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  • A taberna como referência

    A taberna como referência


    Foi penoso, ao longo das últimas semanas, seguir a novela das aventuras e desventuras da TAP e de quem a dirige a nível empresarial e político.

    Fomos obrigados a ouvir, durante horas e horas, todo o tipo de debates, “análises”, comentários, afirmações, desmentidos, pedidos de demissão e histórias rocambolescas, com que os nossos deputados se têm entretido, praticamente a tempo inteiro, no Parlamento.

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    À falta de preparação intelectual, e do conhecimento das matérias realmente importantes para o nosso dia-a-dia, entretêm-se a dar opiniões e a exigir respostas, sobre temas que estejam ao alcance do “povinho”.

    O objectivo é simples:

    Pegar num caso que demonstre o falhanço de um adversário político, criticar este com a maior veemência, se necessário realçando um ou outro ponto que, mesmo sendo duvidoso, possa aumentar a revolta de quem escuta e, ouro sobre azul, criar um escândalo.

    Vejamos o caso concreto que está na moda.

    Tudo começou com uma indemnização de quinhentos mil euros a uma administradora da TAP, que a CEO “convidara a sair”, e que, passadas poucas horas, seria chamada para assumir um lugar noutra empresa do Estado.

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    Uma Oposição, composta por um Partido (PSD) que anda, há sete anos, com vontade de “ir ao pote” – mas sabendo que tem de esperar mais três, dada a maioria absoluta do PS – com um inesperado apoio de outros com assento parlamentar, não se tem preocupado com qualquer outro assunto ou problema do país na esperança de que o clamor à volta do caso leve o presidente da República a dissolver o Parlamento e marcar eleições.

    Hipótese, aliás, sugerida várias vezes por este nos intervalos das suas múltiplas opiniões sobre futebol, cinema, educação, moda e gastronomia, entre outros.

    O ruído aumentou com a entrada em cena dos rapazes do Chega que, cientes de que o PSD nunca teria votos para governar sozinho, não só exigem eleições imediatas mas, também, fazer parte do novo Governo e, inclusivamente, indicando os Ministérios que pretendiam passar a tutelar.

    E dizem tudo isso num discurso feito, propositadamente, para ser entendido e apoiado pelo seu eleitorado mais fiel: os habituais frequentadores das inúmeras tabernas do nosso país.

    Ou seja, fixando-se em dois ou três pontos, que cheirem a escândalo, repeti-los em frases curtas, compostas por palavras que não tenham mais de três sílabas, e insultando, a plenos pulmões, quem deles tenta discordar.

    O ideal é, depois, fazerem acusações que possam pôr em causa a idoneidade dos que pretendem atacar, mesmo que alterando os factos.

    Como no caso do adjunto de um Ministro, que foi demitido e, depois disso, “levou”, do que tinha sido o seu local de trabalho, contra a vontade da Directora do Gabinete, um computador do Estado porque garantia ter, nele, textos pessoais.

    A polícia e os Serviços de Segurança foram recuperar o aparelho, que até foi devolvido de livre vontade, e fez-se disto um caso que, há quem considere, devia fazer cair o Governo.

    Até aceito que a chamada do SIS foi infeliz e que o mais certo teria sido chamar a PSP e mandar prender o tal adjunto por furto, ou roubo, conforme a interpretação da violência havida no gabinete.

    Levar o caso ao ponto a que chegou, nos termos em que chegou, com o vocabulário usado por políticos que querem ser governantes, acabou por confirmar a fragilidade da nossa Oposição que se vê obrigada a agarrar um episódio caricato por absoluta incompetência para debater os verdadeiros e graves problemas políticos do País.

    Desde logo a Saúde, a Justiça, a Educação de um modo geral e a luta dos professores em particular, o modo como investir o dinheiro proveniente da Europa, etc. etc. etc..

    O PSD é chefiado por um pseudo político, sem capacidade para ganhar, sequer, uma eleição a qualquer Junta de Freguesia, que permite que, no Parlamento, nomeadamente na Comissão de Inquérito, os seus deputados tenham entrado no mesmo registo dos populistas, com insultos e tentativas de humor ridículas. Aí, o Deputado Rios de Oliveira é uma fotocópia, pior que os originais, como sempre, da malta do Chega.

    Pior, só mesmo o acéfalo da Iniciativa Liberal, um tal Rui Rocha (Calhau seria mais indicado) com um palavreado absolutamente primário e deprimente.

    O resultado de tudo isto é que, pensar que o Presidente Marcelo, por muito líder da Oposição que queira ser (e tem sido) e por muita vontade que tenha (e tem) de ver o seu Partido a dirigir o País, vai usar a “bomba atómica” é estar completamente fora da realidade.

    Marcelo sente que este segundo mandato, que tem sido muito mau, acabaria em total desastre se promovesse novas eleições já que o PS as ganharia, de novo, atendendo à falta de categoria de uma Oposição que tem como referência os eleitores de taberna.

    Aliás, só mesmo bêbedo alguém votaria nos partidos que a compõem. Por mim falo já que seria a primeira vez que, com o cuidado de tapar o símbolo para não me sentir muito mal, votaria no PS.

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O Estado é o nosso Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda

    O Estado é o nosso Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda


    No romance de Camilo Castelo Branco, A queda de um anjo, o personagem Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda é um fidalgo português da província. Casou-se por interesse com Teodora Barbuda de Figueiroa, igualmente, claro está, de boas famílias. Era um amante da tradição e dos bons costumes.  

    Em certa altura, a vida perfeita de Calisto foi abalada com a sua eleição como deputado, obrigando-o a partir para Lisboa. Na capital, ele conhece uma mulher chamada Adelaide e apaixona-se loucamente, sentindo, pela primeira vez, o verdadeiro amor.

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    Mas, para desgraça de Calisto, Adelaide não correspondeu ao amor de Calisto, dado este ser um homem casado – esta, aparentemente, tinha princípios. Desta forma, Calisto teve de virar-se para outras paragens. E assim aconteceu. Pouco depois, ele conhece a jovem viúva do general Ponce de Leão, uma brasileira loira, com cerca de trinta anos. Esta aceitou o amor de Calisto para obter uma pensão. Calisto apaixona-se perdidamente e monta-lhe uma casa. A partir deste momento, foi a total transformação de Calisto: passa a adoptar costumes modernos que antes condenava; o verdadeiro Calisto, aquele que sempre existira, enfim, revelara-se, finalmente.

    O Calisto dos portugueses é o Estado. É tão amado, mas tão amado, que os portugueses depositam nele toda a sua confiança. Nas suas instituições, nas suas agências de notícias, nas suas certificações, nos seus estudos, nas suas estatísticas.

    Os portugueses e os demais povos ocidentais têm uma espécie de relação infantilizada com o Estado. Adoram ser inimputáveis, serem tratados como criancinhas, receberem ordens e directrizes. No fundo, o papá Estado é tudo na sua vida!

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    Não logram ver que existem regras distintas para eles e para o Estado. Se um privado, como a Dona Branca, defrauda os demais com um esquema piramidal, deve ser severamente punido.

    Apesar de tudo, ninguém se atreve a apontar o dedo à Segurança Social, um fraude sem paralelo e que apresenta apenas duas diferenças em relação ao celebérrimo e falecido Sr. Madoff: (i) a adesão ao esquema é obrigatória, com ordem de cadeia para quem se recusar a aderir; (ii) a saída do esquema é apenas possível no momento em que o Estado assim o decide, sejam 60, 62, 65 ou 70 anos. O Sr. Madoff usava os seus encantos para captar os clientes, enquanto o Estado diz-nos que estamos a praticar solidariedade intergeracional!

    Se um privado manipula o mercado, “prática que consiste em alguém que tem uma influência significativa sobre a oferta ou procura de determinado instrumento financeiro, aproveitar-se dessa possibilidade de forma a distorcer o preço de referência, pode ser punido com uma pena de prisão até três anos ou com pena de multa. E o que acontece aos Bancos Centrais que todos os dias manipulam os preços das obrigações com dinheiro de monopólio? Nada, estão a “estimular a economia”, estão a “trabalhar para o nosso bem”.

    Como podemos ser tão facilmente ludibriados por um lento e sub-reptício confisco a tudo o que produzimos: pagamentos por conta, retenções na fonte, taxas de segurança social com dois conceitos, empregador e trabalhador, que na verdade são pagas do mesmo bolso, do empregador, em que este é responsabilizado criminalmente se falha, taxas na conta de electricidade, taxas e impostos sem fim num simples litro de gasolina.

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    São impostos sobre o consumo, sobre a propriedade, sobre a aquisição de propriedade, sobre ganhos mais-valias, sobre a poupança, sobre o rendimento; nem mesmo o assaltante mais prodigioso se lembraria de tal esquema!

