Aquele jornalista era sem dúvida o mais cão-de-fila de toda a cáfila jornalística que pululava pelas principais redacções de televisão.
Tinha uma postura agressiva sempre que o seu entrevistado parecesse estar numa posição antagónica à sua. Se estivesse então conotado, ou fizesse mesmo parte daquilo que é hoje considerada a nova direita, mordia.
Era agressivo, mal-educado, interrompia, sentia-se a vontade insolente de cuspir para cima do interlocutor e isso verificava-se num franzir de olhos bastante nervoso, sendo mesmo acometido por esse movimento muscular frequentemente, sobretudo defronte de entrevistados alvo.
Mas o jornalista era baixinho e parecia não ter físico que garantisse em caso de luta, uma vitória fácil, mesmo que se tratasse de uma mulher.
Para estes feministas de estúdio, ser mulher não interessa se não partilharem das mesmas ideias. Nesse caso o universo feminino não é para defender.
Imaginava-se até que fosse medroso e provocador tipo “Ò Evaristo tens cá disto?”
Um toca-e-foge sempre que não tivesse as costas quentes de um estúdio ou de uma voz gélida a dar ordens no seu auricular.
Mas desta vez a entrevistada vinha do Partido Socialista e era Presidente de Câmara de uma pequena cidade. A realização da entrevista devia-se à senhora ter gerado alguma polémica por ter proferido na rádio local da sua cidade que existiam muitas pessoas dessa região a usufruírem de subsídio, quando se sabia que algumas ostentavam casas com piscina, ou vivendas caras, ou mesmo carros de luxo, incluindo Teslas e Audis.
A Presidente da Câmara denunciava-o de uma forma até convencional, pausada e calma, sem grandes oscilações térmicas tanto na voz como nas expressões faciais. Parecia querer aproveitar o facto de estar na televisão para apelar a que se resolvessem este tipo de situações que muito prejudicavam os verdadeiros pobres. Não denunciava nenhuma etnia em particular e embora fosse uma política ligada a um partido do Poder, parecia querer mostrar alguma sensibilidade para com o problema e queria torná-lo público.
Queixava-se também de certa forma do pouco orçamento que a sua autarquia tinha para poder ajudar a resolver o assunto.
Queria apenas que se investigassem essas pessoas, de forma que a investigação se certificasse de onde provinham os sinais de riqueza dos suspeitos para que se pudesse fazer justiça e uma outra redistribuição mais equitativa e justa pelos mais necessitados.
Pelo que parecia, era uma socialista convicta.
Mas o jornalista não estava a gostar da conversa. Interrompia constantemente e alegava com razão eventualmente, não fosse o seu tom, que as pessoas podiam ter smartphones e serem pobres. Não estava a perceber muito bem onde a Presidente queria chegar. Será que a senhora pretendia denunciar alguma etnia em particular?
No entanto percebia-se que a senhora queria sobretudo alertar os espectadores para essa situação anómala e desprestigiante para o ser humano. Isso era claro.
Infortúnio que o jornalista se recusava a aceitar como sendo prática comum e até parecia duvidar se alguma vez isso poderia vir a ocorrer, chegando mesmo a evocar a possibilidade caso acontecesse, de ser uma excepção com a qual não nos devíamos preocupar para assim se confirmar a regra da não existência desse tipo de abusos. O Estado é hoje um dos grandes financiadores das televisões.
Percebe-se.
Mas, no entanto, não deixa de ser absurdo.
No meio da entrevista sob o fundo verde-croma, a senhora entrevistada respondeu a uma pergunta idiota e ainda acrescentou:
—… Até lhe digo mais… Há por lá pela cidade um caso muito conhecido de um cidadão que aufere desse subsidio, mas que no entanto ostenta um Audi, eléctrico e tudo. Portanto é até um cidadão com cuidados ecológicos por sinal.
—Mas não pode, é?
Perguntou o jornalista cão-de-fila, mal ouviu falar em ecologia.
—Nada disso. Apenas estou a dizer que normalmente esses carros são mais caros e que pessoas muito necessitadas nem sequer se podem dar ao luxo de ter prioridades ecológicas por muito que o queiram.
Por momentos parecia até que o jornalista estava a deixar passar a ideia de que não gostava de pobres, tendo nesse caso uma doença chamada aparofobia, e é sabido que hoje muita gente padece dessa patologia. Até pobres.
Aparecia o reino do nonsense mais uma vez para pautar uma entrevista grotesca. Coisa comum hoje em dia nos canais televisivos cheios de estagiários, embora não fosse este o caso. Este jornalista já se arrastava há uns anos pelas cadeiras de pivot.
—Mas então como é que a senhora sabe que o carro não é emprestado?
Perguntou o jornalista convicto de estar a fazer a melhor pergunta de sempre.
A Presidente fez uma cara de espanto não querendo acreditar naquilo que acabara de ouvir e antes que pudesse responder, houve um apagão geral. Uma parte do mundo ficou sem energia. Podia ser um simulacro também.
Um Cyber Polygon.
Assim de um momento para o outro.
Trássss!! Puffff!!!
Vários sons estridentes e desconhecidos potenciaram o frenesim generalizado das pessoas que se encontravam na redacção e no estúdio.
Mas mesmo depois de o jornalista constatar que já não estavam no ar, começando a sentir-se o caos associado a um apagão de grande extensão, com quase tudo às escuras, em off ainda insistiu com a senhora autarca:
—Sim, responda-me. Como é que a senhora sabe que o Audi do cigano não é emprestado?
Hum!!!
Ruy Otero é artista media
Ilustrações de Ruy Otero
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
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Promovida a redemocratização, o Brasil transformou-se numa república sui generis. Quem lê com atenção a Constituição de 1988, enxerga em seu texto coisas assaz curiosas. Embora o sistema de governo esteja definido com um representante eleito por voto maioritário para exercer a chefia de Estado e de Governo (o Presidente da República), quase nada se faz sem que o Congresso dê o seu aval. Não só isso. Em muitos casos, o Congresso pode literalmente decidir sozinho. Ainda que reste ao Presidente o direito de vetar certas proposições, o Congresso pode simplesmente derrubar o veto e fazer valer sua vontade à força. No caso de emendas à Constituição, nem direito a veto existe. Os parlamentares aprovam a alteração no texto constitucional, promulgam a emenda e fim de papo. Quando muito, restará ao Governo tentar recorrer ao Supremo caso haja alguma inconstitucionalidade na iniciativa. Por mais que não se queira admitir, a prevalência política – no sentido de “poder para fazer as coisas” – no nosso sistema constitucional está estruturada em torno do Congresso, à semelhança do que ocorre no parlamentarismo.
Ainda que a Constituição claramente tenha sido desenhada para operar sob um sistema parlamentarista, optou-se por estabelecer um sistema presidencialista, de modo a não confrontar a tradição política instituída desde a Proclamação da República. Para além disso, ainda estava muito viva na memória a campanha das “Diretas Já!”, na qual a imensa maioria da população foi às ruas pedir a volta da democracia com o lema: “Quero votar para presidente!”. Saindo de uma ditadura de 21 anos, os constituintes não tiveram muita margem de manobra para dizer que, agora com a democracia restabelecida, o povo seguiria sem escolher o mandatário máximo da Nação.
Os defensores do parlamentarismo, contudo, estabeleceram um artifício constitucionalmente engenhoso. A despeito de manterem o sistema presidencialista, fizeram incluir no art. 2º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias a obrigatoriedade da realização de um plebiscito contados cinco anos da promulgação da Constituição de 1988. Nessa consulta popular, o povo escolheria tanto o regime (monarquia ou república), quanto o sistema de governo (presidencialismo ou parlamentarismo). A idéia era a de que nesses cinco anos após a promulgação do texto constitucional ficassem claros os inconvenientes do sistema presidencialista, fazendo com que a própria população optasse pela mudança de sistema. Quando isso acontecesse, tudo se encaixaria. A Constituição parlamentarista seria doravante seguida por um governo parlamentarista.
Faltou, contudo, combinar com o povo. Realizado a 21 de Abril de 1993, os parlamentaristas conseguiriam reunir pouco mais de ¼ do eleitorado, com direito a 10% de monarquistas que pretendiam abolir a República (embora não estivesse claro no plebiscito se o país seria devolvido à dinastia dos Orleans e Bragança). Ficámos, pois, condenados a um modelo político esquizofrénico, em que a maior parte do poder estava reservada ao Congresso, mas o Poder Executivo ficava a cargo do Chefe de Estado, que detinha a chave do cofre.
Como se isso não bastasse, as excentricidades do nosso sistema eleitoral acrescentaram diversas incongruências práticas ao bom funcionamento desse modelo. Enquanto Presidente da República e os senadores são eleitos em sistema maioritário (quem tiver mais votos, leva), os deputados federais são eleitos seguindo o voto proporcional em lista aberta. Contam-se os votos e distribuem-se as cadeiras da Câmara de acordo com os votos obtidos por cada partido. E, dentro de cada partido, são escolhidos os candidatos que foram mais votados. Com mais de 30 partidos registados no Tribunal Superior Eleitoral, disso resulta que, em todos os casos desde a redemocratização, nenhum Presidente eleito pelo povo contava com maioria absoluta no Congresso.
