Etiqueta: Destaque Opinião

  • Amílcar Falcão: As universidades e os medíocres (que não podem vencer)

    Amílcar Falcão: As universidades e os medíocres (que não podem vencer)


    Nos últimos três anos – a bem dizer, desde que eclodiu a pandemia da covid-19 –, aquilo que mais me surpreendeu não foi tanto a irracionalidade das massas – ou melhor dizendo, a cedência do pensamento individual, no torpor do pânico, ao seguidismo de uma narrativa imposta pela máquina estatal (nacional e internacional) auxiliada pelos media –, mas sim o conformismo, a covardia e a conivência (perante o poder e os interesses económicos) das elites.

    De elites falo aqui dos académicos – ou, melhor dizendo, dos universitários.

    Bem sei, todos sabemos, como, tanto a nível nacional como internacional, as universidades tiveram de fazer pela vida quando se lhes impôs (ou elas quiseram) a sua autonomia financeira, deixando de ser apenas centros de excelência na formação e na investigação pura para passarem a ser centros de captação de financiamentos para projectos de investigação e desenvolvimento (I&D), e sobretudo de investigação aplicada.

    Por esse motivo, hoje, as universidades integram uma importante componente de marketing, e quem fala de marketing, fala de relações públicas; e quem fala de relações públicas, fala de diplomacia; e quem fala de diplomacia, fala de cortesias; e quem fala de cortesias, fala de fretes; e quem fala de fretes, fala de lambe-botas; e quem fala de lambe-botas, fala de medíocres. No meio disto, vai-se perdendo a ética e vai-se mercadejando a Ciência ao cinzel que melhor paga.

    Vejam, hoje, malgrado termos investigadores de primeira água, naquilo que se tem transformado a academia: cérebros que medem as palavras, que refreiam opiniões, que se auto-censuram e censuram, que manipulam e obscurecem factos, que defendem uma verdade indicada por terceiros (Governo, empresas, opinião pública), que seguem padrões de catavento.

    Nunca mais me hei-de esquecer da forma como se procedeu ao silenciamento para uma discussão participada durante a pandemia.

    Não me esquecerei do unanimismo silencioso das universidades e dos académicos quando o Governo, ignorando comissões independentes que estavam previstas na lei (p. ex., o Conselho Nacional de Saúde e o Conselho Nacional de Saúde Pública), foi escolhendo a dedo os “peritos” e os “especialistas” que ousavam assumir-se como os arautos de uma Verdade Científica Imaculada e Inquestionável.

    Não me esquecerei, por exemplo, do subsequente silêncio de uma das mais prestigiadas cientistas portuguesas, Maria Manuela Mota, directora executiva do Instituto de Medicina Molecular, quando afirmou ao Expresso em Abril de 2020: “Não entrem em pânico. Vírus [SARS-CoV-2] é relativamente bonzinho”. Compreende-se: na altura, alimentava-se o pânico como estratégia, e perante a sua posição isolada (por cobardia dos pares), não se lhe pode censurar o auto-silenciamento posterior quando se dirige um centro de investigação a carpir financiamentos para mais de 700 trabalhadores.

    grayscale photo of woman doing silent hand sign

    Foi esta dependência – alicerçada na ascensão de pessoas sem perfil ético para compreender o papel das universidades e dos académicos numa sociedade democrática, por mais extraordinariamente inteligentes que sejam – que causou o sequestro da Ciência pela política. Não apenas pela política governamental, mas também pela política empresarial – leia-se, neste caso, também farmacêutica, mas não só.

    Foi alicerçado neste tipo de nefasta dependência que, por exemplo, o Instituto Superior Técnico – e particularmente o seu presidente, Rogério Colaço – acabaram compondo uns miseráveis relatórios epidemiológicos alarmistas a partir do Verão de 2021, para gáudio de uma néscia imprensa (que nada questiona), e tão vergonhosos foram esses ditos relatórios que até recusaram facultá-los, vendo-se envolvidos, por mor do PÁGINA UM, num deprimente processo de intimação no Tribunal Administrativo que só pode obrigar que cedam aquilo que voluntariamente tinham o dever ético de mostrar.