    Em 2022, o Estado português arrecadou 106 mil milhões de euros em receitas, o que representa cerca de 10 mil euros por cidadão português, incluindo idosos e crianças; 40 mil euros numa família de quatro pessoas.

    Se o Estado português não assaltasse subrepticiamente, através de múltiplos conceitos, e apresentasse uma conta única do assalto a cada cidadão no final de cada ano, neste caso 10 mil Euros, seguramente ocorreria uma revolução.

    Mas os portugueses continuam felizes. Felizes por serem vítimas de um assalto sem fim. O escol que os domina e parasita, ri-se, todos os dias, a bandeiras despregadas da condição de escravatura da população. A máquina de extorsão é paga pelas vítimas, e trata-as como se de criminosos se tratassem à mínima falha. Nada, nem ninguém, põe na ordem esta máquina, que executa as suas cobranças mesmo quando os cidadãos impugnam judicialmente as suas decisões.

    O Estado até se julga no direito de regular todos os aspectos da nossa vida. Proíbe-nos de consumir drogas, promovendo o crime organizado, a violência e a miséria de muitos. Apesar de não afectar a liberdade de terceiros, quer decidir os locais onde podemos adquirir e ter os nossos vícios, em nome da nossa saúde.

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    Há dois anos, este Estado tirano forçava a inoculação de toda a população com substâncias experimentais, desenvolvidas em menos de um ano. Mais uma vez, tudo em nome da nossa saúde. O Estado “só quer o nosso bem”, mesmo quando fecharam os hospitais durante a falsa pandemia, era tudo para “salvar vidas”!

    Apesar de pagos com o saque à população, uma panóplia de serviços é anunciada como “gratuita”, seja a saúde ou a educação, adoptando quase sempre modelos soviéticos. Um planeador central, um burocrata ao serviço dos salteadores, contrata todos os funcionários e fornecedores que inevitavelmente termina em corrupção, ladroagem e compadrio. No caso da educação, até serve para o Estado doutrinar os nossos filhos a serem subservientes e pagadoras felizes de tributos.

    O mais surpreendente? Aceitarmos o confisco permanente por via da inflação. Deixámos a um cartel bancário e a um Banco Central que os coordena, em nome do Estado, roubar-nos permanentemente através da emissão contínua de dinheiro por contrapartida de dívida.

    Os bancos, com uma licença bancária, podem livremente emitir dinheiro, enquanto o comum cidadão, caso o faça, vai directamente para os calabouços (artigo 262º): “Quem praticar contrafacção de moeda, com intenção de a pôr em circulação como legítima, é punido com pena de prisão de três a doze anos.” Isto é para nós, para eles, justifica-se tudo em nome do bem comum!

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    O mais extraordinário? Quando o Estado obriga os privados a policiar gratuitamente todos os movimentos financeiros dos cidadãos, em nome, vejam só, do combate à lavagem de dinheiro e ao terrorismo. Ou seja, o cidadão tem de se submeter, sem resistência, tal como um gladiador, ao assalto. Por outro lado, qual a legitimidade para combater o terrorismo?

    Não há organização mais terrorista que o Estado, seja na invasão de países (Iraque, Síria, Afeganistão, Líbia…), onde se assassinam milhões e milhões de pessoas em nome da “liberdade” e da “democracia”; seja quando o Estado atropela as nossas liberdades, decretando a nossa prisão domiciliária, em nome do “combate a um vírus invisível”; seja quando o Estado deseja inocular-nos de forma coerciva com uma substância experimental, tal como as experiências do Dr. Josef Mengele, através de um certificado digital; seja quando o Estado legaliza o assassinato de pessoas, através do aborto ou da eutanásia.

    Será que finalmente iremos apercebermo-nos que o Estado é na verdade Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda, uma personagem de Camilo Castelo Branco? Está na hora de acordarmos, pois vivemos numa tirania!

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Tutti-frutti: hoje ser emigrante não me parece assim tão mau

    Tutti-frutti: hoje ser emigrante não me parece assim tão mau


    Sempre achei boa ideia atribuir nomes italianos a casos de corrupção. Dá logo um ar de máfia à coisa e, sem grande esforço, sabemos ao que vamos antes de ouvir uma palavra que seja.

    Tutti-frutti é, por isso, um excelente nome para a operacão da Polícia Judiciária que envolve alguns autarcas e deputados do PS e PSD. 

    O caso é particularmente interessante porque, de uma assentada, mostra a corrupção instalada no Bloco Central e a lentidão da justiça portuguesa nestes mega-processos.

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    Passam agora seis longos anos desde que se iniciaram as investigações aos arranjos entre PSD e PS nas juntas de freguesia de Lisboa. Medina e o seu número dois na Câmara de Lisboa, Duarte Cordeiro, terão alegadamente ajudado o PSD, através de Sérgio Azevedo (ex-deputado do PSD) a manter as juntas de freguesia onde estes tinham negócios (Estrela, Areeiro e Santo António, por exemplo).

    O esquema era simples e baseava-se numa luta eleitoral falseada: os dois maiores partidos escolhiam e acordavam antecipadamente que juntas queriam e, feita a divisão, cada um apresentava candidatos mais fracos nas freguesias em que o adversário devia ganhar.

    Lisboa era assim dividida de forma perfeitamente anti-democrática e os negócios de construção e exploração, das empresas na órbita do PSD, eram garantidos por mais uma legislatura. Sérgio Azevedo, alegadamente, era o motor da operação que se alargava a vários presidentes de junta de PS e PSD, na capital do país.

    O esquema terá começado em Lisboa, mas foi copiado noutras autarquias. Ou seja, combates eleitorais falseados e eleições combinadas, de forma a garantir empregos, salários e colocações para diversos boys e empresas do Bloco Central.

    Seis anos depois, não há qualquer acusação formal. Medina e Duarte Cordeiro são hoje, respectivamente, ministros das Finanças e do Ambiente, nas juntas de freguesia continuam as negociatas e, de vez em quando, o caso volta à tona, sem que o Ministério Público consiga fazer o mínimo exigido. 

    Este caso é, por isso, um exemplo clássico da corrupção política em Portugal.

    O crime é óbvio, as escutas existem, há documentos com pagamentos feitos por trabalhos repetidos (ou seja, avenças para não fazerem nada) e o Ministério Público, como em todos os mega-processos, em vez de fazer várias pequenas acusações, parece querer deduzir uma que apanhe tudo e todos ao mesmo tempo, como no caso Sócrates – que resultou naquilo que se sabe.

    As escutas que vieram a público são elucidativas. Mostram um total desprezo pelo erário público, pela democracia e por aquilo que deve ser a política. Provam aquilo que já todos sabemos há muito. Um cartão do PS ou PSD é, em Portugal, uma garantia de salário, trabalhando ou não. Mas pior do que isso, mostra, sem margem para discussão, que a política em Portugal não é um momento da vida em que nos dedicamos ao serviço público, mas sim um emprego para a vida.

    É por isso que temos deputados que durante décadas não largam a Assembleia da República, autarcas que passam a vida nas suas câmaras (ou saltam para outras quando as perdem) ou até juntas de freguesia que garantem emprego até à reforma. Ser político em Portugal é um emprego para a vida. Desde a escola até à morte, passam pela vida com um salário garantido numa missão que devia ser curta e rotativa, como complemento da nossa contribuição para a sociedade.

    PS e PSD dividem o país há muito e garantem empregos a quem os apoia. Não é novo, todos sabemos disso. Mas as escutas dão uma cara de realidade ao que antes seriam conversas de café. A luta pelo tacho é óbvia, a falta de respeito por quem trabalha e paga impostos para suportar tudo isto é notória.

    Medina, um dos visados numa investigacão que tenta provar desvios do erário público, é hoje o principal responsável pela gestão desse mesmo erário público…. Isto não se inventa.

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    Mas como é que se pode dar credibilidade a uma investigacão destas? Como pode, um contribuinte comum ouvir aquelas escutas e aceitar que desde 2017 ainda não se tenha produzido nenhuma acusação? Assim de repente, sem querer entrar em grandes teorias da conspiração, parece que o caso tutti-frutti é uma reserva do PS para lançar quando os escândalos apertam. Se Montenegro gritar muito com o Galamba, o PS manda o tutti-frutti avançar e lá se vai a superioridade moral do PSD.

    De repente, volta-se a falar em Passos Coelho como o homem certo para endireitar o país, e Luís Montenegro começa a ver que chegará ao fim do deserto sozinho. O homem que vendia cursos que não existiam na Tecnoforma, que saiu das jotas para o Parlamento e nunca trabalhou um dia na vida, é o homem certo e honesto para limpar o país dos tachos para os boys. Portugal se não existisse há oito séculos teria que ser inventado numa aldeia ao lado da do Astérix.