Para contornar a circunstância de chefes de governo minoritários no Parlamento, desenvolveu-se uma espécie de “modelo de coabitação”, no qual os parlamentares faziam emendas ao orçamento da União. Indicadas como prerrogativa sua, as emendas nasceram com o propósito de destinar verbas a pequenas obras ou instituições nos seus redutos eleitorais. A intenção, por óbvio, era transformar dinheiro em votos. No ano seguinte, o Executivo – senhor dos recursos federais – decidia quais e quando as emendas seriam pagas. Foi através desse sistema que os sucessivos presidentes, de Fernando Collor a Lula III, conseguiriam formar suas bases de apoio, naquilo que o sociólogo Sérgio Abranches viria a definir como “presidencialismo de coalizão”. Até aí, nada de mais. Politics is politics.
O problema, como o leitor amigo pode imaginar, é que esse “arranjo” somente funcionaria enquanto o Presidente da República se mantivesse politicamente forte. Na hora em que ele ficasse fraco, seria apenas questão de tempo até que o Congresso “descobrisse” que era ele quem de facto mandava. Bastaria aumentar a quantidade de emendas no orçamento ou, pior, torná-las de execução obrigatória, para que o Executivo perdesse seu principal instrumento de barganha política.
E foi justamente isso o que aconteceu a partir de 2015. Primeiro, Dilma Rousseff resolveu enfrentar Eduardo Cunha, sendo derrubada por impeachment em seguida. Depois, seu vice, Michel Temer, caiu em desgraça após a delação dos notórios irmãos Batista, tornando-se politicamente zombie até o fim de seu mandato. Por fim, tivemos a “terceirização” do governo promovida por Jair Bolsonaro, preocupado apenas em formas de organizar uma ditadura que lhe permitisse governar como autocrata. Numa sequência cada vez mais voraz, os deputados e senadores resolveram assenhorar-se de parcela cada vez maior dos recursos arrecadados da população, relegando o Governo Federal praticamente à condição de pedinte para seus próprios programas. Estabeleceu-se, portanto, de forma completamente anómala, um “parlamentarismo bastardo”, cevado por verbas sequestradas ao orçamento da República.
A coisa atingiu tal nível de selvageria que, entre 2019 e 2024, nada menos do que R$ 186 mil milhões (cerca de EU$ 30 mil milhões) esvaíram-se pelos desvãos do orçamento em emendas parlamentares. Pior. Com a lógica do “orçamento secreto”, manufacturada no governo Bolsonaro, não se sabe sequer: 1) quem foram os parlamentares responsáveis por essas indicações; 2) quanto foi gasto em cada emenda.
É bem verdade que Lula da Silva já pegou o bonde a andar, com a casa desarranjada pelo que (não) fizeram seus predecessores. Mesmo assim, o atual mandatário tem feito pouco ou quase nada para mudar esse estado de coisas. Parte dessa inação deriva do fato de que boa parte do PT abraçou-se gostosamente ao Centrão, funcionando como linha auxiliar de Arthur Lira, o todo-poderoso Presidente da Câmara e responsável directo pela criação do “orçamento secreto”. Não por acaso, o Presidente da Câmara mantém alguns dos principais próceres do partido da estrela vermelha como seus fiéis escudeiros.
Quem sabe movido pela esperança de que o tempo acabe por resolver essa questão de uma forma ou de outra, Lula talvez tenha achado que pudesse empurrar a situação com a barriga até a eleição da nova mesa diretora da Câmara no ano que vem, quando Lira forçosamente deixará o terceiro posto mais importante da República. O problema é que a barriga do Planalto não está suficientemente sarada para empurrar o Presidente da Câmara e o Centrão até 2025. Maior prova disso foi o que ocorreu nesta última semana.
Como o Planalto não fizesse nada para restaurar o mínimo de moralidade na distribuição das emendas, coube ao Supremo Tribunal Federal tentar colocar alguma ordem nessa zona. Com o voto condutor do Ministro Flávio Dino, o Supremo determinou que, doravante, os recursos para emendas somente poderiam ser liberados caso fosse apresentado um plano de trabalho previamente aprovado pelo ministério responsável pela obra. Mais: toda e qualquer emenda deveria indicar precisamente o parlamentar responsável por sua indicação. Para além disso, o STF ainda determinou que o valor total das emendas não poderia crescer além dos limites estabelecidos pelo arcabouço fiscal. Foi o que bastou para detonar uma revolta congressual.
Acreditando que a decisão do Supremo fora combinada com o Planalto, os parlamentares interditaram a agenda legislativa, a ameaçar deixar de votar um pacote de corte de gastos enviado pelo Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, para fazer frente à descrença com o compromisso fiscal do Governo. Emparedado pelo Congresso, Lula da Silva chamou ao Planalto os presidentes da Câmara e do Senado, que de lá saíram com a promessa de que, independentemente do que decidira o STF, a verba das emendas será liberada.
Ainda que o dinheiro venha a ser liberado, o refrigério obtido pelo vendaval de emendas será apenas temporário. Mais hora, menos hora, Lula vai ter que encampar a discussão sobre a função e os limites das emendas parlamentares. A melhor forma de fazer isso é abrir o jogo e trazer a luz do Sol para dentro dessa contenda. Um debate honesto, a mostrar para onde está sendo direcionada a verba das emendas e o que se está a deixar de fazer para manter esse mimo do Parlamento, certamente faria acordar o “monstro da opinião pública”. Sem ter como defender o indefensável, nem Arthur Lira teria forças para barrar a pressão que viria de fora pra dentro do Congresso.
Se até o momento não se fez a luz sobre essa discussão, parte disso deriva do facto de que Lula não quer confrontar o Congresso (e, dentro dele, o PT) com seus próprios demónios. É um erro, porém, apostar na inércia, acreditando que é melhor deixar tudo como está, para ver como é que fica. Em 2014, Dilma Rousseff foi avisada de que havia algo de errado na Petrobras. A “gerentona”, contudo, achava que Paulo Roberto Costa era apenas mais um diretor da estatal e que Sérgio Moro era apenas um juiz de Curitiba.
Deu no que deu.
Arthur Maximus é advogado no Brasil e doutorado pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
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Alterações Mediáticas, podcast da jornalista Elisabete Tavares sobre os estranhos comportamentos e fenómenos que afectam o ‘mundo’ anteriormente conhecido como Jornalismo. No 14º episódio, analisa-se o fenómeno bizarro que levou os media a politizar o trágico e mortífero ataque num mercado de Natal na Alemanha. Também se analisa a mais recente propaganda do DN sobre Gouveia e Melo e a participação de duas jornalistas e uma ex-jornalista num processo de perseguição judicial ao director do PÁGINA UM por ter denunciado promiscuidade entre médicos e farmacêuticas. Por fim, em análise, mais um caso que leva a imprensa a repetir o mantra ‘Elon Musk bad’.
Na celebre história bíblica, Esaú trocou o seu direito de primogenitura por um simples prato de lentilhas. Um momento que, convenhamos, representa um marco de ingenuidade, mas também de desespero gastronómico. Na verdade, e eu sei bem disso; sempre fui boa boca, com bigodes a condizer, e quando a fome aperta até a ética vai pelo ralo. Por isso, nem me surpreende em demasia que alguns redactores contemporâneos adoptem Esaú como patrono das suas lides.
A este propósito, parece-me deliciosamente paradigmático o recente caso do Público, e mais uma vez do seu suplemento Fugas, que trocou o seu direito de ser levado a sério por… pizzas e prosecco na Lx Factory.
Sim, meus prezados humanos, ao preço de uma refeição – que, espero, tenha ao menos incluído sobremesa –, o jornal da Sonae conseguiu publicar um hino de propaganda de um espaço de culinária travestido de reportagem. Ah, não confundam: não se trata de uma publireportagem (longe disso!): é, garantem-nos, uma “rigorosíssima e isenta peça jornalística” escrita pela jornalista Inês Duarte de Freitas, competente na sua carteira profissional 8181, também ela uma Esaú moderna a trocar o bom senso pelo direito a um lugar à mesa. E ao sol, provavelmente.
Afinal, por que não permitir que a ética jornalística saia para um passeio enquanto se saboreia uma Alessandro de 15 euros, “com tomate, mozarela, stracciatella, pistácio, mortadela e grana padano” ou a mais clássica Paolo de 13,5 euros, “com tomate, mozarela, tomate amarelo, pepperoni e manjericão”.
Mas não nos apressemos. Antes de falarmos das virtudes da Sophia Pizzoteca – “residente italiana” da Lx Factory, como bem entoado no artigo –, detenhamo-nos um pouco no contexto. O texto começa com um desfile de adjetivos tão vibrantes quanto as luminárias do restaurante. Há “irreverência do conceito”, “tons néon”, e até um bar aberto de prosecco que, pelos vistos, é a mais recente maravilha do mundo moderno. A página resplandece com descrições de massas finas e está estampada com palavras quase poéticas sobre o papel de parede desenhado à mão, porque não basta uma pizza; é preciso uma aura.
