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  • Costa passa, Marcelo apara no peito, e chuta…será golo?

    Costa passa, Marcelo apara no peito, e chuta…será golo?


    É tempo de levantarmos os nossos copos e brindarmos a António Costa.

    Pode ele não ser grande coisa a escolher ministros, a ouvir recomendações para combater pandemias ou a decidir o melhor trato para dar ao dinheiro dos nossos impostos – mas é um ás a esgrimir a espada dos bastidores da política.

    Ainda Pedro Nuno Santos afirmava, em direto, onde ficaria o novo aeroporto, e Cabrita acelerava como se não existisse amanhã – e já António Costa bailava pelos pingos da chuva ácida sem nunca se queimar.

    Não lhe aprovaram o Orçamento de Estado – e foi a eleições, novamente, para passar de uma maioria relativa para absoluta. Meteu Rui Rio num bolso e usou o Chega com a mestria de aprisionar a direita. Quando as sondagens lhe deram empate técnico durante uma semana, foi vencendo a retórica dos debates e nunca perdeu o rumo.

    Com a maioria do Parlamento, passou, ao contrário do que se esperava, a gerir escândalos semanais sem sujar as mãos.

    Ventura grita pela queda do Governo a cada problema com um secretário de Estado. Montenegro chama Costa à pedra em cada calinada de ministro.

    Mas Costa não cede. Fala quando quer, como quer e com quem quer. Com o governo a ser devorado pelos escândalos da TAP, António Costa consegue planar sobre os destroços. Ora apresenta um programa para a habitação, ora anuncia mais uma ajuda financeira pontual.

    Não há rumo, não há terra à vista. Navega-se ao sabor do vento. Todas as semanas cai alguém, desconfia-se de alguém, substitui-se alguém.

    Eu deixei de contar os casos há algum tempo, até porque não tenho memória para tanto. O PS tomou conta deste pequeno quintal a que chamamos Portugal e reina – reina é a palavra – a seu bel prazer, fazendo de cada ministério a sala de estar lá de casa.

    Quando se pensava que tínhamos batido no fundo – com ministros, deputados e assessores a ensaiarem respostas com a CEO da TAP, antes do inquérito na comissão parlamentar –, conseguimos, ainda assim, cavar mais fundo. Há agressões num ministério, computadores roubados, um assessor que está pronto a contar as maroscas e um Galamba totalmente em xeque.

    Ninguém, no seu perfeito juízo, pensava que António Costa aguentaria o ministro. A situação estava muito para lá do aceitável, mesmo se pensarmos na Escala Cabrita.

    Mas Costa surpreendeu – bailou. E fez uma jogada de mestre, no que a política diz respeito. Arranjou um conflito com o Presidente da República para defender o jovem turco. Não é que Galamba seja ouro raro, mas, de momento, dá um jeito enorme. O ónus da culpa ficou no assessor, que é arraia-miúda e não deverá fazer grande estrago.

    Marcelo, que defendia a demissão de Galamba, foi desautorizado, e assim capitalizou o foco dos media. De uma assentada, deixámos de falar na greve dos professores, na miséria que a guerra da Ucrânia e as taxas de juro nos estão a trazer, da TAP, dos custos da habitação, do IVA zero, da inflação e dos baixos salários.

    Toda a agenda política e todos os problemas que afectam os portugueses desapareceram do ar. Lembrem-se: o que não aparece na televisão, não existe.

    Costa repetiu o clássico movimento de desviar as atenções. Um pouco como a Argentina em 1982: a braços com uma grave crise financeira e violentos protestos nas ruas, decidiu o Governo invadir uma ilhota, ali ao lado, onde viviam uns cem ingleses. O resultado final foi o que se sabe, porque a Dama-de-Ferro não era de grandes azeites – mas, por uns meses, a pátria uniu-se num desígnio comum.

    Agora, é Costa que aproveita o caótico momento do Governo e usa Galamba para uma jogada de mestre: passa a bola para Marcelo, e o nosso comentador preferido, mal acabe aquele gelado de framboesa e limão, terá várias batatas quentes para descascar. Com as mãos.

    Se Marcelo optar pela queda do Governo, coloca Costa no papel de vítima, da vítima que ficará impossibilitado de executar o Programa de Governo, o PRR e por aí fora. Fica ainda com o peso de poder ter transportado a extrema-direita para o arco da governação.

    Se fingir que não vê nada, Marcelo coloca-se no papel de bibelot de Belém e deixará de ter relevância até ao fim da sua magistratura.

    Aconteça o que acontecer, Costa ganha. E enquanto vai e vem o pau, folgam as Costas – ou seja, abranda a contestação ao Governo.

    E tudo isto pelo preço de um Galamba. Não está mau, não está nada mau.

    Tem, entretanto, a palavra Marcelo, hoje, às 20 horas desse fuso horário de Lisboa.

    Vamos a apostas? Eu digo que não lança a bomba atómica: um gelado é sempre bom conselheiro.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Gente de vidro e gigantes de ferro

    Gente de vidro e gigantes de ferro


    Dei por mim a pensar onde andarão os dias de festejo. Aqueles dias de fim de guerra, em que tudo sai para a rua numa explosão de alívio. Aquela celebração de vitória, porra, finalmente o rio desaguou! Mas, pelos vistos, já não se festeja fim de guerra, já não existe o momento de catarse, se calhar nunca existiu (também era propaganda?)

    E até porque pessoas de vidro quebram com facilidade, basta um ventinho, e caem, uma ventania, e voam desamparadas (e tu que sonhas que voas), um encontrão, e estilhaçam. Se calhar, talvez seja melhor não sacudir muito o mundo com festejos. A ver bem, já aprendemos que não há fim à vista. Essa ingenuidade finou-se com os nossos avós e em silêncio, as guerras estão sempre aqui, ali, em todo o lado.

    white and black spider web on brown soil

    Somos gente de vidro que segue de cabeça baixa, pois quem a levanta arrisca a uma nicada nas esquinas dos cotovelos. Ninguém quer estar a olhar para ver os gigantes de ferro a levantarem-se por toda a parte. Postes, antenas, sistemas reticulados em módulos de treliças cinzentas e ásperas à alma (será o metal macio?), tudo o que é deles levantado de cabeça no ar que nem totens infernais, chifrudos armados em discretas árvores a passar cabos de gigante em gigante numa opressão total, permanente, enorme.

    É a modernidade, não queres ter rede em casa? Não queres acender a luz de noite? Não queres tudo isto que temos para te dar e para andares mais depressa? (Gente de vidro não pode andar depressa, porque parte!)

