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  • Os bisnetos de Norton

    Os bisnetos de Norton

    Foi há perto de 30 anos que o escritor Orlando da Costa lançou o romance Os netos de Norton. Seria apresentado como “um fresco histórico de uma geração que nasce para a política em 1949”, altura da candidatura presidencial do general Norton de Matos. Pretexto para aprender com um escritor que foi o pai do actual primeiro-ministro e do director-geral de Informação do Grupo Impresa. Ouça também esta crónica no P1 PODCAST.


    O Jornal de Letras de 8 de Março de 1994 anunciava, com destaque de primeira página, o regresso de Orlando da Costa ao romance, após 30 anos desde o seu último livro do género. O lançamento da obra estava marcado para as 19 horas do dia 10, na Livraria Barata, à Avenida de Roma. Teria como título Os netos de Norton e o autor explicava que era algo que trazia na cabeça há muitos anos, sobretudo desde que fizera uma viagem à Índia das suas raízes familiares em Dezembro de 1974, ano da revolução de Lisboa.

    Descrito como “um fresco histórico de uma geração que nasce para a política em 1949”, percebe-se que o Norton do título é o general Norton de Matos, o homem que enfrentou o regime de Salazar em 1949, quando foi candidato a Presidente da República.

    Intrigado com a descrição e conteúdo da obra, decidi, 30 anos depois, procurar este livro. E ainda bem que o fiz, pois acabei por descobrir que até estava dedicado aos dois filhos do autor: António Costa e Ricardo Costa – sim, o actual primeiro-ministro e o irmão, director-geral de Informação do Grupo Impresa (que incluiu, entre outros órgãos de Comunicação Social, a televisão SIC e o semanário Expresso).

    O romance conta a história de quatro amigos durante os anos 60 do Estado Novo, até à revolução de 1974. Temos o ambiente da Lisboa dos estudantes, dos seus amores, dos artistas. O pai de António e Ricardo tinha 20 anos em 1949. Os netos de Norton seriam aqueles que estariam na casa dos 20 anos na etapa final do Estado Novo. À medida que avancei na leitura, não encontrei em “Os Netos de Norton” algo que se possa dizer como sendo particularmente revelador dos agora bisnetos de Norton, ou seja, os filhos de Orlando da Costa.

    É uma ficção assumida, mas tem lá a verdade da geração do pai. Não dei o meu tempo por perdido, pois diverti-me a destacar ensinamentos em algumas passagens da obra publicada em 1994 – isto é, um ano depois do actual primeiro-ministro ter ficado famoso por ter organizado a corrida entre um burro e um Ferrari durante a sua candidatura falhada à Câmara de Loures.

    Apreciei, de sobremaneira, que Orlando da Costa tenha feito referência a um dos mais cruéis filmes neo-realistas italianos que vi. Espero que o actual primeiro-ministro e o seu irmão jornalista também tenham aprendido com pai o valor dessa obra. Estou a falar do filme de 1952 de Vittorio de Sica, “Umberto D.”, que retrata de forma crua o fim de vida de um velho viúvo, que tem apenas por companhia um cão.

    Sorri, depois, ao ler sobre aquele “burguês envergonhado e infeliz, um cosmopolita que não consegue passar o dia sem ouvir as notícias da BBC e sem ler os jornais – quanto mais estrangeiro melhor”, mais as manhas de como sacar dinheiro aos pais a trabalharem em territórios ultramarinos. Havia um que tinha um conluio com um alfaiate e, assim, “fazia dois ou três fatos por ano e cobrava contas de seis ou mais”.

    Esta era a geração onde as letras da sigla KGB não serviam para designar a polícia secreta da extinta União Soviética, mas sim os apelidos dos escritores americanos Jack Kerouac, Allen Ginsberg e William Burroughs. Agora, a frase que acabei por reter da leitura desta obra e que, a partir de agora, também a irei dedicar aos bisnetos de Norton, António e Ricardo, é esta que o pai deles escreveu várias vezes no livro: “Hoje estamos bêbados, amanhã seremos uma força moral”.

    Não quero ainda deixar de apresentar uma frase dita por um personagem que é agente da PIDE – e que, na realidade, é ele quem acaba por crismar os quatro personagens com o nome que dá o título à obra: “São estimados pelas famílias da metrópole que os acolhem. Têm-se por elites e à custa das mesadas que recebem fazem-se intelectuais da farra e tornam-se sem o saberem agentes do bolchevismo e da rebelião da negritude, como lhe chamam. Mulatos ou brancos, não falam nenhuma língua nativa, mas acamaradam, ao bilhar, com os pretos nos cafés do Conde Redondo. Odeio-os!”

    Finalmente, também não me escapou um diálogo da obra onde um dos personagens diz que “o Tejo não está aí para consolar apenas os derrotados das colónias, os emigrantes e os que hão-de retornar um dia… Está aí para nós também, nós os próximos instalados, os humilhados de ontem, os amargurados de amanhã. Está aí a chegar a hora da nossa geração”. E pergunta depois o outro: “Instalados? Que queres tu dizer com isso?” Como resposta, ouve: “Deixa lá, rapaz, não é nada. Qualquer dia explico-te, ou melhor, qualquer dia tu vais perceber. Todos, um dia, percebemos”. E, digo eu agora: já percebemos.

    Obrigado, Orlando da Costa, por esta lição sobre uma geração. Aprendi muito contigo ao ler este Os netos de Norton. Não sei se o António ou o Ricardo também aprenderam alguma coisa, mas mantenho a esperança de que ainda vão a tempo.

    Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Alexandre, o grande de Camarate

    Alexandre, o grande de Camarate

    Lutou pela verdade de Camarate durante décadas. Faleceu sem ter conhecido todos os factos, mas foi a sua determinação que não deixou cair no esquecimento as circunstâncias da morte do primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro em 1980. Uma homenagem a Alexandre Patrício Gouveia. Ouça também esta crónica no P1 PODCAST.


    Chamava-se Alexandre, como o grande da antiguidade, e era irmão de António. Estou a falar de Alexandre Patrício Gouveia, irmão de António Patrício Gouveia, o chefe de gabinete do primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro, que também foi uma das vítimas da queda do avião de Camarate.

    Alexandre faleceu a 12 deste mês e não posso deixar de lhe prestar uma homenagem, pois não li ainda um texto jornalístico que lhe faça a devida justiça. Conheci-o pessoalmente e sei o esforço que ele fez para descobrir a verdade de Camarate. Aliás, posso ainda acrescentar que me sinto responsável por muito daquilo que ele ficou a conhecer.

    Alexandre Patrício Gouveia

    Lembro-me de ele ter sido o rosto das notícias das várias comissões de inquérito parlamentar, representando as famílias das vítimas. Sobretudo no ano de 1995, quando via pela televisão a luta que Alexandre fazia junto da justiça para não deixar o caso prescrever nos tribunais. Era a altura da frase “a verdade não prescreve”.

    Cinco anos mais tarde, em 2000, já como jornalista do “Tal&Qual”, publiquei um primeiro artigo que mencionava a provável relação entre Camarate e um negócio de tráfico de armas para o Irão, durante a chamada crise dos reféns norte-americanos de Teerão. Essa relação consta do livro “O Crime de Camarate”, do advogado dos familiares das vítimas, Ricardo Sá Fernandes.

    Mais tarde, em 2002, devido à minha investigação, esteve na Assembleia da República um norte-americano, Oswald Le Winter, que testemunhou ter participado em reuniões secretas, em Paris, antes de Camarate, onde se teria combinado o tráfico de armas entre os EUA e o Irão.

    Sá Carneiro e o seu chefe de gabinete António Patrício Gouveia. Ambos morreram no atentado de Camarate em 5 de Dezembro de 1980.

