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  • John Locke: o pai do liberalismo?

    John Locke: o pai do liberalismo?


    Na visão de muitos, John Locke é a figura seminal do liberalismo, o pensador que delineou os princípios fundamentais de uma sociedade baseada na liberdade individual, nos direitos naturais e na propriedade privada. A sua filosofia, frequentemente exaltada como a base das democracias modernas, parece estar envolta numa aura de racionalidade inquestionável e virtude universal. No entanto, um exame mais detalhado das suas ideias revela as influências profundas do protestantismo da época, e, com elas, algumas contradições marcantes.

    Para Locke, a propriedade é o ponto de partida da sua filosofia política, começando pelo direito inalienável que cada indivíduo tem sobre o próprio corpo. Este princípio, que ele considerava derivado da lei divina, estendia-se à apropriação dos recursos naturais por meio do trabalho: ao misturar o esforço humano com os bens da terra, o indivíduo conferia legitimidade à propriedade privada.

    John Locke (1632-1704)

    Os direitos naturais, segundo Locke, são inalienáveis e precedem qualquer instituição política. Incluem o direito à vida, protegido contra qualquer interferência – inclusive a própria. Para Locke, a vida é uma dádiva divina, e a liberdade, embora fundamental, deve ser limitada pelo respeito aos direitos dos outros, especialmente no que toca à propriedade.

    Por fim, o contrato social surge como a solução para o dilema do estado de natureza, onde os homens são “livres”, mas vulneráveis à arbitrariedade alheia. A formação de um governo, segundo Locke, é um acto racional e consensual, concebido para proteger os direitos naturais e garantir a ordem.

    Um exame mais atento revela que muitas das suas ideias já tinham sido profundamente exploradas pelos escolásticos católicos, particularmente pelos membros das Universidades de Salamanca, Coimbra e Évora. Estes pensadores, séculos antes de Locke, abordaram questões sobre liberdade, propriedade e organização política de maneira sistemática. Ou seja, o liberalismo nasceu na Igreja Católica.

    A ideia de que cada indivíduo tem soberania sobre o próprio corpo, central no pensamento de Locke, encontra paralelos claros no trabalho de Francisco de Vitoria. Este escolástico afirmou que todos os homens são naturalmente livres e que ninguém pode ser privado dessa liberdade sem uma causa justa. Nas suas palavras: “O direito natural é aquele que procede da dignidade da natureza humana, pelo qual todo o homem possui um domínio pleno da sua liberdade e da sua pessoa” (Relectio de Indis, 1539). Esta formulação, que enraíza a liberdade individual na dignidade intrínseca do ser humano, já contém o germe da concepção lockeana de que o corpo é propriedade do próprio indivíduo, um fundamento inalienável dos direitos naturais.

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    Outro pilar central do pensamento de Locke, a noção de que o trabalho legitima a apropriação de bens naturais, também foi claramente antecipado pelos escolásticos. Luis de Molina, ao abordar a justiça económica, argumentava que o esforço humano conferia legitimidade à posse: “Quando o homem, com o suor do seu rosto, cultiva o solo ou transforma recursos em algo útil, a propriedade desses bens é sua por direito” (De Iustitia et Iure, 1593). Aqui, Molina não apenas reconhece o trabalho como uma extensão do uso legítimo do corpo, mas também como um mecanismo que transforma recursos comuns em propriedade privada, um princípio que Locke posteriormente sistematizaria como a “mistura do trabalho com os bens naturais”.

    A noção de contrato social, que Locke popularizou como a solução para os desafios do estado de natureza, também tem profundas raízes escolásticas. Domingo de Soto, nas suas reflexões sobre a lei natural, afirmava que os homens, embora livres e iguais por natureza, necessitavam de pactos mútuos para garantir a convivência pacífica e a justiça; escreveu: “O contrato entre os homens nasce da necessidade de garantir a justiça e proteger os direitos que todos possuem por natureza” (De Iustitia et Iure, 1553). Este raciocínio reflecte o mesmo princípio de Locke de que o contrato social é essencial para proteger os direitos naturais e estabelecer uma ordem política legítima.

    Francisco de Vitoria foi ainda mais longe, ao afirmar que o governo deriva do consentimento dos governados, e não de uma imposição divina directa. “O poder político é estabelecido pelo consenso dos homens, para assegurar a justiça e o bem comum” (De Potestate Civili, 1528), estabelecendo uma base teórica que Locke ecoaria nas suas defesas do governo como uma instituição criada para preservar os direitos naturais.

    Luis de Molina complementava essa visão ao argumentar que o pacto social é uma expressão da racionalidade humana, que reconhece a necessidade de acordos para evitar a arbitrariedade do estado de natureza. Para ele, “sem um acordo entre os homens, os direitos e deveres tornam-se incertos” (De Iustitia et Iure, 1593). Esta visão, que coloca a racionalidade e a cooperação humana no centro da organização política, ressoa directamente com o pensamento de Locke, mostrando que o filósofo inglês não estava a inventar conceitos.

    Apesar da obra “De Justitia et Jure“, de Luis de Molina (1535-1600) ter sido escrita no século XVI, somente foi impressa em 1733.

    Assim, o que muitas vezes é celebrado como a originalidade de Locke deve ser entendido, em grande parte, como uma continuação e adaptação das ideias escolásticas. Os pensadores ibéricos, ao articular a soberania individual, a legitimidade da propriedade pelo trabalho e a necessidade de pactos sociais, estabeleceram os alicerces de uma filosofia política que transcendeu as fronteiras do seu tempo.

    Locke, apesar da sua aparente genialidade, fundamentou grande parte do seu pensamento político numa ficção: o estado de natureza. Essa aberração teórica, onde os homens seriam livres, iguais e independentes, ignora a realidade evidente de que os seres humanos vivem em hierarquias naturais desde o início da sua existência – algo inaceitável para os protestantes, que recusavam a autoridade papal. A relação entre pai e filho, general e soldado, ou sábio e aluno ilustra claramente que a liberdade absoluta nunca foi, nem poderia ser, a condição humana. Há sempre relações de autoridade e dependência que moldam a convivência. O próprio Locke, ao tentar escapar ao caos deste estado hipotético, recorreu ao contrato social como uma solução, mas aqui também tropeçou em contradições.

    A ideia de Locke de que o Estado existe para proteger os direitos naturais é um princípio perigoso, que abriu caminho para o que hoje conhecemos como o fascismo estatal. Um governo que se apresenta como guardião da vida, da liberdade e da propriedade não tarda a transformar-se no maior violador desses mesmos direitos. A tributação, elemento central de qualquer Estado, é em si mesma uma violação do direito à propriedade.

    O Estado não produz riqueza; apenas a extrai, usando sempre a força e a coerção, sob o pretexto de proteger os cidadãos. A liberdade defendida por Locke acaba subjugada a um Leviatã moderno, que, sob a capa de justiça e ordem, se torna o maior predador dos recursos individuais.

    Quanto ao contrato social, a maior ironia é que ele nunca existiu de facto. Nenhum cidadão o assinou, nenhum juiz supervisiona a sua aplicação e nenhum mecanismo foi criado para que seja renovado pelas gerações que nascem sob a sua pretensa autoridade. É uma ficção conveniente, usada para legitimar a existência de uma organização parasitária que se impõe aos indivíduos como se fosse um bem universal. Este “contrato” é, na realidade, um instrumento de dominação, uma imposição unilateral que não reflecte a vontade de nenhum indivíduo específico.

    O que Locke nos oferece, portanto, não é a liberdade, mas a legitimação de uma estrutura que mascara o controlo e a exploração com o véu de uma suposta protecção dos direitos naturais. A crítica a Locke é, assim, inevitável. Não nos deu as bases para a liberdade individual, mas sim os fundamentos filosóficos para a aceitação de um poder centralizado, disfarçado de protector dos direitos. A sua filosofia é um exemplo claro de como uma “boa teoria”, construída sobre premissas erradas, pode ser usada para justificar um sistema que perpetua desigualdades e violações em nome da ordem e da justiça.

    Em conclusão, as ideias de Locke não eram inovadoras, pois já os escolásticos católicos as tinham antecipado com profundidade e rigor. No entanto, as suas inovações – nomeadamente a criação do grande Leviatã para nos proteger, legitimado por um contrato social fictício – são um exemplo perverso da mentalidade protestante. Aqueles que abominavam a autoridade da Igreja e clamavam pela liberdade espiritual pareciam não ter qualquer problema em aceitar a expansão de um Estado totalitário, sob o pretexto de proteger os nossos direitos, que se tornou no maior inimigo da liberdade individual dos tempos modernos.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


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  • Conto de Natal da Segunda Circular

    Conto de Natal da Segunda Circular


    A esperança da Humanidade concentra-se no bondoso coração dos seres humanos que, apesar das alterações climáticas e do ruído dos aviões, ainda acreditam no Pai Natal.

    Eu acardito! – ensinou o criativo neolinguista Jorge, de apelido Jesus, numa conferência de imprensa bíblica e babilónica, no sentido babado do termo.

    Ainda hoje tal ensinamento guia os espíritos eleitos e escolhidos para enfrentar as agruras diárias do futebol profissional.

    – Acredito que vamos passar o Natal no primeiro lugar! – proclamou “mister” Bruno Lage para reanimar os 26 jogadores do plantel principal, cansados de correr em vão o ano inteiro, fardados de vermelho.

    Eu também acredito! – ecoou a mesma mensagem, num português tão impoluto que até parecia latim, Rui Costa aos ouvidos dos 298.948 sócios que sobreviveram a Roger Schmidt e dos seis milhões de fiéis do Benfica, vivos e mortos, ávidos e desesperados pela luz da boa nova.  