    Tenho uma secreta mas muito pequena esperança que este caso abra alguns olhos, àqueles que discutem acesamente as diferenças entre PS e PSD. São um disco só com duas canções ligeiramente desafinadas, embora muito parecidas. E dificilmente mudam se os eleitores lhes continuarem a dar a possibilidade de se perpetuarem no poder autárquico e legislativo. Este caso, embora também meta o Ventura nos tempos da Câmara de Loures, será, novamente, campo fértil para o crescimento da extrema-direita no nosso país.

    selective focus photography of black bird standing on tree branch

    Por vezes, tenho vergonha do nosso país, e desejo, honestamente, que este tipo de notícias não tenha grande repercussão internacional. Não entendo mesmo como é que caímos neste buraco de subdesenvolvimento e terceiro-mundismo.

    Que futuro tem um país onde, todos os dias, os políticos nos provam os seus roubos, e nós, anónimos trabalhadores, nos limitamos a encolher os ombros?

    Há dias em que ser emigrante não parece assim tão mau. Hoje é um deles.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Não suportemos a normalização do pântano

    Não suportemos a normalização do pântano


    Temos mais um escândalo com Medina. Ou melhor dizendo, este também mete Duarte Cordeiro. E também o inefável Luís Filipe Vieira. E mais ainda umas cunhas para tachos.

    Coisas banais nos tempos que correm, num Governo que já não é Governo se não tiver um escândalo semanal. Cada novo escândalo dos membros do Governo Costa é mais um elefante a passar desapercebido no meio de uma cidade: esse novo escândalo consegue esse feito porque segue em manada, rodeado de outros elefantes, de outros escândalos.

    Começa a ser necessário fazer uma lista para não esquecer de se enumerar todos os escândalos dos últimos meses com membros do Governo, ou seus adjuntos.

    Quem se recorda ainda de Miguel Alves, secretário de Estado-adjunto do Primeiro Ministro, que se demitiu em Novembro do ano passado, acusado de crime de prevaricação?

    E do marido de Ana Abrunhosa, ministra da Coesão Territorial, que, além de receber uns subsidiozitos que não eram para todos, se associou a um chinês acusado por corrupção activa?

    E já agora, de Tiago Cunha, o assessor de Mariana Vieira da Silva, 21 aninhos, saído da Universidade directamente para um gabinete ministerial a facturar 3.700 euros?

    De Alexandra Reis, demitida de secretária de Estado do Tesouro em Dezembro do ano passado, provavelmente todos se recordam. Bem como das consequências que a sua indemnização da TAP teve na demissão de Pedro Nuno Santos, de super-ministro das Infraestruturas e Habitação, bem como da saída do secretário de Estado Hugo Mendes.

    Aliás, ao pé do caso TAP – que teve “ondas” com a inenarrável cena do novo Ministério de Galamba & Companhia –, já nem sequer damos importância a todo um rol de pequenos e grandes escândalos.

    Como, por exemplo, a contratação (gorada) de Rita Marques, secretária de Estado do Turismo até Março do ano passado, por uma empresa que obtivera benefícios enquanto ela fora governante.

    Ou ainda o caso de Manuel Pizarro, que aceitou ser ministro da Saúde enquanto se mantinha como gerente de uma estranha empresa de consultadoria sobre a qual se ignora quem tenham sido os clientes.

    Também pouca repercussão já tiveram as habilidades de João Gomes Cravinho, ministro dos Negócios Estrangeiros, na renovação da sua carta de condução caducada, sem contar já com a empresa onde partilha sociedade com um sócio condenado por fraude fiscal.

    E já poucos se recordam da fugaz Carla Alves, secretária de Estado da Agricultura por 24 horas, por conta de contas arrestadas do seu marido, antigo autarca de Vinhais.

    Enfim, talvez esteja a escapar-me algum caso, mas todos estes são a ponta de um icebergue da cultura de corrupção moral – certamente não apenas moral, ainda mais sabendo-se que os três últimos anos os ajustes directos se tornaram uma prática banal na Administração da res publica – que tem sido alimentada e estimulada por António Costa.

    A operação Tutti Frutti, onde de novo surge o nome de Medina como peça principal, terá, do ponto de vista político, o mesmo tratamento por parte de António Costa que deu a todos os escândalos anteriores: deixa andar.

    O país transformou-se num couto de imoralidades, numa mina de saque, onde a indecência se banqueteia alarvemente. Em menos de um ano, Costa apenas saltita de escândalo em escândalo, como pedras, no meio de um pântano. Não governa; governa-se e os seus apaniguados assumem os escândalos com naturalidade. É só mais um antes do seguinte.

    Como se o seu objectivo deles fosse atapetar o pântano com tantas pedras como escândalos para não se afundarem. O problema é que podem eles não se afundarem, mas o ar fétido é insuportável.

    Não podemos admitir a normalização do pântano.

  • Insónias de Verão na Primavera

    Insónias de Verão na Primavera


    Dir-me-ás um dia que te lembras das caras em metades, como fases da lua em quarto minguante.

    Não chores. Já são onze horas e já se ouve o ruído do silêncio. Como folhas de papel que roçagam umas nas outras a embalar o teu olhar que se semicerra.

    Não chores. Sabes que naquele livro azul a minha mãe falou-me dos esquimós? Eu arregalava os olhos para ver melhor, na penumbra do quarto, a neve a cair e a luz céu que emanava de dentro do iglu. O ajuntamento de vários esquimós que preparavam a demanda para ir à caça.

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    Dorme. Como eu quando deitava a cabeça na almofada, com força, com o entusiasmo de querer saber como ia correr a caçada. E com a cabeça encostada contra a almofada ouvia,

    feshfeshfesh

    compassado, um ritmo suave sempre

    feshfeshfesh

    e via os esquimós afastarem-se na neve, e eram as suas passadas!

    feshfeshfesh

    a pressão das botas de pele e pêlo contra os cristais de gelo…

    feshfeshfesh

    a afastarem-se na neve até os perder de vista. Até ficarem brancos como tudo era branco, até adormecer.

    red and yellow flower petals

    Afinal era o meu coração a bater. Mas eu acreditava que era o som das passadas de esquimós na neve.

    Nunca ouvi o mar num búzio, mas ainda hoje ouço passos de esquimó na almofada, a aquecer o coração.

    Se te ponho em lume brando tantas vezes é para poderes ouvir o mar ou passos de esquimós na neve.

    De qualquer modo são estas crianças que me tornam os dias maiores. A viver no ritmo delas, o dia estende-se inexplicavelmente.

    Sinto o seu aborrecimento a torná-los líquidos, esparramados no chão, sem força nas pernas para tanta vida de uma só vez. São um copo de leite, o doce velho de uma pêra semi-roída ferida e a morrer na mesa, dormir sestas para que os sonhos invadam os dias também.

    Se te mantenho em lume brando é porque já vejo a miúda a borbulhar, quase a vir por fora, gestos que tínhamos as duas, só nossos, e já não são de ninguém. Agora acho sempre que se lhe estendo a mão me queima. Escaldada continuo, mas dói e estala a pele. À falta de mais pergunto o que comeu. O que comi? Mãe, estás sempre a perguntar-me o que comi! Come fruta… Eu sei, ainda hoje comi uma pêra!

    yellow fruit on white ceramic plate

    Mau!

    Insistes com essas coisas e eu bem me lembro do som da tesoura na cozinha, a

    cortar-me os caracóis,

    fesh! fesh! fesh!

    Eu chorava, mãe, não me cortes os caracóis! Eu quero ter caracóis!

    “Vai lá fora ao quintal que tens muitos.”

    Se calhar vivemos todos esses momentos em frigoríficos. Numa paisagem de memórias petrificadas, polidas pelo vento gélido num assobio. E os esquimós a caminharem por entre a embalagem de ovos e o passeio ao jardim zoológico. Em saltos vislumbro o macaco que me agarrou os colarinhos para roubar os amendoins. O meu pai a salvar-me.

    Devagarinho o pânico esgueira-se para dentro de mim. O céu avermelha-se de nuvens nocturnas e reflexos de lâmpadas.

    Aguentar de novo a pesca de moedas nas almofadas do sofá, suster a respiração, vamos lá outra vez. Espiralar sonos em anúncios de concursos da nossa infância, a bota Botilde e um hospital em ruínas, cadáveres a passearem-se em rodapé. Almas penadas que ninguém quer ver, assombrações em que ninguém quer pensar. Está tudo normal, está tudo normal, está tudo normal.

    brown leather boots

    Devagarinho o pânico instala-se dentro de mim. Estende as pernas no sofá da minha sala e come amendoins. Não chores, eu lembro-me de tudo quando olho para ti e continuo. A pele estala e continuo.

