Os jornais da noite descreveram o dia de ontem, na comissão parlamentar de inquérito da TAP, como um guião digno de Hollywood com desenlace rocambolesco. Reconheço a originalidade do que estamos a ver e ouvir em directo (algo que me parece bom para a democracia), mas, aqui entre nós, é mais teatro de revista do que propriamente uma grande produção.
Perdi algum tempo a ver o triste espectáculo em que se tornou a política portuguesa, e fiquei com várias dúvidas. E apenas uma certeza. Pouca gente naquela comissão estará interessada na verdade. O PS tenta safar João Galamba e queimar o (ex-)adjunto, enquanto a oposição faz o contrário. É relativamente simples ver pelas perguntas, comentários e adjectivações de cada um dos deputados, nos momentos em que fazem as questões, o que por ali andam a fazer.
João Galamba
De todos, o mais esperto, Ventura, em permanente campanha eleitoral, assumiu o lugar do outro deputado do Chega e aproveitou as horas em direto para ser o destaque do dia. Foi ele, sem qualquer dúvida, o líder da oposição naquela comissão. A inutilidade do PSD neste particular é algo que não pára de me espantar.
Frederico Pinheiro, ex-adjunto de Galamba, foi arrasador nas declarações que fez e deixou Galamba ainda em piores lençóis. Não se engasgou, não entrou em contradições e fez acusações graves, nomeadamente a parte em que mete as secretas ao barulho.
Eugénia Correia Cabaço, jurista de profissão e chefe do gabinete do ministro, também não se engasgou ou se sentiu intimidada pelo ambiente da comissão e não tremeu perante os deputados. Diria que fez o contraditório do discurso de Frederico Pinheiro sem grandes dificuldades. Ou como diria Perry Mason (só para os mais antigos), estabeleceu a razoabilidade da dúvida entre quem a ouvia. Na Assembleia da República e, já agora, em casa.
Fico obviamente curioso para ver como Galamba se vai defender hoje, mas não entendo, mesmo, como é que o homem continua sequer como ministro. António Costa, depois de ter encostado Marcelo à parede, vai ter alguma dificuldade em fazer novo truque de magia no fim desta comissão de inquérito.
Frederico Pinheiro, ex-adjunto de João Galamba.
Interessa-me pouco, para já, discutir as agressões, a legítima defesa e o alegado sequestro. Sem a câmara de videovigilância vamos andar, apenas, a navegar no mar da especulação. Nem sequer percebi, entre socos e agarrões de mochila, como é que o adjunto acabou manietado e sequestrado. É uma daquelas partes do guião em que o escritor tirou uma pausa para café e, quando voltou, passou ao capítulo das secretas na piscina dos filhos.
Esta parte do filme, o envolvimento dos serviços secretos já me parece bem mais interessante e grave. Desde logo porque o depoimento de Frederico Pinheiro revela uma tentativa de intimidação, ao mesmo tempo que lhe exigiam que devolvesse o computador e as notas tiradas na reunião com a CEO da TAP.
Eugénia Cabaço não negou o envolvimento das secretas, mas não revelou quem deu a ordem. É aqui que tudo fica mais apimentado. Não chega a guião de Hollywood, mas já cheira a mistério com actores de qualidade B.
Tal como a ameaça de Galamba ao adjunto (de lhe dar dois socos), que é facilmente comprovável pelo registo das chamadas (qualquer engenheiro de telecomunicações pode explicar isto), o envolvimento do SIS não deve ser muito difícil de comprovar. Ou melhor dizendo, será difícil João Galamba esconder essa realidade se, de facto, tiver acontecido. E se for assim, se o PS andar a usar as secretas para arrumar a casa, o caso muda totalmente de figura. É a prova cabal e final de que este Governo de maioria assume o Estado como o seu quintal e Portugal como a sua coutada. Os verdadeiros donos disto tudo sem pejo nem pudor.
O que parece ser consensual e, honestamente, a única verdade até ao momento, mais ou menos confirmada, é que de facto Frederico Pinheiro tomou notas na reunião de preparação com a CEO da TAP. Notas essas que, como se percebe, seriam incriminatórias para João Galamba (noutra prova de que o PS domina os bastidores da política), e acabaram por precipitar todo o enredo que resultou neste final triste e degradante, na comissão de inquérito.
Tem a palavra Galamba para mais um dia de circo na República e umas boas 5 horas de transmissão televisiva.
Cá fora, onde a vida real acontece, o cabaz de produtos básicos ficou mais caro, um mês depois do Governo anunciar o IVA zero sobre alguns bens de consumo. É aqui, neste rodapé informativo, que assenta o verdadeiro drama de Hollywood.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
De tempos a tempos, dou por mim em debates sobre encruzilhadas da vida que me agradam. Aqueles momentos que, tipicamente, nos recordamos anos mais tarde como decisões que se revelaram acertadas. Alguém de quem gosto muito, há dias perguntou-me o que achava de uma pausa na carreira, de um despedimento repentino, de uma paragem nas rotinas diárias, para ir ver o mundo. Ou, como lhe chamam nos países desenvolvidos, um gap year.
Em Portugal, isto gera discussão e provoca dificuldades. Nos países da Escandinávia, por onde passei metade da vida adulta, é um passo comum na vida. Uma etapa. Há quem o faça trabalhando, há quem o faça no início do percurso académico. Mas não há nada de estranho, em determinado momento da vida, em sair para a estrada e seguir à descoberta.
Quem me conhece, como era o caso do meu interlocutor, sabe que é uma pergunta retórica. Sou um péssimo conselheiro nestas ocasiões, porque para mim, depois das relações entre pessoas, não existe nada mais importante do que viajar.
Soará talvez a algo fútil nos dias que correm e no meio das dificuldades que se conhecem, mas é o que verdadeiramente penso. Poucas coisas na vida são tão importantes como conhecer outros sítios e abrir os olhos para o mundo. Começa aí, a meu ver, o verdadeiro conhecimento da nossa realidade e do papel que temos neste planeta recheado.
Uma das minhas partes preferidas neste debate é o medo de se perder o emprego perfeito. Era essa a grande dúvida de quem comigo falava. “O que vou fazer depois de perder o emprego perfeito?”. Ou seja, o medo de se perder algo que não existe. Existem pessoas perfeitas, que nos completam e cuja existência dá outro sentido à nossa vida. Existem momentos perfeitos que perduram na nossa memória e que emolduramos na galeria dos sorrisos. Não existem empregos perfeitos. Especialmente para a grande maioria que, como nós, trabalha para garantir o seu sustento ou da família.