    Durante essa altura, pouco falei com Alexandre. Ele parecia mais interessado nas questões técnicas, em explicar como nenhuma das teses de acidente conseguia demonstrar, de forma plausível, a queda do avião. A sua luta era no sentido de provar que houvera mesmo uma bomba a bordo. Os meus contactos eram sobretudo com Augusto Cid e Ricardo Sá Fernandes.

    Foi só em 2006, quando, então já como editor de Política da revista “Focus” e juntamente com o chefe de redacção, João Vasco Almeida, fiz uma entrevista a José Esteves, antigo segurança de Freitas do Amaral e o homem que muitos apontavam como o autor da bomba de Camarate. Quando a entrevista saiu, recebi um telefonema de Alexandre. Ele agora estava interessado em ir mais longe e queria saber mais sobre o provável móbil do atentado, o suposto negócio de tráfico de armas para o Irão.

    Encontrei-me com ele na sua casa da Rua do Jasmim, ao Príncipe Real. Tivemos depois vários encontros no seu gabinete do El Corte Inglés. A minha investigação continuava e, em Novembro de 2012, quando lancei o meu livro “Camarate – Sá Carneiro e as Armas para o Irão”, apresentei-lhe Jim Hunt, sobrinho e biógrafo de Frank Sturgis, um dos assaltantes do edifício Watergate e que era apontado como um dos alegados operacionais do atentado que causara a morte do seu irmão.

    O seu interesse nesta pista norte-americana crescia e isso ainda levou a que, graças a si, o Parlamento português ouvisse Jim Hunt e um investigador norte-americano, A. J. Weberman que, finalmente, levaram os deputados portugueses a pedirem, oficialmente, informações à CIA. Isso foi em 2015.

    Esse pedido nunca recebeu qualquer resposta da parte daqueles serviços. Nem sequer para desmentir o alegado envolvimento de norte-americanos na morte do primeiro-ministro de Portugal.

    Devido à ausência de resposta, Alexandre meteu mãos à obra e, coligindo de forma detalhada a informação que guardara ao longo dos últimos anos da investigação, lançou em 2020 a obra Os mandantes do atentado de Camarate: o envolvimento americano.

    Em Agosto do ano passado ofereceu-me a segunda edição. Falámos do que ainda tínhamos para fazer para descobrir a verdade. Seria um “até breve” e não suspeitava que estivesse doente. Só me lembro dele a sorrir quando nos despedimos no seu gabinete junto ao Parque Eduardo VII.

    Alexandre foi grande, enorme, na luta pela memória e pela verdade daquilo que levou à morte do seu irmão. Pelo caminho, foi processado por um primo, Francisco Pinto Balsemão, mas ganhou essa luta.

    Quanto à luta de Camarate, acho que ele ainda continua a trabalhar nela lá, na eternidade, onde descansa agora e, quem sabe, nos dará um dia uma revelação.

    Eu acredito que sim, Alexandre.

    Obrigado por teres sido grande.

    Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Facebook: a rede (de condicionamento) social que é uma máquina de descredibilização do jornalismo independente

    Facebook: a rede (de condicionamento) social que é uma máquina de descredibilização do jornalismo independente


    O PÁGINA UM é um órgão de comunicação social regido pela Constituição Portuguesa, e cumpre os preceitos da lei portuguesa, não tendo, até à data, cometido qualquer tipo de de irregularidade e ilegalidade.

    Ao invés, o PÁGINA UM tem sido, largamente, o órgão de comunicação social português que mais tem recorrido para acesso a informação escondida por entidades públicas, incluindo Governo, sendo prova disso os diversos pareceres favoráveis da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) e as intimações no Tribunal Administrativo. Lembremo-nos, a propósito, que o PÁGINA UM até já venceu um destes processos contra o Conselho Superior da Magistratura (que entretanto recorreu).

    Facebook wall decor
    Tecnológicas como a Meta (Facebook) aplicam ferramentas de censura sob o disfarce de bloquear desinformação.

    Tenho, como director do PÁGINA UM, seguido escrupulosamente as regras éticas e deontológicas da profissão, mas sem divergir da linha de independência e de denúncia, mesmo quando envolve outros órgãos de comunicação social ou as entidades que regulam os media (ERC e CCPJ). Não me surpreende assim que haja ataques dessas entidades e nenhuma solidariedade por parte dos media face aos ataques a que estamos sujeitos. Se os criticamos, não podemos depois lamentar a falta de apoio.

    Na última semana tem-se intensificado a censura do Facebook, onde se mostra evidente que já não é apenas exercido por um “cego” algoritmo. A divulgação de duas notícias verídicas, confirmadas e confirmáveis, foram banidas pelo Facebook sem sequer dar uma hipótese de se recorrer nem fazer qualquer exposição.

    Uma das notícias banidas é sobre o processo de intimação do PÁGINA UM no Tribunal Administrativo de Lisboa contra o Infarmed. O nosso “crime”, para o Facebook, será estar a lutar nos tribunais pelo acesso a informação sobre reacções adversas das vacinas contra a covid-19 e do antiviral remdesivir. Para o Facebook, a notícia do PÁGINA UM constitui “desinformação com potencial para causar danos físicos“.

    Para o Facebook, um jornal português lutar no Tribunal Administrativo de Lisboa pelo acesso ao Portal RAM que contém informações anonimizadas sobre reacções adversas das vacinas contra a covid-19 e do antiviral remdesivir constitui um acto de “desinformação com potencial para causar danos físicos“, ameaçando com restrições e desactivação da conta.

    A outra publicação do PÁGINA UM banida pelo Facebook foi o podcast da jornalista Elisabete Tavares sobre as declarações do ministro alemão da Saúde, Karl Lauterbach, na passada semana. Os efeitos adversos das vacinas têm sido um tema de crescente interesse na Alemanha, como se pode verificar na cobertura do tema pela ZDF.

    Entretanto, há cada vez mais leitores que divulgam as nossas notícias e que têm recebido castigos do Facebook por causa disso.

    Sei qual o objectivo: criar um selo de desqualificação do PÁGINA UM, considerar o PÁGINA UM de site de desinformação.

    Comentários a declarações de ministros? O Facebook censura.

    Não permitirei isso. Bem sei que esta rede social tem um impacte importante na nossa comunicação – o PÁGINA UM tem quase 20 mil seguidores no Facebook –, mas começa a ser demasiado penalizador mantermo-nos numa rede social que, a cada dia, trata mais de descredibilizar um órgão de comunicação social inteiramente independente do que ajudar na divulgação.

    O PÁGINA UM, tendo em conta os seus poucos recursos, não se pode dar ao luxo de esgotar tempo e dinheiro a lutar contra uma rede social que nem sequer tem rosto – não há ninguém sequer a quem se possa expor o que seja.

    Por esse motivo, vamos no final do dia de hoje desactivar (veremos se definitivamente) o mural do PÁGINA UM no Facebook.

    O jornal continua, obviamente, a sua missão (aliás, estamos numa forte remodelação do design do site, que deverá estar concluída nos próximos dias), pelo que vos convidamos a visitar-nos quotidianamente. Não precisamos do Facebook. Não permitiremos que o Facebook nem outra qualquer empresa sem rosto nem controlo defina o que é verdade, o que é informação. Aliás, convém sempre lembrar-nos que o Facebook é o principal financiador dos conhecidos fact-checkers de origem e rigor muito duvidosos.

    Reforçaremos a comunicação através da newsletter (podem subscrever no site) e nas outras redes sociais, nomeadamente no Twitter, no Telegram e no LinkedIn.

    Fazemos votos e lutaremos para que a Censura não vença. Damos um passo atrás para, desviando-nos de quem é a favor da obscuridão, avançarmos (e contribuirmos) para um mundo mais transparente.