    E assim nasceu um conto de Natal nunca passível de ser sonhado por Shakespeare. O único escritor inglês mais famoso do que José Mourinho era temente a Deus e escrupuloso quanto baste para repudiar o enredo que ora vos venho apresentar. O “Conto de Natal da Segunda Circular” deverá antes ser creditado em desconto dos pecados do velhaco poeta António Ribeiro Chiado, por alguns autores considerado o mais remoto adepto encarnado a passar-se para o glorioso mundo espiritual e das estátuas.

    Acredita, homem mortal:

    Que lês? Que queres saber?

    Aqui jaz quem has de ser.

    No início de Dezembro, um remetente anónimo como os OVNI estrelados que, armados aos cucos, ou em águias, andam a sobrevoar o Pentágono e a Fonte da Telha enviou ao sr. presidente do Benfica um misterioso presente.  Vinha o dito cujo empacotado em papel de prata dourado, atado, de ponta a ponta e de par em par, por duas fitas pretas de licra, presas por colchetes, a recordar os espartilhos que nos velhos tempos decidiam campeonatos.

    Assim que descerrou o embrulho, os olhos de menino da Damaia brilharam como estrelas, só de avaliar os valores, facial e simbólico, da inusitada oferta: uma jarra da Vista Alegre, colecção especial de Natal/2024, assinada pelo promissor designer Inocêncio C. B. O departamento de scouting apurou tratar-se de um atleta já observado num treino de captação, em Évora, e referenciado como sobrinho-neto do lendário artista da inolvidável e quase gloriosa tarde de 22 de Março de 1959, vivida e passada no antigo estádio.

    Qual lâmpada de Aladino, do precioso bibelot vieram à luz um, dois, três, santa vaca do Presépio, um bando! de figurinhas de chocolate, de fabrico Ferrero Rocher: o Malheiro, o Melo, um Manso, outro Nobre, um Narciso, dois Freire, um Ferreira e o Manso repetido, entre outros, mais do que as mães, todos com nomes de reis magos prontos a satisfazer apetites e saciar desejos.

    Estátua do poeta António Ribeiro, conhecido por Chiado, no largo lisboeta com o seu nome.

    O maestro ficou tão comovido! Não logrou, sequer, reprimir lágrimas loucas de felicidade. Enxugou-as no seu lencinho branco de seda, oferecido por uma admiradora nos gloriosos anos de San Siro. Para ter subido aos altares, o santo bispo de Pavia tinha-a porventura mais comprida do que o Sérgio Conceição, que dois mil anos depois lhe vai seguir os passos. Aproxima-os o facto de ambos reverenciarem o Papa. Se o novo treinador do AC Milan lhe ofereceu muitas taças, San Siro é famoso por fornecer pães e peixes ao apóstolo Pedro. 

    Rui Costa sempre olhou para este episódio como a pedra fundadora de uma corrente de virtudes. De lenço encharcado nas mãos e olhos perdidos nas bancadas vazias, deu-se conta do perturbador paralelismo histórico. Pela primeira vez, pôs a hipótese de o mesmo estar na origem do pecado da multiplicação de pontos.

    Com o cuidado de um carregador de andores de relíquias, o menino-presidente pendurou as figurinhas, uma a uma, olhos nos olhos, no pinheirinho do seu espaçoso escritório de vistas amplas para o terceiro anel, com ar condicionado da marca Vitória e casa de banho revestida a mármores Carrara a azulejos grená. E rezou a todos a mesma oração, respeitosamente personalizada pelo evocativo.  

    – São Manso, deposito em ti toda a minha fé, como em todos os árbitros mártires e sacrificados VAR, entrados e saídos desta jarra abençoada. Amém e Aleluia.

    Santinho Malheiro, deposito em ti toda a minha fé, como em todos os árbitros mártires e sacrificados VAR, entrados e saídos desta jarra abençoada. Amém e Aleluia.

    Os VAR, para as leitoras do Benfica que detestam futebol, mas abençoam o entretenimento dos maridos, são uma novel espécie de árbitros, da família dos OVNI, razão para as ostensivas letras maiúsculas. Constituem o produto mal acabado, em permanente evolução, ou degenerescência, de uma inesperada conspiração entre as novas tecnologias e as velhas baixezas da condição humana. Usam muitas ferramentas, como imagens de alta definição, drones, sensores, animações 3D, “câmaras de curtos” (sic) e outras ainda mais esclarecedoras e por isso protegidas do olhar devasso do grande público. Quanto às deficiências físicas, tiveram origem em pandemias investigadas, para arquivamento jurídico-sanitário, nos anos oitenta do século XX: cegueira oblíqua, escoliose vertebral e balanite dos apêndices.

    Quando surgiram, no princípio deste século, os VAR pareceram aos incautos “lufadas de ar fresco”, curiosa expressão de grande riqueza semântica nos balneários e prostíbulos. De auscultadores e microfone, pareciam relatadores de futebol isentos e lavadinhos, imunes a tão decadentes doenças. Desgraçadamente, com o passar do tempo, esse juiz de todos nós, foram superando pruridos e preconceitos. Tal e qual como esperado pelos peritos mais experientes no campeonato nacional, tornaram-se umas verdadeiras máquinas de fazer e desfazer golos, muito jeitosas na violação de campeonatos e no abuso das almas inocentes.

    – Creio nos anjos que andam pelo Mundo – cantou a poeta Natália Correia, que tanta falta nos faz para conhecermos, verdadeiramente, o outro “mundo” que nos rodeia. Em todas as áreas, até no futebol, os mais virtuosos portugueses levam este maravilhoso verso à letra. 

    Eu acredito neste Conselho de Arbitragem! discursouo dr. Varandas, que é maior e vacinado, na consoada do clube.

    E tenho uma grande fezada no João Pereira! – confidenciou, neste caso em privado, a um apreensivo Hugo Viana.

    Esta solene profissão de fé cozinhou o mais generoso bodo aos pobres de que há memória na Segunda Circular. Foram sete jogos e 45 noites a esvaziar a despensa para engorda do adversário, à velocidade do Airton Senna às curvas no Mónaco. Quando se sentiu a bater num muro, o dr. Varandas desligou a Netflix e deixou a orgulhosa devoção masoquista cair morta na cama.

    – Peço muita desculpa pelo presente envenenado.

    Visionário declarado, como o Grande Chefe Passaláqua, num instante lambeu as feridas e no seguinte desembainhou a solução com recurso às mesmas armas.

    Há mais de um ano que Rui Borges estava no meu radar.

    De Carnide a Buenos Aires, os jogadores do Benfica continuaram a passar o Natal felizes e descansados, indiferentes a manobras militares e sem especiais preocupações de organização defensiva. À hora marcada para o jogo, levantaram-se do colchão de neve do primeiro lugar do campeonato e subiram ao relvado de Alvalade como renas da Lapónia, a dar toques de calcanhar com botifarras de marca.

    – Acardita, Ángel!

    Enquanto teve voz, “mister”Lage puxou pelos seus campeões do mundo de garrafinha na mão, a ver se aos golinhos de água lhes mostrava com cristalina transparência o caminho para o golo.

    Atira-te a ele, Nicolás!

    Só parou de gritar quando àqueles dois falharam as pernas e a ele estoirou na garganta a última corda vocal de barítono do Teatro Luísa Todi.

    Do outro lado, um treinador da temperança dos cavalos criados nas fráguas, preparou o jogo com a astúcia dos lobos da serra do Alvão.

    Creide que sodes la meyor equipa del campeonato!

    Disposto a acatar a mensagem, a estrela da equipa passou três dias e três noites a ler um dicionário bilingue sueco-mirandês, entremeado com o bestiário de Miguel Torga. E assim Viktor Gyökeres chegou à brutal iluminação táctica de que representa em campo a força indomável do Gävlebocken, bode com mais de 13 metros de altura, exibido em Dezembro no centro da sua terra Natal.

    Du kan inte stoppa mig så!

    Bem-dito, melhor traduzido em campo. Aos 29 minutos, deixou para trás as oito chuteiras dos defesas e fugiu com as canelas para a linha de fundo. Eles ainda torceram o pescoço para ver, como no cinema, uma bola amarela e redondinha como o milho cruzar a capoeira que juraram defender, de mão no peito e cabeça na conta bancária.

    Génio do Catano treinou nas tradicionais “corridas à galinha” dos natais da sua infância para ser o primeiro a chegar a estes cruzamentos com a história.  

    Cocorococóoo-cóoooohhh! – cantou a bola, ao sentir a pancada viril do atacante moçambicano.

    Estava manifestamente com saudades e desejos daquela inesquecível jogada nocturna que fechou o derby e as contas quanto ao campeão da época passada. A expensas e penas do velho e querido rival, o leão do Delta do Zambeze tornou a abrir a juba para a eternidade.

     – Que seja um bom Natal, para todos vós!

    O Natal de 2024 vestiu-se de vermelho por seis dias e uma solitária jornada. O Chiado passou essa semana a decretar alerta vermelho à saída do metropolitano, mas ninguém o quis ouvir.

    Tudo passa n’um momento,

    como bem se manifesta.

    Tudo não tem fundamento,

    tudo acaba, tudo é vento,

    (…)

    tudo é de pouca dura,

    o tempo tudo despeja.

    Antes de se despedir, o aliviado autor desta crónica agradece as leituras e pede, envergonhado, um desagravo por ter dito nas vésperas do jogo que não acredita no Pai Natal. Felizmente, como merecia, foi desmentido a tempo pelo sr. secretário de Estado das Infraestruturas.

    Vamos inaugurar o Aeroporto Luís de Camões com uma pista para o Pai Natal aterrar e um hangar para as renas – anunciou o dr. Hugo Espírito Santo, na mensagem oficial de boas-festas do ministério, inclusiva de pessoas e animais.