Existe um contrato, uma troca, um acordo. Força de trabalho por dinheiro, de preferência em quantidade suficiente para aguentar BCEs, Ucrânias e inflações. Não há juras de amor a uma empresa ou lealdade eterna a um empregador. Há profissionalismo e dedicação séria, enquanto o contrato durar. Depois, fecha-se a gaveta e entrega-se essa mesma dedicação e lealdade ao próximo sortudo que connosco fizer um contrato.
Sim, sortudo. Sorte do empregador que encontra um trabalhador dedicado.
Sempre que aparece esta conversa, já lhes perdi a conta, por norma com pessoal na casa dos 30 anos (imagino que seja a primera fase da vida em que pensamos “e agora?”), lembro-me de um rapaz que conheci há 15 anos, na Suécia.
Voltei-o a vê-lo há poucos dias no IKEA, mas só me apercebi quem era uns dias depois. Tínhamos ambos 30 anos e eu ia no meu sexto ou sétimo ano de trabalho. Ele cumpria, naquele dia, o seu primeiro na Engenharia.
Perguntava-me, em surdina, como é que alguém tinha o seu primeiro emprego aos 30 anos, e como é que o mercado absorvia uma pessoa assim. Tinha chegado há pouco tempo de Portugal, eu, e ainda vinha com a cabeça formatada para as sequências impostas da vida: escola, universidade, trabalhar aos 24, casar, ter filhos, criar uma boa barriga aos 30, ser promovido aos 35 e ficar na mesma função até à reforma.
Ainda ecoavam na minha cabeça as palavras daquela senhora de uma empresa de telecomunicacões (julgo que se chamava CBE), que na entrevista me disse: “você já tem 23 anos, o que andou a fazer da vida?”
Para mim, aquele rapaz, a chegar ao “mercado” aos 30 anos, devia ter um problema qualquer. As palas que eu tinha nos olhos não davam para ver mais longe.
Um dia, já com alguma confiança entre nós, ele partilhou a história de vida. Disse-me que tinha trabalhado em bombas de gasolina, com vacas, em supermercados, na apanha da fruta. Pelo meio, tnha dado duas voltas ao Mundo e quando percebeu que a sua paixão era Engenharia, foi estudar e trabalhar na área.
Ao contrário de nós, que escolhemos o resto da vida numa idade em que mal sabemos o que se passa para lá do nosso bairro, ele teve a sorte de nascer numa parte do Mundo onde há tempo para viver e para se escolher o caminho certo. Ninguém ali era velho aos 30 anos e senhora alguma dos Recursos Humanos pensou que ele era um calão.
Ele fez a escolha certa, no tempo apropriado e com a maturidade que lhe permitiu ser um óptimo profissional, pois sabia que aquele era o caminho a seguir. No primeiro dia naquela empresa, o curriculum dele já era bem mais recheado e interessante do que o meu, que andava há sete anos a bater em teclados.
Bem sei que as oportunidades em Portugal não são as mesmas, e o mercado de emprego, absolutamente miserável, não se emociona com descobertas do planeta. Ainda assim, hoje, aos 46 anos, que pena tenho de só ter percebido esta realidade tão tarde e num momento em que a descoberta do Mundo já só podia ser feita aos bocados, em fatias de semanas e sempre com responsabilidades que não se podem adiar ou pausar.
Nascemos para descobrir e viver outras culturas. Não para trabalhar de sol a sol e pagar contas. É por isso que lutas como a dos franceses pela idade da reforma são importantes. Ou a dos professores por salários dignos. Há uma imensidão para lá da nossa rotina diária que exige tempo e dinheiro para ser descoberta. Pelo menos por quem tem essa curiosidade.
Uma das coisas que nunca percebi, perdoar-me-ão, é quem passa uma vida inteira a ir de férias para o mesmo sítio. Seja o Algarve ou outra zona qualquer. Nunca percebi e até fico angustiado quando ouço ou leio “vou para sítio X há 30 anos”. Com um Mundo tão grande, não têm curiosidade de ver mais nada?
O meu sonho é um gap year. Fico feliz quando alguém de quem gosto pensa nisso e quase que me sinto a viver o momento. Vai, vai e vai, é sempre o meu conselho. Se não tiveres um filho ou alguém que depende de ti, vai. Se tiveres um filho e o puderes levar, vai. Se fores casado e a tua mulher alinhar, vai. Se ela não alinhar, esforça-te para a convenceres. Enquanto as pernas mexerem e o espírito se mantiver curioso, vai. Nada, absolutamente nada de mau chega com uma nova viagem.
Um dia chegará o meu Gap Year; pelas minhas contas, pouco depois de completar 50 anos, numa altura em que os miúdos serão adultos e estarão fora de casa a completar o último passo do sistema de ensino. Ou então a trabalhar, como me explicou recentemente o meu filho, com planos para atingir o primeiro milhão aos 18 anos. Tipo Trump, mas sem o empréstimo do pai.
De uma forma ou de outra, com uns bons 25 anos de atraso, esse dia chegará. Provavelmente com os joelhos mais massacrados e as costas menos desejosas de chão irregular. Mas chegará.
Para ti e para vocês, que estão agora na idade do rapaz que trabalhava nas bombas e apanhava morangos, assim que pensarem nisso pela primeira vez, vão. Não esperem pela dúvida. Aquela história da água que não corre duas vezes debaixo da mesma ponte, era mesmo verdade.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
O sedentarismo bulímico convoca para a saciedade de uma inexistência – comer por estar sentado – e está a conduzir a Humanidade à obesidade, e à epidemia maior do século.
O vírus gordo é a maior causa de morte, arrastando consigo a hipertensão, a diabetes, a obstipação, as doenças de sobrecarga das articulações e ossos, as doenças pulmonares, a doença do sono.
Este síndrome metabólico mata muito mais gente que o HIV, que o H1N1, que o SARS-CoV-2 –, aliás, mais que os três vírus juntos.