Ninguém poderá estar contra uma boa pizza. Eu mesmo, na qualidade de um felino sofisticado, não recusaria um pedacinho (de stracciatella, obviamente, que o resto é para amadores) ou qualquer uma que tenha fiambre, sendo que sempre comerei o fiambre antes do resto. Mas permitam-me levantar uma questão: onde está a linha entre uma reportagem e um press release? Ou melhor, quando o já duvidoso estilo da publireportagem se transforma em carta de amor disfarçada de jornalismo e assinada á descarada por uma jornalista?
A questão é ainda mais pertinente se recordarmos que a mesma autora, dias antes, voou até Paris para assistir a um espectáculo de magia do Luís de Matos… a convite da Luís de Matos Produções.
Fico, entretanto, expectante sobre os próximos passos. Se este artigo sobre a pizzaria, uma verdadeira obra de arte da sugestão velada, termina com a frase “A Fugas jantou a convite do Sophia Pizzoteca&Bar”, o que virá depois? Artigos sobre calçados com o jornalista calçado pela marca? Reportagens sobre companhias aéreas em que o jornalista voa em classe executiva oferecida pela companhia? Avaliações imparciais de smartphones feitas por um jornalista que recebe um novo dispositivo da marca em ‘empréstimo permanente’? O céu é o limite. Mas se até eu tudo faço por um bom petisco, se a ética se pode trocar por uma requintada iguaria, então recomendo aos jornalistas do Público que subam os padrões: nada menos do que um Filet Mignon Rossini, perfeitamente selado, com cobertura de foie gras e finalizado com lascas de trufas negras frescas. Neste contexto, valha-me Deus!, uma pizza é pior do que o bíblico prato de lentilhas.
Serafim é o Mascot do PÁGINA UM, conveniente e legalmente identificado na Ficha Técnica e na parte da Direcção Editorial, possível pela douta interpretação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Qualquer semelhança entre os assuntos relatados e a realidade é pura factualidade.
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É-me de todo impossível falar da AMI – Assistência Médica Internacional sem pensar no sonho/utopia (“Deus quer, o homem sonha e a obra nasce!”) que eu me lembro de ter tido desde a minha tenra meninice por terras de África (nasci em Angola/Luanda, há 73 anos ainda então província ultramarina portuguesa): um dia ser médico, o primeiro da minha família, e ter um hospital no mato para tratar das pessoas mais desvalidas, isoladas e esquecidas.
Filho de miscigenações e multiculturalismos muito alargados, como genuíno português que sou, sempre olhei para o nosso Planeta como sendo uno e, já na adolescência, no Congo ex-Belga, ansiava por um mundo sem fronteiras e governado por um conjunto de sábios, éticos, altruístas e com vastíssima cultura humanista e espiritual e simultaneamente com uma enorme mundividência e multividência.
Sim, sonhava com o surgimento de um Mundo ““Justo” e “Bom” onde todos colaborassem, cada um pondo à disposição dos outros, gratuitamente, os seus conhecimentos e saberes…
Foto: PÁGINA UM
De Luanda, aos 12 anos, findo o 2º ano no Liceu Salvador Correia de Sá e Benevides, fui com os meus pais para Leopoldville, República Democrática do Congo, e aos 15 anos fui enviado pelos meus pais para Bruxelas para continuar os meus estudos liceais já que o Ateneu Belga que frequentava tinha fechado, devido a uma guerra fratricida com mercenários à mistura no Verão de 1967.
Foi o segundo choque violento na minha curta vida, já que no período da Páscoa de 1961 tinha sofrido a perda do meu melhor amigo e condiscípulo da 4ª classe em Luanda, filho único, o Janeiro; tinha sido morto à catanada numa fazenda de uns tios no norte de Angola… Com 15 anos percebi que o meu sonho/utopia de um Mundo de fraternidade e ético não iria ser fácil de concretizar. Não sabia é que o pior, o muitíssimo pior, estaria para vir e que eu estaria nas primeiras filas para assistir ao impensável!
Dos 15 aos 34 anos (final de 1985) vivi em Bruxelas.
Fernando Nobre, presidente e fundador da Fundação AMI, na sede da instituição, em Lisboa. (2024) / Foto: PÁGINA UM
Aí acabei o liceu, fiz o curso de Medicina na Universidade Livre de Bruxelas, com professores de excelência, assistindo a aulas de Ilya Prigogine, Prémio Nobel da Física, Albert Claude, Prémio Nobel da Medicina. Especializei-me depois em Cirurgia Geral e em Urologia, esta última com o melhor mestre europeu, e um dos melhores do mundo, Willy Gregoir, que dá o nome ao maior prémio, a medalha com o seu nome, da Associação Europeia de Urologia. (Tinha aliás pensado antes em Cirurgia Cardíaca, mas nessa altura seria impossível exercer no mato…)
Em 1984 com o Dr. Frank Collier, também do serviço do Prof. W. Gregoir, ganhei o melhor prémio no Congresso Europeu de Urologia em Copenhaga.
Durante esse longo período em Bruxelas, nunca abandonei o meu sonho primeiro: fazer como o meu herói e colega, Albert Schweitzer, que morreu quando eu tinha 15 /16 anos, e que desenvolveu uma obra notável, que conheci, no atual Gabão em Lambarené e que lhe valeu, e muito bem, o Prémio Nobel da Paz.
Foto: D.R.
Com um fortíssimo sentido de humanismo e de solidariedade, empenho-me desde há 50 anos na cidadania ativa.
Comecei, ainda jovem estudante de medicina, como voluntário numa associação de apoio a crianças autistas (hoje sabe-se que a multiplicidade de vacinas, com excipiente de alumínio, dadas na infância estão na origem do crescimento exponencial do autismo, e não só, como clama Robert Kennedy Jr., futuro Ministro da Saúde do recém eleito Presidente dos EUA!
Depois, já jovem médico, com a Amnesty Internacional na Bélgica, enviei múltiplas cartas de apoio a colegas presos em hospitais/prisões psiquiátricas na então URSS.
De seguida participei em missões de emergência cirúrgicas (guerras) com os MSF França e depois MSF Bélgica de que fui Administrador! Estive nas guerras Irão/Iraque, Chade/Líbia duas vezes, Beirute…
Foto: D.R.
No final dessa fase da minha vida, já casado e com dois filhos nascidos em Bruxelas, percebi que o meu sonho de ter o meu hospital no mato em África era de todo impossível.
E foi então em 1983 que uma grande reportagem no Chade com o meu, desde então, querido amigo José Manuel Barata Feyo, o destino me desviou para Portugal quando andava a pensar instalar-me na Costa do Marfim.
Fundei a AMI com 32 anos, a residir ainda em Bruxelas, e decidi mudar-me para Portugal continental, onde nunca tinha vivido, e recomeçar uma nova vida…
Há 40 anos, quando embarquei nesta Missão, não sabia quanto tempo duraria a viagem, mas o propósito era muito claro: lutar contra a intolerância e a indiferença e contribuir para um mundo mais justo.
Foto: D.R.
Parecia-me inconcebível ficar impávido e sereno perante tanta desumanidade que grassa no Mundo e tinha a certeza que era possível tentar construir um futuro melhor, alicerçado em bondade, equidade e respeito pelos Direitos Humanos. Não era simples, mas também não era impossível.
Arrisquei, dei um salto de fé, sonhei e acreditei. Era jovem, com muito ainda para aprender, e acabava de aterrar num país desconhecido quando decidi regressar de Bruxelas, onde vivia há 20 anos, e criar a AMI em Portugal. Mas o risco faz parte de todos os sonhos e a AMI, que soube sempre reinventar-se, também arriscou quando alargou a sua atuação de África para outros continentes, quando começou a intervir socialmente em Portugal, ou a desenvolver projetos na área do Ambiente.
Costumo dizer que “não há montanha inacessível, não há obstáculo inultrapassável nem fortaleza inexpugnável …” E com base neste lema, a AMI, uma instituição que se quer de ação e de reflexão, antecipou-se sempre às dificuldades e inovou nas respostas para que a Missão pudesse continuar.
Foto: D.R.
Em 40 anos, a AMI desenvolveu a sua intervenção nas áreas da Ação Humanitária e Cooperação para o Desenvolvimento, Ação Social, Ambiente e Alertar Consciências, em 82 países do Mundo (incluindo Portugal), mais precisamente 31 missões em África, 16 na América, 15 na Ásia e Oceania, 10 na Europa e 10 no Médio Oriente, num total de mais de 460 projetos e mais de 780 expatriados enviados para o terreno, tendo sido apoiados mais de 7 milhões de pessoas. A primeira missão arrancou em 1987 na Guiné-Bissau.
Em Portugal, a AMI começou a atuar em 1994, ano em que abriu o primeiro Centro Porta Amiga localizado nas Olaias, em Lisboa. Desde então, e face às necessidades existentes no país, a AMI abriu vários equipamentos sociais e desenvolveu várias respostas em todo o país, nomeadamente 9 Centros Porta Amiga (Lisboa (2), Porto, Coimbra, Almada, Cascais, Funchal, Vila Nova de Gaia, Angra do Heroísmo), 2 Abrigos Noturnos (Lisboa e Porto), 2 Equipas de Rua (Lisboa e Vila Nova de Gaia/Porto), 1 Equipa de Apoio Domiciliário (Lisboa), e 1 polo de distribuição alimentar (Porto). Desde 1994, já foram apoiadas mais de 80.000 pessoas pela AMI em Portugal, das quais 14.229 em situação de sem-abrigo. E desde 2015, já foram entregues bolsas de estudo a cerca de 500 estudantes universitários.