    Estamos todos traumatizados. Os gigantes de ferro tomaram conta do mundo, e caminham a passos largos pelos nossos quintais. Anunciam e berram zumbidos de alta tensão (não faz mal à saúde, não?), rasgam o vento com turbinas majestosas ou deitam pestanas de painéis solares a decapitarem árvores ainda jovens (tão jovens), a modernidade e tudo o que precisamos para alimentar este vício de estar acordado (é segura e eficaz, não?)

    axe on wooden table

    E há quem tenha medo da inteligência que é artificial. Viram-nos a abrir caixas na rua e a ligar computadores? (É inofensivo, não?) A treparem postes e a mexericarem afincadamente naqueles fios todos (os fios de Ariadne)?

    E têm medo de um robot porque pensam, as pessoas de vidro, que os robots ainda estão longe, no éter. Não estão, já andam e são gigantes. Feitos de ferro agarrados aos nossos ombros de vidro.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O botão atómico de Belém

    O botão atómico de Belém

    Irá o homem que senta no Palácio de Belém carregar no botão que fará explodir a bomba atómica da política portuguesa? Podem ter a certeza que sim, mas só vai acontecer quando nos convencerem que fomos nós que pedimos. É assim que funciona a República. Ouça também esta crónica no P1 PODCAST.


    Muitos dos meus amigos ficam intrigados comigo quando lhes digo que sou monárquico. Perguntam-me pelo meu avô, por exemplo, para tentarem perceber até que ponto faz sentido essa minha afeição a um regime do passado.

    Respondo então que não é por saudosismo de um antigo regime, anterior ainda ao da ditadura de Salazar e do seu Estado Novo, mas sim pelo desejo de um futuro melhor.

    E procuro demonstrar que, um País com as características geográficas de Portugal, com a nossa localização, história e papel que ainda podemos ter no futuro da humanidade, seríamos mais prósperos e mais bem geridos se fôssemos uma monarquia.

    É apenas uma opinião e, como tal, espero que a respeitem. Teríamos ainda de trocar umas ideias sobre o assunto, ter uma conversa mais prolongada, mas para já mantemos apenas as coisas por aqui.

    Posso, no entanto, explanar parte do pensamento com pequenos exemplos da nossa vida quotidiana e que merecem uma reflexão a propósito do sistema político em que vivemos.

    Vamos então ao actual momento da nossa III República, aquela que começou há quase 50 anos, após outros quase 50 anos da II República, debaixo da ditadura que tivemos entre 28 de Maio de 1926 e o 25 de Abril de 1974.

    Neste momento, temos um primeiro-ministro do Partido Socialista a governar com maioria absoluta e um Presidente da República que é ex-líder do Partido Social Democrata. Poderíamos dizer que temos o melhor de ambos os mundos e que está tudo equilibrado. Mas não é bem assim.

    O Governo do PS parece cansado e gasto. Em surdina, especula-se que o Presidente da República deverá dissolver o Parlamento, demitindo assim o primeiro-ministro, e convocar eleições antecipadas para que o PSD as vença. E marcam-se já prazos: será depois das eleições europeias, no próximo Verão.

    Prevê-se que o partido do governo sofra uma derrota pesada, já que o eleitorado tende a votar por protesto nas eleições para o Parlamento da Europa.

    A demissão do governo é um dos pouco poderes que o Presidente da República tem em Portugal, já que ele não é um presidente com poderes executivos. É a chamada “bomba atómica”. E o botão é sensível. Demasiado.

    Se Portugal fosse uma monarquia, ninguém iria pedir ao rei para demitir o primeiro-ministro. O que deveria acontecer, isso sim, era o primeiro-ministro ir até Belém e explicar, bem explicadinho ao rei, os motivos pelos quais ele considera não ter condições para continuar sentado em São Bento e apresentar, humildemente, a demissão, reconhecendo o seu fracasso político.

    O rei existe precisamente para evitar que um líder de um partido, seja ele PS ou PSD – ou até um almirante recém-promovido a herói de Nação –, possa fazer jogos e joguinhos políticos, manipular a Comunicação Social e fazer-se de vítima para criar condições que o permitam proteger-se, e até surgir renovado, de um qualquer botão atómico em Belém.

    O rei existe para que nenhum político profissional possa manipular a ordem pública e chegar a Chefe de Estado, ou usar a figura do Chefe de Estado para o desculpar dos seus erros. Sim, sei que o sistema monárquico tem falhas, pois os reis também são humanos e sujeitos a fragilidades ou a acções de carácter dúbio.

    Mas pensem ainda numa outra coisa: um povo pode existir sem um rei, mas vive manipulado pela república e por uns quantos que fazem disso um jogo político. Agora, um rei nunca o poderá ser se não tiver um povo que o apoie.

    E um rei, nunca usará uma bomba atómica contra o seu próprio povo.       

    Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Caramba, ó Galamba!

    Caramba, ó Galamba!


    Em hipótese, pode um licenciado em Ciências da Comunicação pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e na Université Sorbonne Nouvelle Paris III cometer um crime que justifique a intervenção do SIS para resgatar um computador com suposta “informação classificada pelo Gabinete Nacional de Segurança”?

    Pode!

    Pode, em hipótese, um putativo criminoso ser um mestre em Economia e Políticas Públicas, no ISCTE, com dissertação intitulada “Compreender a realidade: os fatores explicativos das notícias”?

    Pode!

    João Galamba, o ainda ministro das Infraestrutras.

    Pode, também em hipótese, um alegado ladrão de informação confidencial ter uma pós-graduação em Direito Fiscal pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa?

    Pode!

    Pode ainda, por hipótese, um presumido agressor de mulheres ser doutorando em Economia Política num programa conjunto do ISCTE, ISEG e Universidade de Coimbra?

    Pode!

    Pode ainda, por hipótese, um suspeitoso arremessador de bicicletas contra portas de vidro ter sido jornalista no Record, na Agência Reuters, na Rádio Renascença, no Sol e na Antena Um, além de investigador da Fundação Rosa Luxemburgo e assessor do Grupo Parlamentar do Bloco de Esquerda?

    Pode!

    girl covering her face with both hands

    Pode ainda, por hipótese, tudo isto se acumular na mesma pessoa, e ela ter sido um discreto técnico especialista no Gabinete do Secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares entre 2017 e 2019, e adjunto no Gabinete do Ministro das Infraestruturas desde 2019?

    Pode!

    E pode João Galamba continuar a ser ministro?

    Não! Não pode.

  • Pois se até Deus mete água…

    Pois se até Deus mete água…

    De que estás a falar, Mítia?

