
A História ensina e prova que as grandes e mais importantes revoluções germinam num espaço onírico e criativo fecundo, necessariamente interior e individual e que começaram sempre por ser sonhos de pequenos grupos, considerados utopia.
Leonor Nazaré é curadora de arte contemporânea.
[1] Daniel Robin, Le Règne de l’intelligence artificielle. La fin de l’Anthropocène et l’avènement des posthumains, Grenoble : Le Mercure Dauphinois, 2022, p.16. Tradução nossa.
[2] Com revisão científica e algumas notas de António Godinho (médico generalista).
[3] Técnica fotográfica usada para capturar descargas elétricas coronais. O nome é uma homenagem ao cientista soviético Semyon Kirlian, que, em 1939, descobriu acidentalmente que se um objeto numa chapa fotográfica for conectado a uma fonte de alta tensão, será produzida uma imagem nessa chapa. A técnica tem sido conhecida também como eletrografia ou eletrofotografia.
[4] Masaru Emoto, Les Messages Cachés de l’Eau, Paris. Ed. J’ai lu, 2004 ;Jacques Benveniste, Ma Vérité sur la Mémoire de l’Eau (publiée en 1988 dans la revue “Nature”), Paris, Albin Michel, 2005 ; de Luc Montagnier, entre outros : Des Virus et des Hommes, Paris, Ed. Odile Jacob, 1994.
[5] É o princípio da homeopatia, em dinamizações muito altas.
[6] Acerca da descoberta de Luc Montagnier (prémio Nobel de Medicina, em 2008), sobre a memória da água, ver https://www.youtube.com/watch?v=R8VyUsVOic0
[7] Martin Gardner, L’Univers Ambidextre (1967), Paris : Seuil, 1994
[8] Quiral significa assimétrico e aquiral, simétrico. Isomeria: fenómeno em que diferentes compostos partilham a mesma fórmula química, mas apresentam arrumação espacial diferente dos seus átomos; enantiomeria: fenómeno em que as moléculas de isómeros são imagens especulares não sobreponíveis. Mistura racémica: com partes iguais das duas metades. Nas moléculas consideradas antípodas óticos, apenas uma delas tem acção terapêutica. A maioria dos medicamentos alopáticos tem uma fórmula racémica, ou seja, sem eliminação dos duplos indesejados e inativa.
Para uma compreensão acessível e rápida destes conceitos consultar, por exemplo, https://www.coursehero.com/file/210886636/3-Estereoqu%C3%ADmicapdf/.
[9] Por exemplo, o esomeprazole é o isómero S do omeprazole, o qual é uma mistura racémica de isómeros S e R.
[10]Cf. Jean Jacques, La Molécule et son double, 1992 ; Stéréochimie et chiralité en chimie organique, Ed. De Boeck, 1999.
[11] Na fase pós prandial surge uma leucocitose a nível do aparelho digestivo que, inicialmente, se pensava ser uma resposta à incompleta degradação de algumas proteínas, o que não se confirmou, visto que se bebermos água isenta de matéria orgânica não surge leucocitose, a não ser que a água seja fervida; ou seja, tal como um íman perde as suas capacidades magnéticas a altas temperaturas, também os alimentos e mesmo a água, se aquecidos acima dos 90C, perdem o seu potencial elétrico que tem que ser restabelecido para que se faça a digestão (A.G.)
[12] Nos compostos químicos, a desejável separação entre isómeros (moléculas quirais) é feita normalmente com base nas propriedades químicas, o que a torna muito difícil ou inoperante: a diferente arrumação no espaço raramente é tida em conta. A resposta biológica pode não ser a desejada e este é um grande problema da indústria farmacêutica que opta pelas soluções menos dispendiosas, ou seja pelas misturas racémicas. Estas contêm os dois isómeros (enantiómeros, antípodas óticos) em partes iguais e não apresentam desvio da luz polarizada (são inativas).
Idealmente as moléculas preparadas para agir de modo terapêutico deveriam ser limpas dos seus duplos inúteis. Os fármacos quirais (com separação das metades especulares e determinação daquela que tem acção biológica, porque só uma delas a tem), interagem com recetores como as enzimas e as proteínas. Quase nunca são conhecidas as ações fisiológicas dos dois enantiómeros.
[14] A jornalista francesa Stéphane Horel é uma das principais vozes de denúncia do funcionamento dos lobbies e dos bastidores da decisão política em matéria de consumo agroalimentar, química, petrolífera farmacêutica e industrial. Em Intoxication. Perturbateurs endocriniens, Lobbyistes et eurocrates. Une Bataille d’influence contre la santé, Paris : Éditions La Découverte, 2015 e Lobbytomie. Comment les lobbies empoisonnent nos vies et la démocracie, Paris : Éditions La Découverte, 2018, a autora expõe a estratégia das grandes indústrias mundiais no sentido de impedir, confundir, adiar, desacreditar qualquer estudo científico não pago e não enquadrado pelas próprias indústrias; ou qualquer projeto de lei ou normativo inspirado pelo princípio de precaução, nomeadamente na área dos perturbadores endócrinos e dos produtos cancerígenos (A.G.).
[15] Brian Greene, O Universo Elegante (1999), Lisboa : Gradiva, 2004 ; e Sven Ortoli e Jean Pierre Pharabod, Le Cantique des quantiques, Paris: Éditions La Découverte, 2007.