  • Perguntei à minha bola de cristal

    Perguntei à minha bola de cristal

    A NATO anda à procura do sucessor do actual Secretário-Geral, que deverá sair do cargo em Outubro. Quem poderá ocupar o seu lugar? Será que há um português a ser preparado para o cargo? Ouça também esta crónica no P1 PODCAST.


    Há coisas que preferia nem saber. Mas, como jornalista, vou recebendo informações de um lado e do outro. Podem ser simples confidências de amigos e fontes, misturadas com acontecimentos públicos aos quais se somam as habituais conversas que escuto nos transportes públicos ou nos balcões de café. Esqueçam as redes sociais, pois aí já aprendi que não se aprende nada.

    As redes sociais ou são para desabafos pessoais, insultos e queixas egocêntricas ou simples desinformação. Não foi há dias que disseram que o primeiro-ministro tem 15 pessoas numa central de comunicação para espalhar “boa informação” pelas redes sociais? Sei que 15 é um número pequeno para um país de 10 milhões – onde metade, cerca de cinco milhões, votou nas últimas eleições –, mas são eles que, ao responderem aos ataques contra o governo, fornecem depois argumentos de defesa aos chamados influencers, mais ainda a conhecidas figuras mediáticas com um poder de formar opinião com alcance público de milhares de seguidores.

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    No milagre da multiplicação de funcionários, sem necessidade de lhes pagar salários, a partir dos 15, constrói-se opinião de modo a garantir a vitória em próximas eleições – dos 10 milhões, 820 mil e 337 eleitores inscritos nas eleições de há um ano, o PS “só” precisou do voto de 2 milhões, 301 mil e 887 eleitores para ter a maioria absoluta. Há, portanto, 8 milhões, 518 mil e 450 portugueses com capacidade de voto que não se importariam de ver António Costa pelas costas.

    E Costa sabe disso. Como qualquer ser humano, com filhos criados, já sem nada para provar, com um bom apartamento montado e, a nível interno, o cargo maior que ainda poderá ambicionar alcançar é o de Presidente da República, só lhe restam então duas alternativas: ou tenta ir para Belém, ou consegue um cargo internacional, de preferência, em Bruxelas. Será pouco provável que venha a ser Secretário-Geral das Nações Unidas, pois o seu camarada socialista, António Guterres, já esgotou a quota de nacionalidade portuguesa para os próximos 100 anos.

    Perguntei então à minha bola de cristal, face a todos os tiros no pé deste Governo que, como disse o Presidente Marcelo à RTP, teve há um ano uma “maioria requentada” – que, para o meu gosto, até é boa nas tripas à moda do Porto –, o que poderá fazer António Costa? Será que vai manter-se em funções por mais três anos? É que, à minha volta, ouço muitas vozes que dizem que esta legislatura não vai ser para chegar até ao fim. Que será a primeira vez que um Governo com maioria absoluta poderá cair.

    António Costa, primeiro-ministro.

    Quem me conhece, sabe que não tenho bola de cristal.

    Isto da pergunta era uma espécie de metáfora. No entanto, tenho estado atento a vários factos que vão ter desenvolvimentos no futuro e que nos poderão ajudar a encontrar algumas respostas. Por exemplo, há um emprego importante que vai ter uma vaga em breve em Bruxelas: Secretário-Geral da NATO.

    Sim, o actual líder da organização do tratado militar do Atlântico Norte, Jens Stoltenberg – antigo primeiro-ministro norueguês –, já anunciou que pretende deixar o cargo em Outubro deste ano. E não faltam candidatos ao posto, vindos de todo os lados, pelo que a hipótese de António Costa poder trocar São Bento pela cadeira da NATO é até bastante remota.

    Só que a hipótese existe. Tal como uma outra hipótese, ainda mais rebuscada, admito, que é a do lugar acabar por ser entregue à actual presidente da Comissão Europeia, a senhora Ursula van der Leyen, que teria o condão de agradar àqueles que gostariam de ver o cargo a ser ocupado por uma mulher e que, aponte-se, já com experiência a lidar com militares, pois era ministra da Defesa da Alemanha quando foi substituir Durão Barroso em Bruxelas.

    Será que a saída antes do termo do seu mandato iria ser possível? E seria possível um primeiro-ministro português, chamado de emergência a Bruxelas, voltar a ser o líder da Europa?

    São meras especulações, aviso. Mas digo-vos que nunca as estaria a fazer aqui, em aberto, se não tivesse já falado sobre o assunto com mais gente e se não soubesse que, em Maio, vai haver uma reunião em Lisboa, num hotel na Ajuda, para falar destas e outras coisas.

    O resultado até poderá ser bastante diferente dos cenários para aqui avançados, mas que vão andar a falar sobre isso entre eles, isso vão. Basta estar atento depois ao que vai acontecer no mundo e não seremos apanhados de surpresa. E não preciso de nenhuma bola de cristal para saber isso.

    Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Sou arguido numa queixa da Ordem dos Médicos e dos doutores Miguel Guimarães, Filipe Froes e Luís Varandas: a minha absolvição será a condenação deles

    Sou arguido numa queixa da Ordem dos Médicos e dos doutores Miguel Guimarães, Filipe Froes e Luís Varandas: a minha absolvição será a condenação deles


    O senhor Miguel Guimarães, o senhor Filipe Froes e o senhor Luís Varandas, não satisfeitos com as negociatas alimentadas pelo pânico que foram fomentando desde 2020 na gestão da pandemia – e com as quais beneficiaram publica e monetariamente – apresentaram uma queixa-crime contra mim. Sou, desde hoje, formalmente arguido do processo 1076/22.5T9LSB, com o competente termo de identidade e residência.

    Não é propriamente novidade. Já em 17 de Agosto do ano passado, eu revelara que os ditos clínicos – usando (e abusando) do estatuto e dos dinheiros da Ordem dos Médicos, porque recorreram e vão continuar a recorrer aos advogados desta associação profissional de direito público – tinham interposto esta queixa-crime e enviaram-na como “elemento de defesa” e como estratégia de diversão no decurso de uma intimação que corria no Tribunal Administrativo de Lisboa para eu aceder aos documentos operacionais e contabilísticos da campanha Todos por Quem Cuida. Queriam, com este truque, influenciar a decisão da juíza de um processo administrativo. Esta sentença foi-lhes desfavorável, como se sabe, mas os ditos médicos não desistiram da queixa-crime.

    Miguel Guimarães (terceiro a contar da esquerda) e Filipe Froes (quarto) na sede do Ordem dos Médicos, em Julho de 2021, aquando da apresentação do plano de acompanhamento da pandemia com o presidente do Instituto Superior Técnico, Rogério Colaço, e o investigador Henrique Oliveira, autores de relatórios auto-intitulados como “esboço embrionário, que consubstancia uma mera análise para um eventual relatório).

    O fito (único) desta queixa-crime, eu sei qual é.

    O Doutor Filipe Froes quer ver-se livre do jornalista que foi responsável por denunciar as suas relações promíscuas com as farmacêuticas, e que provocou um processo de averiguações pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS). O Doutor Filipe Froes quer ver-se livre de um jornalista que tem insistentemente pressionado a IGAS para conhecer o desenvolvimento de um processo disciplinar que lhe foi aberto há mais de um ano (em 19 de Fevereiro de 2022), e que assim se mantém aberto por tempo indefinido para supostamente justificar o secretismo das acusações – e assim a culpa cair no esquecimento até morrer solteira [o PÁGINA UM vai intentar novo processo no Tribunal Administrativo para aceder às conclusões do processo de averiguações e ao despacho do inspector-geral da IGAS de 19 de Fevereiro de 2022, por já ter decorrido mais de um ano].