     “Ideias, ideias, é isso! Ética! Que coisa é essa, a ética?

    Ética? – surpreendeu-se Aliocha.

    “Sim, é uma ciência ou quê?

    “É, existe uma ciência com esse nome… mas…  confesso que não te sei explicar que ciência é essa.”

                    Fiódor Dostoiévski

    OS IRMÃOS KARAMÁZOV


    Clarinha, tu passaste-te mesmo? Então a tua casa de sonho ainda agora acabou de arder, e tu não te lembras de nada melhor do que desperdiçares uma noite inteira do teu precioso tempo a reler OS IRMÃOS KARAMÁZOV, em todas as suas quatro partes mais o epílogo?

    Olhem lá, calma, por  favor, muita calma – eu posso explicar. Estava à procura de um breve discurso proferido, sabia eu lá aonde numa obra tão grande[1], por uma jovenzinha histérica, febril, sedutora, manipuladora, encantadora, e demoníaca, às vezes tão frágil que tem que andar de cadeira de rodas. Com esta descrição é evidente que eu não ia longe em termos de posicionamento geográfico, uma vez que alguém assim dotado poderia  corresponder a uns bons 85% dos personagens Dostoiévski, incluindo Deus-Pai propriamente dito[2].


    Porque é que eu queria tanto encontrar esta menina[3]? Parte era o fascínio da sua revolta contra o mundo, que tem tudo a ver com casas a arderem. E a outra parte, aquela que nunca mudou do século XIX para o século XXI embora os regimes tenham mudado várias vezes no entretanto, era a sua revolta contra toda a corrupção que campeia na Rússia czarista do século XIX, observada e descrita em grande angular pelos poderes do seu olho de lince. Lise já viu tanto que “simplesmente, não quero fazer o bem, quero fazer o mal, e nisso não há doença nenhuma[4]” – “Porquê o mal?[5]” – “Para que não reste nada, em lado nenhum!

    Regresso a esta história para nos recordarmos do poder dos lugares-comuns: é indiscutível que a História se repete. E, por isso mesmo, é inevitável que a gente cultive uma vaga fantasia em que o mundo inteiro fica deserto e nós podemos recomeçar a partir do zero, conscientes dos disparates do passado. Deus estava a dar asas à mesma fantasia quando mandou Noé construir a Arca e enfiar lá dentro toda a sua família disfuncional e todos os animais aos pares[6] e pronto – se fantasias destas correm mal até a Deus, é porque se baseiam em fundações espirituais, quando precisariam de ser materiais. Mas as causas de erros destes aprendem-se depressa, não são fenómenos que se esqueçam, e portanto não nos impediriam de fazermos tudo correctamente da próxima vez[7].

    Para fazermos tudo correctamente bastaria mudar a estratégia em que cada um quer é meter ao bolso tudo quanto pertence aos outros[8], passando antes à táctica da actividade em cooperativa, com comunhão absoluta de bens[9] e de horários de trabalho.

    Alguém se chega à frente para uma aventura destas?

    CPC, aos 32 anos, a falar de trabalho
    O entrevistador bem queria que ela lhe falasse antes dos seus amores, mas aí ela fechou-se sempre em copas. Amar não é nenhum serviço de utilidade pública.

    Antes de se extinguirem, houve dinossauros que parecem ter adoptado a postura bípede e desenvolvido um cérebro anormalmente volumoso, portanto é muito possível que a História já se repetisse na Terciária. Se hoje em dia o mundo está cheio de pobreza, já lá vão muitos séculos em que o mundo esteve cheio de miséria. Se o estilo de vida moderno potenciou a disseminação da COVID pelo mundo[10], ainda há um século atrás morriam portugueses como tordos porque ninguém sabia controlar a chamada “gripe espanhola[11]”. Se a Guerra da Ucrânia é de uma brutalidade e de uma estupidez de deitar as mãos à cabeça, recorde-se que o pesadelo da Guerra do Iémen não deixou de existir só porque desapareceu das notícias.

    Mas, no meio de todo este negrume em que as corujas piam e os mochos arrancam os olhos àqueles que ficaram caídos para trás, honrosamente mortos em combate, a gente costumava ter por Portugal um orgulho merecido, e considerar os nossos Presidentes da República pessoas com verdadeira classe, mesmo depois de o Sarkozy já se ter casado com a Carla Bruni. Boas escolas, bom Serviço Nacional de Saúde, respeito rigoroso pelas regras da Reforma, políticos empenhados, polícias, GNRs, e militares civilizados, bom feitio excepto quando ao volante[12] – quem é que não quer?

    E quem é que notou, ainda antes de mim, que, por qualquer caminho tão ínvio como estes caminhos têm mesmo de ser, de repente toda a fachada portuguesa estava igual – mas que, por trás da fachada, o comportamento das pessoas importantes era cada vez mais uma mentira?

    A pena que eu tenho de, nessa altura, não ter apostado nada com ninguém.

    Mas enfim, sou contra as apostas – e, ao menos, fui consistente.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] E onde tanta gente faz tantos discursos, todos eles tão “histéricos”, tão “febris”, tão “brilhantes de terrível raiva”, e (o meu preferido) tão “desfigurados”.

    [2] Neste romance, de forma assustadoramente sistemática até para os ateus, o Demónio é muito melhor tratado do que Deus pelo autor.

    [3] De seu nome “Lise”, por causa de “Lise” ser “Lisa” em francês, e a acção decorrer entre a alta burguesia russa.

    [4] Dostoievski não é considerado “uma das figuras de proa na consolidação da Psicologia” por acaso. E escreve exactamente no período histórico em que a própria Psiquiatria começa a organizar-se. Este momento poderoso de mudança de paradigma arrasta consigo, no entanto, um problema nada desprezível: todos os estados de espírito mais agitados de todas as pessoas passam a ser considerados “doenças”. Destas, a mais abundante é a infame “febre nervosa.” Só posso acrescentar que prefiro viver agora.

    [5] O pobre irmão que escuta estas confidências com o voto de sigilo total é Aliocha, o que escolheu a vida de monge.

    [6] Isto sim! Isto é que é NÃO SABER MESMO NADA sobre a fauna do planeta, sobretudo quando comparada com a mísera fauna da bacia do Rio Jordão.

    [7] Nem nós, nem Deus. Mas nota-se que Deus está amuado e ficou farto. Com toda a razão.

    [8] Incluindo a sua mulher, ou mesmo as suas mulheres, comportamento que se percebe depressa que Deus detesta.

    [9] A mulher do próximo não é nenhum “bem”, estamos entendidos?