[16] Ver, por exemplo, http://www.indesciences.com/matiere-noire-cote-obscur-de-lunivers/
[21] Por exemplo, Relatório BioInitiative. Em 2007, o BioInitiative Working Group divulgou um relatório que avalia os possíveis efeitos na saúde da exposição a campos elétricos e magnéticos (EMF). O relatório abrange as frequências baixas (ELF) EMF associadas com energia elétrica e as rádio-frequências (RF) EMF de fontes tais como telefones celulares e transmissores de comunicações. Em 2012, foi apresentada uma edição atualizada do mesmo Relatório. A partir desse ano tem havido sucessivas atualizações, sendo a última de 2022. A principal conclusão do Relatório BioInitiative é que os limites de exposição do público aos campos eletromagnéticos estabelecidos pela Comissão Internacional sobre Radiações Não-Ionizantes (ICNIRP), e pelo Institute of Electrical and Electronics Engineers (IEEE), e outras organizações, são insuficientes para proteger a saúde e exigem uma redução substancial. Cf. https://radiationrisks.geohabitat.pt/pt/3-1-Relatorio-Bioinitiative/Apresentacao-/
[22] Por exemplo, Clive Hamilton, Les Apprentis Sorciers du Climat, Raisons et Déraisons de la géo-ingénierie, Paris : Ed. du Seuil, 2013, ou Nenki, Chemtrails. Les Tracés de la mort, Québec, Canada: Louise Courteau éditrice, 2003.
[23] A Ressonância Schumann é o conjunto de picos no espectro da banda de frequências extremamente baixas (ELF) do campo eletromagnético terrestre, formado pela superfície da Terra e pelas camadas inferiores da ionosfera.
[24] Marie-Monique Robin, Solutions locales pour un désordre global, https://odysee.com/@chouppa62:d/Solutions_Locales_Pour_Desordre_Global_:5
[25]Intoxication. Perturbateurs endocriniens, Lobbyistes et eurocrates. Une Bataille d’influence contre la santé, Paris : Éditions La Découverte, 2015 e Lobbytomie. Comment les lobbies empoisonnent nos vies et la démocracie, Paris : Éditions La Découverte, 2018.
[26] Jean-Louis Violeau, Les 101 mots de l’Utopie, à l’usage de tous, Paris, Archibooks + Sautereau Éditeur, 2009
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Quem sou eu para falar mal de quem gosta de passear e apanhar um pouco de sol, logo eu, que me espreguiço e me deleito com ensolarados banhos em solarengas varandas . E quando tinha menos idade e mais saúde, ah!, se gostava de vaguear pelos telhados dos vizinhos, qual Cosimo Piovasco di Rondò do Italo Calvino… Mas admito, sem pudor, que gosto de passear e preguiçar.
Já os jornalistas do suplemento ‘Fugas’, do jornal Público, recorrem a subterfúgios para evitar assumir o óbvio: há quem goste de passear para além dos telhados ou das florestas de Ombrosa, como o Barão Trepador; mas à ‘borla’! Não haveria problema nenhum, não se desse o caso desses passeios “a convite” serem abundamentemente gozados e resultarem em longos textos cheios de elogios e fotos de ‘Instagram’, o que no tempo em que nasci, dizem-me que na madrugada de 13 de Junho de 2008, se diria serem artigos promocionais, aka, publicidade paga.
Mas se consultarmos o dicionário, uma das definições da palavra ‘fugas’ é precisamente “acto de não fazer ou assumir o que se devia”. Ora, é isso precisamente que o ‘Fugas’ fez, por exemplo, na sua edição do dia 30 de Novembro. Trata-se de um ‘especial’ sobre vinhos. Traduzindo, significa que, nessa edição, o suplemento do Público foi transformado num caderno sobre vinhos, pago pelas muitas páginas com publicidade aos mais diversos tipos e marcas de bebidas alcoólicas, o que nem seria mau. Mas não só, o que já é mau.
De facto, o ‘Fugas’ do passado dia 30 de Novembro conta não com uma, nem com duas, mas com sete páginas de textos escritos por três – que dizem ser a conta que Deus fez – jornalistas com o ‘aviso’ de que viajaram com as despesas pagas pelos promotores das reportagens.
Na página 8, na secção ‘Investimento’, encontramos um artigo de duas páginas sobre a empresa OENO, escrito pela jornalista Ana Isabel Pereira (CP 4720) com o título: “Há mais portugueses a investir e a entregar a profissionais a gestão da carteira de vinhos”. Na entrada lê-se que a “OENO já gere cinco milhões de euros em carteiras de vinhos para portugueses” mas parece que “ainda há resistência e quem evite intermediários”. O texto termina com a nota: “O Fugas esteve em Londres a convite a OENO”. Que giro!
Segue-se, na página 28, uma reportagem na secção ‘Viagem’: “Cinco dias pela doce Suíça das vinhas e do vinho”. São três gordas e sedutoras páginas sobre o país que tem “das mais belas paisagens vinhateiras do Mundo”, segundo o autor do artigo, Pedro Garcias, um jornalista empresário de vinho que ainda há dias teve a honra de ‘sacar’ três direitos de resposta de empresas vinícolas que o acusaram de ter escrito sobre questões onde ele é produtor de vinhos. Porém, nem toda a gente aparenta desgostar de Pedro Garcias, porque o artigo no ‘Fugas’ termina com a nota: “O Fugas [ou seja, o Pedro Garcias] viajou a convite do Turismo da Suíça”.
Curiosamente, Pedro Garcias deixou de constar recentemente da lista da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ), mas, ainda assim, o Público continua a identificá-lo como “jornalista e produtor de vinho no Douro“. Ora, nem mais: um jornalista, que afinal não é, a escrever apenas sobre um assunto do qual tem interesse comercial directo. Mais cristalino do que isto só certas xurrapas do Ribatejo…
Aliás, Pedro Garcias já nem é caso único no suplemento ‘Fugas’ de repórter sem carteira de jornalista. Um outro artigo desta edição é assinado por Edgardo Pacheco, apresentado como jornalista e crítico gastronómico, que também não surge na lista de profissionais da CCPJ. Similar situação parece suceder com José Augusto Moreira, que também assina no suplemento ‘Fugas’, embora conste um Augusto Moreira (CP 2339) na lista do ‘polícia’ dos jornalistas.