    Mãe, que saudades que tenho tuas. Andamos todos mortos a brincar às ausências.

    E que mal que me saio a proteger a inocência deles. Porque não sei se devo fazê-lo.

    Devo? Como fingir que as andorinhas vão continuar a regressar na Primavera, se o céu se avermelha por nos ver a regressar dos mortos?

    Um dia prometo que me rio disto. Não me rio mas sorrio. Pequenino.

    Basta mantermo-nos frios, a caminhar na neve de cabeça baixa sem esquecer que leva tempo chegar ao fim. Sentir o conforto do carapuço. Quentinho.

    Não chores. Sabes que nascem malmequeres nos telhados se lhes deres tempo suficiente?

    white daisy in bloom during daytime

    Transformas-te em mim, longe, mas em mim.

    Até a tua carne estala da mesma maneira e eu aqui, sem sentir o ar à tua volta há demasiado tempo. Já me falham as ironias porque escorrego em saudade. Saudade de coisas que realmente nem chegaram a ocorrer, troco versos em diálogos com a árvore podada. Ninguém a deixa crescer porque ainda deita a casa abaixo, e que deite ou que a levante que eu quero esticar os braços e espreguiçar-me com ela há tanto tempo. Em vez disso mais uma raiz que me puxa e me tolhe. Mas tão límpidos que ainda são os teus olhos mãe, azuis como o livro que lhe dei a provar, fixos, a desconfiar. Remóis, já me tiraram aquilo tudo do sítio. Não tiramos, reformulamos.

    Quem me dera o meu rico filho, mas somos espelhos umas das outras, a cismar baixinho se isto é o melhor que podemos. Se já retribuímos. O coração aperta, porque nunca pára. Se somos “mãe” agora vais ver, vais ser mãe de toda a gente e nunca acaba.

    E continua aquele corpo a encolher-se, ali deitado. A flor murcha continua a ser flor, mas vive uma luta, todos os dias, a manter o cheiro da morte longe daqui.

    woman sleeping holding white rose flower

    Abrir as janelas para deixar a morte sair. Que trabalho ingrato, espantar a noite todos os dias para fora de casa e ninguém vê nada. Oh mas aqueles sorrisos do meu rico menino… E não pára.

    Ontem olhaste para mim enquanto te punha uma colher de sopa na boca. Quase ouvi o teu pensamento. Quem nos dera não estar aqui mas estando. Passamos a vida a fechar a porta a ladrões, burlões, podadores e vendedores porta a porta.

    Agora temos de fechar a porta ao ar também, suster a respiração e chorar a ver as árvores irem abaixo, fruta que já não nos vão dar. Porque é que eles não gostam de árvores? Eram da minha avó, foram mimadas e eram doces como o carinho que ela me dava. Tu a falhares-me e ela a rir, uma gargalhada grande de vez em quando, maior que o mundo. Ou o sorriso pequenino e tu escondida debaixo das cobertas…

    “Eu vou morrer meus filhos!”

    Sim mãe, vamos todos e ainda nem morremos o suficiente. Ainda podemos perder mais uns bocados dentro deste frigorífico. Pode ser que alguém abra a porta e veja esquimós ao longe, por entre o fiambre e aquele cheiro de carne e iogurtes.

    polar bear on snow covered ground during daytime

    Hoje dou-te mais uma colher de sopa, é sempre uma de cada vez todos os dias, manter-te viva tornou-se a minha razão de ser. Não deixo que deitem abaixo esta árvore. Porque é que eles não gostam de árvores? Dizem que tapam as vistas e fazem lixo. Não sei para onde querem olhar. Não há nada para ver ali quando deixa de estar a árvore na frente, mas enquanto ela está eu posso ver as andorinhas a regressar e a gata velha cá em baixo a murmurar. A ralhar baixinho que quer voar.

    Até fica a parecer nova, orelhitas afiladas para os chilreios.

    O teu corpo está tão pesado. Ainda bem, que assim sei que ainda queres estar viva, manténs-te pesada para não flutuares como uma folha para o céu, agarras-te com força ao chão e olhas para nós muito determinada, a desconfiar. Não vais morrer, porque não queres, vais ficar aqui porque te enfurece o anoitecer. Até te vejo de novo a levantares-te e a acender as luzes todas, que lá por seres velha não vais deixar que te pisem, nem que chores enraiveces-te igual e salvas pelo menos uma árvore, gritas por socorro até que alguém te acuda.

    Mexi nas tuas cartas de amor hoje de manhã. Tantas que tens, tantas vidas que viveste em pequenos papéis sujos. Algumas estão escritas a lápis e mesmo assim não esbateram, mais de setenta anos depois. Com que força terão sido escritas para que hoje ainda as consiga ler. Acho que agora merecem resposta, ou pelo menos serem devolvidas. Vou pô-las no correio e ver se chegam a outra pessoa.

    macro shot photography of red and white heart ornament

    Cuidar-te até eu própria desvanecer, escreveria na carta. “Cuido-a para que esta carta se mantenha com a outra margem, para ter onde aportar e não ficar suspensa no vazio, a flutuar na imensidão fria. A cidade vazia e a neve a esgueirar-se por sobre os telhados. Os malmequeres a vergarem e o gelo a escorrer das pedras.”

    Nas cómodas amontam-se os retratos, os teus, os nossos, os desenhados, pintados e retocados para embelezar a memória daquilo que lembramos enquanto existimos. Temos de saber que um dia só sobrará isso e ninguém para legendar aquela vida.

    A nossa cidade está vazia, as sombras das pontes na água já não estremecem mais.

    Até o rio parou e ouve-se apenas o vento a sussurrar tímido. Até a brisa vacila porque se lembra de nós. As gaivotas gritam porque têm saudades nossas.

    Filha.

    Basta um de nós faltar que acredita que o vento o saberá.

    white bird flying over body of water during daytime

    Tenho de começar outro dia enquanto finalmente dormes.

    Levanto-me devagarinho para parecer que o meu calor se mantém contigo e estico as pernas para o gelo do quarto. Saio pelos furos da persiana para que não notes a deslocação de ar.

    Corro em bicos de pés a cozinhar os cheiros da manhã, escancaro janelas em casa para sacudir as mortes lá para fora.

    Metade do que faço é feito em surdina enquanto dormes.

    A outra metade é viver em insónia para te apanhar acordado a sorrir.

    Onde o sol não me chega acendo luzes que se vão fundindo, em corredores frios e embolorados, a água escorre e que vontade me dá de deitar paredes abaixo!

    Ouço rádio na esperança de não saltarem os fantasmas pelos furos das colunas.

    Está tudo normal porque agora é assim mesmo.

    woman in white coat standing on brown grass field during daytime

    Enquanto o café negro gira debaixo do meu queixo a fumegar contemplo vidas passadas.

    O que mais sobra?

    Se tento vaguear por caçadas futuras sinto o pânico a espreguiçar-se em frente a mim e, com medo, só penso em esconder-me debaixo das cobertas.

    Quando era pequenina a minha avó cobria-me com muitas cobertas. Tantas que quase me esmagava debaixo da cama. Sentia-me a ervilha no conto da princesa e pensava que me contavam histórias todas ao contrário. Arreliava-me que só falassem da princesa com ar maniento e a ervilha ali espremida entre colchões a asfixiar.

    Foi só uma sesta assim. Fingi que dormi mas mantive-me acordada para não correr o risco de me expirar. Não me obrigaram mais a dormir de tarde.

    Adoço o café e tinjo-o com leite para que não me queime por dentro.

    Por uma fresta de luz do dia somam-se pára-raios a abanar. Carcaças de um tempo que já não existe. Andamos todos a arrastar esqueletos.

    Chegas também tu.

    white ceramic cup with brown liquid

    Despes-te por completo em frente à porta e embrulhas as roupas numa saca. Entras com um sorriso em bicos de pés, cada dedo uma pancada…

    pum, pum, pum

    Até ao chuveiro a saltitar como se o chão ardesse.

    Amor da minha vida, sabes tudo o que se revolve cá dentro? Todas as saudades, todas as ausências, todos os futuros a gelarem em flocos suspensos no ar.

    Se pesas a caminhar é porque queres estar vivo, ainda bem, teimas em agarrar-te ao chão para que o vento não te leve também.

    Pousam passarinhos nos pára-raios e o metal a dar, a dar.

    Se não fizer barulho a caminhar será que já fui com o vento como uma folha? Se continuar a tactear no escuro para chegar ao teu berço e te ver a esfregar os olhos será que passo a existir quando me vês?