    Acabada a pandemia – ou cronologicamente, no epílogo da pandemia –, a indecência da academia, como um vírus, pareceu alastrar-se à invasão da Ucrânia. Sem prejuízo de estarmos perante um acto inadmissivelmente hostil da Rússia e de este país não ser propriamente dirigido por um Governo democrático (costumo dizer que Putin não está à frente dos destinos daquele país há meia dúzia de dias), não há inocentes políticos nesta guerra (a começar no chamado Ocidente) nem se deveria, em Estados democráticos, responder à barbárie com censura, hostilização, ostracismo e perseguição apenas por razões de cidadania.

    Vladimir Pliassov numa reportagem de 2018 para a RTP2 sobre o Centro de Estudos Russos da Universidade de Coimbra.

    Não ouvi – e pode ter sucedido por distracção – nenhuma universidade com abertura para ser o palco de debates em redor da guerra da Ucrânia, com centro de reflexão para se encontrar uma forma de pacificação, sem colocar premissas nem condicionamentos. Não ouvi – e pode ter sucedido por distracção – nenhuma universidade a criticar a censura a órgãos de comunicação social da Rússia nos países ocidentais, ao mesmo tempo que se alcandora a Ucrânia a um patamar de democracia que nunca teve (e não tem).

    Na verdade, as universidades seguiram o mesmo padrão da pandemia: atentas às consequências dos seus actos, seguiram o que o Governo e as instâncias europeias (seus principais financiadores) foram ditando.

    Por isso, não surpreende demasiado que, neste cenário, o reitor da Universidade de Coimbra, Amílcar Falcão tenha demitido, sem apelo nem agravo, o director do Centro de Estudos Russos da Universidade de Coimbra, Vladimir Pliassov, apenas porque dois alegados activistas ucranianos decidiram acusar aquele cidadão russo de “propaganda russa” nas suas aulas. Amílcar Falcão não ouviu sequer o docente, radicado em Portugal desde 1998 e com nacionalidade portuguesa desde 2002, e que até dava agora aulas (de Literatura) em regime gracioso.

    O caso é tão lamentável que causa dó.

    Olga Filipova (à esquerda) e Viacheslav Medvediev (à direita). Bastou um artigo de opinião num jornal regional para espoletar uma demissão-relâmpago por iniciativa do reitor da Universidade de Coimbra sem apelo nem agravo.

    Eis que tivemos um Falcão, aspirando aos voos do populismo, tornando medíocre uma universidade, e com os seus actos resgatando das tenebrosas páginas negras da Inquisição o estilo “caça-bruxas” com aplicação de sanções antes sequer de uma inquirição, quanto mais um julgamento justo.

    Eis que tivemos a mediocridade mais uma vez no topo de uma universidade, em todo o seu esplendor, com o seu fautor talvez almejando comendas pela prontidão de um acto de justiceiro em prol das “vontades do vento”.

    Bem sei que os tempos não andam fáceis para quem, minoritário, rema contra a corrente – no seio de um Jornalismo decrépito e em perda de princípios, sei por experiência própria, os custos da ousadia –, mas há um sinal de esperança quando o vil acto de Amílcar Falcão está finalmente a ser contestado dentro da própria Universidade de Coimbra. Primeiro de uma forma mais discreta (e ainda minoritária), mas nos últimos dias de um modo mais substancial e impossível de se silenciar.

    Porém, isto sabe a pouco. Até se poderia chegar à (porventura absurda) conclusão de que Vladimir Pliassov era o mais empedernido putinista, mas um reitor não pode arvorar-se de polícia, de procurador de acusação, de juiz e de executor, e tudo isto feito no reduto dos seus neurónios. Se pensa que poderia fazer tudo isto perante um caso desta delicadeza, não pode continuar a ser reitor. Se sabia que não poderia fazer isso e fez, não pode continuar a ser reitor.  

    Depois de tudo isto, e independentemente de quem é, na essência, Vladimir Pliassov, temos apenas como certo que Amílcar Falcão não tem estaleca – digamos assim, de sorte a soar mais popular – para ser reitor da Universidade de Coimbra.

    Manter-se nesse posto será a vitória da mediocridade – o que tornará medíocres os demais. Mesmo daqueles académicos que, agora, o criticam em abaixo-assinados, porque dos outros que se mantêm, mesmo assim, em silêncio, não rezará a História.