Logo a seguir, na página 32, encontramos um artigo de quase duas páginas sobre “A noite em que o Barca Velha fez prova entre as estrelas”, com ‘Barca Velha’ escrito a azul em letras garrafais. Aqui, o jornalista que “viajou a convite da Casa Ferreirinha” é nada mais nada menos que o Manuel Carlos Carvalho (CP 963) para a CCPJ, mas que insiste em assinar como Manuel Carvalho. Pouca importância tem isso quando se constata que estamos perante o antigo director do Público, o grande iniciador da ‘mercantilização’ do jornal da Sonae, e que escreve logo na entrada do artigo que “o Barca Velha de 1999 deu mais um pequeno empurrão à imagem do vinho português no Mundo”. Pergunta de algibeira: quem produz o Barca Velha? Correcto: a Casa Ferreirinha. Quando a Sonae já nem tem dinheiro para custear despesas de deslocação até Vila Nova de Foz Côa…
Este didáctico suplemento do Público – mais no sentido comercial do termo e não tanto de enologia – termina com diversas páginas recheadas de ‘sugestões’ de vinhos para oferecer este Natal, quase rivalizando com um qualquer folheto do Continente, tantas são as garrafas sugeridas pelos críticos. Também não teria nada de mal se se assumisse que, de conteúdos jornalísticos, tem pouco. Já de “promoção”, tem muito. E nem se trata de um caso de gato escondido com rabo de fora, que isso é para mim, e nem sempre por estar em ‘fugas’. Na verdade, com três viagens pagas a jornalistas na mesma edição, o gato está todo à vista. Rabo, patas, cabeça, dorso, pêlo, entranhas, tudo.
Serafim é o Mascot do PÁGINA UM, conveniente e legalmente identificado na Ficha Técnica e na parte da Direcção Editorial, possível pela douta interpretação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Qualquer semelhança entre os assuntos relatados e a realidade é pura factualidade.
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Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM solicitou o registo da marca para Portugal ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), cujo longo processo foi já concluído. No contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas regulares pareceu-nos não somente conveniente como necessário. Nesta décima quinta edição, o piparote de Brás Cubas vem, desta vez, sob a forma de ‘agradecimento’ ao arqui-adulador do Almirantado, o panegírico-mor Leonardo Ralha, que doou um cêntimo ao PÁGINA UM.
Que alegria, que surpresa, que honra inusitada! Foi com uma admiração paroxística, quase sideral, que beirou o espanto hiperbólico e ligeiramente histriónico – todas emoções dignas de figurar entre as mais sublimes da Humanidade – que soube da esplêndida dádiva ao PÁGINA UM concedida pelo cronista de panegíricos Leonardo Ralha, arqui-adulador do Almirante Gouveia e Melo no vetusto Diário de Notícias, após a escrita da minha recente crónica.
Um cêntimo!
Comprovativo de generoso donativo do benigníssimo Doutor (Dr) Leonardo Ralha ao PÁGINA UM.
Não vos espanteis, minhas queridas leitoras e meus caros leitores, pela miudeza numérica da quantia, pois tal como um átomo encerra o segredo do Universo, assim este cêntimo contém toda a grandeza de um pequeno espírito que ousou doar o pouco que tem daquilo que pouco lhe sai.
Imagino, com alguma licença poética, a cena em que o Ralha, em leito de insónias na tenebrosa escuridão, quebrada apenas pelo brilho do ecrã do telemóvel, se debateu no mais profundo dilema moral da sua existência: “Contribuir ou não contribuir: that is the question”. Porventura, como Hamlet diante do crânio, reflectindo sobre as futilidades do Mundo, sinalou o louvaminheiro que, mesmo na mais insignificante das moedas, reside um acto de heroísmo.
Ah, a invidia de defunto! Como desejava eu, agora, sentir o tormento do seu pensamento em hora tão decisiva! Quem sabe, no acto do seu trémulo dedo, quantos manjares postergou, quantos charutos protelou, quantos sonhos sacrificou? Ou será que, com uma leveza que somente grandes mestres da ironia falhada almejam involuntariamente alcançar, pulsou “Enviar” sem pestanejar, confiando ao Mundo o peso do seu cêntimo?
Leonardo Ralha. Foto: DR.
Não me acuseis de exagero. Este cêntimo, por mais modesto que pareça, transporta consigo o peso simbólico de tantas dádivas históricas. Não será, porventura, irmão espiritual das bibliotecas mandadas construir por Andrew Carnegie, que iluminaram mentes? Não terá algo do espírito de Alfred Nobel, ao transformar riqueza em legado? Ou ainda do albino elefante Hanno, enviado por D. Manuel I ao Papa Leão X, em gesto que combinava o absurdo com o diplomático? O Ralha, com o seu renascentista nome próprio, parece desejar alinhar-se com tais figuras, embora o seu animal exótico seja de menor porte: um cêntimo de cobre galopando em corcel dourado.
Ah, mas permiti-me um desvio. Pergunto-me: que destino o PÁGINA UM dará a tamanha fortuna? Talvez compre um parafuso para suster os seus alicerces morais. Ou alugue um byte nos confins da Internet, garantindo que mais uma verdade alcance os leitores. Não vos preocupeis, caríssimos mecenas, tenho a fezada de que cada milímetro deste cêntimo será usado com a máxima eficiência, e um relatório de contas será emitido com o rigor de quem administra um tesouro dos Templários.
Seja como for, proponho, às donzelas e aos cavalheiros de bom coração, a assinatura de uma subscrição pública para se erigir uma estátua em honra a este gesto. Sim, uma Estátua ao Cêntimo, erguida no Terreiro do Paço, substituindo o cavalo e o inútil D. José, que o Machado de Castro não se importará, para que multidões possam venerar o acto de um homem que legou ao Mundo algo que desafia o risível desprezo. O epigrama será singelo, mas eterno: “Ao benigníssimo Doutor Leonardo Ralha, que não valendo nem um vintém, se superou oferecendo um cêntimo.”
“O meu cavalo por um cêntimo”, frase apócrifa do rei D. José.