    A julgar pelo nome, este divertido e bem-humorado governante deve ser adepto do Sporting. Depois do derby, ainda na tribuna reservada aos jornalistas, compreendi finalmente os seus planos para a expansão aeroportuária de Lisboa. Não passam, afinal, de um caminho ardiloso para viciar o campeonato.

    – Como poderão Di María e Otamendi, sempre que forem passar o Natal à Argentina, aterrar a cinquenta quilómetros do estádio – e ainda assim chegar a tempo às jogadas?

    Foi pena nenhum deles ter comparecido na sala de imprensa. A pergunta passa a ser retórica e deixo aos leitores a resposta.


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  • Os ossos do Eça, seguido de estudo taxonómico

    Os ossos do Eça, seguido de estudo taxonómico

    Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM solicitou o registo da marca para Portugal ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), cujo longo processo foi já concluído. No contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas regulares pareceu-nos não somente conveniente como necessário. Nesta vigésima segunda edição, a pretexto da trasladação de Eça de Queirós para o Panteão Nacional, o piparote de Brás Cubas desanca os ‘homenageadores’, dissecando uma taxonomia.


    Dizia alguém com vivaz conhecimento, com aquela filosofia que somente a contemplação do túmulo inspira, que os mortos são o espelho mais cruel das vaidades humanas. Concordo, e sem pesar, antes sim com a serenidade de quem, do outro lado da vida, já alcançou a verdade sem as véstias do interesse ou do temor. Sim, minhas dilectas leitoras e meus ilustres leitores, os mortos têm a única qualidade que os vivos não podem jamais ostentar: a paciência infinita. Eles não protestam, não se queixam, não corrigem as palavras pomposas que lhes dedicam. São, portanto, os alvos perfeitos para a celebração tardia e o reconhecimento póstumo, essas moedas de pequeno valor com que os vivos compram a absolvição das suas omissões e negligências.

    Vejo-os, a esses vivos, debruçados sobre lápides, declamando discursos solenes, regados às lágrimas mais dramáticas que o teatro jamais ousou representar. Vejo-os encomendando bustos, erigindo monumentos, publicando panegíricos e elegias que celebram as virtudes dos mortos com uma efusão que, em vida, se restringia a frias reverências ou, pior ainda, a silêncios calculados. E porquê? Porque é mais fácil amar o que não pode mais competir, mais fácil exaltar o que já não desafia, e mais cómodo honrar o que, debaixo da terra, bem calcado pelo tempo, sequer pedirá contas.

    Caixão com as ossadas de Eça de Queirós, em Tormes.

    Talvez seja essa, sim, a verdadeira utilidade dos mortos: alimentar o teatro dos vivos, essa encenação contínua de grandeza e moralidade que esconde, sob as cortinas de veludo, os fios de egoísmo e conveniência que realmente movem os actores. Não pensem, porém, que os condeno; até mesmo na cova reconheço que, sem esses fingimentos, a vida seria um palco vazio, e o homem (ou mulher), um actor (ou actriz) sem papel.

    Eu, Brás Cubas, observo estas manobras com o regozijo de quem está definitivamente morto – e, ainda melhor, fictício. Por exemplo, não tenho ossadas que possam ser trasladadas de um lado para o outro, nem jazigos que possam ser reabertos para ajustes protocolares. A minha inexistência física protege-me das agruras póstumas que esta semana recaíram sobre Eça de Queirós, esse meu contemporâneo lusitano, que em vida foi mais incómodo do que celebrado, e que, depois, na morte se tornou um ícone nacional, passível de ser transportado como se os seus ossos tivessem adquirido poderes mágicos. Coitado do homem que só soube que ‘Os Maias’, essa celebrada epopeia doméstica com incesto à mistura, tinham tido segunda edição uns 13 anos depois da primeira, já ele andava a comer capim pela raiz há um ano no cemitério do Alto do São João, desagradado por não o terem metido em Verdemilho, nos arrabaldes de Aveiro.

    E coitado depois, porque em 1989, os vivos decidiram retirá-lo de Lisboa e levá-lo para Tormes, junto à quinta que ele imortalizou n’A Cidade e as Serras. Parecia um destino apropriado, poético até, para um escritor que tanto exaltou a simplicidade e a ligação à terra. Mas a paz dos mortos é algo que os vivos não conseguem respeitar. Agora, metem as ossadas de Eça de Queirós, ou o que resta, na fria igreja de Santa Engrácia, de novo em Lisboa, a que chamam Panteão Nacional, depois de uma quezília familiar ter sido dirimida pelo Supremo Tribunal Administrativo que foi chamado a resolver o que fazer aos (poucos) restos (já) mortais do “Escritor GG”, conforme consta no acórdão divulgado publicamente.

    GG, meu caro Eça! Que dirias tu!

    E que dirias tu, também, dos 75 mil euros doados pelo Ministério da Cultura à fundação com o teu nome, convenientemente oficializado pela ministra Dalila Rodrigues, quando te foram buscar os fémures e a caveira a Tormes? Presumindo que, ao fim de 125 anos, te restem das relíquias calcárias uns cinco quilos, convenhamos que o preço do teu cacareco anatómico está bem valorizado…

    Enfim, esta tua nova trasladação é tudo menos um evento cultural; é uma oportunidade, como tantas outras, para os vivos se enaltecerem enquanto fingem enaltecer os mortos. E, por isso, que melhor momento para reflectir sobre a tipologia dos políticos e outras vivas aventesmas e abutres que se dedicam a tais empreitadas? Sim, porque os mestres das vaidades têm estilos bem distintos de homenagear, dependendo do estado físico do homenageado.

    E é assim com prazer que vos apresento, esclarecidas leitoras e nobres leitores, a minha taxonomia do Politicus Homenagiator.

    1. Politicus Salutatus, o louvaminheiro do efémero

    Comecemos pelo tipo mais previsível: o político que adora homenagear os vivos, desde que estejam de boa saúde e ainda possam retribuir com um sorriso ou, melhor ainda, com apoio público. O Salutatus é o rei das medalhas, dos convites para conferências e dos discursos em que mistura banalidades com frases atribuídas erroneamente ao homenageado.

    Mas há um detalhe crucial: este tipo só homenageia quem pode retribuir – com um sorriso, um aperto de mão, ou, melhor ainda, com votos e apoio público. Não esperem que se aproxime de um moribundo ou de um defunto; para ele, a morte é demasiado deprimente e, pior, não rende boas selfies.

    Se há algo que caracteriza o Salutatus é a incapacidade de lidar com a finitude. Ele é o político da celebração fácil e do instante. Por isso, raramente lê as obras dos escritores que enaltece ou reflecte sobre a profundidade das suas contribuições. Não, para ele basta um nome conhecido e a certeza de que a homenagem será bem recebida.

    Se tivesse tido a oportunidade de lidar com Eça, ainda vivo, talvez o Salutatus o tivesse chamado para um evento literário onde proclamaria: “É um orgulho homenagear o autor de ‘Os Maias’, essa obra que tão bem descreve o amor de Pedro e Inês.”

    Nos tempos modernos, certos Salutatus adaptaram-se às redes sociais. Agora, em vez de salões, preferem selfies. Publicam fotografias ao lado de celebridades ou de monumentos que nunca visitaram antes, legendando com hashtags como #Gratidão #Patriotismo #EuSouOMaior. Para ele, a homenagem é um espectáculo digital onde o número de likes substitui os aplausos.

    2. Politicus Moribundis Praeparator, o exaltador crepuscular

    Mais subtil, o Moribundis Praeparator espera que um fruto maduro esteja quase a cair da árvore para aparecer. Prefere agir quando o homenageado está em fase próxima dos pés para a cova. Este tipo tem um sentido apurado de timing: o moribundo ainda está vivo, mas já frágil o suficiente para não rejeitar a homenagem, mesmo que esta seja tardia.

    Estamos perante o político que entrega medalhas e faz discursos emocionados com frases como: “Reconhecemos em vida o que a história eternizará na morte.” Ou então dos júris que entregam prémios literários ou comendas quando o homenageado já se entregou à tremida abnegação do senhor Parkinson ou à ternura distraída da dona Alzheimer. É sempre comovente ver a emoção fingida perante a a grandeza alheia, sobretudo quando esta já foi devidamente reduzida a uma sombra trémula ou a uma memória esfarrapada.

    No fundo, o Moribundis Praeparator faz um investimento de risco zero: celebra-se um génio que já não pode protestar pela hipocrisia do tributo ou recusar a honraria por falta de estima ao emissor. Afinal, nada como o declínio físico ou mental para tornar qualquer talento ainda mais palatável aos discursos engravatados e às ovações bem-comportadas.

    3. Politicus Cadavericus Calidus, o abutre oportunista

    Este é o abutre mais ágil, que se atira à vítima mal o coração pára de bater. Assim que o último suspiro é dado, o Cadavericus Calidus entra em acção. Não perde tempo, porque sabe que a memória dos mortos tem prazo de validade e deve ser explorada enquanto ainda está fresca na mente do público. Por isso, corre a vigílias e a cerimónias fúnebres, encomenda flores, esboça elogios póstumos e, entre soluços ensaiados, ainda encontra tempo para sugerir um busto ou uma rua com o nome do falecido. Para ele, a morte é uma oportunidade que não pode ser desperdiçada.

    Mas não vos deixeis enganar: por trás do sorriso contrito e da voz embargada, há um estratega. O Cadavericus Calidus sabe que um tributo no momento certo é ouro em relações públicas, pois quem ousaria criticar um homem que presta honras a um defunto? Melhor ainda se o homenageado tiver sido, em vida, um opositor ou um crítico: nada como a clemência póstuma para encerrar contendas ou pavimentar a própria imagem com as lágrimas dos outros.