E porque a AMI acredita que um futuro mais justo e digno para todos é indissociável de um planeta mais sustentável, desenvolve também vários projetos na área ambiental, designadamente na área da recolha de resíduos para reciclagem e reutilização, reflorestação e energias renováveis. Foram já recolhidas 1.700 toneladas de radiografias, quase 2.000 toneladas de óleo alimentar usado, mais de 400 mil quilos de papel e cartão e mais de 16 mil quilos de resíduos elétricos e eletrónicos; e reflorestados mais de 410 mil metros quadrados) de terreno em Portugal.
Foto: D.R.
Falar da AMI é, sem descurar o nosso passado, sobretudo olhar para os desafios (pobreza/exclusão, equilíbrio ambiental, migrações, guerras) que se vislumbram, e para as esperanças (sociedade civil, cidadania) que nos incentivam a continuar. E a verdade é que estes 40 anos não estariam agora a ser celebrados se não tivéssemos podido contar com uma sociedade civil participativa, interessada, empenhada, altruísta e solidária. Por isso, obrigado a cada um de vós, que acompanham e acreditam na Missão da AMI. Estou imensamente grato pelo vosso apoio, carinho e ativismo. Agora mais do que nunca em tempos de Distopia trágica.
Tenho imenso orgulho na obra da AMI, embora tenha perfeita consciência que mercê de algumas opções que tomei em 2011 (politica) e 2020 (médicas, éticas e de consciência) compliquei a sua missão! Arrependido? Não! Voltaria a fazê-lo para não perder o respeito pelo Ser Humano que sempre procurei ser e o médico que sempre fui! Por isso fui “cancelado”. O futuro julgará!
Foto: D.R.
A AMI está preparada para os próximos 40 anos e espero que um dia possamos celebrar o facto da AMI já não ser necessária, porque significará que conseguimos alcançar um mundo justo, empático, digno e feliz para todos. Até lá, continuemos a trabalhar e a sonhar juntos.
Há 40 anos que fazemos AMIgos junto das pessoas cujas vidas conseguimos transformar, das pessoas que contribuem para esta Missão, sejam colaboradores ou voluntários, das pessoas que ajudam a concretizar esta Missão através de donativos e parcerias, sejam doadores coletivos ou individuais, de todos os que nos acompanham e multiplicam o alcance da nossa mensagem.
A missão da AMI vai continuar, sim. Contra a Intolerância. Contra a Indiferença. São estas as duas piores doenças da humanidade.
Fernando de La Vieter Nobre é Fundador e Presidente da Fundação AMI
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Alterações Mediáticas, podcast da jornalista Elisabete Tavares sobre os estranhos comportamentos e fenómenos que afectam o ‘mundo’ anteriormente conhecido como Jornalismo. No 13º episódio, analisa-se o fenómeno bizarro que levou os media a esconderem que a maioria dos Prémios Nobel que não querem ver Robert F. Kennedy Jr. na liderança da ‘pasta’ da Saúde na administração Trump são os mesmos que defenderam a organização caída em desgraça, EcoHealth Alliance, que conduziu pesquisas perigosas em Wuhan, na China. Também se analisam dois casos em que a SIC Notícias e o Correio da Manhã cometeram lapsos de tradução que totalmente alteraram as notícias em causa.
Há uma penada de anos conheci um mestre-de-obras romeno, o Adriano. Naqueles meses a revirar-me a casa do avesso, a picar, estocar, pintar, derrubar e levantar paredes, abrir rossos, fazer argamassa, barrar cimento, instalar cabos, acartar baldes, afagar, polir e instalar as traquitanas, descobri uma inusitada faceta do mestre Adriano.
Certo dia, ao subir a escada para ver o andamento da obra, ouvi os trinados de uma guitarra e o Ai Mouraria cantado com voz roufenha. Entrei, pé ante pé, e lá estava o mestre Adriano, sentado num par de tijolos, de olhos semicerrados, a dar no fado como um fadista de Alfama. Quando me viu, à falta de melhor desculpa, esticou a mão para me passar uma bucha de torresmos. Enquanto os trolhas, três eslavos e um cearense, se deliciavam nas bifanas, a ouvir o mestre, limitei-me a dizer-lhe, prossiga. Nesse dia fiquei a saber que tinha em casa, além de um trolha, um fadista, que passei a frequentar, entre pincéis, martelos e ferramenta.
Quis saber de onde lhe tinha brotado a paixão por coisa tão portuguesa. Era daí que lhe vinha o dedilhar e o canto, do território da paixão. Contou-me, no seu português de quem rodara por bairros populares, que trinta anos antes embalara a trouxa e zarpara de Bucareste, depois de ouvir Amália Rodrigues cantar na rádio. Foi, disse-me, como se Deus o tivesse chamado à terra onde só podia ter nascido tal melodia. Entre ouvir Amália e abalar passaram menos de cinco dias.
Adriano nada sabia de Portugal ou da diva. Na Roménia tocava viola de ouvido, as canções dos Beatles, The Who, dos Led Zeppelin. Ao chegar a Lisboa, a primeira coisa que fez, antes de se instalar na pensão Girassol, foi ir aos fados. Entre uns biscates e aperfeiçoar a arte do estuque, passou a ser assíduo do Luso, da Parreirinha, da Tasca do Chico. De então para cá, ouviu e bebeu de tudo e de todos, até eleger Joel Pina para o altar do seu panteão. Nada lhe passou ao lado. A todos acolheu, de todos aprendeu, a ouvir e a ver, todos os que pôde. De Beatriz da Conceição a Marceneiro, de Carlos do Carmo a Argentina Santos. Era um fadista e não sabia.
Tenho admiração por quem sente o que é dos outros como seu, todo aquele que torna o estrangeiro a sua morada. Não apenas por razões que o bolso conhece, mas por emoções desconhecidas. Gente que desce às profundas de genes tomados por adopção. Desde o meu achado na obra da Rua Correia Teles, passei a ir ouvir o mestre Adriano às tascas do fado, onde acompanha fadistas de todos os quilates, de aspirantes a veteranos. Pedem-lhe um dó maior e ele dá tudo de si. Alguns, creio, não saberão estar ali um romeno que largou a sua terra por causa do fado. Adrián e não Adriano. Não darão conta pela sua fala sem sotaque ou por ser tão raro meter galgas como é próprio do mais virtuoso. E se as mete, logo as disfarça como fazem os indígenas do ofício, sem dar parte fraca.
Adriano diz caralhadas com o deleite de um gimbra. Tal como sabe de cor e salteado as deixas e os intervalos de dar ou não dar as notas. Ou quem foram o Pacheco, o Pina, o Paredes, as guitarras do Grácio, as madeiras, os seus veios, nervuras e as suas minudências de onde só uma alma unida a outra pode tirar os sons mais límpidos.
Quando um estrangeiro se instala num país por motivos de uma força maior, fazendo da terra que o adopta a sua pátria sentimental, aí está o significado de um mundo sem fronteiras. Nós demos-lhe o fado, ele devolve-nos a dádiva como se fosse nascido no seu caldeirão. Limpinho.
Tiago Salazar é escritor e jornalista (com carteira profissional inactiva)
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A expressão “vida artificial” (cara aos transhumanistas), é um oxímoro. Ou há Vida ou há um “artifício”, ou um simulacro de vida. A Vida não pode ser nunca artificial. Nada é mais oposto à Vida que as manipulações do mundo vivo pela tecnologia”[1].
A apreciação das dimensões macro e micro espaciais desse abismo pode passar pela avaliação da sua qualidade molecular. Setenta por cento da nossa constituição é água, e é essa a percentagem também da sua presença no planeta. Não será despiciendo sublinhar o quanto a qualidade das suas memórias e condição ambiental podem divergir e ser determinantes no mundo vivo.
Para alguns, uma molécula de água de uma cascata montanhosa é indistinguível de uma molécula de água que sai de um tubo de escape. Os caminhos do materialismo científico conduziram a ciência a uma visão de tal forma estratificada da realidade que o mais elementar requisito duma Análise Global de Sistemas é ignorado. É possível provar com métodos como a cristalização sensível ou o efeito Kirlian[3] que, apesar de terem a mesma estrutura química, aquelas duas moléculas não são iguais. Um mesmo meio aquoso submetido a diferentes circunstâncias dá origem a formas geométricas dos cristais respetivos que são harmoniosas ou, pelo contrário, caóticas, como o provaram os trabalhos de Masaru Emoto (Japão). Jacques Benveniste e Luc Montagnier (França)[4] estudaram também a capacidade que tem a água de memorizar as características da matéria com que esteve em contacto. A água manifesta e transmite a qualidade vibratória das frequências que a percorrem e guarda memória delas[5]. Para estudar essa realidade da água é preciso aceitar ir para lá do dogma materialista da estrita composição química. Se dúvidas houver sobre a realidade ondulatória (a par da corpuscular) duma molécula, vejam-se por exemplo os trabalhos de Luc Montagnier que permitiram duplicar e reconstituir à distância uma molécula sem nenhuma base material[6].