Numa governação para a saúde, a aposta dos Ministérios devia ser no combate ao sedentarismo e na defesa de estilos de vida saudáveis e por uma prevenção eficaz. Devemos perceber que há também o consumo de álcool como um multiplicador de gordura e uma permissividade social à sua utilização desenfreada.
Por outro lado, as Queimas das Fitas nas universidades, que se aproximam, são uma alarvidade etílica paternalmente consentida que envergonharia sociedades mais conservadoras.
Não é menos verdade que o inimigo público principal são os cartéis que influenciam a alimentação – e depois o tratamento das doenças derivadas da construção da obesidade.
Os clusters dos medicamentos influenciadores da cor, do gosto, do tamanho, da durabilidade dos alimentos estão já em todos os produtos processados e colocados à venda nos hipermercados.
O poder destas empresas estende-se ao que colocamos na terra, às rações dos animais, e aos ciclos de vida de espécies verdes e animais, nascendo mais depressa, crescendo mais rápido e reproduzindo-se mais vezes. ~
Este é o ponto de ordem para uma nova política, uma nova dimensão organizativa das sociedades. Aquilo que comemos e a forma como comemos é lugar de uma reestruturação do pensamento.
As consequências desta reflexão são ideológicas e definem outro posicionamento que já não será de esquerda ou de direita, nem conservador ou modernista.
O cidadão gordo, que se alimenta sem cuidar do trato que damos aos animais, sem pensar no sal que utiliza, nos açúcares que ingere, é um padrão em fim de ciclo.
Os cidadãos do amanhã saudável exigem uma mortandade menor, não querem as vacas que pastam onde esteve a Amazónia, escolhem menos produtos, praticam exercício, retiram os sofás da sala de estar, e colocam passadeiras para caminharem frente a uma televisão, que tentarão controlar nos seus conteúdos.
Estamos à porta de um confronto ideológico brutal onde tudo se modifica.
A comida cartelizada pelo leite e o açúcar é amiga dos grandes produtores do vinho e cerveja. Todos produzem e utilizam de modo liberal os adjuvantes que terão efeitos secundários perversos no corpo.
Os mesmos cartéis garantem que não morremos destas pequenas maleitas, pois são eles que detêm o poder da grande farmacêutica que está lá para nos manter um pouco doentes, mas duradouros, com ajuda de medicamentos.
O sedentário vai estar em confronto com o obstinado saudável. Ele também acredita nos suplementos da Big Pharma – mas agora são outros nomes, outras indicações e, sobretudo, servem para dar saúde. Os dois carregam telemóveis e ambos consomem aplicações que ajudam ao sedentarismo. Não vás, pede na app.
Diogo Cabrita é médico
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
A proposta da nova Lei do Tabaco, com as suas diversas proibições, está a fazer “sair da casca” aqueles que tão obedientemente estiveram a pactuar com medidas totalitárias, e sem nexo nem senso-comum, nos últimos três anos.
Não deixa de ser curioso assistir, agora, a grandes actos de revolta; a grandes manifestações de incredulidade perante tamanhas proibições e tamanhos actos deste regime que começa a ser chamado até de “ditatorial”.
Ora, mas isto não deixa de ser curioso porque, de facto, nos últimos três anos, aquilo que tivemos em Portugal foi uma população extremamente obediente, mesmo em relação a medidas que eram completamente anti-Ciência; que prejudicaram a população, deixaram um rasto de mortalidade em excesso, um rasto de uma epidemia de saúde mental; e deixaram a Economia como sabemos, com as taxas de juro a dispararem, com todos os efeitos na inflação e nas condições de vida das famílias.
Nos últimos dias, conclui-se que, de facto, as pessoas só se mexem se lhes tocarem em pontos mais sensíveis. Porque, de resto, não se interessam e até obedecem de boa vontade.
Agora, é sobretudo curioso ver jornalistas muito revoltados com estas medidas. É curioso porque quando eu comecei como jornalista na profissão – e eu nunca fumei –, nas redacções vivia-se num ambiente de fumo; mais de 90% dos jornalistas fumava. E eu lembro-me de chegar a casa ao fim do dia e toda a minha roupa tinha de ser lavada imediatamente, tal era o cheiro entranhado em mim, como se eu fosse fumadora.
Durante anos, enquanto era permitido fumar no interior dos edifícios e dos escritórios, nunca vi jornalistas incomodados com o facto de fumarem constantemente para cima de colegas.
Por tudo isto, é curioso ver agora esta grande revolta. Mas sobretudo ver esta revolta – e não é só em Portugal – por causa deste tipo de proibições, de o Estado e os políticos se quererem substituir aos próprios indivíduos para definir as suas escolhas.
Isso é algo que tem vindo a acontecer, meus caros, mas não é de agora apenas: é desde 2020. Não é nenhuma surpresa agora. Vocês recordam-se daquelas pessoas que em Portugal queriam obrigar os outros a vacinarem-se, com novas vacinas que, afinal, podem causam problemas do foro cardíaco, por exemplo? Pois, eu recordo-me.
A ideia de que deve desaparecer o livre-arbítrio e deve desaparecer a vontade e a soberania individual, prevalecendo um indefinido bem-comum, é uma nova ideologia, uma nova moda que tem ressurgido.
Meus caros, a nova Lei do Tabaco é apenas uma das partes que mostra esta nova ideologia: a liberdade e a vontade individual não contarão para nada.
Por isso, saúdo estes “novos revoltados” contra esta ideologia ditatorial, ainda mais associada a uma onda de censura.
Basta ver a legislação em aprovação em diversos países e também a regulamentação arquitectada pela União Europeia, toda no sentido de classificar e condicionar a informação possível de ser divulgada – em suma, a autorizar a censura e também a estabelecer limitações à liberdade de imprensa –, para compreender que o ressurgimento de uma nova onda, cíclica, de regimes totalitários está aí à porta.
Já era visível em 2020, e é cada vez mais visível para qualquer um que olhe para as muitas políticas em desenho e em implementação: é só juntar os pontinhos. Nem é preciso ser muito inteligente: basta colocar as várias políticas, a legislação e as várias regulamentações que têm estado a ser desenhadas a vários níveis, para compreender que, juntando tudo, há uma estratégia clara e um sentido comum: a anulação da vontade individual, do livre-arbítrio, da soberania individual.
Portanto, é bom ver estes revoltados de agora, por causa da questão do tabaco, vejam que isto não surge isolado; é mais um dos pontos. Olhem à volta, meus caros. Olhem.