    E se o morto for uma figura ilustre? Ah, então é uma festa! Discursos inflamados sobre “legados eternos”, promessas vagas de “não deixar a memória apagar-se” e, claro, a inevitável foto ao lado do caixão, com aquele olhar perdido que mistura saudade e ambição. No fundo, a morte não é o fim; é o princípio de uma excelente oportunidade.

    4. Politicus Trendycus Funeraris, o caçador evocativo

    Este tipo é o camaleão das homenagens. O Trendycus Funeraris não escolhe os mortos pelo seu legado ou importância, mas pela popularidade que granjeiam em determinada época. Ao perceber que alguém já esquecido se tornou novamente relevante – seja por um filme, uma reedição de obras ou um centenário –, rapidamente associa o seu nome àquele vulto.

    O Trendycus Funeraris é um leitor ávido… de resumos. Por exemplo, nunca leu ‘Os Maias’, mas adora citar “Portugal é um país admirável!”, mesmo se tal frase nunca tenha sido escrita pelo Eça. Ele aparece em cerimónias culturais com um ar reflexivo, segura livros para as câmaras e, em discursos, fala de “imortalidade” com a desenvoltura de quem confunde eternidade com um mandato de quatro anos.

    Por vezes, promete uma placa, uma rua, um busto – e quando a poeira da relevância se assenta, os mortos retornam à penumbra do esquecimento, enquanto o Trendycus Funeraris segue em busca de outro defunto que possa lustrar a sua própria glória. Se por um acaso, a placa, a rua e o busto se concretizam, o dinheiro vem do povo, mas o seu nome é que surge associado – não como um mecenas, mas como o grande benfeitor que “jamais esquece os grandes nomes da nossa História”.

    Não vos espanteis, por isso, se o encontrardes a exaltar um autor de quem nunca ouviu falar ou a defender a “importância da cultura” enquanto tropeça num verso de Camões. Para ele, o acto de homenagear é um palanque, uma vitrine, um trampolim. E assim, transforma os mortos em degraus para sua própria imortalidade pública. Por vezes, espatifa-se no ridículo, podendo até enviar votos pessoais de sucesso editorial a escritores fenecidos há uma centúria.

    5. Politicus Ossiphagus, o profanador cerimonial

    Finalmente, o mais perigoso: o Politicus Ossiphagus. Este não se contenta com homenagens simbólicas; ele precisa de mexer, literalmente, nos ossos. Não está interessado em monumentos, discursos ou memórias; ele quer ossos. Abre covas, parte lajes, escancara jazigos, e tudo com ânimo solene de grande obra cívica. Para ele, desbravar os esconsos esconderijos onde repousam os restos de um morto ilustre é como picaretar uma mina de ouro – ou, pelo menos, assim parece.

    Assim, no caso do Eça, os ossos são como uma relíquia sagrada, mas não no sentido espiritual – são uma oportunidade de brilhar no palco da política nacional. Ele não se importa que as relíquias do escritor até tenham encontrado repouso em Tormes, junto à Natureza que tanto exaltou, ou que melhor ficariam em Verdemilho, como era seu desejo. Para o Ossiphagus, os quereres ou a paz dos mortos é secundária ou terciária; o que importa é a pompa, o desfile, a oportunidade de pronunciar discursos vazios sobre a “grandeza nacional”. Se os ossos fossem capazes de protestar, o Ossiphagus ainda assim os moveria – e chamaria a isso “dever cívico”.

    Ah, o Politicus Ossiphagus! Que bela ironia encarnada: aquele que, na tentativa de elevar os mortos, acaba por descer à mais grotesca das vaidades. Não basta, para ele, transferir o crânio, a mandíbula, as vértebras, as clavículas, as escápulas, o esterno, as costelas, os úmeros, os rádios, as ulnas, a pélvis, os fémures, as tíbias, as fíbulas, as falanges, das mãos e dos pés, os metacarpos e os metatarsos – ou o que restar. É preciso transportar também o peso do seu próprio ego, embalado, em mil cuidados, por enternecedores discursos e poses para a posteridade. Afinal, que outro gesto mais simbólico do que o de remexer nas entranhas do passado para assegurar o futuro da sua própria reputação? Enquanto proclama que “a História o exigia”, ou que “o Eça é do país inteiro“, não percebe que o único exigente ali é o espelho onde contempla a sua glória, e os ossos que traslada são meras marionetes neste teatro de farsas grandiosas.

    E assim termino esta galeria de figurinhas e figurões que tanto lutam para celebrar os mortos, mas raramente para os compreender. Felizmente, sendo eu um morto fictício, não corro o risco de cair nas mãos de nenhum destes tipos. Quanto ao Eça… bem, sempre foi homem pacífico; de contrário, pegaria numa das suas tíbias e seria o primeiro defunto a descer do pedestal literário para ajustar contas com esses aduladores tardios. Imaginem a cena: Eça, elegante mesmo na sua ossada, brandindo a tíbia como um espadachim, a pôr em fuga políticos e oportunistas que, sob o pretexto de o homenagearem, usam-no como trampolim para suas próprias vaidades. Seria, sem dúvida, um momento digno: o duelo póstumo entre o autor e os arautos do elogio vazio.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM registado no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.


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  • O Correio da Manhã e o milagre da meia-noite (ou a aldrabice)

    O Correio da Manhã e o milagre da meia-noite (ou a aldrabice)


    Não caminho para novo e, mesmo com sete vidas, já por aqui ando há tempo suficiente para 17 passagens de ano. E, se muitas absurdas coisas no mundo dos humanos já eu vi, mais ainda costumo ver nas páginas do Correio da Manhã, em particular em cada 1 de Janeiro. Pois bem, em 2024, como de costume, andou-se pelos hospitais, à caça de recém-nascidos. Ou melhor, dos primeiros recém-nascidos.

    Fossem os humanos como os gatos e, a cada paridela, seriam sempre mais do que as mães. No meu caso, nasci só eu e um pequeno irmão, no longínquo ano de 2008, mas não me recordo se teremos saído no mesmo minuto. Em todo o caso, presumo que outras gatas tenham parido, em Portugal, à mesma hora e ao mesmo minuto que a minha saudosa mãe. Não vos sei dizer, porque não sei quantos gatos nascem por ano em Portugal. Mas, no caso dos humanos, sei quantos nascem em Portugal e, em particular, em Janeiro.

    feet, baby, birth

    E, portanto, quatro bebés a nascerem no mesmo minuto, às 00h00, conforme anunciou o Correio da Manhã? A sério? Vamos lá com calma, com contas um bocadinho mais complicadas do que somar as latas de comida que despacho numa semana, e que implicam cálculos de probabilidade e a utilização de modelos de distribuição estatística.

    Ora, consultando as proezas aritméticas humanas e os nascimentos em anos anteriores no mês de Janeiro (cerca de 7.100), descobri que a probabilidade de quatro bebés nascerem no exacto minuto em que não sei quantos milhões de lusitanos e quejandos trincavam as passas, ao som de fogo-de-artifício, é de 0,00228%. Traduzindo para linguagem felina: seria mais provável eu aprender (ainda) a tocar piano do que essa coincidência absurda suceder em Portugal, porque, basicamente, a hipótese de ocorrer é de uma vez em cada 43.860 anos.

    Mas, claro, é sempre brindemos e deliremos, não com um, não com dois, não com três, mas logo com quatro “primeiros bebés do ano”. Eu até entendo o fascínio. Os humanos adoram competições ridículas. Mas, por amor a um prato de sardinhas – eu prefiro fiambre –, será que ninguém se questionou na redacção do Correio da Manhã sobre o rigor desta coisa? Ou melhor, sobre o ridículo de quatro bebés nascerem no mesmo minuto: na Guarda, em Castelo Branco, em Coimbra e em Vila Franca de Xira?

    Em vez de se preocuparem com a saúde dos miúdos ou com o apoio às famílias, o Correio da Manhã andou a cronometrar partos como se fosse a final dos 100 metros nos Jogos Olímpicos. A única diferença é que, em vez do Usain Bolt, temos o Guilherme, o Gonçalo, a Adelina e o Théo. Só fiquei com uma dúvida: será que, nesta corrida ao minuto, o photo finish deu a vitória ao Guilherme, da Guarda? É que só este teve direito a ser revelado como filho da Cláudia e do Luís…

    Muito gostaria eu de saber quem certifica estes nascimentos. Será o relógio da maternidade, ajustado com precisão suíça e calibrado com uns copos de tinto pelo obstetra de serviço? Ou será o tio distraído, a olhar para o telemóvel enquanto come as passas e grita: “Já nasceu! Às 00h00, de certeza!”?

    Portanto, ou assistimos ao maior alinhamento cósmico da História dos nascimentos, a rivalizar com o Big Bang, ou andou alguém a ‘ajeitar’ os minutos para caber tudo no espectáculo de jornalismo…


    Serafim é o Mascot do PÁGINA UM, conveniente e legalmente identificado na Ficha Técnica e na parte da Direcção Editorial, possível pela douta interpretação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Qualquer semelhança entre os assuntos relatados e a realidade é pura factualidade.


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  • Como o Estado nos roubou o dinheiro

    Como o Estado nos roubou o dinheiro


    Desde os primórdios da civilização, o dinheiro emergiu como uma solução natural para os problemas da troca directa. O ouro e a prata foram escolhidos não por decreto, mas pela sua capacidade de preservar valor, facilidade de transporte, divisibilidade e aceitação geral. Era um fenómeno de mercado, fruto da selecção natural dos bens mais adequados para servir como intermediário universal das trocas. Contudo, como sempre, onde há valor, há parasitas. O maior deles, o Estado, foi rápido em compreender que controlar o dinheiro seria uma forma eficaz de roubo sistemático.