  • Os assassinos

    Os assassinos

    Demonic males: uma longa série sobre o masculino, com torrentes de detalhes, exactamente como as pessoas daqui fazem quando lhes perguntamos onde ficam os correios – Episódio 3


    O que poderá dizer, nos nossos dias, quem continuar a não gostar da ideia de que os humanos estão mais próximos dos chimpanzés do que os próprios gorilas? Até ao fim do século XIX, a resposta céptica mais ferrenha à descoberta de fósseis era que Deus os pusera nas rochas como uma experiência estética, ou filosófica, para fazer de conta de que a Terra tinha uma História – exactamente como dera um umbigo a Adão para fingir que ele tinha nascido de uma mulher. Para os cépticos criacionistas do fim do século XX, a explicação era mais que um qualquer artifício demoníaco organizara todos aqueles fósseis em série para que caíssemos na tentação evolucionista. Ou seja, as marcas moleculares claríssimas de relação estreita entre grandes primatas seriam um plano ou divino ou diabólico. Para quase toda a gente, no entanto, a ideia de um poder enganoso a funcionar a este nível exige demasiado da nossa imaginação. O Criador pode ser Omnipotente, mas é pouco provável que seja Maluco.”

    Richard Wrangham e Dale Peterson

    DEMONIC MALES: APES AND THE ORIGINS OF HUMAN VIOLENCE (1996)


    As minhas citações do DEMONIC MALES estão a ficar cada vez maiores, mas a culpa não é minha, e nem sequer é do livro de onde eu as tiro: a culpa é dos leitores, que todas as semanas me dão os parabéns pela escolha, me revelam que tudo isto lhes pareceu tão interessante que foram ler o trabalho inteiro, e, de vez em quando, me contam que gostaram tanto que até já encomendaram a obra seguinte dos mesmos autores. E claro, são estes pequenos momentos que nos fazem felizes no meio do caos mais ou menos disfarçado da nossa vida quotidiana: se as nossas histórias, e as nossas citações, levaram outras pessoas como nós[1] a ler um bom livro e a querer ler ainda mais – então, e penso que todos os meus colegas sentem o mesmo, já ganhámos o dia e há poucas emoções melhores.


    Antes de passar adiante, vamos já deixar claro o que se pressupõe óbvio mas nunca se sabe: evidentemente, a maldade não é uma característica exclusiva do masculino[2]. E, se afectar o género oposto, não se fica minimamente por aquelas megeras más e vingativas do século XIX, que infestavam os romances do Charles Dickens ou das irmãs Bronte. Podia estar aqui o que ainda nos resta desta estranha e inconstante Primavera a deliciar-vos com casos horrorosos de crueldade feminina, como a das lontras marinhas, ou a das hienas, ou a das leoas quando caçam em bando. Ao contrário do que ainda me diziam quando eu andava na escola[3], o Homo sapiens está longe de ser o único animal que aprecia fazer mal aos outros, incluindo aos da sua própria espécie[4]. Talvez seja o único animal capaz de distinguir a água benta da água normal[5], mas não é, de maneira nenhuma, o único animal que, quando pode, maltrata os outros a título absolutamente desnecessário, assim mesmo, só para se divertir.

    Costumávamos considerar que a crueldade humana, particularmente manifesta nas guerras que os seres humanos travaram entre si desde que temos registo das suas actividades, era de tal forma sofisticada que requeria uma explicação especial. Talvez essa explicação fosse científica, talvez fosse bíblica – ou até talvez fosse, de facto, completamente inacessível à inteligência humana, pois que nos fora trazida por extra-terrestres, tal como Arthur C. Clarke e Stanley Kubrick imaginaram em 1968, por escrito e em filme, em 2001: ODISSEIA NO ESPAÇO[6].

    Pois, mas se a contarmos só até aqui esta história está coxa e é tudo menos bípede.

    Um dos primeiros Homo sapiens verdadeiramente territoriais prepara a lança para dar guerra à família Neanderthal que vive na gruta que fica do outro lado da montanha, onde, neste preciso momento, sem suspeitar de nada, enche as paredes de pinturas cada vez mais bonitas de bisontes com cada vez mais cores resistentes ao tempo.
    Depois vieram o arco e a flecha, depois os códigos de gritos de batalha, depois as tácticas de cerco, depois…
    … a verdade é que os Neanderthais não estavam a fazer mal a ninguém, até podiam andar por ali em maior número do que os Homos, mas olhem. Eram uns indivíduos suficientemente pacíficos para não só co-existirem connosco como até partilharem connosco alguns dos seus genes,[A] mas nós éramos uns esganados, sempre a precisar de mais território[B]. Fizemos-lhes tantas e tão poucas que eles acabaram por extinguir-se para todo o sempre.