À guisa de conclusão, eu, Brás Cubas, até me irmano com Leonardo Ralha, com inveja: se intentei, mas falhei, alcançar os favores e a benesse da Posteridade com um emplastro que curaria a melancolia humana, porque a morte me cortou a vaidade, o cronista do Diário de Notícia deu-nos, em vida, a fortuna de gargalhar com a sua dádiva de um cêntimo. E assim, entre a grandeza e o ridículo, o vosso mundo avança em direcção ao meu estado.
N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM registado no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, usado em exclusivo por Pedro Almeida Vieira, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.
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Está na hora de assumir: fui eu o jornalista que registou o encontro entre Nuno Melo e Gouveia e Melo. Frederico Duarte Carvalho, jornalista desde 1992, possuidor da carteira profissional número 1581, tendo trabalhado em órgãos de Comunicação Social como O Primeiro de Janeiro, Tal&Qual e Focus. Presentemente, jornalista freelancer, escritor e colaborador (ir)regular do PÁGINA UM.
As imagens do encontro foram retiradas de um vídeo de 20 segundos que gravei na noite de terça-feira, dia 19 de Novembro, quando estava sentado na esplanada do bar Cockpit (que não fica em Alvalade. Mas por que toda gente insiste em dizer Alvalade? Haja rigor jornalístico, pois aquilo é Areeiro: a freguesia de Alvalade termina do outro lado da linha do comboio, a meio da Avenida de Roma. Se o encontro tivesse sido no bar Old Vic, do outro lado da linha, por exemplo, aí sim, seria Alvalade).
Foto: PÁGINA UM / FDC
As circunstâncias em que consegui captar o momento de relevante interesse jornalístico merecem ser explicadas. É preciso travar as teorias da conspiração levantadas por gente que, alegadamente (esta frase tão jornalística e tão esquecida), é séria.
Ouço perguntarem por aí se as fotos foram ou não foram combinadas entre o jornalista e os intervenientes. Querem saber quem pagou para o jornalista estar ali, naquele momento. Ou ainda quem deu a informação sobre o encontro e porquê, porquê, ao PÁGINA UM. Irei então, dentro do que me é possível profissionalmente, elucidar algumas das mentes brilhantes do País sobre o que ainda se pode fazer no jornalismo em Portugal.
Por volta das 22h21 recebi uma chamada no meu telemóvel – para quem controla os metadados, sim, podem ir ver quem me ligou. Era um amigo (apolítico) que soube, através de um amigo, que soubera através de um outro amigo de um amigo, que o piso superior do bar Cockpit tinha sido reservado para um encontro entre o ministro da Defesa, Nuno Melo, e o almirante Gouveia e Melo.
A minha primeira reacção foi: “Está bem! Já ouvi melhores”, e deixar-me estar. Aquilo não fazia grande sentido, mas como ainda sou jornalista – não tenho horários de trabalho -, meti-me a caminho do local. Ajudou à decisão o facto de, por coincidência, estar por perto – e, se quiserem saber, por acaso eu é que estava mesmo em Alvalade nessa altura.
Foto: PÁGINA UM./ FDC
Cheguei então ao pequeno bar do Areeiro, poucos minutos depois das 22h30, que era a hora prevista para o encontro. Perguntei se podia ter uma mesa dentro e disseram-me que só havia espaço na barra do bar, pois o piso de cima estava fechado. Olhei para o local e comprovei que, de facto, não estava ninguém nas mesas de cima. Tal não significava, contudo, que estivesse fechado para uma cimeira de Defesa à Portuguesa. Fui então sentar-me numa mesa da esplanada. A única vazia e algo afastada da entrada principal. Não me parecia o melhor local, mas era o que havia.
Pedi uma bebida para justificar a ocupação da mesa e esperei para ver se aparecia alguma das duas figuras que me tinham sido prometidas. Cogitava sobre o meu papel de jornalista e lembrava-me das várias esperas e fotografias que fiz em anteriores trabalhos. Apesar de ser jornalista da escrita, sei também o valor que uma boa imagem pode ter e mantenho esse instinto de fotógrafo jornalístico.
(Há um bom par de anos, por exemplo, ao serviço do Tal&Qual, fiz uma espera para fotografar o carro oficial de António Guterres – ainda como primeiro-ministro -, a fazer uma manobra, então proibida, de virar à esquerda no cruzamento da Avenida Duque de Ávila com a Avenida da República, sem qualquer indicação de marcha de urgência – como mandam as regras -, dias depois do governante ter dado início à campanha de tolerância zero nas estradas nacionais.
Foto: PÁGINA UM / FDC
Noutro exemplo, em 2016, quando estava de férias em Roma, fotografei duas pessoas que conversavam no telhado de um edifício que me pareceu ser governamental, pois tinha várias bandeiras oficiais. Descobri depois, ao falar com jornalistas locais, que apanhara a presidente da Câmara de Roma, Virginia Raggi, a conversar no telhado da autarquia, com o seu chefe de Gabinete, Salvatore Romeo.
A foto foi publicada na primeira página de vários jornais italianos. A imagem levantava a questão de que a autarca suspeitava que havia escutas no seu gabinete e, por isso, preferia tratar dos assuntos importantes no telhado da câmara municipal. Tudo poderia ter corrido bem para eles até eu tirar a foto por ter achado o momento algo insólito. E poético, até).
Já se tinham passado quase 15 minutos e não havia sinal de Nuno Melo ou Gouveia e Melo. Senti que estava numa caça aos gambuzinos. No momento em que estava a pensar desistir da espera – estava disposto aguardar mais 15 minutos, até às 23h00 – vejo um táxi a chegar ao bar.
Ao início, não deu para ver quem vinha dentro, mas a lógica dedutiva (leiam Arthur Conan Doyle) pensou que, se alguém se dera ao trabalho de apanhar um táxi para ir a um bar numa noite de terça-feira, é porque essa pessoa estava empenhada em ali chegar. Agora, poderia ser um morador local que chegava a casa? Seria lógico o ministro vir de táxi? O almirante? Faria sentido algum deles vir de táxi? O mais certo seria ser um simples morador a chegar a casa.