    Na Roma republicana, as transacções eram feitas com barras de metal pesadas e avaliadas em cada troca, atrasando consideravelmente o comércio. Com o Império, os Césares centralizaram a cunhagem, monopolizando a produção monetária sob o pretexto de “garantir” a qualidade. O Denário, uma moeda de prata que deu origem à palavra dinheiro, foi progressivamente adulterado. Reduziram o seu conteúdo de prata e adicionaram metais inferiores, como o latão. Não era apenas uma manipulação, mas um roubo flagrante. Os imperadores financiaram guerras e luxúrias, empobrecendo a população ao desvalorizar o meio de troca que oleava a economia.

    Tal como hoje, os criminosos culpam sempre os homens de negócios pela subida dos preços. Em 301 d.C., o imperador Diocleciano decretou um édito de preços máximos (Edictum de Pretiis Rerum Venalium), ameaçando com severos castigos quem praticasse preços superiores. É como se o bandido não desejasse aceitar as consequências do seu roubo. Veja-se a recente nota de culpa lançada à guerra da Ucrânia, depois dos Bancos Centrais terem andado a imprimir biliões durante a falsa pandemia.   

    Na Idade Média, Portugal seguiu o mesmo caminho. D. Dinis centralizou a cunhagem, eliminando as experiências descentralizadas que, em países como a França medieval, permitiam a vários privados cunhar moeda. Esse monopólio prometia “simplificar” as transacções, eliminando a necessidade de verificar o peso e a pureza em cada troca – existiam várias moedas em circulação –, mas abriu as portas aos abusos. Com D. Fernando, o reino conheceu o desastre. Para financiar as guerras contra Castela, o rei emitiu moedas de fraca qualidade. A falta de lastro permitiu uma inundação de moeda falsa no mercado, arruinando a economia. Depois de um bandido de tal calibre, não foi uma surpresa a crise dinástica que se seguiu.

    Na Idade Média, surgiu outro esquema brilhante – ou fraudulento – que transformou os banqueiros em comparsas do poder estatal. Os ourives, que armazenavam ouro para comerciantes, emitiam recibos representando os valores depositados. Esses recibos circularam como substitutos do ouro. Mas, percebendo que os depositantes raramente retiravam todo o ouro ao mesmo tempo, os banqueiros começaram a emitir mais recibos do que o ouro guardado. Criaram dinheiro do nada. Essa prática, denominada de reservas fraccionadas, foi a origem do que hoje chamamos de sistema bancário “moderno”. Quem melhor para se aproveitar dela do que os bandidos ao leme do Estado?

    As reservas fraccionadas foram rapidamente apropriadas pelos Estados. As guerras são dispendiosas e os reis preferiam evitar revoltas populares causados por um aumento de impostos. Nada melhor que recorrer à inflação monetária, um imposto silencioso e quase invisível. Quando o povo percebia, era tarde demais. Na Barcelona medieval, as fraudes bancárias eram punidas severamente. Banqueiros falidos tinham um ano para restituir os depósitos. Caso não conseguissem, perdiam não apenas os bens, mas também a cabeça. Era uma época de maior responsabilidade, pelo menos comparada ao que viria depois.

    O golpe de génio dos banqueiros foi legalizar a fraude. Para isso, recorreram ao Direito Romano, que diferenciava o depósito de bens fungíveis (como dinheiro) do depósito de bens não fungíveis (como um quadro ou uma jóia). No caso dos bens fungíveis, o depositário podia utilizar os bens, desde que devolvesse um equivalente. Assim, o depósito virou um contrato de mútuo, permitindo que os bancos especulassem com o dinheiro dos depositantes. Era uma distorção completa do conceito original de depósito, transformando tal legalização num instrumento de roubo institucionalizado.

    Com os Bancos Centrais, essa fraude foi escalada para um nível global e sem precedentes. Fundado em 1694, o Banco de Inglaterra foi criado para financiar a guerra contra a França, emitindo títulos de dívida que podiam ser convertidos em moeda. Era a primeira vez que a inflação era centralizada e controlada directamente por um governo. John Law, na França do início do século XVIII, refinou o esquema. Convenceu o regente a emitir papel-moeda sem lastro, prometendo riqueza infinita com base na especulação. O resultado foi a bolha do Mississippi, um colapso que arruinou milhares de franceses. John Law fugiu, mas as suas ideias persistem nos Bancos Centrais modernos. Enfim, deixara-nos um grandiloquente legado.

    Para justificar tudo isso, o Estado precisava de intelectuais dispostos a transformar a fraude em “ciência”. Milton Friedman, o pai do monetarismo e do perverso esquema de extorsão conhecido por retenção na fonte, afirmou que a Grande Depressão foi culpa da Reserva Federal norte-americana, o Banco Central dos EUA, por não emitir dinheiro suficiente! A sua solução? Imprimir. Economistas como Paul Krugman continuam hoje a defender que a criação de moeda é necessária para “estimular” a economia, ignorando os efeitos destrutivos a longo prazo. Esses “cientistas” são os apóstolos de um sistema que enriquece elites financeiras e empobrece as massas.

    A inflação, frequentemente definida como a “subida generalizada de um índice de preços”, não é nada mais que o aumento da oferta monetária. Quando os Bancos Centrais criam dinheiro do nada, não criam riqueza; apenas diluem o poder de compra da moeda existente. Quem recebe o dinheiro em primeiro lugar, como as grandes empresas fornecedoras do Estado, compra os bens e serviços antes que os preços subam. Quem recebe por último – os mais pobres – paga os preços inflacionados. É um sistema de redistribuição ao contrário, que tira dos mais vulneráveis para dar aos privilegiados.

    A bolha imobiliária de 2008 foi um exemplo claro. Taxas de juros artificialmente baixas, manipuladas pelos Bancos Centrais, incentivaram investimentos insustentáveis no sector imobiliário. Quando a bolha estourou, o capital acumulado foi destruído e milhões perderam as suas casas. Na Argentina, onde a inflação fora crónica até à chegada de Javier Milei, o poder de compra evaporava diariamente, deixando a população presa a um ciclo de pobreza interminável.

    O sistema monetário actual é uma fraude institucionalizada. Os Bancos Centrais, longe de protegerem a economia, são instrumentos de roubo. O Estado age como um parasita, transferindo riqueza das massas para plutocratas e burocratas. O dinheiro precisa de ser devolvido ao mercado, onde pertence. Ouro, prata e, agora, o Bitcoin são as únicas formas verdadeiras de preservar riqueza, livres das manipulações do Leviatã estatal.

    Enquanto continuarmos a aceitar o papel-moeda e os sistemas de crédito desenfreado, perpetuaremos um ciclo de exploração, onde os Bancos Centrais e os seus comparsas devoram o que resta do nosso poder de compra. O Estado e a máfia organizada em partidos que o lidera, como sempre, continuará a viver às nossas custas, um parasita que se alimenta incessantemente do trabalho alheio.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


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  • Os pobres

    Os pobres

    Aquele jornalista era sem dúvida o mais cão-de-fila de toda a cáfila jornalística que pululava pelas principais redacções de televisão.

    Tinha uma postura agressiva sempre que o seu entrevistado parecesse estar numa posição antagónica à sua. Se estivesse então conotado, ou fizesse mesmo parte daquilo que é hoje considerada a nova direita, mordia.

    Era agressivo, mal-educado, interrompia, sentia-se a vontade insolente de cuspir para cima do interlocutor e isso verificava-se num franzir de olhos bastante nervoso, sendo mesmo acometido por esse movimento muscular frequentemente, sobretudo defronte de entrevistados alvo.

    Mas o jornalista era baixinho e parecia não ter físico que garantisse em caso de luta, uma vitória fácil, mesmo que se tratasse de uma mulher.

    Para estes feministas de estúdio, ser mulher não interessa se não partilharem das mesmas ideias. Nesse caso o universo feminino não é para defender.

    Imaginava-se até que fosse medroso e provocador tipo “Ò Evaristo tens cá disto?” 

    Um toca-e-foge sempre que não tivesse as costas quentes de um estúdio ou de uma voz gélida a dar ordens no seu auricular.

    Mas desta vez a entrevistada vinha do Partido Socialista e era Presidente de Câmara de uma pequena cidade. A realização da entrevista devia-se à senhora ter gerado alguma polémica por ter proferido na rádio local da sua cidade que existiam muitas pessoas dessa região a usufruírem de subsídio, quando se sabia que algumas ostentavam casas com piscina, ou vivendas caras, ou mesmo carros de luxo, incluindo Teslas e Audis.

    A Presidente da Câmara denunciava-o de uma forma até convencional, pausada e calma, sem grandes oscilações térmicas tanto na voz como nas expressões faciais. Parecia querer aproveitar o facto de estar na televisão para apelar a que se resolvessem este tipo de situações que muito prejudicavam os verdadeiros pobres. Não denunciava nenhuma etnia em particular e embora fosse uma política ligada a um partido do Poder, parecia querer mostrar alguma sensibilidade para com o problema e queria torná-lo público.

    Queixava-se também de certa forma do pouco orçamento que a sua autarquia tinha para poder ajudar a resolver o assunto.

    Queria apenas que se investigassem essas pessoas, de forma que a investigação se certificasse de onde provinham os sinais de riqueza dos suspeitos para que se pudesse fazer justiça e uma outra redistribuição mais equitativa e justa pelos mais necessitados.

    Pelo que parecia, era uma socialista convicta.

    Mas o jornalista não estava a gostar da conversa. Interrompia constantemente e alegava com razão eventualmente, não fosse o seu tom, que as pessoas podiam ter smartphones e serem pobres. Não estava a perceber muito bem onde a Presidente queria chegar. Será que a senhora pretendia denunciar alguma etnia em particular?