    Falta acrescentar que, há cerca de cinco milhões de anos, houve um grupo inteiro de primatas ainda indiferenciados que desenvolveu alguns comportamentos muito, mas mesmo muito raros. Há pouquíssimos animais que vivam em comunidades patriarcais onde os machos se unem e as fêmeas se esgueiram de um grupo para o outro no sentido de evitarem a consanguinidade. Os tais primatas vieram de um grupo detentor dessa raridade, e também se caracterizavam por manterem uma defesa territorial masculina extremamente agressiva, incluindo ataques letais a comunidades próximas, à procura de inimigos vulneráveis para atacar e matar. Hoje em dia, em quatro mil mamíferos e mais de dez milhões de outras espécies animais, este conjunto de comportamentos é único e específico das duas únicas espécies que derivaram daquela espécie ainda incaracterística que existiu há cinco milhões de anos: os homens… e os chimpanzés.

    E, nestes dois casos, o instinto da violência vem, indiscutivelmente, dos machos.

    Tal como entre os humanos a violência doméstica está geralmente ligada ao homem, que bate na mulher, e pode de igual forma bater nos filhos[7], também entre os chimpanzés são os machos quem parece considerar tudo e mais alguma coisa como um bom pretexto para dar tareias do outro mundo nas suas companheiras. Agora que podemos filmá-las no seu habitat natural com as nossas microcâmaras digitais minúsculas que não levantam suspeitas nem causam inibições, temos que aceitar o chimpanzé tal como ele é: são tareias tamanhas que as fêmeas chegam a morrer em consequência. E, tanto numa espécie como noutra, a comunidade circundante observa… e mesmo que filme, mesmo que relate na rádio, mesmo que faça manchetes de jornais[8], a verdade é que, em termos práticos, reage com tal indiferença que raios nos partam se não for causada por cinco milhões de anos de evolução que continuam a dizer-nos que aquilo é normal e até nos faz bem.

    Com tudo isto em mente, eu estava à espera de quê quando, aos 61 anos, vim viver sozinha para uma cidade pequena no interior profundo, cheia de cafés, que estão cheios de esplanadas, que estão cheias de homens, que estão todo o santo dia a beber ou cervejas ou bagaços ou assim parece? Ai a menina chegou aí e achou que tanto assédio era um bocado estranho? Mas achou mesmo? Então e porquê? Por um lado, não é bióloga? E, por outro lado – nunca ouviu dizer que a ocasião faz o ladrão e depois quem anda à chuva molha-se?

    Ora então.

    Beba mas é mais uma bjeca, senhora, que a malta oferece. E conte lá mais umas historinhas cheias de homens maus.

    (continua)

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Eu, por exemplo: não sou antropóloga, nem paleontóloga, nem propriamente evolucionista: estudei um bocadinho de tudo isto durante os cinco anos do meu Curso de Biologia no antigo Colégio dos Nobres, mas logo a seguir especializei-me na fertilização do mamífero, depois da História da Biologia, e pronto – estas escolhas não se compadecem com andarmos para aí a aprender tudo o que está nas margens dos nossos interesses. Mas deem-nos um bom livro e contem-nos uma boa história, devidamente documentada e seriamente revista pelos pares: é claro que a gente gosta de aprender!

    [2] Na Natureza, linhas divisórias assim tão taxativas são sempre meritórias de muito pouca confiança. O único diferencial que existe mesmo, no caso da crueldade, encontra-se apenas a nível estatístico, só que é um apenas cheio de penas. Os machos tendem a ser maiores, mais fortes, mais vistosos, e mais dominantes. Um veado maduro enorme, cheio de armações, que esteja na brama, ouve-se e vê-se a quilómetros de distância. As vinte e sete fêmeas pequeninas e sem armações que constituem o seu harém… pois, é mais que se confundem com a folhagem.

    [3] Na realidade, quando agora penso nisso em retrospectiva, contaram-me imensas tretas quando eu andava na escola, e não foi só em Ciências Naturais. Também não há de ter sido tudo deliberado. Agora, sempre que dou aulas, ou explicações, interrogo-me com frequência sobre qual será a grande treta que andamos a ensinar aos nossos alunos. E então desde que comecei a ouvir dizer que se calhar não foi nada um asteroide o que causou a Extinção em Massa dos Dinossauros…

    [4]Só o homem é que tortura, etc.” Ai é? Aguentem firme que eu depois hei de falar-vos de uns quantos orangotangos e gorilas, só para mencionar familiares próximos.