Quando Marie e Pierre Curie utilizavam a radiestesia na sua prática laboratorial, percebiam já que, para além de um comportamento corpuscular, toda a matéria tem também um comportamento ondulatório (ou vibratório), i.e. uma irradiação. A química desenvolveu uma compreensão própria dessa realidade ao abrir o capítulo da estereoquímica: o estudo da qualidade das moléculas que acrescenta à sua fórmula química, a configuração e arrumação dos átomos que as constituem no espaço tridimensional. As propriedades óticas duma molécula (comportamento do plano de luz polarizada que a atravessa quando cristalizada) diferem entre moléculas com a mesma constituição química. Umas são levogiras (têm um movimento rotativo para a esquerda), outras dextrogiras (para a direita) e outras sem nenhum desvio ou movimento. A título de exemplo, na molécula de ADN, 19 das 20 moléculas de aminoácidos que compõem as proteínas, assim como todos os açúcares naturais, são levogiras[7].
As noções de quiralidade, isomeria, enantiomeria e de mistura racémica[8] permitiram estabelecer diferenças fundamentais entre a acção biológica (e por extensão farmacológica) de umas e outras[9]. Genericamente, Young, Pasteur e Fresnel demonstram que a matéria viva é assimétrica e quiral (a duplicação duma molécula no espelho não lhe é sobreponível, como as nossas duas mãos também não o são), e a matéria inerte, simétrica (ou aquiral)[10].
A quiralidade só pode ter origem em fontes naturais. As moléculas artificiais nunca são quirais. Das quatro forças que existem no Universo, a força nuclear fraca será aquela na qual a quiralidade tem origem.
Os seres vivos têm a capacidade de ir buscar moléculas aquirais ao exterior (alimentos naturais) e fabricar com elas compostos quirais de carbono, ou seja, elevar a frequência vibratória (qualidade ondulatória) dos alimentos de forma a transformá-los em matéria viva[11]. Mas não pode fazê-lo com as moléculas artificiais que, por isso, os intoxicam. Um organismo vivo caracteriza-se por trocar informação, matéria e energia com o exterior e por poder reproduzir-se: é preciso que nos interroguemos sobre o que possibilita esses saltos quânticos (a transformação da matéria inerte digerida em matéria viva ou a reprodução) e reconhecer que uma análise in vitro e outra in vivo apresentam forçosamente resultados muito diferentes. É preciso, simultaneamente, reconhecer que a distinção mais subtil entre matéria natural e não natural parece residir na quiralidade. A resistência do mundo vivo às inúmeras ameaças a que é submetido todos os dias há várias décadas, é aferível a partir dela. No coração da matéria, a vida natural é movimento predominantemente rotativo e a inércia é um indicador da sua ausência ou de uma inadequação biológica.
A dissimetria especular que caracteriza a vida a este nível acontece também a nível macro cósmico. O eletrão é tendencialmente levogiro e a energia que liga as moléculas levogiras é maior do que aquela que liga as moléculas dextrogiras.
O mesmo princípio funda a estereobotânica: a planta é uma sinergia num todo (princípio do Totum vegetal); a extracção duma molécula reduz o seu efeito. Entre elas, as plantas têm também sinergias. Na alimentação, em fitoterapia, gemoterapia ou aromaterapia o mundo vegetal oferece ao Homem os nutrientes e curativos mais importantes e a fonte desse conhecimento foi encontrada pelos ocidentais junto dos povos que colonizaram para depois dizimar e ridicularizar: as populações índias e aborígenes dos continentes americano e australiano. O mesmo tipo de conhecimento foi encontrado nos xamãs da Sibéria e dos Himalaias, nas heranças milenares da medicina tradicional chinesa e indiana, etc. O isolamento, por extracção, de uma molécula das outras que constituem a planta (agravado pela sua replicação sintética) altera e diminui a sua capacidade de actuação: a planta como um todo é adaptogénica, enquanto o princípio isolado actua numa só direção. A norma são as sinergias, segundo o princípio mais lato de “entourage”.
Na sua lógica de poder, dominação e lucro, o ser humano não percebeu que o que a natureza dá não existe para ser patenteado e propriedade de alguns, e achou que podia recriar a molécula natural em processos de síntese laboratorial ignorando a importância da quiralidade, do totum vegetal, das sinergias intra e extra-espécies, das leis naturais e da ética a que estamos obrigados perante elas. Aventurou-se, desse modo, na criação de milhares de moléculas de síntese que hoje circulam em todo o planeta, intoxicando e desregulando a biodiversidade, o ar, a água, os minerais, as plantas, os animais, os seres humanos: os seus sistemas endócrinos, o seu terreno e meio interno, a sua eletrofisiologia e a sua imunidade. A criação de moléculas artificiais não permite a obtenção da qualidade quiral nem garante a separação dos duplos indesejados (pares de enantiómeros em compostos), e existem provas de que as misturas racémicas não são favoráveis à biologia dos seres vivos. Mas a comercialização de um racémico é muito mais barata do que a de um desdobrado[12].
Não satisfeito com isso, o ser humano manipula geneticamente todos os estratos e cadeias da vida; ignora que ele próprio é uma realidade complexa em que interagem espírito, alma e corpo[13] e tende a considerar credíveis apenas os estudos científicos financiados e instrumentalizados pelas grandes indústrias[14].
O DOGMA MATERIALISTA
O entendimento das partículas da luz (fotões) ou da matéria em geral como tendo uma natureza e um funcionamento quânticos surge no início do século XX nas áreas da mecânica e da física, mas desenvolve-se, mais recentemente, nas ciências da vida como a biologia e a medicina. Aplicados à realidade complexa e global do ser humano, a interferência do investigador no seu objeto de estudo e os princípios de superposição, de entrelaçamento e de incerteza têm implicações filosóficas e antropológicas profundas[15]. Como vários autores sublinham, a dificuldade da física quântica reside no facto de ser uma espécie de metafísica e de perturbar, por isso mesmo, os dogmas mais sólidos e persistentes da ciência dos séculos XIX e XX.
Diz-nos a Cosmologia que a matéria é apenas 4% de tudo o que existe no Universo[16]. É a expressão mais densa da energia. O espírito é o seu contraponto mais subtil. Isso significa que 96% de tudo o que existe escapa aos cinco sentidos a que a nossa educação e civilização nos restringem. Mas esse lado invisível e inaudível à grande maioria existe, é determinante e é suscetível de ser conhecido e estudado. A educação para essas funções do espírito, erradicada pela ciência positivista e atomista do século XIX, era frequente em grandes civilizações tradicionais.
Num congresso realizado em 2014 em Canyon Ranch (E.U.A) vários cientistas de todo o mundo foram convidados a partilhar experiências de teor espiritual significativas que informaram o seu ponto de vista pós materialista da ciência. As discussões incluíram informação em neurociência, espiritualidade e doença, experiências de morte iminente (EMI) ou NDE (versão inglesa), parapsicologia e paradigmas psiquiátricos e antropológicos alternativos.
No Manifesto para a Ciência Pós materialista que delas resultou é feita uma síntese do impacto da ideologia materialista na ciência e da influência do paradigma pósmaterialista emergente[17]. Um dos organizadores, Mario Beauregard, é autor de livros dedicados à ponderação da consciência como uma realidade independente do corpo e suscetível de se constituir como objeto de estudo[18].
A importação da física quântica para a biologia permite, hoje, ver a célula como um suporte ou campo de ressonância e perceber que os mecanismos profundos da biologia são regidos por campos eletromagnéticos. A esta noção deve associar-se a de campos morfogenéticos de Rupert Sheldrake, a de campos magnetobiológicos de Émile Pinel, os estudos do ADN como campo de ressonância e teleacção por Lakhovsky, David Bohm, Luc Montagnier ou Garaiev e Poponin. Cannenpasse-Riffard[19] aborda questões fundamentais sobre a vida, o Universo e a consciência num livro pouco convencional de medicina e biologia quânticas. A separação entre espírito e corpo (ou entre energia e matéria) é o quadro geral dentro do qual a doença é lida atualmente como causada exclusivamente por agentes exógenos. Ultrapassada, para o autor, a física do século XIX continua a influenciar a biologia e a neurologia. Mas é a física quântica que, segundo ele, vai permitir um entendimento dos fenómenos de consciência[20].
A Teoria Geral dos Sistemas (Ludwig von Bertalanfy 1968) e a Teoria dos Sistemas Abertos e dos Processos Irreversíveis (IlYa Prigogine), sublinham o princípio de emergência: um sistema aberto (como um ser vivo) interage em permanência com o exterior e, contrariamente aos fechados, que estão submetidos ao princípio da entropia (segunda lei da termodinâmica), é regido por uma força contrária à entropia, levando o sistema à regeneração, reorganização e homeostasia, para assegurar a sua perenidade: a neguentropia. Essa força tem de provir de alguma fonte, uma fonte de vida. Já descobrimos qual e onde se encontra?