Há muito mais que está a acontecer, há muitos alertas. Acordem, porque se não, quando um dia perceberem, poderá já ser tarde demais.
Este texto baseia-se no episódio 123 do podcast Caramba, à Galamba.
Há dias, o regime socialista que nos governa há mais de 49 anos exultava com os dados do crescimento económico para o primeiro trimestre de 2023: uma variação positiva de 1,6% em relação ao trimestre anterior, muito superior à média de 0,3% da União Europeia (EU-27), e de 2,5% em relação ao primeiro trimestre homólogo (2022).
De imediato, os avençados soltaram hosanas ao feito ímpar: “A Economia [portuguesa] cresce melhor do que as outras, as exportações estão a bater recordes, o crescimento do consumo privado sobe, a inflação desce. Entretanto, o governo está, digamos, como está. Talvez não precisemos de governo”. Uma espécie de Alice no País das Maravilhas!
Há, no entanto, um enorme senão. O crescimento económico de um dado país deve debruçar-se sobre séries longas e não num foguetório de um trimestre que aparentemente correu bem. Basta analisarmos a partir do ano anterior (2019) ao início da falsa pandemia.
Excepto a Eslováquia, igualmente um país pobre, o crescimento económico acumulado até 2022 de Portugal apenas superou o desempenho de países consideravelmente mais ricos, como a Áustria, a França, a Itália e a Alemanha. Até a bancarroteira Grécia, a TAP dos países da UE-27, logrou melhor registo!
Infelizmente, e apesar da propaganda de cravo na lapela todos os anos, o socialismo e o Estado Social em nada contribuíram para a educação da população, que apenas não é a mais ignorante em matérias financeiras da UE-27, porque existe a Roménia para ocupar esse lugar – aquele país que viveu o horror comunista durante décadas.
Por aqui, podemos concluir que o trabalho dos órgãos de propaganda está muito facilitado. Os personagens que tomam conta disto há décadas, em particular os que pululam pelos dois partidos socialistas, podem soltar as patranhas que entenderem, já que a população tudo come.
Crescimento real acumulado do PIB entre 2019 e 2022 para os países da União Europeia (2019=100; Índice base 100). Fonte: Eurostat. Análise do autor.
Não estranha que ninguém se iniba em votar e aplaudir os discípulos e ajudantes do famoso engenheiro, aquele que obteve oficialmente a licenciatura a um Domingo – lembram-se?
O tal que elaborou um plano tecnológico que nos ia retirar do subdesenvolvimento atávico. O tal que vendeu computadores Magalhães ao Sr. Chávez. O tal que tratava aos gritos o seu amigo por este não terminar umas obras na sua milionária casa em Paris – atenção: a casa não era do engenheiro, mas do amigo!
O tal que afirmou ser detentor de um milhão de contos num cofre que recebeu da mãe como herança, apesar de até hoje não sabermos como o converteu para Euros e por que razão mandava o Perna pagar o cabeleireiro da sua mãe milionária.
O tal que ordenava o Perna a comprar livros de que era o suposto autor – pagou a um amigo para o escrever, incapaz de tal glória – para o elevar ao topo das vendas nacionais.
Percentagem de adultos com literacia financeira em cada país da UE-27. Fonte: Global Financial Literacy Survey. Análise do autor.
O tal que ordenava ao amigo que lhe enviasse livros, estantes ou bibliotecas de notas, consoante as necessidades e anseios de cada momento. Enfim, o tal que nos deu a gloriosa bancarrota, a terceira do actual regime.
Neste contexto, não deve gerar qualquer estupefacção a gestão das empresas públicas – o socialismo gosta de dizer que são de todos –, em que os gestores são meros capatazes ocupantes de gulosas sinecuras. Obviamente, o resultado são sempre colossais prejuízos e perdas sem fim, cobertos por sucessivos assaltos à população, que aparentemente sofre da síndrome de Estocolmo, tal o enxovalho que sofre há décadas.
Como pode alguém se surpreender que uma pessoa íntima do nosso engenheiro tenha combinado as perguntas e as respostas com a ex-directora geral – agora é mais elegante CEO! – da bancarroteira nacional, mais conhecida por TAP?
Como pode alguém se surpreender que o personagem tenha chamado os serviços secretos para investigar – será mais intimidar! – a alegada invasão do Ministério das Infraestruturas pelo seu ex-adjunto, que, segundo o próprio, queria apenas levantar bens pessoais e um computador que continha as notas da famigerada reunião com a ex-directora geral, onde previamente se combinara as perguntas e respostas da sua audição na Comissão de Inquérito à bancarroteira nacional.
Como pode alguém se surpreender que o Governo liderado pelo excelso admirador do nosso engenheiro não seja capaz de colocar tal personagem na rua!? Pelo contrário, negava-se a aceitar a sua demissão.
Como pode alguém se surpreender que o famoso glosador de televisão, perito num amplo leque de temas, da política à bola, eleito de forma esmagadora pelo iliterato povo a Prócere da República, não seja capaz de mandar este grupo de salteadores para o olho da rua.
Assim, há dias, foi natural a sua prédica à Nação: não despedia, mas ia estar atento! Agora é que era; até aqui, atenção, tinham sido apenas selfies, comentários triviais, análises futebolísticas, passeios sem fim à nossa conta e absoluto desprezo das liberdades do plangente e sandeu povo, que era suposto garantir e defender pela CRP.
A partir daqui, o pundonor da sua presidência estava a salvo, dado que passaria a dar a máxima atenção aos “problemas do dia-a-dia”, da habitação à alimentação! Agora sim, para além do escrutínio, o esperado tau-tau, semelhante àquelas perseguições das nossas mães com um chinelo: muito barulho, pouco impacto e, no fim, um enorme riso.
PIB per capita corrigido pela paridade do poder de compra em 2022 (UE-27=100; Índice base 100). Fonte: Eurostat. Análise do autor.
Apesar de tudo, o arrufo não foi suficiente para o Meijengro da República se dar conta dos quatro milhões de pobres, o maior produto do socialismo, e de que estamos a caminho de ser o país mais pobre da Europa, apesar dos encómios dos avençados aos salteadores que nos governam.