Foto: PÁGINA UM / FDC
De qualquer modo, o tal instinto jornalístico fez com que jogasse nas hipóteses e apontei discretamente o meu telemóvel para o local onde estava o táxi. Não conseguia ver quem estava no lugar de passageiro, pois a linha de visão passava por uma viatura estacionada ao seu lado. Ainda estive 30 segundos com a câmara ligada, sem nada de importante a acontecer, até que vejo uma cabecinha a sair do táxi. Era o almirante! A “coisa” ia mesmo acontecer. A informação era boa.
O almirante Gouveia e Melo, assim que saiu do táxi – à civil – e caminhou para o bar, vindo na minha direção, não o fez a olhar para a esplanada onde eu estava. A sua atenção centrava-se na rua atrás de mim. Mal sabia eu – que continuava a segurar o telemóvel num ângulo casual ao mesmo tempo que tentava manter fixo o enquadramento e foco – que Nuno Melo estava também a chegar em viatura oficial.
Gouveia e Melo ficou parado à minha frente e a olhar para trás de mim. Arrumou os óculos – no vídeo, parece que os seus olhos encontram os da minha câmara.
(Pergunto-lhe, caro almirante: Viu-me mesmo a filmar e resolveu disfarçar ou isso escapou-lhe de todo?)
Entra Nuno Melo em campo. De costas. Dá para reconhecer que é ele, mas a foto precisa de o identificar, sem margens para dúvidas. Ouço Gouveia e Melo a comentar que até pareciam que estavam ambos sincronizados.
Mantenho a câmara fixa e espero que Nuno Melo não se lembre de olhar para trás de si. Ter-me-ia reconhecido (fui candidato do PPM ao Parlamento Europeu em 2009, quando ele e Paulo Rangel, os dois da AD que não foi feita na altura, eram os candidatos dos CDS e PSD. Cobri ainda a comissão de Camarate que Nuno Melo presidiu. A propósito, Nuno, vais pedir os documentos norte-americanos que ainda estão por divulgar ou preferes levar-nos para a III Guerra Mundial?
Gouveia e Melo, segundo à esquerda. Foto: D.R.
Acompanho com o telemóvel, discretamente, a entrada de ambos no bar. Num último momento, o ministro fica de lado e é possível identificar ambos. Nuno Melo leva o almirante pelo braço e aponta, ainda à entrada do bar, para o piso de cima. Percebo então que terá sido ele o responsável pela escolha do local. Está a explicar ao almirante onde se vão sentar.
(Marcar um encontro com um almirante para a Avenida Sacadura Cabral tem o seu quê de interessante: apesar da associação imediata à Aviação, é preciso lembrar que se tratava de um oficial da Marinha e o raid aéreo de 1922 nunca teria sido possível sem o apoio daquele ramo das Forças Armadas. E se juntarmos a isso o facto de ter sido um antepassado de um antigo líder do CDS e também putativo candidato a candidato a Presidente da República, tudo isso aumenta as possíveis especulações em relação à escolha do local para uma cimeira deste nível).
A esplanada está cheia, mas mais ninguém se parece preocupar. Não vejo ninguém a ligar para jornais ou a fotografar. Parece que fui mesmo único a registar o encontro. E sei que isso vai causar furor. Sem o trabalho jornalístico, sem as imagens que o comprovassem, qualquer informação que viesse a público referindo que ambos tiveram um encontro nocturno num bar, seria apenas um rumor. Nunca uma notícia.
Assim que reuni as imagens do vídeo de 20 segundos, pensei: “O que farei com esta espada?”. Liguei então para o Pedro Almeida Vieira, do PÁGINA UM – porquê para ele e não outro jornal? Simples: o PÁGINA UM também é o “meu” jornal e o Pedro é o director de jornal que mais vezes liga para mim do que qualquer outro director do País. Por isso, é dele que me lembro primeiro sempre que tenho uma notícia. A segunda hipótese seria o director do Tal&Qual, mas não o quis incomodar àquela hora tardia, pois a edição da semana já tinha fechado.
Foto: PÁGINA UM / FDC
O Pedro percebeu o valor do material que tinha nas mãos e sabia que não se podia guardar a informação para mais tarde. Era preciso agir na hora. Começou a preparar o texto, que foi publicado ainda o encontro não tinha terminado. Pedi para não assinar as fotos. Ainda. Não queria matar o mensageiro antes da mensagem circular.
Saí da esplanada antes de Nuno Melo e Gouveia e Melo terminarem o encontro. Poderia ter esperado por eles e confrontá-los à saída? Claro que sim, mas como não gosto que me mintam, resolvi deixá-los nas suas conspirações nocturnas.
Já tinha feito o meu trabalho. Agora, outros que fizessem o seu.
Frederico Duarte Carvalho, jornalista (CP 1581)
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Onde arde ao rubro tudo o que talvez seja o Futuro,
Que eu sem conhecer adoro;
E a outra, as outras, o resto de mim
Atira ao Oriente,
Ao Oriente de onde vem tudo, o dia e a fé,
Ao Oriente pomposo e fanático e quente,
Ao Oriente excessivo que eu nunca verei,
Ao Oriente budista, bramânico, sintoísta,
Ao Oriente que tudo o que nós não temos.
Que tudo que nós não somos,
Ao Oriente onde – quem sabe? – Cristo talvez ainda hoje viva,
Onde Deus talvez exista realmente e mandando tudo…
[…]
Álvaro de Campos, Vem, Noite antiquíssima e idêntica (1914)
Tendo dado à sua última crónica semanal o título “Os poetas vão ser colocados em lugares mais úteis”, Ana Cristina Leonardo concluía a sua reflexão afirmando que, perante a hipótese de uma III Guerra Mundial, se deviam esquecer os poetas, porque «os exércitos irão salvar o mundo»[1].