    [10] E vá, deêm algum crédito à ciência: nunca se tinham desenvolvido tantas vacinas, tão depressa, para uma doença completamente nova.

    [11] Viroses, vacinas, bactérias, antibióticos – são tudo técnicas que começam a florescer no período que rodeia a II Guerra Mundial. É também aqui que aparece o Salvarsan, ou seja, uma forma eficaz de travar a progressão da sífilis depois de quinhentos anos de inferno.

    [12] Aquando da sua primeira visita a Lisboa, o Dick aprendeu logo comigo uma palavra que eu própria nunca antes reparei que usava o tempo todo quando ia a guiar: era qualquer coisa como “canoagem”, o que não fazia sentido nenhum. Ao fim de uns bons dez minutos, lá se esclareceu o mistério: “CABRONAGEM!!!! CABRONAGEM!!!!”, gritava eu, furibunda, para todos os carros de todas as filas que estivessem à minha frente.

  • Sócrates e o nosso sangue latino (fora de prazo)

    Sócrates e o nosso sangue latino (fora de prazo)


    A possibilidade de José Sócrates não ser sequer julgado, por prescrição dos crimes num prazo de 10 e meio anos – que ocorrerá em Maio de 2025), embora expectável, é um embaraço enorme para a República Portuguesa.

    Segundo Rogério Alves, antigo bastonário da Ordem dos Advogados, esta é uma consequência dos chamados mega-processos: quilos e quilos de papel, dezenas de arguidos e testemunhas, crimes todos juntos e amontoados, tornando a gestão da coisa praticamente impossível. Ou, usando as palavras dele, é como andar na estrada com um carro de 50 x 10 metros: simplesmente não dá para estacionar em lado nenhum.

    Não só o trabalho de produzir a acusação se torna uma dor de cabeça, e uma espécie de corrida contra o tempo, como as possibilidades de sucesso multiplicam-se para quem defende e procura empatar o processo.

    Dizem-nos, hoje, que teria sido preferível construir e argumentar com pequenos casos, menos crimes agrupados e ir várias vezes a julgamento. A Justiça não só é lenta na sua execução, mas também, ao que se percebe, na sua própria compreensão.

    Estes mega-processos chocam, julgo, por sabermos que nada neste espectáculo está acessível ao comum dos mortais. A Justiça em Portugal é célere e implacável com os pobres e extraordinariamente lenta e ineficaz com os ricos. Já repetimos este mantra há tanto tempo que parecemos ficar imunes a ele.

    O caso de José Sócrates é ligeiramente mais problemático porque os crimes, ou alegados crimes se preferirem, remontam ao tempo que o senhor era primeiro-ministro. E nessa altura, se bem me recordo, Sócrates era um tipo popular, com uma forte base de apoio e até, digamos, algum estilo fora de portas a que não estávamos habituados.

    brown wooden stand with black background

    Depois do saloio Aníbal, do pacato e sem carisma Guterres, do servente de cafés Barroso, do embaraço Santana, e antes de Passos Coelho, capacho de Angela Merkel, era Sócrates uma figura política que não nos envergonhava. Bem sei que hoje ninguém o assume, mas eu lembro-me do regozijo da imprensa e dos analistas políticos de então.

    Clara Ferreira Alves, hoje uma crítica absoluta do PS, era nessa altura uma grande defensora do “animal feroz” que corria maratonas. Quem não se lembra de Sócrates a fazer o jogging matinal na Praça Vermelha ou a dizer ao ministro das Finanças holandês se “queres que te passe um cheque?”, quando este acusava os portugueses de não pagarem dívidas e gastarem o dinheiro em meninas e vinho verde.

    Sócrates tinha carisma e estudava antes de abrir a boca.  Era bom de paleio. Era português, para o bem e para o mal. Hoje, claro está, todos dirão que “nunca me enganou”. Mas enganou. Enrolou-nos bem, ainda mais do que o Cavaco quando disse que o BES estava seguro.

    As (alegadas) trafulhices são de tal ordem que eu acabo sempre por me desligar dos processos. Quando a quantidade de crimes chega aos dois dígitos e já se gerem por uma tabela Excel, uma pessoa perde o interesse pela fogueira da corrupção. De imediato assumimos que temos filme para anos e, com alguma certeza, poderoso algum chega a Custóias.

    No caso do Sócrates, eu ficava sempre preso em dois aspectos. Primeiro, por que não seguiam as autoridades o percurso do dinheiro? Um homem que passa 10 anos a suportar uma defesa caríssima, a viver entre Paris e Rio de Janeiro e, oficialmente, declara a reforma de antigo primeiro-ministro, é um mistério da Matemática. Salário algum (oficial) de um político em Portugal paga a vida de Sócrates, e, entre histórias do cofre da mãe e empréstimos do amigo, alguém conseguirá ver pagamentos e registos de dinheiro a circular. Os advogados não devem ser pagos com bananas nem todos os primos, que lhe vão emprestando casas, devem ter contas bancárias na Suíça.

    Outro mistério é a razão de todo o conjunto de juízes portugueses se reduzirem a Ivo Rosa, o clemente, ou Carlos Alexandre, a rock star. Não há mais ninguém que consiga fazer o trabalho?

    Mas o extraordinário mesmo são os anos que se levam para preparar uma frágil acusação, desmontada por estagiários apenas nos erros processuais, conseguindo, sessão após sessão, novos adiamentos. A lei portuguesa é tão ultrapassada no que toca a aceitar ou produzir provas que, para um rico, é virtualmente impossível chegar ao dia da condenação.

    red white and blue flag on gray concrete building near body of water during daytime

    Este caso é tão sujo que ninguém, de bom senso, acredita na inocência de nenhum dos lados. O processo de José Sócrates é de índole criminosa, mas dificilmente se excluirá a componente política. Que outro primeiro-ministro, autarca ou deputado, foi preso em direto para as televisões? Como é que as televisões sabiam sequer da investigação da PJ e do momento da prisão?

    Mais ou menos corrupto, mais ou menos perseguido, mais ou menos rico, certo é que hoje, em 2023, é quase certo que José Sócrates nem sequer irá a julgamento. E provavelmente, entre declarações de repúdio e juras de inocência, continuará a viver uma vida de luxo, com empregos alternativos que vão aparecendo em empresas fantasma, sem que alguém perceba de onde lhe chega o financiamento.

    Como se sente o contribuinte que trabalha por conta de outrem que, ao fim dos primeiros 10 dias do mês já não tem salário e, a cada visita ao Pingo Doce, mete mais umas bananas no cesto, depois de pesar um cacho só com três ou quatro delas? Não, não estou a ensinar truques. Vi num estudo.