    No entanto percebia-se que a senhora queria sobretudo alertar os espectadores para essa situação anómala e desprestigiante para o ser humano. Isso era claro.

    Infortúnio que o jornalista se recusava a aceitar como sendo prática comum e até parecia duvidar se alguma vez isso poderia vir a ocorrer, chegando mesmo a evocar a possibilidade caso acontecesse, de ser uma excepção com a qual não nos devíamos preocupar para assim se confirmar a regra da não existência desse tipo de abusos. O Estado é hoje um dos grandes financiadores das televisões.

    Percebe-se.

    Mas, no entanto, não deixa de ser absurdo.

    No meio da entrevista sob o fundo verde-croma, a senhora entrevistada respondeu a uma pergunta idiota e ainda acrescentou:

    —… Até lhe digo mais… Há por lá pela cidade um caso muito conhecido de um cidadão que aufere desse subsidio, mas que no entanto ostenta um Audi, eléctrico e tudo. Portanto é até um cidadão com cuidados ecológicos por sinal.

    —Mas não pode, é?

    Perguntou o jornalista cão-de-fila, mal ouviu falar em ecologia.

    —Nada disso. Apenas estou a dizer que normalmente esses carros são mais caros e que pessoas muito necessitadas nem sequer se podem dar ao luxo de ter prioridades ecológicas por muito que o queiram.

    Por momentos parecia até que o jornalista estava a deixar passar a ideia de que não gostava de pobres, tendo nesse caso uma doença chamada aparofobia, e é sabido que hoje muita gente padece dessa patologia. Até pobres.

    Aparecia o reino do nonsense mais uma vez para pautar uma entrevista grotesca. Coisa comum hoje em dia nos canais televisivos cheios de estagiários, embora não fosse este o caso. Este jornalista já se arrastava há uns anos pelas cadeiras de pivot.

    —Mas então como é que a senhora sabe que o carro não é emprestado?

    Perguntou o jornalista convicto de estar a fazer a melhor pergunta de sempre.

    A Presidente fez uma cara de espanto não querendo acreditar naquilo que acabara de ouvir e antes que pudesse responder, houve um apagão geral. Uma parte do mundo ficou sem energia. Podia ser um simulacro também.

    Um Cyber Polygon.

    Assim de um momento para o outro.

    Trássss!! Puffff!!!

    Vários sons estridentes e desconhecidos potenciaram o frenesim generalizado das pessoas que se encontravam na redacção e no estúdio.

    Mas mesmo depois de o jornalista constatar que já não estavam no ar, começando a sentir-se o caos associado a um apagão de grande extensão, com quase tudo às escuras, em off ainda insistiu com a senhora autarca:

    —Sim, responda-me. Como é que a senhora sabe que o Audi do cigano não é emprestado?

    Hum!!!

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações de Ruy Otero


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  • Brasil: Parlamentarismo bastardo, ou o sequestro do orçamento

    Brasil: Parlamentarismo bastardo, ou o sequestro do orçamento


    Promovida a redemocratização, o Brasil transformou-se numa república sui generis. Quem lê com atenção a Constituição de 1988, enxerga em seu texto coisas assaz curiosas. Embora o sistema de governo esteja definido com um representante eleito por voto maioritário para exercer a chefia de Estado e de Governo (o Presidente da República), quase nada se faz sem que o Congresso dê o seu aval. Não só isso. Em muitos casos, o Congresso pode literalmente decidir sozinho. Ainda que reste ao Presidente o direito de vetar certas proposições, o Congresso pode simplesmente derrubar o veto e fazer valer sua vontade à força. No caso de emendas à Constituição, nem direito a veto existe. Os parlamentares aprovam a alteração no texto constitucional, promulgam a emenda e fim de papo. Quando muito, restará ao Governo tentar recorrer ao Supremo caso haja alguma inconstitucionalidade na iniciativa. Por mais que não se queira admitir, a prevalência política – no sentido de “poder para fazer as coisas” – no nosso sistema constitucional está estruturada em torno do Congresso, à semelhança do que ocorre no parlamentarismo.

    Ainda que a Constituição claramente tenha sido desenhada para operar sob um sistema parlamentarista, optou-se por estabelecer um sistema presidencialista, de modo a não confrontar a tradição política instituída desde a Proclamação da República. Para além disso, ainda estava muito viva na memória a campanha das “Diretas Já!”, na qual a imensa maioria da população foi às ruas pedir a volta da democracia com o lema: “Quero votar para presidente!”. Saindo de uma ditadura de 21 anos, os constituintes não tiveram muita margem de manobra para dizer que, agora com a democracia restabelecida, o povo seguiria sem escolher o mandatário máximo da Nação.

    brazil, flag, south america

    Os defensores do parlamentarismo, contudo, estabeleceram um artifício constitucionalmente engenhoso. A despeito de manterem o sistema presidencialista, fizeram incluir no art. 2º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias a obrigatoriedade da realização de um plebiscito contados cinco anos da promulgação da Constituição de 1988. Nessa consulta popular, o povo escolheria tanto o regime (monarquia ou república), quanto o sistema de governo (presidencialismo ou parlamentarismo). A idéia era a de que nesses cinco anos após a promulgação do texto constitucional ficassem claros os inconvenientes do sistema presidencialista, fazendo com que a própria população optasse pela mudança de sistema. Quando isso acontecesse, tudo se encaixaria. A Constituição parlamentarista seria doravante seguida por um governo parlamentarista.

    Faltou, contudo, combinar com o povo. Realizado a 21 de Abril de 1993, os parlamentaristas conseguiriam reunir pouco mais de ¼ do eleitorado, com direito a 10% de monarquistas que pretendiam abolir a República (embora não estivesse claro no plebiscito se o país seria devolvido à dinastia dos Orleans e Bragança). Ficámos, pois, condenados a um modelo político esquizofrénico, em que a maior parte do poder estava reservada ao Congresso, mas o Poder Executivo ficava a cargo do Chefe de Estado, que detinha a chave do cofre.

    Como se isso não bastasse, as excentricidades do nosso sistema eleitoral acrescentaram diversas incongruências práticas ao bom funcionamento desse modelo. Enquanto Presidente da República e os senadores são eleitos em sistema maioritário (quem tiver mais votos, leva), os deputados federais são eleitos seguindo o voto proporcional em lista aberta. Contam-se os votos e distribuem-se as cadeiras da Câmara de acordo com os votos obtidos por cada partido. E, dentro de cada partido, são escolhidos os candidatos que foram mais votados. Com mais de 30 partidos registados no Tribunal Superior Eleitoral, disso resulta que, em todos os casos desde a redemocratização, nenhum Presidente eleito pelo povo contava com maioria absoluta no Congresso.

    Para contornar a circunstância de chefes de governo minoritários no Parlamento, desenvolveu-se uma espécie de “modelo de coabitação”, no qual os parlamentares faziam emendas ao orçamento da União. Indicadas como prerrogativa sua, as emendas nasceram com o propósito de destinar verbas a pequenas obras ou instituições nos seus redutos eleitorais. A intenção, por óbvio, era transformar dinheiro em votos. No ano seguinte, o Executivo – senhor dos recursos federais – decidia quais e quando as emendas seriam pagas. Foi através desse sistema que os sucessivos presidentes, de Fernando Collor a Lula III, conseguiriam formar suas bases de apoio, naquilo que o sociólogo Sérgio Abranches viria a definir como “presidencialismo de coalizão”. Até aí, nada de mais. Politics is politics.

    people, street, car wallpapers

    O problema, como o leitor amigo pode imaginar, é que esse “arranjo” somente funcionaria enquanto o Presidente da República se mantivesse politicamente forte. Na hora em que ele ficasse fraco, seria apenas questão de tempo até que o Congresso “descobrisse” que era ele quem de facto mandava. Bastaria aumentar a quantidade de emendas no orçamento ou, pior, torná-las de execução obrigatória, para que o Executivo perdesse seu principal instrumento de barganha política.

    E foi justamente isso o que aconteceu a partir de 2015. Primeiro, Dilma Rousseff resolveu enfrentar Eduardo Cunha, sendo derrubada por impeachment em seguida. Depois, seu vice, Michel Temer, caiu em desgraça após a delação dos notórios irmãos Batista, tornando-se politicamente zombie até o fim de seu mandato. Por fim, tivemos a “terceirização” do governo promovida por Jair Bolsonaro, preocupado apenas em formas de organizar uma ditadura que lhe permitisse governar como autocrata. Numa sequência cada vez mais voraz, os deputados e senadores resolveram assenhorar-se de parcela cada vez maior dos recursos arrecadados da população, relegando o Governo Federal praticamente à condição de pedinte para seus próprios programas. Estabeleceu-se, portanto, de forma completamente anómala, um “parlamentarismo bastardo”, cevado por verbas sequestradas ao orçamento da República.

    A coisa atingiu tal nível de selvageria que, entre 2019 e 2024, nada menos do que R$ 186 mil milhões (cerca de EU$ 30 mil milhões) esvaíram-se pelos desvãos do orçamento em emendas parlamentares. Pior. Com a lógica do “orçamento secreto”, manufacturada no governo Bolsonaro, não se sabe sequer: 1) quem foram os parlamentares responsáveis por essas indicações; 2) quanto foi gasto em cada emenda.

    É bem verdade que Lula da Silva já pegou o bonde a andar, com a casa desarranjada pelo que (não) fizeram seus predecessores. Mesmo assim, o atual mandatário tem feito pouco ou quase nada para mudar esse estado de coisas. Parte dessa inação deriva do fato de que boa parte do PT abraçou-se gostosamente ao Centrão, funcionando como linha auxiliar de Arthur Lira, o todo-poderoso Presidente da Câmara e responsável directo pela criação do “orçamento secreto”. Não por acaso, o Presidente da Câmara mantém alguns dos principais próceres do partido da estrela vermelha como seus fiéis escudeiros.