OUTROS FACTORES DE INTOXICAÇÃO
Nas telecomunicações móveis são usadas frequências muito altas (radio frequências ou micro-ondas, não ionizantes), em ondas pulsadas, bastante agressivas para o organismo. A eletrofisiologia e a eletrobiologia do corpo humano são radicalmente perturbadas na sua voltagem natural, pela voltagem induzida por este tipo de radiação. O stress oxidativo é permanente. A generalização do 5G (a que se seguirão o 6 e 7 G) será letal para toda a vida no planeta. Tudo o que já foi possível investigar até ao presente nesta área justificaria largamente e, no mínimo, a aplicação de um princípio de precaução[21].
Por outro lado, múltiplos programas têm sido desenvolvidos na área da geo-engenharia, com a acção conjugada de metais pesados em rastos químicos e de ondas eletromagnéticas[22]. As nuvens artificiais e a modificação intencional da ionosfera (Cf. projeto HAARP) modificam o clima da Terra e o seu equilíbrio; interrompem ciclos naturais; afetam a fotossíntese; interferem nos ventos e na pressão atmosférica; alteram a ressonância das ondas de Schumann[23] no ser humano; causam problemas ligados à alteração dos ciclos circadianos e à ingestão e inalação de metais tóxicos.
A questão alimentar é também nuclear: os modelos nutricionais e a nossa relação com os animais. Uma conexão com a Natureza conforme à das tradições e culturas ancestrais, com valores existenciais e utilitários harmonizados, favorece uma visão positiva da humanidade e da fruição do planeta. Havendo vontade política, é possível implementar a conversão da agricultura química e da monocultura em agricultura biológica e em biodiversidade e contribuir para a proibição de dezenas de milhar de moléculas sintéticas introduzidas no planeta.
A carência em micronutrientes essenciais que hoje se verifica advém de produtos naturais adulterados, desvitalizados, mal conservados e intoxicados; a emancipação local e regional deveria favorecer a proximidade entre consumidor e produtor, a auto-suficiência económica e a verdadeira sustentabilidade[24].
A jornalista francesa Stéphane Horel é uma das principais vozes de denúncia do funcionamento dos lobbies e dos bastidores da decisão política em matéria de consumo agroalimentar, química, petrolífera farmacêutica e industrial. Em dois livros que publicou[25] a autora expõe a estratégia das grandes indústrias mundiais no sentido de impedir, confundir, adiar, desacreditar qualquer estudo científico não pago e não enquadrado pelas próprias indústrias; ou qualquer projeto de lei ou normativo inspirado pelo princípio de precaução, nomeadamente na área dos perturbadores endócrinos e dos produtos cancerígenos.
A MATRIZ UTÓPICA
A ideologia do progresso alimenta, há pelo menos dois séculos, o imaginário de um permanente crescimento económico, logicamente insustentável; exalta a revolução tecnológica para lá do seu enquadramento ético; exacerba a pulsão territorial e as patologias do poder. De uma forma muito idealizada, presidiu a vários projetos arquitectónicos e urbanos utópicos dos anos 60: Ant Farm, na América que seguia Buckminster Fuller; “Helix City”(1961), de Os Metabolistas, no Japão; Archigram, de um grupo anglo-saxão de arquitetos.; Arcosanti, fundada por Frank Lloyd Wright, na sequência de Broadacre City. Auroville, criada em Pondichéry (Índia, 1968). Na mesma época, Germano Celant designa por “Arquitectura Radical” as iniciativas de grupos italianos como Archizoom, SuperStudio, 9999 e UFO[26].
Mas a grande revolução que está por fazer é outra. Da micro realidade química, magnética e vibratória da molécula à macro realidade duma sociedade que polui, desresponsabiliza, adoece e aliena, a ciência, a medicina, a agricultura, a alimentação e a utilização prometeica da tecnologia já colocaram a atual civilização à beira de um colapso muito provável. A natureza extrema do seu malefício também acordou muitas consciências.
A grande revolução que está por fazer é incrivelmente microscópica: tem a dimensão de uma molécula. A sua condição e contrapartida macroscópica surgirá da elevação dos níveis de consciência de todos aqueles que estiverem em condições de promover, em cadeia, as mudanças sociais que se impõem.
A História ensina e prova que as grandes e mais importantes revoluções germinam num espaço onírico e criativo fecundo, necessariamente interior e individual e que começaram sempre por ser sonhos de pequenos grupos, considerados utopia.
Leonor Nazaré é curadora de arte contemporânea.
[1] Daniel Robin, Le Règne de l’intelligence artificielle. La fin de l’Anthropocène et l’avènement des posthumains, Grenoble : Le Mercure Dauphinois, 2022, p.16. Tradução nossa.
[2] Com revisão científica e algumas notas de António Godinho (médico generalista).
[3] Técnica fotográfica usada para capturar descargas elétricas coronais. O nome é uma homenagem ao cientista soviético Semyon Kirlian, que, em 1939, descobriu acidentalmente que se um objeto numa chapa fotográfica for conectado a uma fonte de alta tensão, será produzida uma imagem nessa chapa. A técnica tem sido conhecida também como eletrografia ou eletrofotografia.
[4] Masaru Emoto, Les Messages Cachés de l’Eau, Paris. Ed. J’ai lu, 2004 ;Jacques Benveniste, Ma Vérité sur la Mémoire de l’Eau (publiée en 1988 dans la revue “Nature”), Paris, Albin Michel, 2005 ; de Luc Montagnier, entre outros : Des Virus et des Hommes, Paris, Ed. Odile Jacob, 1994.
[5] É o princípio da homeopatia, em dinamizações muito altas.
[6] Acerca da descoberta de Luc Montagnier (prémio Nobel de Medicina, em 2008), sobre a memória da água, ver https://www.youtube.com/watch?v=R8VyUsVOic0
[7] Martin Gardner, L’Univers Ambidextre (1967), Paris : Seuil, 1994
[8] Quiral significa assimétrico e aquiral, simétrico. Isomeria: fenómeno em que diferentes compostos partilham a mesma fórmula química, mas apresentam arrumação espacial diferente dos seus átomos; enantiomeria: fenómeno em que as moléculas de isómeros são imagens especulares não sobreponíveis. Mistura racémica: com partes iguais das duas metades. Nas moléculas consideradas antípodas óticos, apenas uma delas tem acção terapêutica. A maioria dos medicamentos alopáticos tem uma fórmula racémica, ou seja, sem eliminação dos duplos indesejados e inativa.
Para uma compreensão acessível e rápida destes conceitos consultar, por exemplo, https://www.coursehero.com/file/210886636/3-Estereoqu%C3%ADmicapdf/.
[9] Por exemplo, o esomeprazole é o isómero S do omeprazole, o qual é uma mistura racémica de isómeros S e R.
[10]Cf. Jean Jacques, La Molécule et son double, 1992 ; Stéréochimie et chiralité en chimie organique, Ed. De Boeck, 1999.
[11] Na fase pós prandial surge uma leucocitose a nível do aparelho digestivo que, inicialmente, se pensava ser uma resposta à incompleta degradação de algumas proteínas, o que não se confirmou, visto que se bebermos água isenta de matéria orgânica não surge leucocitose, a não ser que a água seja fervida; ou seja, tal como um íman perde as suas capacidades magnéticas a altas temperaturas, também os alimentos e mesmo a água, se aquecidos acima dos 90C, perdem o seu potencial elétrico que tem que ser restabelecido para que se faça a digestão (A.G.)
[12] Nos compostos químicos, a desejável separação entre isómeros (moléculas quirais) é feita normalmente com base nas propriedades químicas, o que a torna muito difícil ou inoperante: a diferente arrumação no espaço raramente é tida em conta. A resposta biológica pode não ser a desejada e este é um grande problema da indústria farmacêutica que opta pelas soluções menos dispendiosas, ou seja pelas misturas racémicas. Estas contêm os dois isómeros (enantiómeros, antípodas óticos) em partes iguais e não apresentam desvio da luz polarizada (são inativas).
Idealmente as moléculas preparadas para agir de modo terapêutico deveriam ser limpas dos seus duplos inúteis. Os fármacos quirais (com separação das metades especulares e determinação daquela que tem acção biológica, porque só uma delas a tem), interagem com recetores como as enzimas e as proteínas. Quase nunca são conhecidas as ações fisiológicas dos dois enantiómeros.
[14] A jornalista francesa Stéphane Horel é uma das principais vozes de denúncia do funcionamento dos lobbies e dos bastidores da decisão política em matéria de consumo agroalimentar, química, petrolífera farmacêutica e industrial. Em Intoxication. Perturbateurs endocriniens, Lobbyistes et eurocrates. Une Bataille d’influence contre la santé, Paris : Éditions La Découverte, 2015 e Lobbytomie. Comment les lobbies empoisonnent nos vies et la démocracie, Paris : Éditions La Découverte, 2018, a autora expõe a estratégia das grandes indústrias mundiais no sentido de impedir, confundir, adiar, desacreditar qualquer estudo científico não pago e não enquadrado pelas próprias indústrias; ou qualquer projeto de lei ou normativo inspirado pelo princípio de precaução, nomeadamente na área dos perturbadores endócrinos e dos produtos cancerígenos (A.G.).
[15] Brian Greene, O Universo Elegante (1999), Lisboa : Gradiva, 2004 ; e Sven Ortoli e Jean Pierre Pharabod, Le Cantique des quantiques, Paris: Éditions La Découverte, 2007.