Cavaleiros a cavalo (séc. VI d.C.) (a partir de uma pintura mural, na província de Shanxi, na China)
1. Havendo todas as razões para nós, povo aberto a todos os horizontes, línguas e lugares, fazermos o inverso do que aparentemente anunciavam o título e a conclusão daquela nossa escritora[2], recuemos um pouco no tempo, para ir ao encontro de Li Bai (701-762 d.C.)[3], poeta de que as crianças chinesas ainda hoje aprendem a decorar alguns versos, poeta que em vida ficou conhecido como o “imortal exilado do Céu” e que, não obstante tudo, continua a ser divinizado em zonas rurais da China e no Vietname.
Li Bai
2. Do cancioneiro de cerca de 1100 poemas seus que nos chegaram, o poema aqui apresentado, composto em estilo yuefu[4], não versa nem sobre o vinho, nem sobre a Lua, nem sobre a vida de retiro, nem sobre a saudade das esposas-meninas – temas que seguramente o imortalizaram –, mas sobre a guerra, que também acabou por conhecer de perto, pois, se até meados do século VIII, o Império conhecera a paz, é também a partir de 750 que o tema da guerra se desenvolve na sua poesia[5].
Refere António Isidro a propósito deste poema (a que cada tradutor dá um título diferente) que Li Bai terá assistido ao embarque de tropas para uma campanha, saindo a voz «embargada do seu pincel, para contar a tragédia da guerra e o cataclismo que ameaça o reinado do imperador Tang Xianzong»[6].
Não obstante a existência de pelo menos duas traduções portuguesas do poema[7] (além das múltiplas traduções inglesas a que tive acesso)[8], por diversas razões, optou-se por fornecer aos leitores do PÁGINA UM uma versão elaborada a partir da tradução feita por Pietro de Laurentis, Professor da Universidade de Nápoles “A Oriental”, um orientalista que se tem dedicado de modo especial à caligrafia e à estética da China medieval[9].
No ano passado lutámos na nascente do Rio Sanggan.
Este ano lutámos
no curso do Rio Pamir.
Os cavalos de guerra banham-se nas ondas do Lago Tiaozhi,
ao galope nas pastagens nevadas das Montanhas Tianshan.
Expedições de guerra com dez mil milhas de comprimento,
terminado o combate, as nossas tropas envelheceram.
Matar e massacrar são as ocupações dos Tártaros,
desde tempos antigos, vêem-se apenas ossos brancos nas areias amarelas.
Para se defenderem dos bárbaros, os Qin construíram a Muralha,
no tempo em que os Han queimavam as tochas lá do alto.
As tochas de avistamento ardiam incansavelmente,
e as expedições de guerra não terminavam nunca.
Morria-se em campo aberto combatendo corpo a corpo,
os cavalos exaustos relinchavam de dor em direcção ao Céu[11].
Corvos e falcões bicavam dos corpos humanos as entranhas,
que apertadas no bico transportavam para as árvores secas e deixavam dependuradas nos ramos.
Soldados espalhados entre ervas desoladas, que benefício tem a vida de um general?
Sabe-se, objectos nefastos são as armas,
o sábio apenas as usa se não tiver alternativa[12].
Pavilhão Memorial de Li Bai (em Jiangyou)
José Melo Alexandrino é professor universitário
[1] Crónica publicada no caderno ípsilon do jornal Público, em 22 de Novembro de 2024, pp. 30-31 (disponível on-line, para assinantes, aqui).
[2] Basta para o efeito ler e reflectir no artigo, para concluir que a lição a extrair é a inversa.
[3] Para uma, aliás excelente, biografia daquele que é considerado por muitos (ou juntamente com Du Fu) o maior poeta chinês, veja-se Pietro de Laurentis, Li Bai – L’uomo, il poeta, cit., pp. 1-20; para uma biografia em português, António Graça de Abreu, Cem Poemas de Li Bai, Póvoa de Santa Iria, Lua de Marfim, 2021, pp. 22-69.
Sobre o poeta, em língua portuguesa, merecem referência as obras de António Graça de Abreu: Poemas de Bai, 2.ª ed., Macau, Instituto Cultural de Macau, 1996 (tendo a 1.ª edição, datada de 1990, contado com uma intervenção de Natália Correia, em palavras publicadas em 2021, na obra já citada, Cem Poemas de Li Bai, pp. 12-21); ainda em obra coordenada por António Graça de Abreu e Carlos Morais José, Quinhentos Poemas Chineses, Lisboa, Nova Vega, 2014, pp. 135-152 (na tradução de diversos autores), por último, numa belíssima edição, António Isidro, Li Bai – A via do Imortal, Macau, Livros do Meio, 2022.
[4] Sobre o qual, Pietro de Laurentis, Li Bai – L’uomo, il poeta, cit., p. 56.
[5] António Graça de Abreu, Cem Poemas…, cit., p. 66.
[6] António Isidro, Li Bai – A via do Imortal, cit., p. 191.
[7] Assim, António Graça de Abreu: Poemas de Bi Bai…, cit., pp. 226-227; Id., Cem poemas de Li Bai, cit., pp. 184-185 (com o título “Lutámos a sul das muralhas”); António Isidro, Li Bai – A via do Imortal, cit., pp. 191-192 (com o título “As Guerras a Sul da Cidade”).
[8] A maior parte das quais acusando influência da tradução de 1919 de Arthur Waley (e dos excessos de liberdade poética que esse renomado sinólogo britânico confessadamente se concedeu nessa versão).
[9] Cfr. Pietro de Laurentis, Li Bai – L’uomo, il poeta, Milano, Edizione Ariele, 2016 p. 93.
[10] A partir da tradução oferecida por Pietro de Laurentis (obra citada, p. 317), uma versão possível deste poema autógrafo de Li Bai pode ser a seguinte:
Altos os montes, longos os rios,
milhares e milhares os fenómenos do universo.
Privado de um adequado pincel,
poderias realmente descrever tanta pureza e potência?
[11] Dada a sua beleza poética, este verso é assim traduzido por António Graça de Abreu:
Relincham para o céu cavalos sem cavaleiro.