Tenhamos esperança, embora as raposas continuem no galinheiro, temos agora um observador atento aos nossos “problemas do dia-a-dia”. Estamos agora mais tranquilos!
Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Khader Adnan, um activista palestiniano, preso desde Fevereiro numa prisão israelita, morreu, nessa mesma prisão, no dia 2 de Maio, ao fim de 87 dias em greve de fome.
Khader protestava pela forma como tinha sido detido e mantido em cativeiro, sem qualquer acusação formal. Ou como as forças de segurança israelitas costumam dizer, uma quarta-feira no escritório.
A semana que se seguiu à morte do activista palestiniano foi de protesto popular nas ruas da Cisjordânia e, segundo Israel, de ataques vindos da faixa de Gaza (rockets).
A escalada de violência não tardou e, como é habitual nestas situações, Israel arrasou tudo à sua passagem: matou líderes da resistência palestiniana, civis, mulheres e crianças.
Entre as tricas do Galamba, a eterna contra-ofensiva ucraniana e a maldita inflação, não vi grande destaque sobre mais este crime perpetrado pelo mais antigo invasor ainda em actividade.
É, aliás, sintomático dos tempos que correm: discutimos até à exaustão uma guerra que não é nossa e enchemo-nos de moral para defender o David do Golias russo, o invasor que a todo custo queremos impedir de ficar com o Donbass.
Parece-me um bom princípio, e até dou de barato o verdadeiro despique entre impérios às custas do povo ucraniano, que não tem qualquer peso na decisão do seu próprio destino. Combatem uma guerra enquanto os patrocinadores assim o entenderem. No dia em que não forem úteis, ficarão sozinhos.
Mas o princípio é bom. Respeitar a integralidade territorial dos vizinhos é sempre uma boa forma de manter a paz no bairro.
Nada disso se aplica aos palestinianos há pelo menos sete décadas. A nossa indiferença mantém-se olimpica e historicamente inalterada. Nem para notícia de rodapé estes desgraçados servem.
Ter dois milhões de pessoas a viverem em 365 quilómetros quadrados (a dimensão da Faixa de Gaza), completamente enclausurados e vigiados pelos carcereiros, é uma situação de normalidade a que o Mundo se habituou. Já nem pensamos sequer no horror que é viver numa prisão a céu aberto.
De igual forma, mudamos de canal quando aparecem mães aos gritos com crianças mortas no colo em Rafah. Há quantos anos vemos essas imagens? Isto quando aparecem sequer no jornal da noite… Alguém se lembra de um painel de especialistas militares, comentadores e empregados de mesa da NATO a debaterem o tema em horário nobre, numa qualquer televisão portuguesa?
Não. Claro que não. É absolutamente normal ouvirmos, ainda que brevemente, relatos de semanas como esta. Semanas em que voam rockets de Gaza para Jerusalém ou Telavive, tranquilamente anulados pelo Iron Dome (sistema de defesa israelita), e respostas da força aérea na Faixa de Gaza, aniquilando tudo à sua passagem. Homens, mulheres, crianças. Velhos, novos, civis ou combatentes. Vai tudo.
Aqui não existe um David ou sequer um Golias. Existe um povo ocupado, vigiado 24 horas por dia, com regras para entrar e sair de casa e, pior do que isso, bombardeado regularmente num território sem escapatória possível.
Quem procura justificar os crimes de Israel, nos colonatos da Cisjordânia ou na faixa de Gaza, está no nível intelectual de quem mete veneno num aquário e se admira por os peixes não conseguirem escapar com vida.
Esta semana, com a cumplicidade do nosso silêncio e desinteresse, foi mais uma de reacções desproporcionadas nesta guerra desigual. Foi mais uma semana que a uma chapada se respondeu com um martelo. Mais uma semana com zero mortes de um lado e dezenas do outro. Mais uma semana com prisões, violência e encarceramentos sem qualquer acusação ou fundamento legal.
Foi, essencialmente, mais uma semana em que o Estado de Israel disse ao Mundo que faz o que quiser na região e não dá contas a ninguém, que não ao seu aliado americano, com quem votam isoladamente nas Nações Unidas, a cada ano, a continuidade do embargo a Cuba. É uma parceria que garante continuidade do poder e que espeta, nos olhos do Mundo, quem manda e quem deve obedecer.
Khader Adnan foi mais um que morreu pela causa palestiniana perante a cumplicidade, o desprezo e a aprovação da tão famosa comunidade internacional. Tal como os que se revoltaram com a sua morte e foram bombardeados. Tal como todos os que deram a sua vida, durante décadas, na luta contra um invasor declarado e assumido.
Esta semana de silêncio também explica, pelo menos a mim, por que razão nunca embarquei em moralismos no Donbass ou nos caminhos para a paz. Impérios matam, roubam, violam e alargam território. Por isso são impérios.
Ou se é totalmente anti-imperialista, venham eles da Sibéria, Alasca ou Hong-Kong, ou então aceitamos a lei do mais forte.
Não me venham com guerras a “todo o custo” em Bahkmut, enquanto mudaram e mudam de canal a cada morte na Palestina. E isto há 70 anos.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Sempre vi como um ritual, pois a pessoa chega, senta-se no café do costume, pede a mirita do costume, o carioca do costume, e vira as páginas do jornal do costume, até varrer o obituário, diligentemente, em busca de amigos, conhecidos, relativos de relativos.
Cara a cara, esbatida a negro com breves palavras de despedida, os que se vão embora recebem talvez a única menção da sua vida num jornal, sendo arquivados minuciosamente por pessoas que varrem o cemitério de papel.
– Olhe! A minha rua tem sido uma razia! Mais um!
Sempre se morreu, dizem, sempre se morreu assim, clamam. Estranho pensamento de quem voluntariamente se fechou numa gaiola para que não morresse ninguém.
– Outra vez? Sempre a mesma conversa, a mesma conversa! Já acabou! Já passou!
Acabou para eles no obituário é certo. Arrumamos as memórias algures na nossa mente, envoltas em aroma de manteiga quente e camomila que elegantemente se esfuma acima da chávena.
Não é mórbido, sabem? É ritual de beleza na verdade. Seguimos atrás da morte a ver quem vem de seguida, a ver o nosso lugar na fila e quem na nossa frente se atreve a tocar-lhe nos ombros para que se volte para si, silenciosamente, o manto negro a adormecer os olhos, mas apenas os olhos (se morrer, ainda fico aqui?) rezando para que não toque os nossos e quem deveria estar atrás de nós (os nossos), julgando a justiça e a tristeza de quem se vai (o sol foi embora, mãe?).