    Quem sabe movido pela esperança de que o tempo acabe por resolver essa questão de uma forma ou de outra, Lula talvez tenha achado que pudesse empurrar a situação com a barriga até a eleição da nova mesa diretora da Câmara no ano que vem, quando Lira forçosamente deixará o terceiro posto mais importante da República. O problema é que a barriga do Planalto não está suficientemente sarada para empurrar o Presidente da Câmara e o Centrão até 2025. Maior prova disso foi o que ocorreu nesta última semana.

    Como o Planalto não fizesse nada para restaurar o mínimo de moralidade na distribuição das emendas, coube ao Supremo Tribunal Federal tentar colocar alguma ordem nessa zona. Com o voto condutor do Ministro Flávio Dino, o Supremo determinou que, doravante, os recursos para emendas somente poderiam ser liberados caso fosse apresentado um plano de trabalho previamente aprovado pelo ministério responsável pela obra. Mais: toda e qualquer emenda deveria indicar precisamente o parlamentar responsável por sua indicação. Para além disso, o STF ainda determinou que o valor total das emendas não poderia crescer além dos limites estabelecidos pelo arcabouço fiscal. Foi o que bastou para detonar uma revolta congressual.

    Acreditando que a decisão do Supremo fora combinada com o Planalto, os parlamentares interditaram a agenda legislativa, a ameaçar deixar de votar um pacote de corte de gastos enviado pelo Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, para fazer frente à descrença com o compromisso fiscal do Governo. Emparedado pelo Congresso, Lula da Silva chamou ao Planalto os presidentes da Câmara e do Senado, que de lá saíram com a promessa de que, independentemente do que decidira o STF, a verba das emendas será liberada.

    Ainda que o dinheiro venha a ser liberado, o refrigério obtido pelo vendaval de emendas será apenas temporário. Mais hora, menos hora, Lula vai ter que encampar a discussão sobre a função e os limites das emendas parlamentares. A melhor forma de fazer isso é abrir o jogo e trazer a luz do Sol para dentro dessa contenda. Um debate honesto, a mostrar para onde está sendo direcionada a verba das emendas e o que se está a deixar de fazer para manter esse mimo do Parlamento, certamente faria acordar o “monstro da opinião pública”. Sem ter como defender o indefensável, nem Arthur Lira teria forças para barrar a pressão que viria de fora pra dentro do Congresso.

    Se até o momento não se fez a luz sobre essa discussão, parte disso deriva do facto de que Lula não quer confrontar o Congresso (e, dentro dele, o PT) com seus próprios demónios. É um erro, porém, apostar na inércia, acreditando que é melhor deixar tudo como está, para ver como é que fica. Em 2014, Dilma Rousseff foi avisada de que havia algo de errado na Petrobras. A “gerentona”, contudo, achava que Paulo Roberto Costa era apenas mais um diretor da estatal e que Sérgio Moro era apenas um juiz de Curitiba.

    Deu no que deu.

    Arthur Maximus é advogado no Brasil e doutorado pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa


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  • O ‘Muskito’ na sopa dos jornalistas ‘mainstream’

    O ‘Muskito’ na sopa dos jornalistas ‘mainstream’


    Alterações Mediáticas, podcast da jornalista Elisabete Tavares sobre os estranhos comportamentos e fenómenos que afectam o ‘mundo’ anteriormente conhecido como Jornalismo. No 14º episódio, analisa-se o fenómeno bizarro que levou os media a politizar o trágico e mortífero ataque num mercado de Natal na Alemanha. Também se analisa a mais recente propaganda do DN sobre Gouveia e Melo e a participação de duas jornalistas e uma ex-jornalista num processo de perseguição judicial ao director do PÁGINA UM por ter denunciado promiscuidade entre médicos e farmacêuticas. Por fim, em análise, mais um caso que leva a imprensa a repetir o mantra ‘Elon Musk bad’.

    Acesso: LIVRE, mas subscreva o P1 PODCAST com um donativo mensal de 2,99 euros. Ajude o PÁGINA UM a amplificar o seu trabalho.

  • António Costa: depois dos pontapés a Camões, os coices a Shakespeare

    António Costa: depois dos pontapés a Camões, os coices a Shakespeare

    Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM solicitou o registo da marca para Portugal ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), cujo longo processo foi já concluído. No contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas regulares pareceu-nos não somente conveniente como necessário. Nesta décima oitava edição, o piparote de Brás Cubas segue para Bruxelas em direcção à dicção e demais tropelias linguísticas de António Costa..


    Que me perdoem os mortos, e já agora também os vivos, se, escrevendo estas linhas, lhes pareço impregnado de um orgulho indiscreto. Mas não será o orgulho o motor da crítica, como a vaidade é o adorno do erro?

    Não sendo eu sujeito a remorsos nem a vergonhas – privilégios singulares desta existência post mortem –, permito-me assim iniciar este ensaio com um pensamento que me ocorreu certo dia de Oitocentos, às margens do Mondego, enquanto praticava o meu francês: o orgulho, no seu âmago, é o coche do mérito, enquanto a vaidade é a poeira que dele se desprende quando percorre estradas mal calcetadas pela Fortuna.

    Eis, pois, a distinção cabal que farei entre o meu orgulho linguístico e a vaidade – ou a falta dela – de certos figurões modernos, como o ex-primeiro-ministro de Portugal, agora transformado em presidente do Conselho Europeu, o ditoso António Costa, ou desditoso, cuja relação com a língua de Shakespeare evoca menos um coche do mérito e mais uma carroça aos solavancos pelas estradas do improviso. Devia ter ele se mantido a arranhar, menos mal, a língua de Molière.

    Isto, para nem falar em demasia, mas vou dissertar, nas galhetas desferidas contra a augusta e luminosa língua de Camões, com recurso a autênticas espadeiradas lexicais desferidas em forma de erros de metaplasmos – esse caprichoso fenómeno linguístico que, por si, sempre foi doutamente cultivado como nova arte hermética, ao mesmo tempo inspirando os mais argutos filólogos e arrancando gargalhadas sonoras em tertúlias espirituosas, onde o vinho é generoso e o espírito se solta.

    Ah, como diria um filósofo que nunca existiu, mas que bem poderia ter vivido no meu tempo: a língua, essa dama caprichosa, ora se veste de gala, ora se esconde sob trapos mal-alinhavados, como os que compõem as gloriosas traulitadas do nosso personagem em apreço. E que traulitadas, devo dizer! Nunca foram meras topadas linguísticas, mas autênticas investidas quixotescas contra os moinhos da gramática, perpetradas com o arrojo de quem acredita estar a esculpir, em mármore, o que afinal não passa de argila.

    Tomemos, por exemplo, o glorioso “poder-lhe dizia” – uma construção tão ousada que parece evocar Camões ressuscitado para um encontro com Yoda, entre hexâmetros e sabres de luz. Já “competividade” soa a uma nova teoria económica, talvez inspirada em Adam Smith Guilhermino, meu estimado padrinho de nomeada, mas com uma pronúncia inovadora que só um génio pós-iluminista poderia conceber.

    E “digitalição”? Ah, esta é quase poética: um tributo ao progresso, onde a tecnologia tropeça em si própria, caindo numa digitalização que se reduziu à sua mais honesta imperfeição. Não menos sublime é “prelenamente”, um advérbio de tal requinte que faz o “plenamente” parecer uma simplória redundância.

    E há mais! “Insintizámos” poderia, num outro contexto, ser o hino de um povo que sintetizou os seus sentimentos numa epopeia trágico-cómica. Já “pulação adulta” é uma provocação filosófica: seria o crescimento populacional humano um salto ou apenas um tropeço? E que dizer do exótico “maior badéfice de sempre”? Soa a um contrato tácito com a mediocridade, um ‘badéfice’ ao qual, infelizmente, estamos todos habituados.

    Mas a jóia da coroa é, sem dúvida, a “molibilição”. Ah, que beleza semântica, que revolução nas molas do pensamento! Aqui, o espírito entra em ebulição: esta palavra bem poderia designar o meu estado de espírito, suposto inventor da ‘emplastrofagia’ para a cura da melancolia, ao contemplar o mundo em movimento perpétuo e desconjuntado.

    E assim, entre “precalidade” e tantos outros neologismos involuntários, sempre assisti, na voz de António Costa, a língua de Camões a rodopiar numa valsa entre o sublime e o risível, como que a lembrar-nos que o erro, afinal, é a mais humana das invenções – ou, como diria o dito, a ‘molibilição’ dos que sonham com a perfeição, mas tropeçam alegremente na poeira das palavras.

    Tudo isto são autênticos monumentos ao génio criativo de António Costa, a reter para futuros compêndios de antropologia linguística. Se Camões choraria ou riria ao ver a sua língua tão retorcida? Ah, isso deixemos à imaginação dos leitores…

    Mas não coloquemos já todos os equídeos à frente do meu coche – o orgulho que me enobreceu no culto das línguas –, a cuja construção dediquei anos de estudo e empenho. Lembro-me bem dos dias da juventude em Coimbra, quando, às custas de noites mal dormidas, me afeiçoei ao latim de Cícero, cujas Philippicae recitei tantas vezes que quase podia ouvir Marco António a tremer sob o peso da oratória. O latim, essa língua venerável que jaz agora sob o pé de estudantes desidiosos, foi para mim o pórtico de um universo cultural que me levou ao francês de Voltaire, e daí ao inglês de Shakespeare e depois ao italiano de Dante. Confesso que tive especial predileção por Voltaire, cujas Lettres philosophiques li na edição de 1756, adquirida em Lisboa durante uma das minhas estadias regadas a portos e saudades. Se era no francês que eu encontrava a elegância das ideias, foi no inglês que descobri a vastidão das emoções humanas. Shakespeare, com o seu Hamlet, ensinou-me mais sobre a melancolia do que todas as dissertações filosóficas que já folheei.