[12] Segundo António Graça de Abreu, os dois últimos versos são uma citação do capítulo 31 do Tao Te Ching, apresentando então a seguinte tradução (cfr. Cem Poemas.., cit., p. 185):
Abomináveis e cruéis as guerras!
O homem de bem só obrigado as faz.
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Alterações Mediáticas, podcastda jornalista Elisabete Tavares sobre os estranhos comportamentos e fenómenos que afectam o ‘mundo’ anteriormente conhecido como Jornalismo. No 12º episódio, analisa-se o fenómeno bizarro que levou a directora da agência Lusa a ‘aliar-se’ a Luís Paixão Martins, na rede X. Também é analisado o fenómeno estranho que tem levado a imprensa, em geral, a esconder que Luís Delgado e os outros dois gerentes da Trust in News foram condenados a pena de prisão, com pena suspensa por cinco anos.
Como atuará Gouveia e Melo, se for eleito Presidente da República (PR)?
Ou, mais precisamente: Gouveia e Melo cumprirá a função de moderador no regime político semipresidencial que a Constituição (CRP) atribui ao PR?
São estas as principais perguntas a que devem responder nas suas mentes, primeiro, quem planeia dar a sua assinatura para levar o Tribunal Constitucional a validar a candidatura de Gouveia e Melo e, depois, quem se inclina a votar nele para PR.
A escolha em eleições, e sobretudo de políticos, é um processo individual, interior, subjetivo; mas é influenciado pela envolvente. E pode ser também um processo complexo; mas para a maioria dos cidadãos resume-se tipicamente a um ou dois critérios, ou talvez a um ou dois factos ou imagens, afastando tudo o resto – só uma pequena fração da população tem tempo ou disponibilidade mental na sua vida, ou sequer interesse, para considerar e refletir sobre um panorama abrangente e mais do que complicado, complexo. A popularidade da imagem de Gouveia e Melo mostra-o: a distribuição de vacinas levou os media a elevá-lo a herói (por exemplo, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui ou aqui) e após apenas 9 meses a promover uma campanha para ele ser PR; e como um herói não tem defeitos (se tivesse, era humano não era herói) editores, jornalistas e comentadores fizeram em uníssono tábua rasa do seu passado desalinhado com a narrativa mediática do herói-sem-pecado-exemplo-de-virtude – e quem duvidasse de tal imaculada conceção era negacionista, malandro ou detrator… A falta de reflexão das massas sobre as imagens e legendas que as TVs lhes dão, em geral a visar o entretenimento e simplistas, abriu espaço à aclamação generalizada.
As perguntas acima expressas olham para o futuro. Todos projetamos o futuro a partir de pegadas do passado – e desejos. Justamente por isso, é simplista, senão mesmo irracional, que um eleitor selecione pegadas: o caminho é feito de todas as pegadas; ou melhor, o caminho é contínuo, como é a esteira de um navio a navegar.
Como já notei, é espantoso que já haja pessoas a dizer que votarão em Gouveia e Melo; muitos não querem saber da ausência de formação ou experiência política, que reconheceu; e por o acharem um herói num cargo logístico e executivo acham que vai ser o máximo num cargo que não é executivo e é o politicamente mais sofisticado e mais complexo do regime. Poucos reconhecem que as TVs tiveram e têm um papel decisivo na imagem que formam do seu herói. Esta opção mostra que escolhem por símbolos e imagens em vez da substância e dos factos. Só “falta” depois serem muito críticos dos políticos eleitos…
A fé no “homem-forte” ou na “mão forte” – para “endireitar o país”… – revela a preferência pela autoridade, e até pelo autoritarismo, pela firmeza e pela eficácia na governação sobre o respeito pelo Estado de Direito Democrático; alguns acham que a farda militar é decisiva e sonham com caudilhos. Mas esta visão estereotipada é uma generalização infundada que sobrevaloriza a farda, como símbolo de autoritarismo ou de virtude. Quem quer um “homem-forte” é pouco dado a mudar de ideias – até ser “atropelado” por um “homem-forte”…
Gouveia e Melo não se fez rogado em “atropelar” o seu antecessor à vista de todos. E faz o que pode para alimentar a imagem de “homem-forte” (decerto orientado e apoiado por uma “agência de comunicação”, formal ou informal); ocasionalmente ensaia uma imagem menos radical (o que isso lhe custa! É que ele não é um português suave…) para ser aceite pelos moderados, e aumentar a popularidade – que alimenta a vaidade. Diz que não é político, e disse que não quer ser político; mas busca palco mediático, cargos e popularidade, como qualquer outro político. O poder seduz Gouveia e Melo; qualquer cargo lhe serve.
Já citei o General Loureiro dos Santos quando disse que “O grande problema dos militares a partir de certa altura é que não sabem fazer mais nada.” Com 64 anos, Gouveia e Melo pode tentar mudar a sua imagem no palco mediático para a base de apoio alargar; só que com uma personalidade vincada e autoritária e vaidoso, as várias contradições, e com décadas a mandar, a controlar e a não gostar de ouvir quem dele diverge (os “malandros” e os “detratores”…), leigo sobre políticas públicas em democracia, pode impressionar os mais superficiais, mas dificilmente vai passar a ser um moderado e um moderador.
Mais. É verdade que qualquer militar fora da efetividade de serviço pode concorrer a, e ocupar, um cargo político como qualquer outro cidadão. Porém, acredito que mais de 10 milhões de cidadãos em Portugal desconhecem a norma legal no Estatuto dos Militares das Forças Armadas que estabelece (desde 1990) que “Regressa ao ativo o militar nas situações de reserva ou de reforma que desempenhe o cargo de Presidente da República, […].” (nº1 do art.152º do decreto-lei 90/2015). Com esta base legal, eleito PR, Gouveia e Melo pode voltar a usar o seu uniforme militar, no cargo; estou convencido que o fará. Assim, não custa imaginá-lo a aparecer em cenários de inundações, abalos sísmicos, grandes acidentes, fogos rurais, etc. vestindo o camuflado e a mandar – para ele toda a crise é uma guerra e ele o comandante supremo!… O poder de uma farda é grande nestas ocasiões, e em ambientes de tensão e de incerteza; e poucos arriscarão contrariá-lo. Com a convicção amplamente exibida de que sabe de tudo, tudo aponta para que venha a exorbitar as suas funções e a dizer ou fazer asneiras irreparáveis. Pode não ser nada de novo no cargo; mas é indesejável.