    [5] Remeto-me à minha modéstia. Capaz de distinguir a água benta da água normal? Ná. É evidente que eu, sozinha, nunca conseguiria inventar pérolas de cultura assim tão brilhantes. A frase original é do escritor britânico T. H. White (Mumbay, 1906-1964) e foi gravada na memória de muitos portugueses da minha geração pelas crónicas semanais que grande Augusto Abelaira publicou semanalmente no defunto O JORNAL, O ÚNICO ANIMAL QUE, protagonizadas por duas fêmeas de chimpanzé tornadas famosas à época pelos investigadores de primatologia. O quase esquecido Terence Hanbury White, entretanto, tornou-se particularmente notado em vida pela sua série de romances sobre o Rei Artur, coligidos num único volume, THE ONCE AND FUTURE KING, em 1958. Destes, foi especialmente aplaudido o primeiro da série, THE SWORD AND THE STONE, publicado separadamente em 1938.

    [6] Tanto Clarke como Kubrick tinham personalidades digamos que fortes e difíceis, o que levou à separação pelo meio do seu projecto original de trabalho em conjunto num livro e num filme que haveriam de cair-nos em cima exactamente ao mesmo tempo. Da forma como as coisas correram, o filme, atribuído só a Kubrick, acabou por estrear antes do lançamento do romance, assinado só por Clarke. Mas enfim, sempre aconteceu tudo em 1968. E sem escandaleiras na praça pública, consideradas à época de gosto duvidoso..

    [7]Éramos nove, dormíamos todos em duas camas, e sempre que ele vinha bêbedo acordávamos à noite já com o cinto em cima”: durante todos os anos da minha adolescência em que andei nas vindimas, ouvi variações sobre esta história vezes e vezes sem conta. O resto do pessoal desatava a rir, celebrando o ridículo do homem completamente enfrascado. Ninguém parecia achar nada daquilo estranho, e eu já sabia ficar tão calada como a coruja. Em casa diziam que eu era “uma sonsinha”. Não era nada. Possuía apenas uma deformação profissional que pareceria quiçá aberrante naquela idade.

    [8] E mais sabe-se lá o quê que os chimpanzés fazem para contarem as suas histórias uns aos outros, porque lá porque nós não os percebemos não está necessariamente implícito que eles não se percebam. Estamos a falar de animais capazes de aprender, entender, e utilizar a linguagem dos surdos-mudos. E até de conversar no DOS com os computadores, por muito que possam fazer-lhes pedidos que nós, na nossa eterna sobranceria, consideramos palermas, como por exemplo “vá lá, computador, faz umas festinhas à Kathy!” Animais que atravessam a ponte até este nível mais formas terão de se parecerem connosco – ou sou eu que estou a raciocinar fora do baralho? Eu e todos os primatologistas normais deste ano da graça de 2023?

    [A] E, tanto quanto a gente sabe, entre todos os mamíferos só se trocam genes de uma única maneira.  Por muito que as duas espécies que fazem o amor possam preferir diferentes posições, mudar de posição não é inventar nada nem partilhar nada.
    [B] Porque nós éramos liderados por machos, e os machos que assumiam a liderança eram sempre os mais aguerridos. Em termos de emoções, foram os pioneiros dos gangs dos nossos dias. Não era que precisassem da guerra: era mais que estavam completamente viciados naquela chuva de adrenalina de seguir o chefe, cerrar fileiras, desatar a berrar, e matar o inimigo.

  • A formiga não pode carregar o leão às costas

    A formiga não pode carregar o leão às costas


    O valor total dos meus rendimentos consiste na soma de todos os salários que recebo, todas as rendas que me pagam por aluguéis, da venda de produtos que fabrico, dos arrendamentos que fizer de casas, quartos ou carros. Também posso ter um terreno que produz bens alimentares ou outros e a sua venda junta-se aos meus rendimentos.

    O meu rendimento anual é o meu Produto Interno Bruto (PIB). Mas agora vamos tirar daqui os salários de empregada, a escola dos filhos, a gasolina, os seguros, a água, a luz, as comunicações, as taxas aos bancos, os impostos ao Estado e temos o valor que fica para brilhar, para as festas, para investir.

    red ant on white mushroom

    Peguemos agora no caso português. Dos cerca de 10,4 milhões de habitantes, 2,4 milhões de são idosos e temos ainda 1,5 milhões de pessoas com menos de 15 anos. Ficamos assim com um potencial de 6,5 milhões de pessoas, mas desce para pouco mais de 4,9 milhões de trabalhadores, se considerarmos os estudantes, os desempregados e outra população inactiva.