E no caminho mais próximo do fim rezamos todos (os nossos).
A perda.
(As flores estão a fechar, mãe?)
Quem respira o mundo em golfadas faz por aguentar os embates. Troca duas palavras sobre quem se fina, marca presença no velório de quem quer dever o respeito, comparece ao funeral de quem chorará.
– Eh pá já não nos víamos há quinze anos!
Quem respira o mundo devagar, como quem o mastiga pousadamente, corre com um dedo o obituário, arrastando o negro pela página abaixo, guardadores de memórias e de todos os nomes.
Quem fica, quem vai.
Os filhos da madrugada e seus herdeiros a pairar em círculos sobre searas esquecidas e albufeiras sujas. Parecem nem querer saber, não contam as caras das lápides, não contam as moedas para o molete.
Sabem, disse-se por aí, que na verdade temos três saudades.
Jorge Dias foi o autor que tal me ensinou. Temos a saudade que herdamos dos celtas: lírica, sonhadora, ligada à natureza (Caeiro, estás aí?); temos a saudade do estilo germânico: empreendedora, fáustica, numa ânsia por novos mundos e conquistas; por fim, enfim, a saudade do estilo oriental: um ensimesmar mórbido de glória que já passou.
É nisto que estamos, não é? A carpir-nos a nós próprios, sem herdeiros para um obituário de vivos.
Mãe, sabes o que é microquimerismo? Significa que fiquei dentro de ti, mesmo depois de sair. Assim ficamos de onde saímos, e onde saem pessoas que nos deixam cá ficar.
Mariana Santos Martins é arquitecta
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
“Parece que, um belo dia, antigamente, toda a gente combinou entre si mentir a este respeito, e continua a mentir até hoje. Toda a gente diz que odeia o mal, mas, no fundo, toda a gente o adora.
“Não tem vergonha de estar a destruir-se a si mesma?
“Apetece-me destruir-me. Oiça: agora, por exemplo, vão julgar o seu irmão por ter morto o pai, e agrada muito a toda a gente que ele o tenha morto.
“Agrada a toda a gente que ele tenha morto o pai?
“Sim, agrada a toda a gente! Toda a gente diz que é um acto horrível, mas no fundo toda a gente gosta disso. E eu sou a primeira a gostar.
“Nisso de toda a gente há uma certa verdade – disse Aliocha baixinho.”
Não sei quando foi, nem como foi, que a corrupção começou a esticar cada vez mais as suas raízes dentro da política portuguesa como o eucalipto faz às dele se andar à procura de água em terrenos áridos. Não sei nem observei, porque estava a trabalhar nos Estados Unidos. sabendo uns factos que pareciam anedotas de mau gosto mas eram factos, e quando voltei com os meus meninos para Lisboa, já o Primeiro-Ministro era José Sócrates. Vivia-se mal, muito pior do que nas minhas recordações do País onde vivi até ir estudar para Buffalo, mas os diferentes membros do governo iam-nos explicando que esse era o preço a pagar pela integração na União Europeia. Às tantas percebi que estavam a rasgar-se na paisagem SEIS auto-estradas paralelas entre Lisboa e Valença do Minho, mas explicaram-me que era “para beneficiar toda a gente por igual[2]” e fazer chegar “os frescos” mais depressa aos supermercados[3]. Construíam-se cidades colossais para albergar aeroportos que depois nunca existiram, assim como se desbastaram áreas enormes de terreno para permitirem a passagem de um TGV que depois nunca passou[4]. E cada vez se percebia melhor, cada vez doía mais, mas não perceber já nem era possível: o dinheiro público andava a passar de mão em mão[5] de forma pouco clara, no mínimo.
De Sócrates[6], o governo passou para as mãos de Passos Coelho[7], e nessa altura ouvíamos falar cada vez mais em luvas, empresas falidas, particulares insolventes, e jovens acabados de formar pelo Ensino Público a partir, a partir, e a partir. Por essa altura, começa também a estar na moda os Bancos irem ao fundo, os Banqueiros a apropriarem-se com tudo o que podiam e fugirem, ninguém os perseguia, e ninguém mostrava qualquer preocupação com os lesados destas transas porque tudo aquilo voltava a reconstruir-se com mais dinheiro de mais impostos.
É exactamente neste ponto que se ouvem duas ou três piadas indecorosas, absolutamente destituídas de fundamento, sobre vir aí a falência do BES.
Ora acontece que vivia ainda em Portugal, por esses dias, um jovem comediante que faz hoje stand-up em inglês para as multidões de empresários que esgotam os quartos dos hoteis de cinco estrelas na Arábia Saudita[8]. Formava uma pandilha que tinha um nome qualquer do género FEIOS, PORCOS E MAUS, juntamente com mais dois partenaires, uma idosa cheia de piercings e um total anarquista da caricatura, que reunia todos os sábados à noite para debater os diferentes e desgraçados impactos da pobreza imposta por Passos Coelho com a explicação sumária de estar a ser imposta pela UE. Não diziam nada que fosse especialmente interessante, mas quando os meus alunos de Mestrado vinham trabalhar para minha casa nessas alturas, pediam-me sempre para ver ao menos meia horinha daquilo. E é exactamente nesse sábado, dois dias depois das duas ou três piadas parvas sobre a falência do BES, que de repente, sem vir minimamente a propósito, o jovem comediante diz assim:
“Epá, devia ser proibido por lei assustar as pessoas desta maneira. Se querem saber, eu, por mim, tenho uma valente conta a prazo no BES. E estou perfeitamente sossegado. Não corremos risco nenhum, por isso eu não tenciono minimamente tirá-la de lá!”
Eu estava de joelhos no chão a organizar pilhas de fotocópias, e dei um tal salto de raiva que espalhei tudo à minha volta.
“Cabrão de merda!”, gritei eu para a imagem do comediante na televisão. “Com que então, até tu estavas à venda?” – virei-me para os meus aluninhos perplexos. “Vocês não viram bem este filme de terror? Como aquele menino é o amor de toda a gente, o BES paga-lhe uma fortuna para ele chegar ao debate e aconselhar as pessoas a não tirarem o seu dinheiro do BES, uma vez que até ELE continua a ter o seu dinheiraço do BES! Puta que pariu, isto é perfídia pura. Ai, meninos, tirem-me deste filme. Não aguento continuar a assistir ao espectáculo da corrupção crescente que grassa no meu próprio País!”