[16] Ver, por exemplo, http://www.indesciences.com/matiere-noire-cote-obscur-de-lunivers/
[21] Por exemplo, Relatório BioInitiative. Em 2007, o BioInitiative Working Group divulgou um relatório que avalia os possíveis efeitos na saúde da exposição a campos elétricos e magnéticos (EMF). O relatório abrange as frequências baixas (ELF) EMF associadas com energia elétrica e as rádio-frequências (RF) EMF de fontes tais como telefones celulares e transmissores de comunicações. Em 2012, foi apresentada uma edição atualizada do mesmo Relatório. A partir desse ano tem havido sucessivas atualizações, sendo a última de 2022. A principal conclusão do Relatório BioInitiative é que os limites de exposição do público aos campos eletromagnéticos estabelecidos pela Comissão Internacional sobre Radiações Não-Ionizantes (ICNIRP), e pelo Institute of Electrical and Electronics Engineers (IEEE), e outras organizações, são insuficientes para proteger a saúde e exigem uma redução substancial. Cf. https://radiationrisks.geohabitat.pt/pt/3-1-Relatorio-Bioinitiative/Apresentacao-/
[22] Por exemplo, Clive Hamilton, Les Apprentis Sorciers du Climat, Raisons et Déraisons de la géo-ingénierie, Paris : Ed. du Seuil, 2013, ou Nenki, Chemtrails. Les Tracés de la mort, Québec, Canada: Louise Courteau éditrice, 2003.
[23] A Ressonância Schumann é o conjunto de picos no espectro da banda de frequências extremamente baixas (ELF) do campo eletromagnético terrestre, formado pela superfície da Terra e pelas camadas inferiores da ionosfera.
[24] Marie-Monique Robin, Solutions locales pour un désordre global, https://odysee.com/@chouppa62:d/Solutions_Locales_Pour_Desordre_Global_:5
[25]Intoxication. Perturbateurs endocriniens, Lobbyistes et eurocrates. Une Bataille d’influence contre la santé, Paris : Éditions La Découverte, 2015 e Lobbytomie. Comment les lobbies empoisonnent nos vies et la démocracie, Paris : Éditions La Découverte, 2018.
[26] Jean-Louis Violeau, Les 101 mots de l’Utopie, à l’usage de tous, Paris, Archibooks + Sautereau Éditeur, 2009
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
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Quem sou eu para falar mal de quem gosta de passear e apanhar um pouco de sol, logo eu, que me espreguiço e me deleito com ensolarados banhos em solarengas varandas . E quando tinha menos idade e mais saúde, ah!, se gostava de vaguear pelos telhados dos vizinhos, qual Cosimo Piovasco di Rondò do Italo Calvino… Mas admito, sem pudor, que gosto de passear e preguiçar.
Já os jornalistas do suplemento ‘Fugas’, do jornal Público, recorrem a subterfúgios para evitar assumir o óbvio: há quem goste de passear para além dos telhados ou das florestas de Ombrosa, como o Barão Trepador; mas à ‘borla’! Não haveria problema nenhum, não se desse o caso desses passeios “a convite” serem abundamentemente gozados e resultarem em longos textos cheios de elogios e fotos de ‘Instagram’, o que no tempo em que nasci, dizem-me que na madrugada de 13 de Junho de 2008, se diria serem artigos promocionais, aka, publicidade paga.
Mas se consultarmos o dicionário, uma das definições da palavra ‘fugas’ é precisamente “acto de não fazer ou assumir o que se devia”. Ora, é isso precisamente que o ‘Fugas’ fez, por exemplo, na sua edição do dia 30 de Novembro. Trata-se de um ‘especial’ sobre vinhos. Traduzindo, significa que, nessa edição, o suplemento do Público foi transformado num caderno sobre vinhos, pago pelas muitas páginas com publicidade aos mais diversos tipos e marcas de bebidas alcoólicas, o que nem seria mau. Mas não só, o que já é mau.
De facto, o ‘Fugas’ do passado dia 30 de Novembro conta não com uma, nem com duas, mas com sete páginas de textos escritos por três – que dizem ser a conta que Deus fez – jornalistas com o ‘aviso’ de que viajaram com as despesas pagas pelos promotores das reportagens.
Na página 8, na secção ‘Investimento’, encontramos um artigo de duas páginas sobre a empresa OENO, escrito pela jornalista Ana Isabel Pereira (CP 4720) com o título: “Há mais portugueses a investir e a entregar a profissionais a gestão da carteira de vinhos”. Na entrada lê-se que a “OENO já gere cinco milhões de euros em carteiras de vinhos para portugueses” mas parece que “ainda há resistência e quem evite intermediários”. O texto termina com a nota: “O Fugas esteve em Londres a convite a OENO”. Que giro!
Segue-se, na página 28, uma reportagem na secção ‘Viagem’: “Cinco dias pela doce Suíça das vinhas e do vinho”. São três gordas e sedutoras páginas sobre o país que tem “das mais belas paisagens vinhateiras do Mundo”, segundo o autor do artigo, Pedro Garcias, um jornalista empresário de vinho que ainda há dias teve a honra de ‘sacar’ três direitos de resposta de empresas vinícolas que o acusaram de ter escrito sobre questões onde ele é produtor de vinhos. Porém, nem toda a gente aparenta desgostar de Pedro Garcias, porque o artigo no ‘Fugas’ termina com a nota: “O Fugas [ou seja, o Pedro Garcias] viajou a convite do Turismo da Suíça”.
Curiosamente, Pedro Garcias deixou de constar recentemente da lista da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ), mas, ainda assim, o Público continua a identificá-lo como “jornalista e produtor de vinho no Douro“. Ora, nem mais: um jornalista, que afinal não é, a escrever apenas sobre um assunto do qual tem interesse comercial directo. Mais cristalino do que isto só certas xurrapas do Ribatejo…
Aliás, Pedro Garcias já nem é caso único no suplemento ‘Fugas’ de repórter sem carteira de jornalista. Um outro artigo desta edição é assinado por Edgardo Pacheco, apresentado como jornalista e crítico gastronómico, que também não surge na lista de profissionais da CCPJ. Similar situação parece suceder com José Augusto Moreira, que também assina no suplemento ‘Fugas’, embora conste um Augusto Moreira (CP 2339) na lista do ‘polícia’ dos jornalistas.
Logo a seguir, na página 32, encontramos um artigo de quase duas páginas sobre “A noite em que o Barca Velha fez prova entre as estrelas”, com ‘Barca Velha’ escrito a azul em letras garrafais. Aqui, o jornalista que “viajou a convite da Casa Ferreirinha” é nada mais nada menos que o Manuel Carlos Carvalho (CP 963) para a CCPJ, mas que insiste em assinar como Manuel Carvalho. Pouca importância tem isso quando se constata que estamos perante o antigo director do Público, o grande iniciador da ‘mercantilização’ do jornal da Sonae, e que escreve logo na entrada do artigo que “o Barca Velha de 1999 deu mais um pequeno empurrão à imagem do vinho português no Mundo”. Pergunta de algibeira: quem produz o Barca Velha? Correcto: a Casa Ferreirinha. Quando a Sonae já nem tem dinheiro para custear despesas de deslocação até Vila Nova de Foz Côa…
Este didáctico suplemento do Público – mais no sentido comercial do termo e não tanto de enologia – termina com diversas páginas recheadas de ‘sugestões’ de vinhos para oferecer este Natal, quase rivalizando com um qualquer folheto do Continente, tantas são as garrafas sugeridas pelos críticos. Também não teria nada de mal se se assumisse que, de conteúdos jornalísticos, tem pouco. Já de “promoção”, tem muito. E nem se trata de um caso de gato escondido com rabo de fora, que isso é para mim, e nem sempre por estar em ‘fugas’. Na verdade, com três viagens pagas a jornalistas na mesma edição, o gato está todo à vista. Rabo, patas, cabeça, dorso, pêlo, entranhas, tudo.
Serafim é o Mascot do PÁGINA UM, conveniente e legalmente identificado na Ficha Técnica e na parte da Direcção Editorial, possível pela douta interpretação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Qualquer semelhança entre os assuntos relatados e a realidade é pura factualidade.
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Está na hora de assumir: fui eu o jornalista que registou o encontro entre Nuno Melo e Gouveia e Melo. Frederico Duarte Carvalho, jornalista desde 1992, possuidor da carteira profissional número 1581, tendo trabalhado em órgãos de Comunicação Social como O Primeiro de Janeiro, Tal&Qual e Focus. Presentemente, jornalista freelancer, escritor e colaborador (ir)regular do PÁGINA UM.
As imagens do encontro foram retiradas de um vídeo de 20 segundos que gravei na noite de terça-feira, dia 19 de Novembro, quando estava sentado na esplanada do bar Cockpit (que não fica em Alvalade. Mas por que toda gente insiste em dizer Alvalade? Haja rigor jornalístico, pois aquilo é Areeiro: a freguesia de Alvalade termina do outro lado da linha do comboio, a meio da Avenida de Roma. Se o encontro tivesse sido no bar Old Vic, do outro lado da linha, por exemplo, aí sim, seria Alvalade).