    Com isto se constrói o PIB do país, com os que trabalham, com os impostos que todos pagamos e muito do que se descreveu no início. Os funcionários da máquina do Estado Central são mais de meio milhão, e na Administração Pública local e regional estão 160 mil. Além destes, há os das empresas de capital do Estado, com gestão “privada”.

    Eles, na realidade, recebem dinheiro do PIB e não são contribuintes a não ser que paguem muito IVA, paguem muito IMI ou sejam empreendedores agrícolas, lojistas, vendedores, etc. O salário dos funcionários sai do bolo que se constrói dos impostos e daquilo que o Estado deveria produzir ou vender.

    10 and 5 euro banknotes

    Se o dinheiro não chegar ao fim do ano, posso emitir títulos de dívida que os amigos compram se confiarem. A confiança está controlada pelas agências de rating, ou pelos vizinhos no bairro das formigas. É o caso dos Títulos do Tesouro do Estado. Isto, para o meu PIB, tem agora um custo, que é o juro que pagarei ao meu cliente. Tem a vantagem de me disponibilizar capital em tempo útil que me pode fazer ganhar dinheiro, se bem utilizado. Tem o custo de ter de pagar juros sobre o valor que me adianta.

    Portugal, sob o ruído da TAP e do galambismo teve um ataque ao bolso das poupanças reduzindo a taxa de juro dos Títulos de Tesouro de 3,5% para 2,5%. Mais, converteu numa dificuldade a libertação dos títulos por herdeiros, ou seja, atacou a liquidez das famílias.

    Num país muito estranho, onde a pobreza é das mais importantes da Europa, o povo não liga às questões financeiras, e paga. Paga o que não pagam outros europeus por um carro, por uma casa, por taxas de luz e água. 

    Há até quem não repare que o petróleo está a preços mais baixos que antes do início da guerra da Ucrânia. Portugal é cego e gosta de ser enganado. Quando a Banca, cheia de lucros, pede que acabem os produtos de poupança do Estado, não se ouvem gritos nas ruas. Talvez porque os portugueses coloquem mais dinheiro na raspadinha que nas poupanças. Veja-se: 1,5 mil milhões de euros são só para raspar encostados às mesas dos cafés. Outro tanto é para jogar no Euromilhões e no Totoloto.

    O desinteresse na poupança vem de uma mentalidade pobre que não se importa de conseguir reformas abaixo de 500 euros mensais.

    Esta realidade que nos coloca nas mãos de João Moreira Rato e outros gestores que detestam os contribuintes, amam os grandes investidores e nunca valorizam o esforço da formiga, preocupa-me há muitos anos.

    Houve dezenas de Prémios Nobel da Economia que aconselhavam uma aposta no microcrédito, um crédito para o empreendedor pequeno e cuidadoso, que defendiam a libertação de dinheiro para a iniciativa das pequenas e médias empresas. A construção da sociedade sem soluços, sem crises, obriga a uma estrutura onde a poupança serve de almofada e garante a estabilidade das famílias.

    pink pig coin bank on brown wooden table

    O Mundo não pode ser apenas dos predadores, como parece ser o novo Estado, que dilapida a saúde, o ensino, que nos consome os direitos básicos, como a energia, a água, e a comunicação.

    A formiga não pode carregar o leão às costas. O PIB não comporta devaneios extravagantes, subidas inesperadas de taxas, inflação nos alimentos que ninguém consegue explicar. Se o valor total do PIB não comporta os gastos da família temos de nos vender aos juros agiotas dos predadores. Esse cenário já nos colocou nas garras do FMI mais que duas vezes.   

    Diogo Cabrita é médico


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Vacinas contra o desleixo

    Vacinas contra o desleixo


    Passou quase despercebida do grande público uma notícia extremamente preocupante: a falta de vacinas em vários centros de saúde do país.

    Aquele que devia ser um caso prioritário nas preocupações da Oposição (já que o Governo se desleixara numa matéria crucial) passou para segundo plano porque, para a maioria dos deputados, ansiosos de chegar ao Poder, o que interesse é que o “povinho” se revolte com as trapalhadas da TAP.

    person in white long sleeve shirt holding gray pen

    A possibilidade de incumprimento do Plano Nacional de Vacinação, incluindo no que respeita a crianças, é, para estes, um caso de somenos importância se houver que descobrir quem chamou o SIS num caso que deveria ter sido resolvido pela polícia.