    Sorris e embeveço-me a contemplar-te.

    photo of birds flying up in the skiy

    Escorro-me entre a cortina, abro a persiana, deslizo a janela.

    Sabes que a partir de agora andamos de meia em meia estação, sem saber se temos frio ou calor, como fases da lua em quarto crescente.

    Vamos voltar ao início mas um bocadinho pior.

    Não chores. Já são onze horas e já se ouve muito ruído na rua. Vejo lá fora passos apressados de roda da farmácia, embarram cotovelos e saltitam para trás com medo do ar, hesitam e chegam-se de novo, corpos baralhados com o frio da neve.

    Ao longe avisto os esquimós a regressar.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O velho

    O velho

    Demonic males: uma longa série sobre o masculino, com torrentes de detalhes, exactamente como as pessoas daqui fazem quando lhes perguntamos onde ficam os correios – Episódio 1


    A ligação de cérebros poderosos com o demonismo masculismo parece uma coincidência trágica de cadeias causais independentes; mas esta conexão implica criar problemas extremamente complexos. Os cérebros inteligentes são responsáveis por novas formas de agressão, irrelevantes para os animais sem boas memórias nem relações de longo termo.

    Richard Wrangham e Dale Peterson

    DEMONIC MALES: APES AND THE ORIGINS OF HUMAN VIOLENCE (1996)


    Ninguém imagina o que me custou começar a escrever esta série de crónicas. Ando a adiá-la há meses – mesmo depois de ter sido enxameada por uma série de dissabores, sempre em torno do mesmo tema. Não gosto de dizer mal de ninguém. E ainda gosto menos de dizer mal de pessoas que pertencem a um mundo onde, por regra, a vida me faz feliz. Mas isto já se tornou francamente excessivo, portanto deve ser dito. Será uma hipérbole, mas toda a Bíblia é uma hipérbole, e há milhares de anos que funciona. Eu gosto de viver aqui, não é isso que está em causa. Mas viver aqui tem detalhes que, depois de todos somados…  não, não mereceriam nenhum Dilúvio, porque um Dilúvio seria muito conveniente, dada a falta de água no Alentejo.


    A verdade é que, mais provação menos provação, continuei sempre a gostar de viver aqui. Esse bem-estar não mudou nem mesmo depois de eu ter arranjado um stalker. E um stalker, isto sim, parece mesmo uma qualquer punição bíblica, enviada por razão desconhecida. Um stalker é uma sombra neurótica e estranha, e extraordinariamente cansativa, que não creio que nenhuma pessoa imagine que possa vir a ter depois dos sessenta anos, quando se instala para viver calmamente, e dar de si o seu melhor, numa pequena cidade do interior. Ainda por cima, é tão raro ouvirmos as mulheres que nos rodeiam falarem de stalkers, que acabamos por considerá-los personagens de filmes americanos. Nem sequer são pessoas. São mesmo só personagens. O King-Kong, o Dirty Harry, o Mad Max, o Batman: a gente não se cruza com eles na rua.

    CPC armada em Clara Pinto Correia.
    Evidentemente, a culpa é toda dela.

    Este meu stalker é um fraca-figura que tem como profissão ir sentar-se na esplanada do Alentejano para pedir a toda a gente cigarros, cafés,  bagaços, e assim. É tão mirradinho, tão silencioso, tem sempre um ar tão triste, e em consequência ocupa tão pouco espaço, que, até começar a perseguir-me, nunca ninguém tinha dado por ele, nem ninguém lhe reconhecia o nome, o que é curiosamente raro aqui na cidade. Ajudei-o a confirmar online, no portal da Segurança Social, a sua necessidade de transporte para Lisboa na segunda-feira seguinte por causa de uma consulta em Santa Maria[1], e tanto bastou para no dia seguinte ele já estar a entrar no café onde eu costumo ir todas as manhãs para suspirar em alto e bom som, “não sei o que é que aquela mulher fez, que deu comigo em doido.” E toda a gente achou graça. Eu por acaso não achei graça nenhuma porque aquilo era do mais incómodo que imaginar se possa, e, sobretudo, porque a história do nosso louco amor passou a ser um teatro que se repetia todas as manhãs. E as mensagens intermináveis dele no meu telemóvel eram todos os dias entre as dez e as vinte.

    Com todos estes ingredientes, mais o seu lugar cativo no banco fronteiro ao tribunal, onde podia contemplar à vontade a porta da minha casa tal como podia contar histórias fabulosas aos taxistas, o velho transformou-se rapidamente no talk of the town[2]. Toda a gente se ria dos seus expedientes e das suas declarações de amor. No meu café, toda a gente apreciava também a sua pontualidade, pois que o velho aparecia às sete em ponto, ia lá deixar recados para mim, e acto contínuo ia sentar-se no seu banquinho. E eu não sou de ferro. Posso ter sido discreta, mas este sentido de humor mesmo-mesmo-mula dos alentejanos acabou por fazer-me rir a mim também.

    Até acabei por rir[3] mesmo depois de o stalker ter destruído a centralina do meu carro durante a noite[4], depois de lhe fazer uma ligação directa para o tirar do lugar onde estava estacionado[5], mesmo à frente da minha porta[6]. Ainda hoje sorrio vagamente ao rever a cara dos polícias quando lá levei o meu telemóvel encharcado em mensagens dele, umas tristes, outras saudosas, umas quantas a jurar suicídio e outras tantas a declarar apenas que ia partir para nunca mais voltar, e todas elas ou dolorosas[7] ou amorosas[8], como se alguma vez tivéssemos formado um casal – ah, mas nunca houve testemunhas, portanto nunca se pôde fazer nada.

    Até hoje, também nunca se pôde fazer nada em relação a nenhum dos dissabores que se seguiram, e não sou eu quem vai dizer que se passaram especificamente aqui porque no resto do País, ou mesmo no resto do mundo, tanto priapismo seria impossível e impensável. Mas que tem sido uma luta constante para merecer algum sossego por parte destes homens – ah sim. Chegada a esta provecta idade, tem sido uma luta sem precedentes.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Consulta essa a que ele nunca foi, pois que várias testemunhas o viram arrastar-se o dia inteiro entre a minha casa e o banco fronteiro ao tribunal. Algures, em Estremoz ou em Lisboa, os contribuintes hão-de ter pago para estar uma ambulância, ou um carro de bombeiros, à espera de um velho doente que afinal não estava assim tão doente como isso. Não é caso para dar ouvidos às barbaridades do CHEGA contra o SNS, mas é caso para usar de mais firmeza em relação a neuróticos que importunam mulheres.

    [2] Que é como quem diz “a pessoa de quem toda a gente fala na cidade”, o que não seria difícil de dizer em português de forma interessante. Mas desculpem-me e deixem-me passar, estes pecadilhos de inserir amostras cosmopolitas da minha presença de espírito bilingue tomam-me de assalto assim que chego à segunda linha seja de que texto for.

    [3] Sozinha, obviamente. Estas coisas não têm graça absolutamente nenhuma, nem eu quero que ninguém pense que eu lhes acho graça. Acontece apenas que, perante as calamidades, o riso continua a ser a melhor arma de defesa que eu conheço.

    [4] A centralina! Estão a ver as coisas que eu sei? A centralina transformou-se numa daquelas palavras que me fazem dar um salto e olhar para trás para ver quem falou, de tal forma me envenenou a vida. A centralina é a peça que controla todo o circuito electrónico do carro. Sem centralina, um carro bem pode ser das melhores marcas e estar novinho em folha – é um carro morto, dê lá por onde der.

    [5] O piolhoso é deveras entendido em motores, pois que foi motorista de camiões TIR. Aos 52 anos foi trespassado por dois balázios numa batida ao javali, e não teve outro remédio senão reformar-se. Mas continuou a juntar uns cobres, incluindo roupa à senhor importante, desempenhando as funções ilegítimas de um Embaixador qualquer que vivia aqui, viajava muito, e pagava em dinheiro. O pior foi quando esse Embaixador mudou de país, e para o seu lugar veio outro, daqueles que não alinham em futebóis. E é neste mundo que eu vivo. Batidas ao javali, balázios, empregos ilegais de alta roda, e finalmente um stalker que não recua perante nada.

    [6] Só mesmo num dia raríssimo em que a pessoa consegue estacionar à porta sem um único pneu em cima do passeio é que estas coisas acontecem, como toda a gente sabe.

    [7]Nunca mais viverei em paz, tiraste à minha vida todo o seu sentido” – quando, ainda por cima, eu tinha dado à vida dele montes de bicas, de cigarros, e até de tostões para bagaços.