    Quanto ao Doutor Miguel Guimarães – para o qual a História, quando for feita de forma isenta, lhe reservará o cognome de Doutor Torquemada [e pode ele queixar-se disto, que eu também me defenderei, até por ser autor de um romance sobre a Inquisição ibérica] –, bem sei que não me perdoa o ultraje de eu não ser um jornalista que o bajula, e que pelo contrário o questiona. E que quis saber o que estava por detrás de uma campanha supostamente de beneficência, mas que acabou, como o PÁGINA UM revelou já, por ser uma montanha de irregularidades e ilegalidades, as quais, num país decente, lhe daria direito a sentar-se no banco dos réus.

    Recebimentos de Luís Varandas das farmacêuticas em 2021 e 2022. Directamente da Pfizer foram 12.257,15 euros. Fonte: Infarmed.

    Sobre o Doutor Luís Varandas, não tenho muito a acrescentar sobre; apenas mais isto: penitencio-me por não o ter criticado ainda mais, que pouco sempre seria. Um pediatra avençado da Pfizer e que defendeu a vacinação contra a covid-19 em menores de idade (com uma taxa de letalidade de 0,003%), perante os efeitos adversos ainda não totalmente conhecidos, não merece palavras menos que duras.

    Da Ordem dos Médicos não se espere nada diferente nos próximos anos. Se o novo bastonário Carlos Cortes escolheu para seu mandatário uma pessoa com o perfil de Filipe Froes, que vista então esse “pobre hábito” que o fará um “rico monge”.

    Não havendo muito mais a dizer, nesta fase, sobre o processo, apenas duas coisas acrescento. Primeiro, garanti, por escrito, quando esta tarde fui ouvido, que não aceito, em nenhum momento, qualquer género de acordo ou de suspensão de processo. E, por outro lado, opus-me à eventual desistência de queixa dos três médicos e da Ordem dos Médicos. Ou seja, vai haver mesmo julgamento.

    Por mim – espero que também pelos leitores do PÁGINA UM – quero mesmo que este caso, que esta queixa-crime – chegue a um julgamento. Quero vê-los sentados num tribunal, mesmo se eles estejam no sítio errado. Quero que se apure a verdade, porque a minha absolvição será a condenação deles.


    N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos (e judiciais, em geral), incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO.

  • A solidão de Kissinger em Lisboa

    A solidão de Kissinger em Lisboa

    Está previsto que o antigo secretário de Estado norte-americano, Henry Kissinger, venha a Lisboa por ocasião do encontro do Grupo Bilderberg, que terá lugar poucos dias antes de cumprir os 100 anos de vida. Faça-se então uma reflexão para os próximos 100 anos da nossa vida. Ouça também esta crónica no P1 PODCAST.


    Este é o Mundo dele. Henry Kissinger, antigo Secretário de Estado norte-americano – o equivalente a ministro dos Negócios Estrangeiros –, vai cumprir 100 anos de vida no dia 27 de Maio. E está previsto que, uma semana antes, esteja em Lisboa para participar na reunião do Grupo Bilderberg – que deverá ocorrer entre os dias 17 e 20 de Maio.

    Quando digo que este é o mundo dele é apenas porque é impossível dissociar a sua figura dos maiores eventos que moldaram a sociedade nas últimas dez décadas. É claro que não podemos colocar Kissinger no centro do Universo desde 1923, pois só começou a ter influência vários anos depois. Mas o próprio, como produto de uma certa época, acabou por ser o reflexo do muito que acontece nos dias de hoje.

    Henry Kissinger

    Nascido como Heinz Alfred Kissinger, em Furth, na Baviera, os pais fugiram da perseguição aos judeus, em 1938, e Kissinger, depois de se ter tornado cidadão americano em 1943, com 20 anos, serve no Exército norte-americano. Tendo-se valido bem da sua capacidade de falar alemão – uma língua que ainda hoje se nota no seu característico tom de voz metálico – foi na inteligência militar que iniciou a carreira, que, digamos, nunca mais deixou de exercer.

    Formou-se na Universidade de Harvard e cedo deu nas vistas, sobretudo quando, em 1957, publicou o livro Nuclear weapons and foreign policy (Armas nucleares e política estrangeira), uma edição com o apoio do Council on Foreign Relations (CFR), a organização privada que, basicamente, pensa e forma os futuros líderes da América no que diz respeito à política exterior. E, como se sabe, para controlar a política exterior, é preciso primeiro garantir a interior.

    Data também desse ano de 1957 a sua primeira participação numa reunião do Grupo Bilderberg, a organização não eleita que, desde 1954, reúne os principais políticos e empresários da Europa e Estados Unidos em encontros anuais, sem direito a escrutínio público, onde fazem o seu networking.

    Presidente norte-americano Gerald Ford e Henry Kissinger

    Discutem entre si, sem ser necessário tomarem decisões, pois todos eles acham que são os melhores do mundo e sabem melhor do que ninguém o que deve ser bom para todos nós. Os órgãos de Comunicação Social por si controlados, bem como os meios de propaganda das suas democracias, encarregar-se-ão depois de formarem o consenso necessário à aceitação pública das suas ideias pelas grandes massas. Algo há muito estudado.

    O homem que vai chegar a Lisboa no ano do seu centésimo aniversário, trabalhava ainda com os irmãos Rockefeller no tempo do presidente Dwight Eisenhower, aquele que quando deixou a Casa Branca, em 1960, avisou contra o “complexo militar-industrial” que controla a política dos Estados Unidos. Após a morte de Kennedy e os anos de Johnson, eis que Kissinger chega a Washington com o novo presidente, Richard Nixon.

    É então o tempo em que Kissinger impõe ao mundo a posição mais perversa que a política internacional criou e da qual nunca soube como sair: a “Realpolitik”.  Com ela não há ideologias honestas, não há políticas sociais humanas, não há solidariedade internacional verdadeira, não há relações comerciais sustentáveis, não existem trocas de experiências culturais genuínas. Há apenas o poder dos poderosos e o que é prático e imediato para garantir a sua sobrevivência.

    Henry Kissinger e Vladimir Putin em 2005.

    É claro que foi Kissinger que conseguiu estabelecer as boas relações com a China comunista de Mao, mas isso também é parte de um outro termo político, que é a “Détente” – palavra francesa que remonta ao período de paz precária entre a França e a Alemanha, antes da I Guerra Mundial. Chama-se, em bom português, “a paz podre”.

    Não preciso mencionar aqui todas as polémicas internacionais, os apoios a ditadores e golpes de Estado onde o nome de Kissinger parece estar sempre associado. Prefiro, nesta hora de soprar as 100 velinhas, pensar nos efeitos da sua passagem pela Terra e naquilo que ainda podemos salvar para o nosso futuro, quando ele deixar de estar fisicamente presente entre nós.

    Poderemos dizer, olhando para os argumentos belicistas que temos assistido ao longo do último ano, com a guerra na Ucrânia, a uma ausência de equilíbrio entre os poderes das principais potências nucleares. O mundo poderia viver a Paz da Guerra Fria.

    Henry Kissinger cumprimentando Mao Tse Tung em finais de 1975, sob o olhar do Presidente norte-americano Gerald R. Ford e sua filha Susan Ford

    Poderíamos ainda dizer que fazem falta mais homens com a visão pragmática de Henry Kissinger: frios e calculistas. Despidos de empatia na hora de fazer diplomacia. Mas também estou convencido que foi essa mesma política que nos conduziu a nomes que surgiram como falsos salvadores de uma certa comunidade de descontentes e de pólos políticos extremistas, como Donald Trump e Vladimir Putin.