    Andamos nisto há décadas. A empobrecer enquanto as elites políticas se vão enchendo de dinheiro, roubando todos, construindo vidas pela calada. Sócrates foi apanhado e não pagará. Quantos nunca foram apanhados? Quantos estão a roubar neste momento? Como é que se vive no meio de tanta desonestidade na coisa pública e, principalmente, como é que se normalizou o roubo e o tráfico de influências, perante a indiferença do povo?

    euro banknote collection on wooden surface

    Não é preciso ser um génio para perceber quem é que vai capitalizar mais esta barraca da Justiça. Depois de Lula, Sócrates será a munição de Ventura. Aos gritos na bancada, gritará ele “vergonha” e clamará por mais honestidade na política.

    Para Portugal, chegados ao estado actual, restam duas soluções: morrer da doença ou morrer da cura.

    Que sangue latino, fora de prazo, é este que afinal nos corre nas veias?

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O silêncio dos inocentes e a urgência sobre margaridas e carvalhos

    O silêncio dos inocentes e a urgência sobre margaridas e carvalhos


    O carvalho é uma árvore (pode ser uma pessoa se escreveres com maiúscula). Tem um género. E tem uma família.

    Existem muitas espécies de carvalhos. Muitos indivíduos. Géneros estão também definidos, podem ser vários, mas estão definidos. As famílias também.

    (A América do Norte pelos vistos tem muitos carvalhos. É dos locais que mais tem.)

    Eu conheço bem o carvalho, é das árvores que mais me pedem em projectos. Muita gente quer viver com carvalhos ou, por vezes, a simples aparência de um.

    macro photography of brown plank

    É cada vez mais possível imitar a madeira de carvalho (ou outras) em materiais sintéticos. Em teoria, isso protege o ambiente, previne o abate de árvores que demoram muitas décadas a formar corpo e robustez (e altivez).

    Na prática, é uma questão de marketing e ponderação. Ponderamos o uso, o custo, a vida que esperamos do objecto, do móvel, da cozinha, do chão, da parede, do tecto, do telhado, da estrutura. Ponderamos ainda a nossa capacidade para cuidar de um material que está vivo (mesmo estando morto). Que não é inerte, que tem temperatura, temperamento, movimento e reage a nós, ao ar, ao sol, ao tempo (sempre o tempo).

    “Construía casas que duravam séculos. Polia móveis que serviriam para os bisnetos. A casa familiar recebia-o à nascença e transportava-o até à morte, depois, como um bom navio, de uma margem para a outra, fazia passar, por sua vez, o filho. Mas a habitação deixou de existir! Iam-se embora, sem mesmo saberem porquê!” 

    green leaves under blue sky during daytime

    Uma margarida é uma flor (pode ser uma pessoa (até uma criança) se escreveres com letra maiúscula).

    A margarida é uma planta, tem um género, tem uma família (temos todos).

    Na verdade, a flor da margarida é só uma das partes da planta. O capítulo. Numa preciosa composição natural de pétalas, que circunda este capítulo, e que podemos observar, a olho nu, são as marginais. Numa preciosa cristalização, que existe num tempo finito, breve, frágil, inocente.

    A margarida e o carvalho estão conectados. Entre eles a terra, o ar, e até ondas electromagnéticas. criam simbioses. A mão que toca o tronco do carvalho pertence a quem irá cheirar a margarida. E a abelha viaja entre tudo, alimentando o mundo.

    A margarida não pensa que é margarida. Ela simplesmente é.

    (Mestre Caeiro, volta por favor…)

    Tanto quanto o carvalho, que se espreguiça, que se enterra, não pensa no que é. Ele simplesmente é.

    macro photography of white and yellow daisy flowers

    [Interlúdio para uma fábula incompleta]

    O patinho feio que se julgava feio, quando na verdade era cisne, não tinha nascido no corpo errado. Só tinha de esperar e crescer para ver que, afinal, só não se estava a conhecer no início da história, como se conheceu no fim.

    Enquanto o inocente patinho cresceu, sentiu as dores de crescimento. Mas passou. E ninguém se magoou.

    Já o camaleão – infelizmente nascido em cativeiro, o pobre – de olho arregalado (um para cada lado), quando se afastou do ovo de onde saiu correu. E, acometido por confusão e vendo estrelinhas ao bater de cabeça contra o vidro do aquário onde nasceu, julgou de repente, na verdade, ser gatinho.

    Até porque, do lado de lá da sua vitrine, através do corredor da loja de animais, uma inocente e fofa ninhada miava enquanto procuravam a mama da mãe. E tanto, tanto o camaleão os invejou, que na sua solidão pensou…

    “se eu partir este vidro, poderei ir ter com os gatinhos, e até talvez mamar na mãe deles, que vai ser minha também!”

    Estar acordada de noite é viver num mundo às escuras (viva o mundo às escuras!).

    Aqui, um carvalho é um carvalho. Uma margarida é uma margarida. Eu sou eu. Tu és tu. Temos géneros, temos famílias, temos lugares no mundo, encaixemos facilmente ou não (quem encaixa facilmente? Caixa, caixa, caixa), com pétalas em falta ou ramos quebrados, somos o que somos.

    No mundo às escuras do mundo iluminado acontecem coisas que se vêem tarde, só quando o sol nasce (e quando nasce).

    white lighted sconce

    E para o leitor valente que se manteve comigo até agora, coloco aqui aquilo que deve procurar ler sobre margaridas e carvalhos. Sobre o que está ou não conectado. Sobre o patinho feio, que desabrocha em cisne num lago, ou sobre o camaleão de aquário, que quer ser adoptado por uma gata:

    Projeto de Lei nº 72/XV/1ª (BE) – APROVADO 

    Projeto de Lei nº 359/XV/1ª (BE) – APROVADO

    Projeto de Lei nº 21/XV/1ª (PAN) – APROVADO

    Projeto de Lei nº 209/XV/1ª (L) – APROVADO

    Projeto de Lei nº 332/XV/1ª (PS) – APROVADO 

    Projeto de Lei nº 699/XV/ª (PAN) – APROVADO

    (O direito à separação por sexos em casas de banho foi uma conquista de direitos de trabalhadoras da indústria, o proletariado. Foi uma conquista feminista para mostrar que somos, sim, diferentes desde o berço e acentuando com o crescimento e maturidade, todas as necessidades diferentes. E nenhum grupo deve calcar outro para conseguir os seus direitos. Foi assim em todas as lutas das mulheres. Dos espaços seguros, à autonomia, liberdade e sufrágio, ao desporto, ao combate à exploração do corpo da mulher sob todas a formas. Suposta “esquerda” que abandonou os trabalhadores para serem pasto de vermes nascidos em ovos da páscoa pintados com várias cores. Falhaste-nos. Não te perdoaremos.)

    four children standing on dirt during daytime

    Margaridas e carvalhos e o silêncio dos inocentes (lembram-se do vilão? O que estava junto ao poço?)