“Ó Professora!”, disseram logo os mestrandos, cada um para seu lado. “A Professora é que devia estar a dizer essas coisas na televisão! Vá para a televisão, por favor, vá dizer essas coisas na televisão!”
“A televisão? A televisão ia querer-me lá a dizer estas coisas?” – e logo a seguir saiu-me de chofre, antes sequer de pensar: “Ai, foda-se. Então os meninos ainda não notaram que já nem sequer há televisão?”
E pronto, poucos meses mais tarde não estava na televisão: estava antes nos Estados Unidos.
Espero que ao menos apreciem os meus dotes visionários, e que, não sendo eu o Sérgio Conceição, possam perdoar-me pelo meu vernáculo. A questão é que vocês ainda não me conhecem. O que faz perfeito sentido, porque eu própria ainda não me conheço assim tão bem como isso.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[1] O Presidente do FCP teria certamente feito coro connosco, ou pelo menos aplaudido o nosso arroubo de fusão, mas quando se deu este fenómeno místico o eterno Contra-Almirante não estava lá na casa de Alfama para escutar as minhas palavras – as tais que me saíram por instinto puro, mas que pareciam mesmo saídas de um daqueles comentários que o seu treinador cospe para a relva quando foi posto fora num vermelho directo. Só falei uma única vez com Jorge Nuno num qualquer jogo brutal em que fui convidada de homenagem, aliás de tanta homenagem que me sentaram mesmo ao lado dele, logo ali na fila da frente. Estava um frio de Inverno nortenho que mal se tolerava, eu trazia um casaco de raposa apache de bolsos grandes e franjas enormes, e, parte bem educada parte piedosa, ofereci-lhe o bolso do seu lado para ele aquecer a mão. O Grande Chefe fez o sorriso de Raposa Matreira mais bem esgalhado deste mundo, sem precisar sequer de olhar para mim, e disse apenas, só para eu ouvir, “eheheh – cuidado com as escutas!”.
[2] É incrível, agora, ao fim de todos estes anos de tangas políticas e financeiras cada vez piores, lembrarmo-nos da energia que ainda gastámos a discutir uns com os outros se o que estava em causa era mesmo o benefício dos eleitores, ou se era outra coisa qualquer ainda mal definida, mas que já não pressagiava nada de bom.
[3] Nunca ninguém me explicou claramente, no entanto, se os produtores desses “frescos”, que o governo dizia querer “beneficiar”, iriam ter que pagar aquelas portagens chorudas que se pagam nas autoestradas, ou se quê. Nem sabemos bem se essas autoestradas ainda estão funcionais. O Vale da Régua, um dos maiores milagres das nossas paisagens naturais, agora tem por cima uma ponte colossal, feia como cornos (oops, lá saltou outra vez cá de dentro o Sérgio Conceição), posta ali há quase vinte anos como tabuleiro da Autoestrada de Viseu. Passei lá por cima uma vez, para mostrar a paisagem a uns estrangeiros – e bem me lixei porque aquilo era tudo gente concernée, que não queria acreditar que um Governo Europeu, secundado por toda a União Europeia, tivesse admitido erguer-se ali uma tal infâmia. Foi tão penoso que acabei por explicar que a ponte da autoestrada fora paga com as fortunas dos Casinos de Macau, que incluíam muitas vezes nos prémios passeios românticos Douro acima em Barcos Rabelos – e que os primeiros compradores de mais aquela jogatana dançante do Senhor Stanley Ho tinham sido os espanhois, e não os portugueses.
[4] E boas reportagens sobre tudo isto? Não nos fizeram imensa falta? Não continuam a fazer-nos imensa falta? De que é que os jornalistas têm medo? Dos dois matulões da MOSSAD que andavam aí a desempenhar as funções de guarda-costas de Ricardo Salgado? Ah, por favor, isto ainda não é a faixa de Gaza, quand même. Mandem-me lá a mim, que eu faço. Não tenho filhinhos pequeninos nem paizinhos velhinhos. Escuso de estar aqui a empatar.
[5] Curiosidade interessante, a recordar algumas regras elementares da taxonomia: o dinheiro passava, de facto de mão em mão – mas essas mãos tinham que ser sempre as mesmas, ou recomendadas por outras iguais.
[6] Notícias posteriores sobre a vida deste ex- PM: a) as suas férias na Quinta do Lago eram tão pagas pelos contribuintes como o seu apartamento caríssimo em Paris; b) o título de Engº vinha-lhe de um Mestrado feito por medida numa qualquer Universidade Privada, cara mas camarada; e c) ao fim de uns tempos foi preso, mas ninguém explicou aos portugueses porquê.
[7] Foi um senhor que concorreu às legislativas enquanto social-democrata. Nunca sorria, mas explicava que isso era de ver o País em tão mau estado. Bastaram dois ou três meses para se perceber com toda a evidência deste mundo que, na realidade, o senhor não era nada um social-democrata: era mas era um perigosíssimo neo-liberal, e assim continuou até ao fim do seu mandato. Também não percebo como podem manter-se no poder pessoas que afinal não representam minimamente o que disseram que iam representar. Só me lembro de já estar no desemprego, a cair de fome, sono, e frio, numa fila para o subsídio algures em Sintra, e ouvir o cretino dizer na rádio, todo cheio de si próprio, “temos que fazer cortes substanciais no desemprego, porque há demasiadas pessoas que vivem de expedientes.” Filho da mãe. Houve quem chorasse. Ex-pe-di-en-tes!
[8] Ou, escrevendo a mesma frase de maneira mais sucinta: “… que faz hoje fortunas obscenas no Médio Oriente.”
Sente-se a podridão no ar, nojenta, exalando odores. A falta de ética transforma uma sociedade numa lixeira, num salve-se quem puder, em benefício de quem tiver artimanhas, e não arte. Vence o espertalhaço, não o inteligente. Vence o canastrão, não o artesão.