    Não foram 100 anos de solidão, como no romance. São 100 anos da vida de um homem que vai demorar mais de 100 anos a corrigir a sua visão e os efeitos nefastos da mesma. Mas o positivo, se o quisermos tornar possível, é que deveríamos começar já a pensar, finalmente, num novo mundo, sem Kissinger, a partir de Maio. Devemos isso para os próximos 100 anos.     

    Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Luc Montagnier, Edgar Caetano e outros infames jornalistas: a podridão a boiar, à deriva

    Luc Montagnier, Edgar Caetano e outros infames jornalistas: a podridão a boiar, à deriva


    Quem é o Edgar Caetano, pergunta-me o leitor.

    Eu respondo por ele, citando-o: “Encontrei o equilíbrio que sempre procurei entre as letras e os números quando, há 16 anos, me tornei jornalista ligado à Economia e, em especial, aos Mercados Financeiros. Nascido em Águeda e licenciado em Jornalismo pela Universidade de Coimbra, trabalhei quatro anos com a delegação em Lisboa da agência Dow Jones Newswires. Passei, depois, mais quatro anos na secção de Mercados do Jornal de Negócios, onde acompanhei de perto a crise da dívida da zona euro. Estou no Observador desde setembro de 2014 e, além da Economia, da Banca e dos Mercados, interesso-me pelas áreas da Tecnologia e da Inovação – tema de uma newsletter que assinei no Observador entre 2016 e 2019. Obrigado por me ler.”

    Eu leio o que escreve o Edgar Caetano; e li o que Edgar Caetano e muitos outros jornalistas escreveram durante a pandemia, metendo foice em seara alheia, tocando rabecão sem sequer serem sapateiros, e contribuindo assim para uma certa narrativa única, para um afunilar de supostas verdades factuais, dogmáticas e inquestionáveis, pouco importando se, no meio disto, ostracizavam, silenciavam e difamavam.

    Luc Montagnier (1932-2022)

    O Edgar Caetano surge aqui como exemplo; mas há muitos mais, que poderiam ser citados – e que, às tantas, terei um dia de os elencar, a todos, porque mostra-se fundamental ser conhecida e discutida uma lista de nomes. A podridão tem de ser libertada para que novos ares pairem sobre a nobre função do Jornalismo.

    Mas centremo-nos, por agora, no Edgar Caetano, que hoje, no Observador – tal como muitos outros media mainstream – fez eco da “convicção de Christopher Wray, diretor do norte-americano FBI, que acredita que poderá ter havido um ‘incidente’ num laboratório e que o regime chinês ‘tem feito o seu melhor para ofuscar’ os esforços para identificar a origem do vírus”.

    E o ‘nosso’ Edgar Caetano acrescenta ainda que o The Wall Street Journal avançou este fim-de-semana a existência de “um estudo classificado, referente a 2021, do Departamento de Energia dos Estados Unidos, e que foi fornecido à Casa Branca por legisladores americanos”, que também aponta para a criação em laboratório do SARS-CoV-2.

    Aquilo que Edgar Caetano, e tantos outros (supostos) jornalistas se esqueceram foi de, à laia de post scriptum (vulgo, P.S.), fazer um mea culpa – de culpa inteira – sobre o seu papel na campanha de desinformação e de difamação que alimentou o público durante os últimos três anos.

    Foram eles – e com redobradas responsabilidades, atendíveis as suas funções de jornalistas – mais perniciosos na criação de fake news e de manipulação do que os teóricos das conspirações estapafúrdias (que também os há) atrelados (sempre, claro) à extrema-direita (que também os há, e cada vez mais, como falência democrática).

    Mas vejamos o caso concreto do ‘nosso’ Edgar Caetano – e a razão, vista está, da minha fúria.

    Em 19 de Abril de 2020 – está agora a fazer quase três anos –, o mesmíssimo Edgar Caetano escrevinhou uma “peça” – chamemos-lhe assim como sinónimo de asco – de pura difamação sobre um notável virologista, recentemente desaparecido, Luc Montagnier – e que, mesmo agora morto, perceberá mais de Ciência do que este ‘nosso’ Edgar Caetano com uma overdose de Memofante.

    Reza assim essa infame “peça” de Edgar Caetano: “A teoria circula há vários meses e já foi desmentida por vários cientistas. Mas um controverso virologista francês laureado com o prémio Nobel pela pesquisa sobre o HIV, Luc Montagnier, acredita que o vírus saiu de laboratório em Wuhan e defende que a explicação mais consensual – uma transmissão com origem num ‘mercado vivo’ da cidade chinesa – é uma ‘história da carochinha’. A declaração está a causar polémica, com outros investigadores a descredibilizar Montagnier, considerando que o investigador premiado tem estado ‘em decadência acelerada nos últimos anos’.”

    Notícia de Edgar Cardoso usou tweet de obscuro estudante de doutoramento, Juan Carlos Gabaldon, como prova de uma suposta decadência física e mental de Luc Montagnier.

    Para “confirmar” a tal “decadência acelerada nos últimos anos” de Luc Montagnier, Edgar Caetano não encontrou melhor ‘prova’ do que um tweet de um estudante de doutoramento de doença das Chagas, um tal Juan Carlos Gabaldón.

    E para confirmar o suposto desmentido de “vários cientistas”, Edgar Caetano remeteu simplesmente para um artigo da Nature de 17 de Março de 2020, cujo autor principal é o dinamarquês Kristian G. Andersen, de um instituto de investigação (não-universitário) norte-americano, que a partir daquele singelo artigo coleccionou financiamentos federais, a começar pelo de 8,9 milhões de dólares do National Institute of Allergy and Infectious Diseases (NIAID), então liderado por Anthony Fauci.

    Em Outubro do ano passado foram mais 2,5 milhões de dólares do Centers for Disease Control & Prevention (CDC) para desenvolvimento de software para rastrear a evolução e disseminação geográfica das variantes do SARS-CoV-2. Para Andersen, o SARS-CoV-2 tornou-se um maná.

    Note-se que, através de e-mails “vazados”, e verídicos, soube-se, entretanto, e o próprio The New York Times destacou, que Kristian G. Andersen até suspeitara inicialmente da origem manipulada do SARS-CoV-2. Tal como Luc Montagnier.

    Na mesma linha, e usando exactamente o mesmo tweet do obscuro estudante de doutoramento para sustentar o descrédito de Montagnier, seguiu a jornalista Teresa Campos, da revista Visão, em 20 de Abril de 2020. Descredibilize-se o mensageiro para descredibilizar a mensagem – eis a receita infalível dos cretinos.

    [Sou apologista de descredibilizar a mensagem para descredibilizar o mensageiro; este editorial tem essa função]

    man sitting on chair holding newspaper on fire

    Enfim, foi assim, com os Edgares Caetanos de certa vida airada do jornalismo, que se criou rapidamente uma Narrativa. Tudo inquestionável. Tudo facilmente descartável se fosse diferente. Tudo menorizado, se fosse controverso. Tudo tachado de “falso”, se soasse a crítica.  Tudo feito, alegre e diligentemente, por acríticos escribas, a maioria sem qualquer formação científica, sem qualquer capacidade crítica, sem quaisquer princípios deontológicos.

    Isolar, misturar e conspurcar – foi esta a estratégia. Isolar da comunidade científica quem fugisse da narrativa. Misturar essa pessoa com as mais estapafúrdias teorias (que as há) para a tornar menos racional. Conspurcar a sua credibilidade, bastando escribas de serviço para lhes colocar epítetos, deficiências e outras demais maleitas, servindo tudo para escarmento dos demais.

    [Vejam no dicionário o significado de escarmento, se não souberem, porque era termo muito usado pela Inquisição – onde muitos jornalistas desta geração se sentiriam bem como esbirros –, de sorte que uma punição não servisse apenas para o castigado.]