    Agora não se constrói para durar uma vida. Nada. Pois isso não traz lucro ao reino dos psicopatas. Eles decidem, eles organizam, eles fazem tudo por ti. Por uma utopia, filho!

    São pelos vistos agora precisos falsos carvalhos, plantados em canteiros de margaridas.

    Saiam do nosso canteiro. Não toquem nas nossas margaridas.

    “Mas, quando se trata de falar do Homem, a linguagem torna-se incómoda. O Homem distingue-se dos homens. Nada de essencial se diz da catedral se apenas se falar das pedras. Nada de essencial se diz acerca do Homem se o procurarmos definir pelas qualidades de homem. O Humanismo orientou-se, portanto, numa direcção antecipadamente obstruída.”

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Os saudosistas do 25 de Abril

    Os saudosistas do 25 de Abril


    Cada sociedade apega-se aos seus símbolos, aos seus totens, para os impor como referências, como modelos. Portugal tem, desde 1974, o seu totem: o 25 de Abril.

    Não haja mal-entendidos. A Revolução dos Cravos tem, no contexto histórico de um país quase milenar, uma relevância indesmentível. Talvez equiparável apenas à própria fundação de Portugal como nação no século XII, à recuperação da independência em 1640, à Revolução Liberal de 1820 ou à implantação da República em 1910.

    Porém, sem margem de dúvida, para as actuais gerações, e sobretudo para grande parte da elite política, a Revolução dos Cravos constituiu ainda mais do que uma referência histórica. Foi uma mudança drástica do quotidiano, começando pela afirmação de uma democracia plena que, além do direito de voto, trouxe liberdade de expressão, de associação, de intervenção cívica, criando-se também, num contexto europeu e mundial distinto – social, tecnológico, político e geoestratégico –, possibilidade de desenvolvimento de acordo com o primado dos direitos e garantias (e também deveres) individuais.

    Ou seja, a Revolução dos Cravos foi a “cozinha” que os capitães de Abril nos forneceram para cozinharmos uma democracia ao nosso bel-prazer.

    Ora, entretanto, passaram já 49 anos, para o ano estamos no meio centenário. Mais do que meia vida. Hoje, os tempos anteriores ao 25 de Abril de 1974 são somente História, literalmente História, para mais de metade da actual população portuguesa. A vida no passado – leia-se, durante o Estado Novo – “interessa-lhes” tanto como à minha geração a II Guerra Mundial, ou à geração dos meus pais a I Guerra Mundial ou mesmo a implantação da República ou os estertores da Monarquia portuguesa.

    Explico-me melhor. O “interesse” deve existir – somos o fluxo dos acontecimentos do passado. Um jovem de 30 anos ou menos deve saber como era o país antes de 1974 para que a sua geração não permita um retrocesso civilizacional. A minha geração deve saber o que foi a II Guerra Mundial para que se evite uma III Guerra Mundial. Todos nós deveríamos saber como se vivia nos tempos do feudalismo, antes mesmo desse período, durante a Inquisição, nas nossas antepassadas sociedades misóginas, esclavagistas, racistas, homofóbicas, segregacionistas, opressoras.

    Mas esse “interesse” é para saber de onde viemos e para onde não queremos regressar; não deve servir para comparar, para servir como bode expiatório dos nossos falhanços, ou para “revisitarmos” esse passado cada vez mais longínquo para exorcizar os nossos fracassos. Olhar o passado é uma referência, mas os olhos e as nossas acções devem estar focados no futuro e na ementa que queremos servir.

    As comparações entre períodos cronológicos são, aliás, muito falaciosas. E somos sempre péssimos avaliadores dos nossos antepassados. Para o bem e para o mal. É-nos fácil, e confesso que confortável, apresentarmo-nos sempre melhores do que eles, esquecendo que eles, tal como nós agora, foram frutos dos seus tempos. Do seu passado e das circunstâncias.

    Há três séculos, um português branco com posses seria, quase de certeza, machista, racista, fanático religioso (apoiante da Inquisição), defensor da pena de morte e possuiria naturalmente escravos ou serviçais que trataria sem respeito algum.

    Há seis décadas, a maioria da sociedade portuguesa aceitava, por medo ou resignação, o Estado Novo como uma inevitabilidade.

    Mas as sociedades, felizmente, evoluem. Sempre evoluíram, mesmo quando houve alguns retrocessos. E evoluíram não apenas porque houve homens e mulheres que criaram rupturas sociais – ou mesmo revoluções, como a dos Cravos de 1974 –, mas muito mais pelo sentimento comum da sociedade para aproveitar a tal “cozinha”, de modo a “confeccionar” metas e objectivos. Para termos uma sociedade mais desenvolvida, mais equilibrada, mais justa e mais equitativa. Aconteceu a Revolução dos Cravos em 1974; sucederia mais ano menos ano; era uma inevitabilidade política (a menos que alguém acredite que, nesta nossa Europa, ainda pudesse subsistir, isolada,uma ditadura à la Salazar em pleno século XXI.

    Olhar para o futuro, com o retrovisor no passado, deve ser aquilo que nos tem de nortear o presente.

    Contudo, aquilo que mais se tem visto nos últimos anos em Portugal – com uma cadência aflitiva – é olhar-se para a democracia como um facto consumado, como uma Conquista de Abril irreversível, revisitando-se ad nauseam o dia 25 de Abril como um totem, onde de cravo ao peito os políticos nos “mostram” os horrores do passado, para que, inebriados e agradecidos, aceitemos o miserável “estado a que chegámos”, parafraseando Salgueiro Maia, ao longo das últimas décadas.

    Não me “interessa” já – ou melhor dizendo, não me interessa na perspectiva de muitos – revisitar a Revolução dos Cravos ano após ano com os mesmos discursos, com as mesmas loas às “conquistas”, com a hipócrita idolatria aos heróis da democracia, quando o mais importante é saber o que fizemos com aquilo que nos ofereceram há 49 anos, que caminho soubemos trilhar em cinco décadas.