    Por este motivo, afirmo que o orgulho linguístico radica no esforço e na Cultura. Aprender línguas não é um mero acto de conveniência social, mas um empreendimento hercúleo que exige paciência, dedicação e, acima de tudo, uma alma curiosa. Não é como aquela vaidade que decorre de circunstâncias fortuitas – o berço, o amiguismo, o acaso –, em que o sujeito ostenta um dom não seu, como um papagaio que repete palavras sem sequer as compreender.

    Se o orgulho se constrói no esforço, como afirmei, o oposto acontece quando a língua é tratada como mera ferramenta utilitária. Com a presunção de quem acredita que, se um português pode tratar a língua-mãe ao pontapé, assim mais facilmente pode dar coices no inglês, tivemos o infortúnio e a vergonha de assistir a António Costa a aventurar-se, há uns dias, a falar a língua de Shakespeare, sem qualquer rede de segurança, num espectáculo mais caricato do que a trapalhada saída de um persa a traduzir holandês para ser entendido por um chinês.

    Tudo aquilo foi mais confrangedor do que presenciar uma ópera interpretada por gatos de rua. Não tanto por ele dizer “more easy” em vez de “easier”, ou “chipa” em vez de “cheaper”, ou “means to payment” em vez de “payment methods”, mas sim por aquele sublime “concrete benefits” – como se os benefícios concretos somente pudessem ser vertidos em formas de betão, tal o peso da metáfora que, ao que parece, se perdeu entre o cimento das ideias e o movediço caos linguístico.

    Mas se os faux pas de António Costa já se inscreveram com mérito, pelo seu demérito, no anedotário europeu, o futuro promete reservar-lhe novas e gloriosas epopeias de inépcia linguística. Acredito não ter ele desvendado todo o seu potencial. Os seus lapsos, os seus deslizes e os seus solecismos, essas pérolas de oratória improvisada, têm, em si, o poder de transmutar-se em cânone, em perpétuos ensaios de desvarios, ou em recitais eternos de malapropismos, onde a língua de Shakespeare será ora a vítima, ora a cúmplice das suas mais audaciosas incursões.

    Imaginemos, pois, este intrépido orador a enfrentar novamente a língua de Shakespeare sem papéis, sem teleponto e sem tréguas, em épicas batalhas. Imaginem-no, com o mesmo ar confiante de quem sabe que pode transformar qualquer erro em espectáculo, entrando nos salões de Bruxelas para mais uma actuação memorável, digna de figurar nos anais das gafes linguísticas europeias. Cada cimeira europeia se anunciará como uma comédia involuntária

    Num discurso inflamado sobre inovação, por exemplo, não será surpreendente ouvi-lo dizer: “Portugal will push into the future with strong knees!”, proclamando, com vigor, que os joelhos portugueses serão a chave do progresso. Os tradutores, presumo, hesitarão entre uma vergonhosa correcção ou a negligência de deixarem a assembleia acreditar que a modernização portuguesa inclui exercícios de agachamento colectivo.

    Noutra ocasião, prevejo que Costa exaltará o papel do vosso país na União Europeia, com uma proclamação: “Portugal is a big player in the European onion market!”, fazendo os ministros da Agricultura dos países comunitários a imaginar camponeses lusitanos com sacos de cebolas nos corredores de Bruxelas.

    E haverá, sem dúvida, o dia em que, desejando transmitir firmeza, Costa garantirá: “We will deliver more concrete actions by the end of the year!”. A plateia ficará a imaginar um comboio de pedra britada, areia e cimento a caminho da Comissão Europeia, com mudança de bitola, enquanto os engenheiros do Parlamento questionarão se as “acções concretas” incluem mesmo reformas betuminosas no edifício de Estrasburgo.

    Mais tarde, numa cimeira sobre pobreza, o vosso António Costa declarará, certamente, com ênfase e a sinceridade que só ele possui: “We are committed to reduce the number of poors in Europe.”. Os irlandeses, conhecidos pela sua fleuma, esconderão um riso contido, que, no seu literalismo, quase soa a um plano de extermínio metafórico. E os restantes líderes, já habituados, acenarão com um sorriso, como quem vê uma criança orgulhosa do seu desenho torto.

    Por fim, haverá um momento culminante, ou fulminante, quando Costa, querendo demonstrar liderança no Plano de Recuperação Europeu, disser com solenidade: “The recovery plan is our new Bible; we just need to interpret the scripts.”. O auditório ficará assim, na dúvida, se o vosso português é um Homem de Fé ou anda em preparativos para realizar uma produção cinematográfica.

    E assim será o futuro do vosso António Costa: um contínuo desfilar de metáforas desajeitadas, fonéticas criativas e interpretações únicas do idioma de Shakespeare. E assim sendo, entre risos contidos e expressões perplexas, auguro que Portugal continuará a ser notado, nem que seja pelas aventuras linguísticas do seu pretérito primeiro-ministro – uma figura que, sem rede, sem dicionário, mas com muita convicção, transformará cada presença deste lusitano numa obra-prima da comédia diplomática. E assim mesmo, António Costa perpetua a tradição lusitana de deixar a sua marca no Mundo – não por palavras certas, on the contrary, mas sempre de forma memorável.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM registado no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, usado em exclusivo por Pedro Almeida Vieira, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.


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  • Esaú sempre exigiu um prato de lentilhas; ao Público basta uma pizza quentinha

    Esaú sempre exigiu um prato de lentilhas; ao Público basta uma pizza quentinha


    Na celebre história bíblica, Esaú trocou o seu direito de primogenitura por um simples prato de lentilhas. Um momento que, convenhamos, representa um marco de ingenuidade, mas também de desespero gastronómico. Na verdade, e eu sei bem disso; sempre fui boa boca, com bigodes a condizer, e quando a fome aperta até a ética vai pelo ralo. Por isso, nem me surpreende em demasia que alguns redactores contemporâneos adoptem Esaú como patrono das suas lides.

    A este propósito, parece-me deliciosamente paradigmático o recente caso do Público, e mais uma vez do seu suplemento Fugas, que trocou o seu direito de ser levado a sério por… pizzas e prosecco na Lx Factory.

    Sim, meus prezados humanos, ao preço de uma refeição – que, espero, tenha ao menos incluído sobremesa –, o jornal da Sonae conseguiu publicar um hino de propaganda de um espaço de culinária travestido de reportagem. Ah, não confundam: não se trata de uma publireportagem (longe disso!): é, garantem-nos, uma “rigorosíssima e isenta peça jornalística” escrita pela jornalista Inês Duarte de Freitas, competente na sua carteira profissional 8181, também ela uma Esaú moderna a trocar o bom senso pelo direito a um lugar à mesa. E ao sol, provavelmente.

    Afinal, por que não permitir que a ética jornalística saia para um passeio enquanto se saboreia uma Alessandro de 15 euros, “com tomate, mozarela, stracciatella, pistácio, mortadela e grana padano” ou a mais clássica Paolo de 13,5 euros, “com tomate, mozarela, tomate amarelo, pepperoni e manjericão”.

    Mas não nos apressemos. Antes de falarmos das virtudes da Sophia Pizzoteca – “residente italiana” da Lx Factory, como bem entoado no artigo –, detenhamo-nos um pouco no contexto. O texto começa com um desfile de adjetivos tão vibrantes quanto as luminárias do restaurante. Há “irreverência do conceito”, “tons néon”, e até um bar aberto de prosecco que, pelos vistos, é a mais recente maravilha do mundo moderno. A página resplandece com descrições de massas finas e está estampada com palavras quase poéticas sobre o papel de parede desenhado à mão, porque não basta uma pizza; é preciso uma aura.

    Ninguém poderá estar contra uma boa pizza. Eu mesmo, na qualidade de um felino sofisticado, não recusaria um pedacinho (de stracciatella, obviamente, que o resto é para amadores) ou qualquer uma que tenha fiambre, sendo que sempre comerei o fiambre antes do resto. Mas permitam-me levantar uma questão: onde está a linha entre uma reportagem e um press release? Ou melhor, quando o já duvidoso estilo da publireportagem se transforma em carta de amor disfarçada de jornalismo e assinada á descarada por uma jornalista?

    pulses, lentils, beans

    A questão é ainda mais pertinente se recordarmos que a mesma autora, dias antes, voou até Paris para assistir a um espectáculo de magia do Luís de Matos… a convite da Luís de Matos Produções.

    Fico, entretanto, expectante sobre os próximos passos. Se este artigo sobre a pizzaria, uma verdadeira obra de arte da sugestão velada, termina com a frase “A Fugas jantou a convite do Sophia Pizzoteca&Bar”, o que virá depois? Artigos sobre calçados com o jornalista calçado pela marca? Reportagens sobre companhias aéreas em que o jornalista voa em classe executiva oferecida pela companhia? Avaliações imparciais de smartphones feitas por um jornalista que recebe um novo dispositivo da marca em ‘empréstimo permanente’? O céu é o limite. Mas se até eu tudo faço por um bom petisco, se a ética se pode trocar por uma requintada iguaria, então recomendo aos jornalistas do Público que subam os padrões: nada menos do que um Filet Mignon Rossini, perfeitamente selado, com cobertura de foie gras e finalizado com lascas de trufas negras frescas. Neste contexto, valha-me Deus!, uma pizza é pior do que o bíblico prato de lentilhas.


    Serafim é o Mascot do PÁGINA UM, conveniente e legalmente identificado na Ficha Técnica e na parte da Direcção Editorial, possível pela douta interpretação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Qualquer semelhança entre os assuntos relatados e a realidade é pura factualidade.


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