    Em três páginas apenas, acompanhadas por um gráfico, o artigo de Kristian Andersen “oficializou” a origem natural como causa do surgimento do SARS-CoV-2, refutando todas as hipóteses, que a imprensa mainstream tratou de descredibilizar. O artigo tem, neste momento, 5.599 citações científicas. E agora?

    Aliás, quando Luc Montagnier questionou a origem do SARS-CoV-2, lestos foram os fact-checkers (em Portugal e por esse mundo fora) a analisarem afirmações – nunca confirmadas – de um outro Prémio Nobel, Tasuku Honjo – para sobretudo denegrirem o virologista francês e garantir a irrefutável certeza da origem natural do vírus atribuída pelo agora afortunado (no sentido monetário) investigador dinamarquês.

    O Polígrafo, por exemplo, foi em Portugal um dos ponta-de-lança mais activos nesta campanha, “desenterrando” muitas vezes, teorias da conspiração – quanto mais estapafúrdias melhor – para negar a possibilidade de debates sérios. Veja-se o caso de um fact-checking de Gustavo Sampaio de 20 de Março de 2020, onde a pretexto de uma hipotética e absurda tese (vinda de um simples post de origem não identificada das redes sociais) de alguém ter criado um vírus para matar 1% da população (como se houvesse essa possibilidade de “programação”), se insiste na irrefutável origem natural do novo coronavírus.

    [Já agora, o “artigo” de Gustavo Sampaio teve o ”Alto Patrocínio” da Direcção-Geral da Saúde e do Facebook, o que convém sempre destacar. E também convém relembrar que o Polígrafo participou num projecto de suposto jornalismo colaborativo denominado CoronaVirusFacts Alliance, uma união de fact-checking para “verificar” (aspas minhas) a veracidade das informações colocadas a circular online]

    grey and black metal tool

    Também sobre o tema da origem laboratorial do SARS-CoV-2, o Observador até fez, na altura, dois fact checkings, em 9 de Fevereiro e em 18 de Março de 2020, sempre pela jornalista Marta Leite Ferreira – mais uma ponta-de-lança do jornalismo português para a criação da dogmática narrativa oficial da pandemia – que, agora, a devia fazer corar de vergonha, se a vergonha fosse atributo que ela reconhecesse.

    A forma como a diligente imprensa mainstream, através de jornalistas sem coluna vertebral e sem princípios deontológicos, tratou supostos “dissidentes” da narrativa pandémica – na origem do vírus, na eficácia das máscaras, nos certificados digitais como estratégia de controlo da transmissão, na necessidade de vacinação de menores e jovens saudáveis, na “justeza” da discriminação de não-vacinados, na recusa de debater efeitos secundários das vacinas, etc. – ficará como uma Página Negra (que digo!, uma enciclopédia inteira) do Jornalismo.

    Veja-se ainda, por exemplo, o que, a páginas tantas, a jornalista Clara Barata, do Público, escreveu recentemente, em 12 de Janeiro, à laia de obituário de Luc Montagnier, com uma passagem completamente infame:

    black and gray microphone on black stand

    “E continuou [Luc Montagnier] a avançar com as suas ideias controversas. Por exemplo, em 2020, afirmou numa entrevista a um site e depois na televisão CNews (uma espécie de Fox News francesa) que o vírus SARS-CoV-2, que causa a covid-19, teria sido fabricado em laboratório a partir do vírus VIH-sida. ‘Não é natural, é um trabalho de profissional, de biólogo molecular, de modificar as sequências [genéticas]. Com que objectivo? Não sei (…) Uma das minhas hipóteses é que queriam fazer uma vacina contra a sida’, disse na televisão.

    A tese de Luc Montagnier – que não convence a comunidade científica – era muito parecida com a de um estudo indiano publicado online, sem ter sido submetido a avaliação pelos pares, e muito contestado pelos especialistas, relata o Le Monde. O artigo evocava ‘uma semelhança estranha’, ‘que tem poucas hipóteses de ser fortuita’ nas sequências de aminoácidos de uma proteína do SARS-CoV-2 e outra do VIH-sida.

    Apesar de desacreditado pelos cientistas, este artigo fez sucesso entre os aficionados das teorias da conspiração, e correu muito pelos sites sensacionalistas, antes de ser retirado pelos próprios autores. Aquelas sequências de aminoácidos eram afinal banais, e podem ser encontradas em inúmeras proteínas.”

    Em 13 de Março de 2020, numa famosa homília que deveria envergonhar um jornalista, Rodrigo Guedes de Carvalho disse: “Aos vossos avós foi-lhes pedido para irem à guerra. A vocês pedem-vos para ficar no sofá. Tenham noção“.

    Aquilo que Clara Barata merecia agora, se fosse cientificamente possível, era uma visita fantasmagórica de Luc Montagnier para levar com uns calduços.

    Enfim, depois disto, espero que Edgar Caetano, Gonçalo Sampaio, Marta Leite Ferreira, Clara Barata e tantos outros aqui não citados (mesmo merecendo), “tenham noção”, como disse, num também infame contexto, Rodrigo Guedes de Carvalho. Aliás, este, por tudo aquilo que fez e disse, nem perdão merece. Apenas asco.

  • O mito que tudo omite

    O mito que tudo omite

    Como referência à morte do antigo ministro das Finanças, João Salgueiro, relembramos o mito da eleição de Cavaco Silva em 1985, frente ao falecido ex-ministro, no congresso do PSD da Figueira da Foz. Antes que os mitos de Cavaco se tornem na verdade histórica. Ouça também esta crónica no P1 PODCAST.


    A notícia do falecimento do economista e antigo ministro das Finanças social-democrata, João Salgueiro, no passado dia 17, lembrou um mito esquecido na política portuguesa e que remonta ao congresso do PSD em 1985 e à eleição “inesperada” de Cavaco Silva.

    Antes disso, lembre-se que João Salgueiro era uma personalidade que não surgira na política portuguesa pós-25 de Abril de 1974 propriamente do nada, pois tinha a experiência governamental do tempo do Estado Novo, onde trabalhou directamente com o ditador Marcello Caetano, como subsecretário de Estado do Planeamento Económico. João Salgueiro também não era aquilo que podemos qualificar como um “homem do regime”, pois até esteve na fundação da associação cívica SEDES.

    João Salgueiro (1934-2023)

    Tendo sido vice-governador do Banco de Portugal, aderiu ao PSD após a morte do primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro, em Dezembro de 1980. Uma decisão emotiva. Naquela altura, o sucessor do primeiro-ministro morto no alegado atentado de Camarate foi Francisco Pinto Balsemão, que não contou com o então ministro das Finanças, Aníbal Cavaco Silva, para continuar no governo.

    João Salgueiro era vizinho de Balsemão, na Rua Ribeiro Sanches, à Lapa, e o novo primeiro-ministro queria-o para o seu executivo. Só que o economista rejeitou o convite por razões pessoais e, considerando ainda a recente adesão ao partido, que o vissem como um oportunista. Balsemão teve de se contentar com o centrista João Morais Leitão para o cargo anteriormente ocupado por Cavaco. Mas, em Setembro de 1981, após a resolução de uma crise governamental, Balsemão formou novo governo e, finalmente, levou o vizinho João Salgueiro para as Finanças, cargo que o economista conduziu até Junho de 1983.

    A marca imprimida por João Salgueiro levou-o depois a ser considerado como o principal candidato à liderança do PSD após a morte de Mota Pinto, em 1985. E é aqui que entra um mito da política portuguesa: João Salgueiro foi derrotado no congresso social-democrata da Figueira da Foz, em Maio de 1985, pelo antigo ministro das Finanças do governo de Sá Carneiro, Cavaco Silva, que só estava presente no congresso porque tinha ido fazer a rodagem do seu novo carro e saiu vencedor de forma “inesperada”.