    [8]Clarinha, meu amor, proponho-te uma boa sessão de sexo, vais ver como voltas a gostar de mim depois de voltares a ser minha mulher” – e por acaso valeu a pena ver o olhar interdito do senhor agente que estava a atender-me a olhar para mim, “é melhor guardar essa.”

  • A luz ao fundo do túnel é a NATO a pedir mais dinheiro

    A luz ao fundo do túnel é a NATO a pedir mais dinheiro


    A vida de António Costa, por estes dias, é digna de um filme. De manhã ouve as exigências de Jens Stoltenberg, à tarde toma notas enquanto Galamba é apertado na comissão parlamentar de inquérito, e depois, à noite, enquanto o seu ainda ministro faz uma pausa para um xixi, já o alegre Costa está em Coimbra, a cantar a plenos pulmões o Clocks, dos Coldplay.

    Estou a imaginar, obviamente. Não sei se o Costa é forte no falsete nem o Chris Martin me mandou o alinhamento do concerto. E desenganem-se aqueles que agora esperam piadas fáceis com a loucura em volta dos Coldplay.

    Jens Stoltenberg, secretário-geral da NATO, e António Costa, primeiro-ministro de Portugal.

    Por mim, desde que as pessoas ouçam música, até pode ser uma melodia do Nel Monteiro. Como diria a minha avó, só não se metam na droga.

    No meio desta azáfama de António Costa, ainda deu para Marcelo – o agora atento Marcelo – passear por Belém, responder a umas perguntas de ocasião sobre o Galamba e interromper a marcha para endireitar os buracos da calçada portuguesa.

    Um país onde todos, mesmo todos, temos de dar uma mãozinha e, aqui e ali, tapar um buraco. Marcelo é um de nós – e desenrascou o amigo calceteiro.

    No meio do circo – sim, é isso que há uma semana vejo nos jornais –, fiquei a matutar nas palavras de Jens Stoltenberg.

    Estou a poucos dias de ir ao banco receber as “boas novas” da subida explosiva do meu empréstimo à habitação e, nestas alturas, lembro-me muito dessa malta que repete, a cada pequeno-almoço, “as long as it takes”.

    O amigo Jens, em princípio, não tem casa para pagar, e mesmo não querendo saber do Donbass, também não deve estar interessado em saber o quão pobre deixa a Europa no fim do seu mandato à frente da “aliança defensiva”. O seu patrão não é a Europa, de modo que tanto lhe faz se ficamos a virar mais ou menos caixotes para comer.

    Na conferência de imprensa em São Bento, ao lado de António Costa, Jen Stoltenberg agradeceu o apoio português, mas disse que era preciso mais. E não foi meigo a pedir: fez-me lembrar as listas de Natal do meu filho quando tinha 8 anos. Mais caças (com e sem cedilha), mais treino, mais investimento em defesa. Ou seja, mais dinheiro desviado do Orçamento de Estado para armamento. No fundo, esteve ele a fazer o que qualquer vendedor faria, anunciando os artigos presentes no catálogo do patrão.

    Portugal, nestas coisas, limita-se um pouco a fazer aquela figura do amigo simpático que oferece a casa, recebe bem, diz umas piadas e promete que, para a próxima, o vinho do jantar não é Porta da Ravessa. Temos pouquíssima relevância internacional e os nossos Governos servem, essencialmente, para gerir fundos comunitários e servir cafés a cada passagem dos senhores da guerra.

    Já não seria catastrófico se conseguissem, pelo menos, gerir os fundos comunitários sem os distribuírem pelos bolsos do costume, embora julgo ser também pedir demasiado.

    Portugal, boa praia, óptima gastronomia, períodos longos de céu azul… quem é que está para se chatear com estas coisas de roubos de milhões ao erário público? Temos tempo, depois da praia, se entretanto não se meter o Natal, que parece teimar em surgir, todos os anos, depois do Verão.

    Estranhei que ninguém, um jornalista que fosse, perguntasse a António Costa onde ia buscar mais dinheiro para cumprir a lista para o Pai Natal elaborada por Jens Stoltenberg. Bem sei que o Governo está a nadar em dinheiro com as colectas da inflação, mas tendo em conta que os salários da Função Pública continuam baixíssimos, os impostos elevados, as creches públicas praticamente inexistentes, o SNS ao abandono e a Educação universal ainda por concluir, pergunto-me: a qual prioridade se vai roubar mais dinheiro para enterrar no Donbass?

    Ninguém parece interessado em abrandar perante uma guerra que está a empobrecer o continente europeu. Percebo que os actores externos não o queiram fazer, porque beneficiam com o conflito, mas não entendo esta loucura colectiva dos povos europeus.

    Estamos a empobrecer todos os dias enquanto gritamos pela moral de uma guerra que não nos pertence, e onde aquilo que se discute, já todos percebemos, vai muito para lá da integridade territorial da Ucrânia.

    Depois de meses a ouvir que “Bahkmut está por horas”, a cidade acabou por cair nos últimos dias. Seguem-se outros tantos meses a planear e discutir a contra-ofensiva ucraniana, com pedidos diários de material. Mais um ano de guerra previsto por quem dela vive e a relata diariamente.

    Não há grande luz ao fundo deste túnel que não seja a de continuar a viver com a inflação e o aumento dos custos de produção. Agora, se Costa quiser agradar a Jens, vamos aumentar a percentagem do orçamento para a Defesa e retirar mais dinheiro às famílias.

    Repetem-se as notícias de famílias que já não conseguem pagar as suas casas ou que mal suportam o cabaz de alimentos. A miséria aumenta, enquanto nos entretemos com horas e mais horas de circo mediático em volta da comissão parlamentar sobre a TAP. Lembrem-se: aquilo servia para debater a TAP e a sua gestão; e já se desviou primeiro para as reuniões de preparação da ex-CEO com o PS, daí para as notas que incriminam o Galamba e estamos agora nas cenas de alegada pancadaria em mulheres no Ministério. Tudo num saltinho.

    Com pipocas numa mão e a mini na outra, vamos formando o nosso tribunal popular e dando razão à chefe de gabinete, ao adjunto, ao Galamba ao que depois virá. Tanto faz.

    a large jetliner sitting on top of an airport runway

    Nas pausas para publicidade, entre um cigarrinho do Galamba ou uma canção da Mimicat em Liverpool, o Jens aterra em Lisboa e ordena que o governo português nos deixe, ainda, mais pobres.

    Batem-lhe palmas, come bem e de borla, e vai-se embora sem que ninguém lhe pergunte, a ele ou a António Costa, como e porquê.

    Já nem precisamos das papas e muito menos dos bolos. Basta-nos o circo.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Isto tornou-se penoso, por dar pena e ser malcheiroso

    Isto tornou-se penoso, por dar pena e ser malcheiroso


    Na última quinta-feira, no âmbito da Comissão de Inquérito à TAP, tivemos mais um episódio do circo em que se transformou o actual regime. Desta vez, foi a inquirição do amigo íntimo do engenheiro da bancarrota, com o computador e as famosas notas na boca de cena, não sabemos quem diz a verdade ou quem diz a mentira, ou quem mente mais.

    Enquanto este grelhava até altas horas o seu líder, igualmente um grande admirador do engenheiro, assistia a um concerto e cantava: “Coimbra tem mais encanto na hora da despedida”.   

    De acordo com as várias declarações de cada um dos personagens, o rocambolesco episódio teve a seguinte sequência: certo dia, o ex-adjunto, após ter sido exonerado por telefone durante a manhã – nestas coisas, os socialistas são implacáveis! –, dirigiu-se ao Ministério das Infraestruturas para levantar o computador (o das notas).

    Ao dirigir-se ao quarto piso para o recolher, opôs-se-lhe a equipa, incluindo a chefe do gabinete do amigo íntimo do engenheiro, resultando numa cena de pancadaria e agressões mútuas. No final, os músculos não foram suficientes para o “assaltante”. Em fuga, abandona o quarto piso, desce e tenta sair do Ministério das Infraestruturas com o computador, sendo, no entanto, impedido de o fazer pelo segurança da entrada.

    Para dali sair, chamou a polícia, que apareceu com quatro elementos; no entanto, apenas dois subiram com o ex-adjunto ao quarto piso – onde alegadamente ocorrera a pancadaria – para levantar a ocorrência. Debalde, todos se tinham refugiado na casa-de-banho! Não sabemos se tinham medo de novas agressões, apesar da presença da polícia, ou não a queriam enfrentar. Mistérios…

    O ex-adjunto logra sair do edifício de bicicleta, com o computador e o beneplácito da polícia. Entretanto, o amigo íntimo do engenheiro da bancarrota é avisado do sucedido, iniciando-se, logo de seguida, chamadas em todas as direcções: ministro da Administração Interna, Polícia Judiciária, PSP e, pasme-se!, Serviços de Informações de Segurança (SIS).