Foto: PÁGINA UM / FDC
As circunstâncias em que consegui captar o momento de relevante interesse jornalístico merecem ser explicadas. É preciso travar as teorias da conspiração levantadas por gente que, alegadamente (esta frase tão jornalística e tão esquecida), é séria.
Ouço perguntarem por aí se as fotos foram ou não foram combinadas entre o jornalista e os intervenientes. Querem saber quem pagou para o jornalista estar ali, naquele momento. Ou ainda quem deu a informação sobre o encontro e porquê, porquê, ao PÁGINA UM. Irei então, dentro do que me é possível profissionalmente, elucidar algumas das mentes brilhantes do País sobre o que ainda se pode fazer no jornalismo em Portugal.
Por volta das 22h21 recebi uma chamada no meu telemóvel – para quem controla os metadados, sim, podem ir ver quem me ligou. Era um amigo (apolítico) que soube, através de um amigo, que soubera através de um outro amigo de um amigo, que o piso superior do bar Cockpit tinha sido reservado para um encontro entre o ministro da Defesa, Nuno Melo, e o almirante Gouveia e Melo.
A minha primeira reacção foi: “Está bem! Já ouvi melhores”, e deixar-me estar. Aquilo não fazia grande sentido, mas como ainda sou jornalista – não tenho horários de trabalho -, meti-me a caminho do local. Ajudou à decisão o facto de, por coincidência, estar por perto – e, se quiserem saber, por acaso eu é que estava mesmo em Alvalade nessa altura.
Foto: PÁGINA UM./ FDC
Cheguei então ao pequeno bar do Areeiro, poucos minutos depois das 22h30, que era a hora prevista para o encontro. Perguntei se podia ter uma mesa dentro e disseram-me que só havia espaço na barra do bar, pois o piso de cima estava fechado. Olhei para o local e comprovei que, de facto, não estava ninguém nas mesas de cima. Tal não significava, contudo, que estivesse fechado para uma cimeira de Defesa à Portuguesa. Fui então sentar-me numa mesa da esplanada. A única vazia e algo afastada da entrada principal. Não me parecia o melhor local, mas era o que havia.
Pedi uma bebida para justificar a ocupação da mesa e esperei para ver se aparecia alguma das duas figuras que me tinham sido prometidas. Cogitava sobre o meu papel de jornalista e lembrava-me das várias esperas e fotografias que fiz em anteriores trabalhos. Apesar de ser jornalista da escrita, sei também o valor que uma boa imagem pode ter e mantenho esse instinto de fotógrafo jornalístico.
(Há um bom par de anos, por exemplo, ao serviço do Tal&Qual, fiz uma espera para fotografar o carro oficial de António Guterres – ainda como primeiro-ministro -, a fazer uma manobra, então proibida, de virar à esquerda no cruzamento da Avenida Duque de Ávila com a Avenida da República, sem qualquer indicação de marcha de urgência – como mandam as regras -, dias depois do governante ter dado início à campanha de tolerância zero nas estradas nacionais.
Foto: PÁGINA UM / FDC
Noutro exemplo, em 2016, quando estava de férias em Roma, fotografei duas pessoas que conversavam no telhado de um edifício que me pareceu ser governamental, pois tinha várias bandeiras oficiais. Descobri depois, ao falar com jornalistas locais, que apanhara a presidente da Câmara de Roma, Virginia Raggi, a conversar no telhado da autarquia, com o seu chefe de Gabinete, Salvatore Romeo.
A foto foi publicada na primeira página de vários jornais italianos. A imagem levantava a questão de que a autarca suspeitava que havia escutas no seu gabinete e, por isso, preferia tratar dos assuntos importantes no telhado da câmara municipal. Tudo poderia ter corrido bem para eles até eu tirar a foto por ter achado o momento algo insólito. E poético, até).
Já se tinham passado quase 15 minutos e não havia sinal de Nuno Melo ou Gouveia e Melo. Senti que estava numa caça aos gambuzinos. No momento em que estava a pensar desistir da espera – estava disposto aguardar mais 15 minutos, até às 23h00 – vejo um táxi a chegar ao bar.
Ao início, não deu para ver quem vinha dentro, mas a lógica dedutiva (leiam Arthur Conan Doyle) pensou que, se alguém se dera ao trabalho de apanhar um táxi para ir a um bar numa noite de terça-feira, é porque essa pessoa estava empenhada em ali chegar. Agora, poderia ser um morador local que chegava a casa? Seria lógico o ministro vir de táxi? O almirante? Faria sentido algum deles vir de táxi? O mais certo seria ser um simples morador a chegar a casa.
Foto: PÁGINA UM / FDC
De qualquer modo, o tal instinto jornalístico fez com que jogasse nas hipóteses e apontei discretamente o meu telemóvel para o local onde estava o táxi. Não conseguia ver quem estava no lugar de passageiro, pois a linha de visão passava por uma viatura estacionada ao seu lado. Ainda estive 30 segundos com a câmara ligada, sem nada de importante a acontecer, até que vejo uma cabecinha a sair do táxi. Era o almirante! A “coisa” ia mesmo acontecer. A informação era boa.
O almirante Gouveia e Melo, assim que saiu do táxi – à civil – e caminhou para o bar, vindo na minha direção, não o fez a olhar para a esplanada onde eu estava. A sua atenção centrava-se na rua atrás de mim. Mal sabia eu – que continuava a segurar o telemóvel num ângulo casual ao mesmo tempo que tentava manter fixo o enquadramento e foco – que Nuno Melo estava também a chegar em viatura oficial.
Gouveia e Melo ficou parado à minha frente e a olhar para trás de mim. Arrumou os óculos – no vídeo, parece que os seus olhos encontram os da minha câmara.
(Pergunto-lhe, caro almirante: Viu-me mesmo a filmar e resolveu disfarçar ou isso escapou-lhe de todo?)
Entra Nuno Melo em campo. De costas. Dá para reconhecer que é ele, mas a foto precisa de o identificar, sem margens para dúvidas. Ouço Gouveia e Melo a comentar que até pareciam que estavam ambos sincronizados.
Mantenho a câmara fixa e espero que Nuno Melo não se lembre de olhar para trás de si. Ter-me-ia reconhecido (fui candidato do PPM ao Parlamento Europeu em 2009, quando ele e Paulo Rangel, os dois da AD que não foi feita na altura, eram os candidatos dos CDS e PSD. Cobri ainda a comissão de Camarate que Nuno Melo presidiu. A propósito, Nuno, vais pedir os documentos norte-americanos que ainda estão por divulgar ou preferes levar-nos para a III Guerra Mundial?
Gouveia e Melo, segundo à esquerda. Foto: D.R.
Acompanho com o telemóvel, discretamente, a entrada de ambos no bar. Num último momento, o ministro fica de lado e é possível identificar ambos. Nuno Melo leva o almirante pelo braço e aponta, ainda à entrada do bar, para o piso de cima. Percebo então que terá sido ele o responsável pela escolha do local. Está a explicar ao almirante onde se vão sentar.
(Marcar um encontro com um almirante para a Avenida Sacadura Cabral tem o seu quê de interessante: apesar da associação imediata à Aviação, é preciso lembrar que se tratava de um oficial da Marinha e o raid aéreo de 1922 nunca teria sido possível sem o apoio daquele ramo das Forças Armadas. E se juntarmos a isso o facto de ter sido um antepassado de um antigo líder do CDS e também putativo candidato a candidato a Presidente da República, tudo isso aumenta as possíveis especulações em relação à escolha do local para uma cimeira deste nível).
A esplanada está cheia, mas mais ninguém se parece preocupar. Não vejo ninguém a ligar para jornais ou a fotografar. Parece que fui mesmo único a registar o encontro. E sei que isso vai causar furor. Sem o trabalho jornalístico, sem as imagens que o comprovassem, qualquer informação que viesse a público referindo que ambos tiveram um encontro nocturno num bar, seria apenas um rumor. Nunca uma notícia.
Assim que reuni as imagens do vídeo de 20 segundos, pensei: “O que farei com esta espada?”. Liguei então para o Pedro Almeida Vieira, do PÁGINA UM – porquê para ele e não outro jornal? Simples: o PÁGINA UM também é o “meu” jornal e o Pedro é o director de jornal que mais vezes liga para mim do que qualquer outro director do País. Por isso, é dele que me lembro primeiro sempre que tenho uma notícia. A segunda hipótese seria o director do Tal&Qual, mas não o quis incomodar àquela hora tardia, pois a edição da semana já tinha fechado.
Foto: PÁGINA UM / FDC
O Pedro percebeu o valor do material que tinha nas mãos e sabia que não se podia guardar a informação para mais tarde. Era preciso agir na hora. Começou a preparar o texto, que foi publicado ainda o encontro não tinha terminado. Pedi para não assinar as fotos. Ainda. Não queria matar o mensageiro antes da mensagem circular.
Saí da esplanada antes de Nuno Melo e Gouveia e Melo terminarem o encontro. Poderia ter esperado por eles e confrontá-los à saída? Claro que sim, mas como não gosto que me mintam, resolvi deixá-los nas suas conspirações nocturnas.
Já tinha feito o meu trabalho. Agora, outros que fizessem o seu.
Frederico Duarte Carvalho, jornalista (CP 1581)
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