    João Salgueiro, em entrevista na RTP em 1990.

    A margem eleitoral entre Cavaco e Salgueiro foram 57 votos e, depois do que aconteceu na Figueira da Foz, já se sabe: Cavaco tornou-se primeiro-ministro até 1995 e ainda chegou a ser Presidente da República. Fica sempre, para o reino da ficção alternativa, como seria Portugal caso João Salgueiro tivesse chegado a ser ele o primeiro-ministro em vez de Cavaco Silva.

    Ao ver as notícias da morte de João Salgueiro percebe-se como o mito inventado por Cavaco Silva está hoje bem enraizado na história recente da política portuguesa e, como estes textos estão escritos debaixo da designação “Histórias que eu sei”, sou levado a ter de recordar, nesta hora em que desaparece um homem que fez parte desta história, aquilo que sei.

    Sei que Cavaco Silva, que sempre disse ser um economista e que nunca se assumiu como político profissional, é o melhor político que este país conheceu. E se há muita gente que não gosta dos políticos portugueses, então é a Cavaco que o devem, pois o melhor político é aquele que nem sequer pode ser acusado de ser político. E Cavaco conseguiu criar esse mito à sua volta.

    O primeiro mito de Cavaco é ter-nos feito acreditar que, após a morte de Sá Carneiro, não tinha hipóteses de se manter no governo. Que até estava cansado e queria sair após um ano em funções, entre Janeiro de 1980 e Janeiro de 1981, altura em que Balsemão se preparava para se sentar na cadeira de S. Bento.

    Notícia do jornal Tempo de Julho de 1982.

    É falso: logo após a morte de Sá Carneiro, a 13 de Dezembro, o semanário Expresso, propriedade de Pinto Balsemão e dirigido interinamente pelo actual Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, dizia em primeira página que o nome de Cavaco Silva estava a ser ponderado dentro do PSD como “hipótese forte” para ficar à frente do executivo, enquanto Balsemão ocuparia o cargo de presidente dos sociais-democratas.

    Será modéstia de Cavaco não reconhecer que o seu nome era o mais forte para suceder a Sá Carneiro em 1980?

    Ou será que foram as condições por si impostas a Balsemão que não agradaram ao único dos três fundadores originais do PSD que ainda estava vivo e filiado no partido? Talvez ajude relembrar aqui as declarações de Balsemão ao Diário de Notícias de 1 de Janeiro de 1981 que, a propósito do projecto de Cavaco Silva, afirmou: “Estou convencido de que nunca vingarão em Portugal projectos de poder pessoal, porque o povo português ao escolher quem quer para governar escolhe um conjunto de medidas, um modelo de sociedade, e não o cidadão A ou B”, tendo acrescentado esta frase fatal: “Santa Comba Dão em 1980, em Portugal, não é concebível”.

    Sim, Balsemão comparou directamente Cavaco Silva ao ditador Salazar. E isto, seis anos após o 25 de Abril, era visto como um enorme insulto político. Hoje, alguns diriam ser uma medalha, mas foi também no tempo em que Balsemão ainda não participava nas reuniões internacionais do Grupo Bilderberg e acreditava-se que Camarate tinha sido um acidente.

    O segundo mito de Cavaco é o de que se manteve de fora da política activa até à altura em que chegou a líder do PSD. Afinal, recusou ser deputado e só falava publicamente quando lhe pediam a opinião.

    Falso: Cavaco encabeçou uma lista para o Conselho Nacional do PSD no primeiro congresso do partido após a morte de Sá Carneiro, no Pavilhão dos Desportos, em Lisboa – actual Pavilhão Carlos Lopes –, em Fevereiro de 1981, tendo feito aí o seu primeiro discurso em congressos. Estava na política activa. E pior: era activamente contra o líder do seu partido e primeiro-ministro, Pinto Balsemão.

    Uma pessoa que topou bem essa nova esperança no futuro do PSD foi então um jovem jornalista do semanário Tempo, chamado Paulo Portas, que assinou uma entrevista com Cavaco Silva a 4 de Junho de 1981. Portas perguntou a Cavaco se, ao estar activo dentro do partido, não estaria a fazer um “tirocínio partidário” e se não colocava de lado a hipótese de poder ser chamado a funções mais elevadas. A resposta do economista Cavaco foi a resposta de qualquer político: “O PSD precisa de todos”.

    Um ano depois, Cavaco assinava, com Eurico de Melo, uma carta aberta contra Balsemão. Aquilo não caiu bem, tanto mais que havia eleições autárquicas em Dezembro e, viu-se, o mau resultado do PSD – coligado desde 1980 com CDS e PPM, na AD –, levou à demissão de Balsemão.

    Notícia do jornal Tempo de Maio de 1985.

    No discurso de despedida da liderança do PSD, em Março de 1983, em Montechoro, Balsemão deixa um recado ao interior do partido dizendo que não se poderia aceitar que viessem a ser recompensados aqueles que “nos últimos dois anos, só se distinguiram por se colocarem fora do sistema, por desrespeitarem as resoluções dos órgãos próprios do partido, por se refugiarem calmamente em sua casa ou no seu escritório e se limitarem a falar de quando em quando para os jornais ou a escrever cartas abertas publicadas nas piores ocasiões”. Está-se mesmo a ver quem era o alvo: o maior dos políticos.

    O terceiro mito de Cavaco e o maior de todos, é aquele em que ele diz que foi “inesperadamente” eleito líder do PSD no congresso da Figueira da Foz, em 1985, vencendo João Salgueiro, candidato apoiado por Pinto Balsemão. É certo que teve uma diferença de 57 votos, mas não se pode dizer que Cavaco Silva só foi ao congresso para fazer a rodagem do carro e dizer o que tinha a dizer e, depois, vir embora.

    A falsidade do argumento é desmentida, primeiro, pela manchete do Expresso a 11 de Maio de 1985, uma semana antes do congresso, que se realizaria entre os dias 17 e 19 de Maio: “Distritais avançam nome de Cavaco Silva”. Eram as letras gordas da primeira página do Expresso, acompanhadas de um ante-título, com letras mais pequenas, a dizer: “Com candidatura de Salgueiro quase certa no PSD”.

    João Salgueiro em 2010, sendo recebido por Cavaco Silva, então Presidente da República. Imagem RTP Arquivos.

    Outro semanário bem informado sobre os passos de Cavaco na preparação para o congresso, era o Tempo – uma escola para o futuro director do Independente, Paulo Portas. A manchete de sexta-feira, dia 17 de Maio, à abertura do congresso, tinha a foto de um sorridente Cavaco e, em letras gordas: “Discurso de Cavaco vai ser decisivo”. E com isto, ainda nos querem fazer acreditar na rodagem do carro? E no “inesperado”?

    Cavaco conseguiu ser eleito e João Salgueiro nunca mais exerceu qualquer outro cargo político, e este é agora o País que temos. Não sei se seríamos diferentes caso o resultado do congresso de 1985 tivesse sido favorável a João Salgueiro, mas uma coisa tenho a certeza que nunca haveria: os factos omitidos para a criação do mito de Cavaco Silva.

    Que a morte de João Salgueiro nos permita desfazer um pouco disto antes que se tornem para sempre na verdade em que todos acreditarão.

    Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor


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  • Kuwait, o que celebrais?

    Kuwait, o que celebrais?


    Sempre que consigo, faço desvios em viagens aéreas para ir a outros sítios que, de outra forma, não me levariam a sair de casa propositadamente. Assim, para quem for à Índia, partindo da Europa, como foi recentemente o meu caso (ver texto anterior sobre o casamento do meu amigo Rohit), os países do Golfo Pérsico são um excelente ponto de paragem e uma forma de conseguir ligações mais baratas.