Pior: dada a fraca preparação para o cargo e a vaidade, será facilmente instrumentalizado nos bastidores por um grupo que o bajule – e pelos vistos há um grupo cuja “máquina está pronta para arrancar”; decerto que ela não funciona com pés descalços ou com uns quantos palradores nas redes sociais… Logo, com a “vassoura” ele não vai construir a maioria política dele: ele só vai dar cobertura ao poder fáctico da barca cuja “máquina” o governará a ele na prática. Gouveia e Melo é só a figura de proa desta barca; não dá ordens para a máquina.
Mas há mais. Como já referi, o atual PR e o Governo já mostraram ter receio de Gouveia e Melo, como ficou claro por lhe permitirem violar o dever de isenção a que todos os militares na efetividade de serviço estão sujeitos (nº2 do art.27º da Lei de Defesa Nacional, reforçado no art.20º do Regulamento de Disciplina Militar). E acharão que o podem controlar se o reconduzirem no cargo de comandante da Armada e o levarem a comandante dos exércitos, impedindo a recondução do atual CEMGFA ou a elevação a CEMGFA do comandante da Força Aérea (como deve ser, pela rotação entre exércitos), sem qualquer facto válido ou outro motivo. Quiçá receiam que, se Gouveia e Melo não for reconduzido, seja logo contratado por uma TV para a liturgia dominical, e aí diga coisas populistas e muitos eleitores o apreciem. Não custa prever que a sua fragilidade nos temas que mexem com as massas será tratada pela “máquina”, que o preparará para a coreografada liturgia semanal. Mas acaba-se a farda e fica exposto à crítica; por exemplo, outros canais de comunicação já o podem atacar por já não ser uma figura de Estado e passarem a ver a promoção do produto de um concorrente. A TVI promoveu Marcelo Rebelo de Sousa e promove agora Paulo Portas; o Grupo Impresa promoveu de início Gouveia e Melo, e promove há anos Luís Marques Mendes; cabe agora ao NOW promover Gouveia e Melo, em linha com a promoção que o Correio da Manhã faz dele há muitos anos.
A opção da recondução tem garantido o fracasso, porque Gouveia e Melo já percebeu que é impune; logo, continuará a usar os media como lhe aprouver. Além disso, a recondução e a elevação a CEMGFA não o impedem de se candidatar a PR: só lhe acrescentam margem para explorar o cargo e a farda para se promover nos media, e deixar o cargo quando lhe convier.
Mas há mais e pior. Quanto mais tempo estiver a comandar a Armada, mais dirigentes fiéis a si vai promover; e enquanto CEMGFA vai escolher dirigentes dos outros dois exércitos que lhe sejam fiéis – e é de fidelidade, e pessoal, e não de lealdade que se trata. Tornando-se PR meses depois de ser CEMGFA, terá nos exércitos muitos dirigentes fiéis, subordinados até dias antes. Com as dívidas pessoais criadas, a prevalência das relações pessoais sobre o respeito por instituições como o Estado de Direito (frequente entre os militares), a fidelidade destes militares pode ser usada por Gouveia e Melo para fazerem o que ele quiser, incluindo pressão mais ou menos discreta (por exemplo, com humilhações públicas, que tanto aprecia, como o Caso Mondego mostrou) sobre o Governo e não só. Com legitimidade alcançada por uma vitória numa eleição direta, uma personalidade autoritária e vaidoso, o perfil executivo, o passado recente de impunidade, e a tendência das elites portuguesas para se acomodarem a poderes fácticos e não ao Estado de Direito nem à Democracia, Gouveia e Melo fará o que lhe aprouver sem que os mecanismos do Estado de Direito o moderem ou travem – como já mostrou. Com a criatividade e a eficácia de que se gaba, depressa moldará um regime (aparentemente) presidencial, à margem da CRP e do Estado de Direito. De facto, como não percebe o regime e o processo político, será só uma figura de proa de um grupo de “assessores” e “conselheiros”, a barca, que o manipulará através da sua vaidade.
Este é um cenário de fugir. Os sinais estão à vista de todos.
O cenário será improvável. De facto, não creio que Gouveia e Melo consiga ser eleito contra o PSD e o PS, cujos dirigentes já anunciaram não o apoiar para PR, e as simpatias noutros grupos e óbvias no CDS são pequenas e emocionais; de resto, a melhor sondagem no auge da sua popularidade e sem concorrentes assumidos revelava 30% de apoio – e vai descendo, em sondagens cujas taxas de resposta revelam que só ativistas se manifestam.
Mas este cenário não é impossível – os portugueses até já reelegeram quem os prejudicou… Para o afastar é necessário que os órgãos de soberania percam o infundado receio que têm de Gouveia e Melo; que os eleitores saibam que a imagem idealizada e heroica dele é uma miragem, por mais que “a máquina” sem cara ande a tentar endeusá-lo perante as massas.
E é necessário que, pelo menos os eleitores que refletem antes de votar, observem todos os sinais antes de ser tarde, e percebam que Gouveia e Melo não vai cumprir a CRP, não vai acabar com a corrupção, não vai melhorar o SNS ou a educação, não vai aumentar a riqueza, não vai resolver o problema dos fogos rurais, nem qualquer outro problema significativo dos portugueses. Não lhe compete; e não sabe como. Só vai servir “a máquina” que o apoia.
Jorge Silva Paulo é doutorado em Políticas Públicas
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