    O episódio tinha-se tornado um autêntico albergue espanhol de polícias. De todas, a maior surpresa foi a chamada do SIS; para quê o seu envolvimento, se não para intimidar um ex-adjunto que acabara de tornar-se um perigoso inimigo político.

    Após 49 anos de regime, e com este episódio, o regime parece querer regressar aos tempos da PIDE/DGS. Alegadamente, após o episódio da pancadaria, com intuito de recuperar o famoso computador, um membro do SIS ligou ao ex-adjunto, dirigindo-lhe as palavras: “é melhor entregares o computador a bem”. Atenção, tudo isto ocorreu numa suposta “democracia”!

    Apesar de tudo, temos uma certeza: estamos na presença de analfabetos informáticos. Não são capazes de utilizar a nuvem para guardar documentos nem tão pouco conhecem as capacidades informáticas de um moderno telemóvel – apenas a recuperação do famoso computador era uma preocupação. Parece também ter-se desvanecido por estas bandas o cavalheirismo, até tivemos um homem a desferir socos a mulheres!

    Pudemos igualmente constatar que há uma pletora de ajudantes, assessores, adjuntos, motoristas e secretárias, obviamente paga com o assalto ao nosso bolso, a parasitar-nos e que alimenta a propaganda do actual regime. Alguns, por lá pululam há mais de 25 anos, não exercendo qualquer profissão desde que saem dos bancos das faculdades. São autênticos aspirantes a Cardeal Richelieu.

    No dia seguinte à inquirição, o prócere da República anunciou uma conferência de imprensa para as 14 horas, onde parecia que era desta que mandava o Governo para o olho da rua. Sem surpresa, desmarcou-a logo de seguida, justificando-se com a “falta de tempo”!

    Entretanto, à hora da conferência de imprensa desmarcada, como tanto gosta, desata a caminhar pela rua acompanhado por um batalhão de jornalistas, onde soltou esta pérola: “mantenho o que disse há 15 dias”. Até então, tivéramos apenas trivialidades, selfies e passeio à nossa conta; mas agora é que ia ser, para além destas, uma rigorosa viligância aos assuntos da governação: da habitação à alimentação.

    Será que estes episódios circenses também se inserem na referida vigilância? Não sabemos, mas uma certeza temos, as duas principais personagens do actual regime irão continuar a zombar de todos nós; agora, até vão a encontros secretos para receber prebendas pelo excelente trabalho que têm vindo a realizar desde 2015.

    Quais foram os resultados dos dois personagens? Portugal regista o segundo pior desempenho económico da União Europeia desde 2015. Com excepção da falida Grécia, todos os países com desempenhos inferiores são mais ricos. Ou seja, a convergência económica tem sido uma miragem, um completo desastre. Até países como a Dinamarca, a Suécia e a Holanda, muito mais ricos, logram taxas de crescimento acumuladas superiores!

    Crescimento real acumulado do PIB entre 2015 e 2022 para os países da União Europeia (2015=100; Índice base 100). Fonte: Eurostat. Análise do autor.

    A vilipendiada Irlanda, apelidada muitas vezes de “offshore”, em virtude de não roubar a população com a mesma intensidade, quase que duplicou o seu PIB desde 2015. Recordemo-nos que há 40 anos tinha um desenvolvimento económico semelhante a Portugal.

    Como é evidente, na esmagadora maioria dos casos, os números demonstram que a um menor assalto do Estado corresponde a mais dinheiro e prosperidade no bolso dos cidadãos, como é o caso da Irlanda, da Hungria, da Eslováquia, de Malta e da Roménia, que diminuíram o peso das receitas do Estado em percentagem do PIB entre 2015 e 2022 e obtiveram taxas de crescimento económico acima da média europeia.

    Celebremos então estes últimos 7 anos de glórias socialistas, com a primeira a passar pela recuperação das caravelas do século XXI, para anos mais tarde se perpetrar um assalto de 3,2 mil milhões de Euros ao nosso bolso, gerido por personagens que há anos anunciavam calotes e juravam colocar os banqueiros alemães a tremer das pernas.

    Tivemos depois as injecções de milhares de milhões do nosso dinheiro em bancos falidos, onde o negociante do assalto transitou para a melhor sinecura do país, como se nada fosse com ele.

    Crescimento em pontos percentuais da receita total do Estado em percentagem do PIB entre 2015 e 2022 . Fonte: Eurostat. Análise do autor.

    Tivemos os incêndios de Pedrógão, onde a negligência do Estado vitimou 64 pessoas. Após a tragédia, o prócere da República apareceu a pedir para se “apurar se havia ou não responsabilidades, nomeadamente criminais”; claro está, podemos esperar sentados, pois, até hoje, nada aconteceu.

    Tivemos ministros que atropelaram inocentes na auto-estrada, após terem instruído o respectivo motorista a conduzir a 200 Km/h. Até hoje, nenhuma responsabilidade criminal foi apurada. Talvez, um dia, o motorista termine nos calabouços.

    Tivemos estados de emergência ilegais, confinamentos ilegais, máscaras faciais obrigatórias e sem suporte científico para tal, restrições à livre circulação, escolas fechadas, negócios arruinados, impressão massiva de dinheiro, com a consequente inflação, inoculações experimentais coercivas, através de certificados nazis, excesso de mortalidade sem precedentes e quase mil milhões de euros de vacinas experimentais atirados janela fora durante a falsa pandemia.

    Tivemos propostas de lei sanitárias, onde se propõe que funcionários administrativos possam ordenar a nossa prisão pelo tempo que entenderem, em nome de uma qualquer gripe. Claro está, depois de um golpe à Constituição da República Portuguesa pelos dois partidos socialistas do regime e com o aplauso efusivo do prócere da República, suposto guardião da mesma.

    No futuro, iremos ter planos de resiliência pagos com a impressora do Banco Central Europeu, onde os apaniguados e a clientela do regime banquetear-se-ão mais uma vez com milhões. Neste sentido, já tivemos o anúncio do financiamento de fábricas de gafanhotos.

    No decorrer desta tragédia, o prócere da República fazia-se passear pelo mundo, usava aviões pagos por nós para assistir à bola e dava pulos de alegria ao lado do maior admirador do nosso engenheiro.

    Depois disto e perante o espectáculo circense da última semana, alguém pode estar surpreendido?! Até agora temos enfrentado tudo isto com um riso, mas parece agora estar a tornar-se penoso.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Os inimputáveis

    Os inimputáveis


    Em todos os países civilizados há um cuidado especial para com os cidadãos inimputáveis.

    Não só para proteger a Sociedade de eventuais actos violentos que aqueles possam praticar, dada a sua doença, mas também pela obrigação que qualquer Ser Humano, responsável, deve (tem de) ter para com os doentes mentais.

    Em Portugal, todavia, este problema é tido como “coisa menor” e tratado do modo “habitual” quando não se conseguem outras soluções.

    woman sitting on black chair in front of glass-panel window with white curtains

    Ou seja, deve esconder-se.

    Foi assim com os mendigos, os sem-abrigo e os arrumadores de automóveis.

    Não se consegue apoiá-los, há que escondê-los.

    Os inimputáveis violentos são levados a Tribunal sendo que os juízes tomam, de modo geral, a única decisão possível: mandar que sejam internados num hospital apropriado ao seu estado de saúde.

    O problema é que, todos sabemos, esses espaços são praticamente inexistentes em Portugal e, obviamente, insuficientes.

    A alternativa, porque há que proteger a Sociedade, recordemos, é internar estes doentes em prisões.

    O facto de todos concordarmos que os crimes cometidos foram causados, numa imensa maioria das vezes, pela incapacidade do seu autor em distinguir o bem do mal (porque serão, para todos os efeitos, adultos com o pensar de uma criança de tenra idade), não tem qualquer importância para os decisores.

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    Em Portugal há cerca de quatro centenas de reclusos, inimputáveis, espalhados pelas diversas prisões do país.

    Nos últimos dias foi conhecido o caso do Ezequiel Costa Ribeiro.

    Um cidadão que, na sua atribulada juventude, cometeu um crime grave (homicídio) pelo qual foi condenado a dezanove anos de cadeia.

    Cumprida essa longuíssima pena, o Tribunal concluiu que não deveria ser inserido na Sociedade, por não estar pronto para tal e continuar a ser um elemento perigoso.

    Provavelmente concluiu bem.

    Em Portugal há 30 psicólogos, para 12.000 reclusos, e o mais provável é que este cidadão não se tenha cruzado com algum deles mais do que meia dúzia de vezes nas primeiras duas décadas em que esteve preso.