    Porquê? Acho que lhe podemos chamar o mercado da oferta e da procura. Com milhões de indianos espalhados entre o território que vai do Kuwait ao Dubai, passando pelo Qatar e Bahrain, é normal que exista uma enorme oferta de voos para as principais cidades indianas e a um baixo custo, pois a procura é muita.

    Por isso, acabei por dar por mim no Kuwait, um pequeno país do tamanho do Alentejo, entrincheirado entre o Iraque e a Arábia Saudita. No meu imaginário, o Kuwait era aquela estrada, no meio do deserto, cheia de tanques destruídos com a passagem da Operação Tempestade no Deserto. Gosto de visitar sítios onde a História se fez. Era o meu principal passatempo até ao início dos confinamentos, e tento agora, três anos depois, continuar onde parei.

    Ainda não tinha saído do aeroporto e já estava a ter um daqueles momentos de “o que faço eu neste fim de Mundo?”. Acontece-me muito. Consigo encontrar interesse em absolutamente qualquer recanto deste planeta, mas, não raras vezes, quando lá chego questiono-me por que saí sequer de casa.

    Um polícia no aeroporto começa a virar a minha mochila e encontra Xanax. Pede-me pela receita médica que, obviamente, não tenho – e pergunta-me então se tenho ataques de pânico. Digo-lhe que sim, no ar. Ele diz que aquilo é ilegal no Kuwait e que posso ser mandado parar na rua e ir para a prisão.

    É bom lembrar que estou num país onde drogas e álcool dão pena de prisão e, em alguns casos, sentença de morte. Explico-lhe que se me tirar os comprimidos sobram-me duas hipóteses. Ficar no Kuwait o resto da vida, ou arranjar um autocarro que atravesse o Iraque em direcção à Europa. No avião é que não entro sem aquilo. Ele sorri. É um gordinho de barba, com aspecto de quem está na primeira semana de trabalho e quer mostrar obra feita ao seu superior.

    Eu procuro as saídas do humor, é sempre por aí que vou. Certo dia um militar ucraniano, na fronteira com a Polónia, apontou-me uma metralhadora e pediu dinheiro para me deixar seguir. Eu bati nos bolsos e disse-lhe que não tinha notas, e perguntei-lhe se aceitava cartão.

    Na impossibilidade de disparar a 100 metros da linha da União Europeia, ele lá me deixou ir sem achar piada ao meu material de comédia. O mesmo sucedeu na fronteira do Egipto e Israel, com três egípcios a dizerem-me que sem pagar extra ia ficar muito tempo ali parado, ao que respondi que por mim tudo bem, podia ficar ali com eles e fazer adeus ao israelita que ainda me conseguia ver na barraca a 50 metros dali. O mesmo israelita que me tinha feito 100 perguntas, entre as quais se eu falava árabe.

    Não sei bem por que razão me meto sempre nestas alhadas, mas parece que devo gostar, porque vou sempre lá cair. Ando há meses a ver se convenço alguém a vir comigo a Minsk e, surpreendentemente, ninguém acha a ideia apelativa.

    Por fim, o polícia novato lá me deixou sair do aeroporto, depois de falar com o superior hierárquico, que não se quis chatear por quatro Xanax. Quando cheguei cá fora, pensei que uma cervejinha é que era, para aliviar aquele stress, mas lá está, também é ilegal, pelo que bebi antes um café com caramelo, no Starbucks que estava ali em frente. Ah pois… os americanos não deixaram apenas as mangueiras para sugar petróleo quando estavam a “trazer democracia”.

    Reparei que as ruas estavam cheias de fervor patriótico. As cores da bandeira por todo o lado, monumentos fechados, carros com bandeiras, crianças com camisolas que diziam “Free Kuwait”. Uma semana de feriados para comemorar o Dia Nacional, o Dia da Libertação, e de alguma forma isso tinha um toque de Carnaval, porque as pessoas faziam guerras de balões de água no meio do trânsito. Estava um pouco baralhado com a História e os parcos conhecimentos de inglês dos locais também não me ajudaram muito.

    Dei uma de Relvas… e fui estudar. Os dias 25 e 26 de Fevereiro marcam, respectivamente, o Dia Nacional e o Dia da Libertação do Kuwait. O primeiro comemora a chegada ao trono, em 1950, de um emir com cerca de dezassete nomes, que ficou famoso por ter assinado o tratado que acabou com o protectorado britânico. O segundo, como se perceberá pelo nome, regista o dia em que os americanos “devolveram a democracia” e correram com os iraquianos.

    Impecável do ponto de vista do sincronismo temporal a entrada do exército aliado no Kuwait, permitindo juntar duas datas importantes numa semana e reduzir assim os custos com as festas para as gerações vindouras.

    people walking on street during daytime

    Paradas militares, polícia por todo o lado, barcos a dar espectáculo com canhões de água, aviões de combate a executar manobras nos céus da capital. Uma demonstração de poder bélico algo patética, para quem perdeu o controlo do seu território em apenas dois dias e que, sem os poços de petróleo que normalmente ajudam às “devoluções de democracia”, seriam hoje mais um quintal anexado como aqueles no Terceiro Mundo que ninguém quer saber.

    Mas como tinham petróleo, já se sabe, passam a ser um “parceiro do Mundo Livre e Democrático”.

    Ainda assim compreendo a festa da libertação. Para os locais, mesmo sabendo que 1991 se resumiu a jogos de poder pela conquista de combustíveis fósseis, a consequência é que, de facto, recuperaram a sua independência. Não a liberdade ou democracia, que nunca as tiveram, mas livraram-se de um invasor assumido.

    Já a celebração pela ascensão ao trono do emir dos vários nomes é que não percebo bem.

    O que é que há para comemorar num regime onde a liberdade de expressão é controlada, os direitos (especialmente das mulheres) cada vez mais restringidos e o direito a governar nasce no berço?

    people on beach during daytime

    O que celebra uma sociedade absolutamente desigual, onde uma minoria de 1,5 milhões (os nativos do Kuwait) é controlada por uma família pornograficamente rica, e tudo o que cresce e se desenvolve é providenciado por um exército de três milhões de escravos da era moderna, entre os quais cerca de um milhão de indianos?

    O que comemora uma sociedade tão desigual como esta, tão desequilibrada e tão injusta?

    Os albaneses, em maioria no sul da Sérvia, reclamaram um país e surgiu o Kosovo.

    O Donbass vai pelo mesmo caminho.

    O argumento de maiorias que crescem num território e depois exigem a independência ou a anexação são clássicos da História. Tirando no caso dos curdos e dos palestinianos, normalmente este argumento colhe quando apoiado por algum império. Dei por mim a pensar que todos estes escravos, que já são a maioria nos países do Golfo Pérsico, ainda podem um dia servir de desculpa para a Índia os anexar.

    Era engraçado ver ditaduras a serem anexadas por democracias e os Impérios do Bem e do Mal a pensarem se alinhavam e repartiam o petróleo (ou “liberdade” como George Bush pai lhe chamou) ou se entravam em novas guerras pelo controlo total.

    rock formations

    O mundo seria bem melhor sem petróleo. Sem castas. Sem escravos.

    É nestas alturas que penso no pequeno mas existente elevador social em Portugal. Há hipótese, há alguma esperança, de se evoluir pelo trabalho.

    Ali, no Kuwait, não. Se nascem miseráveis, vão morrer miseráveis, e esgotados de trabalho até ao osso.

    Não sei se é isto a que se chama choque de culturas, mas sei que me ajuda a perceber a sorte que tive por nascer no lado certo do Mundo. Pelo menos isso.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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