E essa podridão, insidiosa e mesquinha, que forma e deforma uma sociedade, vê-se até ao jogo de berlindes, até num campeonato distrital de futsal, nome pomposo para o futebol de salão, onde este fim-de-semana a aldrabice espetou uma “cabazada” à decência.
A história conta-se em breves palavras. Em igualdade pontual com o Vitória de Santarém, a equipa do Mação Futebol Clube partia com uma desvantagem de 33 golos para a última jornada. E como esperado, ambas as equipas venceram os respectivos jogos, mas enquanto o Vitória de Santarém superou o seu adversário por uns escassos 7-5, o Mação massacrou o seu adversário, Benavente, por 60-sessenta-60 golos sem resposta, o que significa um golo em cada 90 segundos. Resultado: o Mação Futebol Clube foi campeão.
Dois pormenores, relevantes. Primeiro, o Benavente jogou apenas com três jogadores – mínimo regulamentar – face aos cinco do Mação. Segundo, mesmo sabendo-se que o Mação não conseguira antes mais do que sete golos de vantagem numa partida, sendo assim mais do que remota a probabilidade de ultrapassar o Vitória de Santarém em caso de vitórias destas duas equipas –, houve quem se lembrou de estampar coloridas camisolas de campeão.
O Mação Futebol Clube – e em paralelo a equipa de Benavente (que nos 19 jogos anteriores sofrera 68 golos) – é a imagem trágica de um país. A imagem de um país sem ética, consolidando os seus objectivos em trapaças, custe o que custar; em esquemas, aqueles que a imaginação aprouver mesmo se fraca; em compadrios, mais que muitos; em manipulações, as que forem necessárias; em corrupção, se não financeira, pelo menos moral, para quem assim se seduzir sem escrúpulo.
Independentemente das provas, estamos perante uma pouca-vergonha, uma desavergonhice, que seria apenas risível se não fosse grave, por ser o espelho daquilo em que se transformou Portugal.
Hoje, sentimos – todos sentem, e os “responsáveis” pelo Mação Futebol Clube sentiram – que, mesmo com trafulhice, mesmo com manipulação, mesmo com aldrabice e mesmo com esquemas ínvios, vale a pena tentar, é justificável tentar, porque basta congeminar ser possível iludir a verdade para que se tente que a mentira se transmute na realidade, proveitosa para o seu autor, mesmo que tal seja profundamente injusto e prejudique quem não deveria.
Caricaturando a paráfrase de Fernando Pessoa, em Portugal, num país de aldrabões, a obra nasce, quando o homem sonha, mesmo se Deus não quer. E assim se ganha por 60 a 0, com a mesma decência da vitória do Mação Futebol Clube sobre o Benavente Futsal Clube.
E assim se sente a desonestidade na política, no Governo, na Administração Pública, nas escolas, nas forças armadas, nas forças de segurança, nas empresas públicas e nas empresas provadas, em muitas das nossas relações sociais. Em tudo, já.
Portugal pode continuar a gabar-se de ganhar sempre na recta final por 60-0, sermos os melhores de tudo e da Cantareira; pode sempre erguer-se a taça, que de ouro seja. Mas no seu âmago está lá dentro uma pestilência que não se aguenta.
Importa saber que os combustíveis estão a um preço mais baixo do que em 2008. As taxas de juro Euribor estão 4,6 pontos percentuais mais altas que em 2022. A electricidade está muito mais cara que em 2020. A água é controlada por privados e está mais cara que em 2022.
Os devedores de crédito à banca estão com mais 400 euros por mês em empréstimos de 150 mil euros. Os salários de 900 euros não conseguem pagar os novos encargos com a banca, pelo que, em dois meses, o crédito malparado triplica.
As famílias em 2010 encostaram aos idosos, que poupavam, para apoiar a crise resultante do subprime e da subida do petróleo e dos juros da dívida pública.
As três coisas anteriores mataram o deslumbramento de Sócrates, não os seus investimentos.
Foi então que surgiu um idólatra do estoicismo, e vivemos “para lá da Troika”. Hoje temos António Costa, o optimista, que normalmente resolve tudo debitando promessas financeiras, arrojadas carteiras e aumentos.
Na verdade, a governação anterior caracterizava-se por cativar a promessa, e depois iniciou as dádivas, aumentos, que se contraíram com impostos. Toma lá, dá cá.
Estamos, pois, chegados à maior de todas as mentiras: a guerra conduziu à inflação. A grande realidade mostra que a guerra é uma enorme desculpa para a inflação, e esta uma construção financeira para o Banco Central Europeu se encher de milhões.
Vejam os dados reais. Não há aumento de combustível desde há alguns meses. Houve até uma descida de 60 cêntimos nos postos mais baratos. O barril de crude está longe do que pagava o Governo de Sócrates. Então, que se passa na esfera do poder que nos controla?
Isso é teoria conspirativa, é alucinação, é chalupismo.
Pois seria, se não tivéssemos dados brutais como o número de habitações em Lisboa na mão de fundos capitalistas.
Pois seria, se não tivéssemos lucros brutais a surgir na banca, na electricidade, na água, no digital.
Este é, aliás, um ponto importante. Caminhamos para um mundo em que, presos aos telemóveis, vamos pagar cada uma das suas aplicações e funcionalidades. Taxas que já se executam para garantir uma televisão com aquilo que desejamos ver. O resto é quase tudo lixo, ou informação controlada pelo dono, normalmente os fundos, outra vez.
Os filmes e os cartoons vão sugerindo esta realidade que permite saber onde estamos, com quem, comprando o quê, gostando de quem, permitindo sugestões das aplicações que temos nos telefones.
Há uma vontade enorme de normalizar a linguagem e até as opiniões. Há uma vontade anti-religiosa que se resguarda no anticlerical e que atingiu a força máxima na China, onde a religiosidade quase desapareceu. Abdicar da dúvida, da reflexão, da componente mágica da vida pode ser um caminho para certificar o próprio discurso. Os certificadores são de novo os fundos.
Reparemos, com despudor, no que consiste a cassete dos grupos mais fanáticos, ou engajados: controlar o discurso converte os fiéis em peregrinos e votantes.
Agora é o tempo de “controlar as falsidades”, os tipos que dizem coisas como as que acabei de dizer. Calam-me em breve, com o voto favorável dos do ” fascismo nunca mais”. Eles mandam já na Catarina Martins e nos sindicatos.
Diogo Cabrita é médico
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.