    O que levou a que não houvesse, com toda a certeza, um estudo credível que pudesse garantir a sua “real” inimputabilidade.

    black framed eyeglasses on top of white printing paper

    Convicção reforçada pelas palavras do seu advogado que afirma, categoricamente, que ele nunca foi, oficialmente, registado como inimputável.

    De qualquer modo, cumprida que estava a pena a que fora sujeito, é óbvio que o Ezequiel deveria sair da cadeia.

    Ou para passar a viver em liberdade ou para ficar internado numa clínica destinada a cidadãos não condenados.

    O problema é que a opção do Tribunal foi confirmar a sua continuação na Clínica Psiquiátrica do Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo.

    Um espaço que o Conselho da Europa já garantiu, depois de visitas várias, que deveria ser encerrado “por absoluta falta de condições”.

    Os responsáveis afirmam que o facto da Clínica, onde ele se encontra, fazer parte de um Estabelecimento Prisional, não significa que os seus utentes possam ser considerados presos.

    a shadow of a person behind bars in a jail cell

    Vejamos:

    O Ezequiel é fechado, à chave, pelas 19 horas, na sua cela, e não num quarto, e aberta esta às 7 horas do dia seguinte, não por enfermeiros – que, normalmente, deixariam a porta aberta – mas por guardas prisionais.

    Se vai a uma consulta não é levado numa ambulância, acompanhado por enfermeiros, mas numa carrinha celular, algemado e no meio de guardas prisionais.

    Para voltar a casa não precisa que os médicos lhe concedam “alta” mas que os juízes do Tribunal de Execução de Penas lhe passem mandato de soltura.

    Todos sabem isto.

    Todos assobiam para o lado.

    silhouette of person standing on rock surrounded by body of water

    Como compreender que num país europeu, que se diz civilizado, em cujas Escolas se ensina, na teoria, a respeitar os Direitos Humanos, com conterrâneos em altos cargos a nível mundial, desde logo o Secretário-Geral das Nações Unidas, com uma população maioritariamente católica, se considere de somenos importância que se tratem como animais alguns cidadãos pelo simples facto de serem doentes mentais?

    Almada Negreiros dizia, referindo-se a Portugal, que “Isto não é um país, é um sítio e, ainda por cimamal frequentado!”

    Só os, realmente, inimputáveis não estarão de acordo.

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A morte do Jornalismo pela pena de dois carrascos

    A morte do Jornalismo pela pena de dois carrascos


    Este editorial estava simplesmente para se intitular Quo vadis, Jornalismo?, mas soou-me demasiado reflexivo. E não poderia ser. É mais um manifesto. Um manifesto a favor da sobrevivência da nobre profissão do Jornalismo e da função primordial da Comunicação Social, e contra aqueles que eliminam sorrateiramente, como lobos vestidos de pele de ovelha, a independência dos jornalistas, enquanto batem muito no peito com o cravo na lapela.

    Detesto hipócritas – e é sobre dois hipócritas que quero escrever. Como um é mulher e outro homem, está aqui consagrada a paridade, e confirmado que o deslustre não escolhe géneros.

    man sitting on chair holding newspaper on fire

    Pois bem, depois de um parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) sobre pedidos de documentos administrativos feitos pelo PÁGINA UM, e recusados pela Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ), houve dois jornalistas que integram o Secretariado da dita entidade que ontem deram a sua decisão.

    Destaco uma frase – toda ela um tratado – como argumento para manter a recusa do acesso a actas – a simples actas, ó Céus! – das suas reuniões, assinadas pelos jornalistas Licínia Girão e Jacinto Godinho, que formam o Secretariado da CCPJ:

    Não existindo a concretização de uma finalidade específica para aceder às atas do Plenário (que, sobretudo, contém informação relativa a jornalistas, apreciações e ou juízos de valor sobre estes e, ainda outros dados suscetíveis de pôr em causa o seu bom nome) sendo, como se demonstrou, insuficiente evocar a qualidade de jornalista para aceder a documentos que pela natureza do seu conteúdo são nominativos, é legítima a avaliação da CCPJ no que respeita aos eventuais fins para que possam ser usados os documentos caso a eles o requerente tivesse acesso.

    Há momentos em que sinto vergonha alheia. E também incredulidade. E falta de empatia. Tenho dificuldades de me colocar na pele de Licínia Girão e de Jacinto Godinho – ainda mais neste, outrora reputado repórter de investigação premiado da RTP e professor de Comunicação Social numa universidade pública, que até aprecia contar histórias contra a PIDE – para compreender como o seu azedume ao PÁGINA UM, e a mim, os pode fazer escrever tamanha monstruosidade atentatória da Liberdade de Imprensa.

    Licínia Girão

    Agora um jornalista tem necessidade de concretizar a “finalidade específica” para aceder a documentos públicos, como simples actas?

    E sobretudo se esses documentos contêm “informação relativa a jornalistas”? São agora os jornalistas insindicáveis? Podem eles cometer as maiores barbaridades e corporativamente ser tudo escondido?

    Se assim é, porque não conceder similar benesse a políticos, magistrados, administradores públicos, funcionários públicos, enfim, a todos?

    Ademais, se a CCPJ assume ser legítimo a sua avaliação “no que respeita aos eventuais fins para que possam ser usados os documentos”, por que não considerar então legítimo que o Governo implemente um Serviço de Exame Prévio aos pedidos de jornalistas, recusando liminar e discricionariamente se estes não forem “simpáticos”?

    Só esta frase de Licínia Girão e Jacinto Godinho merecia que jornalistas com um pingo de decência nesta pobre democracia se insurgissem e os corressem a pontapé do Palácio Foz. Mais não seria necessário; mas também nunca menos. Merecem. São gente desta jaez que assassina, literalmente, o Jornalismo; que já perderam os escrúpulos e a vergonha por um par de vinténs, ou já perderam a noção do que escrevem, das posturas que tomam, das consequências dos seus actos e das suas mesquinhas raivas.

    Jacinto Godinho

    A frase acima exposta é o corolário daquilo que nenhum jornalista pode aceitar – porém, é uma frase escrita por jornalistas, defendida por jornalistas e aplicada por jornalistas. E apenas porque assumem eles que os ando a “perseguir” e a fazer pedidos “manifestamente abusivos”.

    E, no entanto, estou a fazer no PÁGINA UM a essência do Jornalismo: perguntar, sindicar, expor, denunciar, informar – usando todos os expedientes legais, incluindo judiciais. Livremente. Sem agendas. Sem interesses económicos, financeiros, partidários e ideológicos. A minha independência mete-lhes medo, porque imprevisível e incontrolável. Por isso, fazem-se de vítimas de perseguição se lhes faço quatro pedidos de documentos. A hipocrisia em seu esplendor.

    Que achará então o Governo e outras entidades quando o PÁGINA Um, perante recusas similares a pedidos de documentos, apresenta intimações no Tribunal Administrativo?

    Devem essas entidades – listemo-las: Conselho Superior da Magistratura, Infarmed, Ordem dos Médicos, Ordem dos Farmacêuticos, Ministério da Saúde, Inspecção-Geral das Actividades em Saúde, Administração Central dos Sistema de Saúde, Entidade Reguladora para a Comunicação Social, Banco de Portugal, Instituto Superior Técnico, Presidência do Conselho de Ministros e Parque Escolar –, algumas já com mais do que um processo de intimação nos tribunais, juntarem-se, em coro aos jornalistas Licínia Girão e Jacinto Godinho, e promoverem um clube anti-PÁGINA UM para me meterem em ordem? Talvez pelourinho?

    Presumo que seria dia de festa numa Comissão que acredita os títulos (carteiras) de uma profissão cada vez mais desacreditada aos olhos dos cidadãos.

    Não foi para assistir a vergonhosas atitudes destes pequenos ditadores travestidos de jornalistas que se estabeleceu a democracia.

    Fico por aqui, poupando a análise do argumentário de 11 páginas – que pode ser lido aqui, na íntegra –, onde os ditos Licínia Girão e Jacinto Godinho expõem os seus motivos salazarentos para recusar, entre outros documentos, o acesso a processos concluídos a jornalistas em violações da ética profissional e aos ganhos em senhas de presença e outros rendimentos para gerirem um organismo público.

    O caso seguirá, obviamente, em breve, para as instâncias judiciais. Até lá, espero que os jornalistas decentes não se calem agora, pois se assim procederem, um dia, quando quiserem falar, talvez o “trabalhinho sujo” de tipos como Licínia Girão e Jacinto Godinho tenha já contribuído para lhes tirarem a língua. Ou as mãos. E até também as pernas. Ou mesmo a cabeça.