    A nossa avaliação da Revolução do 25 de Abril – ou seja, da democracia em Portugal – não pode continuar focada na comparação com o Estado Novo – deixemos já isso para os historiadores –, mas sim atenta à evolução da geopolítica internacional e aos novos perigos que se avizinham para as nações e para as sociedades, como a perda de soberania perante uma Comissão Europeia não-eleita (e com objectivos obscuros), a ameaça às liberdades individuais (incluindo a propriedade) e colectivas, o aumento da corrupção moral (raiz de todas as outras), a degradação da liberdade de expressão e até de imprensa, por via do oligopólio dos conglomerados tecnológicos e de media promíscuos.

    person standing near table

    Numa crescente cultura do obscurantismo e da auto-censura (por medo de represálias) – eu sei que o nosso colunista Tiago Franco acenará com o lápiz azul da Censura e com as prisões do Estado Novo, mas é suposto só nos preocuparmos se chegarmos a esse estado, porque até aí está (ainda) tudo bem? –, se quisermos salvar a democracia – e salvar significa manter ou melhorar os seus princípios –, deixemos de visitar o 25 de Abril como se fôssemos a uma romaria ou a uma feira onde os vendedores da banha da cobra nos tentam endrominar. E nós sabemos disso. 

    Não nos deixemos, por isso, anestesiar pelos saudosistas do 25 de Abril, porque se assim for, em desespero, quando tudo ruir, e vai ruir se assim continuarmos, acabaremos nas mãos de populistas de ideologia duvidosa, que a História, hélas, já nos mostrou ser caminho ainda mais insano.

    Como atrás escrevi, a Revolução dos Cravos foi a “cozinha” que os capitães de Abril nos forneceram para cozinharmos uma democracia. Ao que sabe o prato que nos estão a servir neste momento é o que nos deve preocupar mais. Hoje e amanhã. E em todos os amanhãs, mesmo aqueles que não cantam.

  • O dia mais bonito

    O dia mais bonito


    “Somos muitos, muitos mil para continuar Abril” é uma das frases mais repetidas a cada aniversário da Revolução dos Cravos. A frase terá diversas interpretações, admito; a minha é que o 25 de Abril de 1974 ainda não cumpriu todos os seus objectivos.

    Temos democracia, que era o objectivo principal, mas falta-nos justiça social, igualdade, prosperidade, solidariedade e até honestidade nas elites que nos dirigem.

    A prova que Abril ainda não está cumprido é que, também por esta altura, aparecem sempre os desiludidos da democracia que enaltecem os benefícios do Estado Novo. Se há momento da vida em que não podemos meter um “mas” na discussão é quando comparamos um regime democrático com uma ditadura. Por pior e frágil que seja a democracia, nada é pior do que viver em ditadura, sem liberdade e sem opinião.

    Um dos desiludidos da democracia é o meu colega de jornal, Luís Gomes, que escreveu ontem um texto sobre o 25 de Abril que me deixou os olhos a arder para conseguir chegar ao fim. Percebo agora melhor o sofrimento de liberais e simpatizantes da extrema-direita quando me tentam ler.

    O Luís começa a prosa com o seguinte parágrafo: “Na verdade, nunca o quase milenar povo português viveu debaixo de tanta propaganda, mentira e manipulação. Os últimos três anos foram paradigmáticos, nunca como agora a Administração Pública foi tão obscurantista: nada informa, nada partilha, nada publica, apesar da lei e a Constituição da República (CRP) obrigá-la a ser transparente.”

    Isto leva-me a pensar que, se calhar, seria boa ideia começar com uma piada para desanuviar o clima.

    Portanto, nunca o povo português viveu no meio de tanta propaganda, mentira e manipulação como agora, é isso?

    Portanto, tínhamos um povo que foi ensinado que a salvação era uma pessoa e um regime de partido único, que foi enviado para uma guerra a milhares de quilómetros de casa sem saber porquê e a quem diziam o que pensar e o que escrever…

    Nunca se tinha visto tamanha manipulação até aos dias de hoje, é isso?

    No mínimo, temos aqui um conceito bastante elástico sobre o que é a manipulação das massas.

    Sobre a parte em que o Luís afirma que a Administração Pública nada informa nos dias de hoje, eu penso logo no lápis azul de outros tempos.

    A informação chegava, de facto, mas era previamente seleccionada consoante os interesses do regime.

    Com todos os defeitos da democracia, meu caro, ainda assim prefiro os dislates do Correio da Manhã. É um facto que falam em mortes todos os dias, mas, até ver, ainda não arranjaram nenhuma por conta própria.

    Há uma frustração constante na prosa do Luís com a pesada carga fiscal que se abate sobre os portugueses. Aqui estamos de acordo. Também acho que o Otelo não planeou isto para o Costa nos ir ao bolso desta maneira. O meu colega diz até que o Estado Novo foi “de longe e sem qualquer margem de dúvida aquele que mais enriqueceu, em termos relativos, o povo português nos últimos 200 anos”.

    Ao contrário do Luís, eu não sou economista e não domino os termos técnicos do enriquecimento, de modo que resolvi ir ler os mestres da teoria do enriquecimento. E da liberdade, já agora.

    Em 1962, disse António de Oliveira Salazar: “Um país e um povo que tiverem a coragem de ser pobres são invencíveis”. Foi pena aquele incidente desagradável com a cadeira porque, quiçá, Salazar pudesse ter vivido o suficiente para perceber a quantidade de ricos que semeou no povo português. Foi pena.

    O trauma com o Estado Social parece vir de longe. Há pouco mais de três anos, noutro texto desanimado sobre o 25 de Abril, no jornal Eco, escreveu o Luís: “Em 1965, em plena guerra colonial, o estado português tributava cerca de 15% do nosso rendimento. Actualmente [2020], confisca 35%, um máximo histórico, com uma agravante: não parece que a coisa fique por aqui, dada a voracidade por mais receita fiscal e a necessidade de alimentar as clientelas que se alimentam do orçamento de estado”.

    Confesso que ao ler isto fiquei com pena de não ser vivo no glorioso ano de 1965. Imagine-se o regozijo daquela malta com 15% de impostos – curiosamente, o número mítico (flat) defendido pelos liberais – a viver como uns lordes, enquanto davam o salto para fugir da guerra ou tentavam sobreviver nas matas africanas.

    O Luís esqueceu-se de referir os 0% de impostos com que os 10 mil soldados portugueses mortos no Ultramar foram agraciados.

    Portugal foi um dos países europeus que não saiu arrasado da II Guerra Mundial e com dinheiro em caixa. Tal como a Suécia, curiosamente.

    Aqui pelo Norte, eles colocaram o dinheiro em habitação, em escolas e em hospitais – opções de uma democracia.

    Em Portugal, uma ditadura de partido único, enquanto castrava as mais elementares liberdades, empobrecia numa guerra sem sentido, de 13 anos, a milhares de quilómetros de distância. Pelo meio, ainda arrasava uma geração de jovens ou os condenava à emigração.

    O país profundamente atrasado, isolado e pobre, que cobrava menos impostos, prendia e matava pessoas por manifestarem opinião divergente. Tinha, em 1970, depois de 44 anos de ditadura, 25% da população analfabeta. Repara Luís: não eram pessoas com a quarta classe ou com o secundário incompleto. Eram analfabetas.

    Hoje, com todos os defeitos da democracia, este número é inferior a 3%. É verdade que alguns destes, que entretanto aprenderam a ler e fizeram a quarta classe, acabaram a votar no Chega, mas, compreenderás, como dizia Churchill, que de entre todos os sistemas imperfeitos, este – a democracia – é o melhor.

    Não há, por mais queixas que possamos ter do Centrão que nos governa desde sempre, lugar a um “mas” algum. A pior democracia é melhor do que qualquer ditadura. Ponto.

    Podemos votar, podemos mudar, temos alternativas. Tu, desiludido confesso da Revolução dos Cravos, podes fundar um partido ainda mais liberal do que a Iniciativa Liberal, e tentar angariar votos com uma política da selva: nada de impostos, nada de Estado Social, cada um por si. E está tudo bem.

    Se outros pensarem como tu, podem mudar as políticas do Estado. Se fosse na gloriosa década de 60, e não estivesses contente com as políticas do regime, ias arrefecer as ideias para Peniche e se continuasses a reclamar, ias fazer sauna para a “Frigideira” (Tarrafal), em Cabo Verde.

    Eu prefiro pagar mais impostos, ainda assim, e ficar em brasa quando ouço tudo o que vai do PS para a direita, inclusive.

    Repara: uma das vitórias de Abril é, por exemplo, poderes escrever uma crónica destas e seres publicado. A beleza da conquista da liberdade e do direito à opinião, de que hoje beneficias.

    E, curiosamente, uma das razões pela qual Abril está incompleto é exactamente a mesma: 49 anos depois, ainda alguém conseguir encontrar pontos de contacto com o Estado Novo.

    A Revolução dos Cravos foi das poucas coisas em que acertámos enquanto povo. Estamos cá para a continuar. Sempre.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Reescrever o 25 de Abril

    Reescrever o 25 de Abril

    O golpe militar do 25 de Abril faz hoje 49 anos. O próximo ano vai ser decisivo para a reescrita da sua história, por isso é importante assinalar alguns factos históricos que não podem ser esquecidos. Ouça também esta crónica no P1 PODCAST.


    A maior tentação dos vencedores é a de reescrever a História. Bem, nem sequer é uma tentação, pois podemos mesmo dizer que é uma inevitabilidade. Os vencedores têm todo o direito a reescrever a História, pois eles são isso mesmo: os vencedores.

    E a História dirá que aquela era a madrugada pela qual muitos esperavam, o tal “dia inicial inteiro e limpo” do poema da Sophia de Mello Breyner, “onde emergimos da noite e do silêncio/ E livres habitamos a substância do tempo”. Isso é muito bonito.

    Sim, o 25 de Abril terminou com uma Ditadura e deu-nos uma Democracia. Acabou com uma guerra colonial e permitiu que outros países se tornassem independentes. E Portugal tornou-se num País europeu onde, apesar das dificuldades económicas destes últimos tempos, ainda assim estamos muito melhor do que no tempo em tínhamos uma ditadura.

    O problema é que esta narrativa dos vencedores não nos deixa ver certos factos históricos que, agora, à distância de meio século, deveriam ter sido tidos em consideração para saber o que podemos fazer nos próximos 50 anos. Sobretudo hoje, quando temos uma guerra na Europa e não parecemos perceber porquê.

    Há alguns factos, breves e básicos, que deveremos ter sempre em consideração quando falarmos do que aconteceu a 25 de Abril de 1974. Primeiro de todos, temos de ver que se tratou de um golpe militar num País que era membro da NATO. Mais ainda: era membro fundador da NATO.

    Essa nobre instituição que pugna pela defesa da Democracia, afinal, em 1949, teve uma ditadura fascista como membro fundador. Ou será que Portugal não era uma ditadura fascista? Os Estados Unidos e os outros países na NATO andavam todos enganados?

    Um ano antes do nosso 25 de Abril, a 11 de Setembro de 1973, os militares no Chile fizeram aquilo que os militares normalmente fazem: um golpe militar para instaurar uma ditadura. Em Portugal, foi diferente porque a NATO é diferente.

    No Chile, dizem que os Estados Unidos estiveram por detrás do golpe, mas em Portugal, garantem que não houve qualquer influência de Washington. Aliás, para que isso ficasse bem claro, o próprio embaixador dos Estados Unidos em Lisboa até estava convenientemente ausente no dia do golpe.

    É ainda muito importante dizer aos jovens que o 25 de Abril não “derrubou Salazar”.

    O ditador António de Oliveira Salazar, que ocupou o cargo entre 1932 e 1968, só deixou de ser ditador porque teve um acidente doméstico e ficou incapacitado fisicamente. E morreu pacificamente, na sua cama, em 1970.

    Portanto, isto aconteceu quatro anos antes da revolta dos militares.

    O 25 de Abril derrubou um outro ditador, que se chamava Marcello Caetano. E esse nunca foi julgado por qualquer crime, pois, faz hoje 49 anos, saiu do Quartel do Carmo dentro de um carro militar blindado e foi levado directamente para o aeroporto. Morreria no Brasil, seis anos mais tarde, em Outubro de 1980.

    Isto foi dois meses antes do primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro ter sido assassinado com uma bomba a bordo do avião que se despenhou em Camarate.

    Esclarece-se ainda que a descolonização foi feita num período de apenas um ano. Se virmos que 500 anos são apenas umas horas na História do mundo, a nossa saída de África teve lugar há apenas uns segundos.

    A última colónia a ter a independência foi Angola, em Novembro de 1975, apenas uns dias antes do golpe do 25 de Novembro, aquele que, hoje, é apontado por certos sectores políticos como o verdadeiro início da Democracia e não o 25 de Abril.

    A História livre e independente sobre o 25 de Abril ainda está por ser feita. O próximo ano irá servir para esconder muita coisa e criar muitos mitos, mas lembremo-nos que à conta de tanto reescrever a História, corremos não o risco de a repetir, mas sim o de a imitar de forma caricata, mas com efeitos ainda mais trágicos.         

    Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor


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