    Os problemas gravíssimos que esta falha pode causar, e o facto dela só ser possível por uma absoluta incompetência do Ministério da Saúde, não deverão merecer atenção prioritária enquanto não se souber, claramente, se um assessor agrediu, ou não, colegas do gabinete para se apropriar de um computador.

    Deixando de lado a incomensurável estupidez desta Oposição, tentemos analisar o que se passa.   

    Comecemos por uma pergunta simples:

    Como pode o Ministério da Saúde tentar justificar a falta de vacinas em vários centros de saúde do país?

    Manuel Pizarro, ministro da Saúde.

    O comum dos mortais sabe que o Estado tem, ao seu dispor, à distância de um clique, num qualquer computador, o número exacto de vacinas a administrar aos cidadãos.

    O médico Jorge Amil Dias, presidente do Colégio de Pediatria, foi claro:

    “A aquisição de vacinas é uma daquelas coisas previsíveis e que se sabe com antecedência, quantas e quais é que vão ser necessárias. Por isso, uma quebra de disponibilidade nos centros de saúde, que não seja por falta de produção, é incompreensível.”

    Qual será, então, a gravidade da situação?

    Para o cidadão comum esta pergunta é de difícil resposta já que, ao contrário do acima dito em relação aos governantes, nesta altura é desconhecido o número de vacinas administradas diariamente.

    Na realidade, desde 2020, e por causa da pandemia, os dados foram retirados do Portal da Transparência e ainda não voltaram a ser disponibilizados.

    person in red sweater holding babys hand

    Ainda assim, e graças às informações prestadas pelos responsáveis, sabemos que começaram a faltar, nos Centros de Saúde, doses de vacinas contra a difteria, tétano, tosse convulsa, poliomielite e haemophilus b.

    Mais, sabemos que o Governo ainda não comprou as vacinas do Programa Nacional de Vacinação deste ano e que os Centros de Saúde estão a utilizar doses que sobraram do abastecimento anterior.

    Segundo o jornal Expresso, a vacinação gratuita à população, sobretudo de recém-nascidos e crianças, está a ser feita a “conta-gotas”.

    Em resposta à TSF, Manuel Pizzarro reconhece que “pontualmente, num local ou noutro, podem ocorrer situações de faltas, que são rapidamente resolvidas”, e assegura que, “a nível nacional, não estão vacinas em falta no âmbito do Programa Nacional de Vacinação”.

    Duas frases que entram em contradição nítida e que tentam branquear com a garantia de que “Portugal faz uma gestão criteriosa do stock de vacinas, monitorizando-o em permanência, o que permite assegurar a disponibilidade de vacinas, sem desperdício, e que se continue a vacinar e a cumprir o Programa Nacional de Vacinação”.

    girl covering her face with both hands

    Esta estranha serenidade, todavia, é arrasada pelos jornalistas do “Expresso”.

    Estes garantem que, apesar das necessidades para o cumprimento do Plano Nacional de Vacinação, para 2023, terem sido enviadas, atempadamente, pela Direção-Geral da Saúde ao Ministério da Saúde, o respetivo procedimento para a aquisição das vacinas ainda não foi iniciado.

    “O Ministério da Saúde foi avisado com dezenas de e-mails a alertar para a urgência em aprovar o plano”, garantiu ao jornal uma fonte próxima do processo.

    Os profissionais ouvidos pelo semanário, mesmo aceitando a garantia, dada pelo Ministério, de que a compra de vacinas ficará concluída na próxima semana, garantem que esta compra não apagará o atraso de seis meses.

    Por sua vez, o Dr. Gustavo Tato Borges, presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública, garante que, “já em 2022, 12% das crianças foram vacinadas depois da idade ideal. Ou seja, houve uma fragilização”.

    woman getting vaccine

    Os dados disponíveis, citados pelo “Expresso”, revelam que a vacinação fora do tempo certo é mais evidente nas crianças mais pequenas, entre os 12 e os 13 meses de vida.

    Segundo o boletim, a imunização atempada nessa faixa etária fica pelos 85%, portanto muito abaixo dos mais de 95% conseguidos na cobertura global nos restantes grupos vacinados.

    Mas que importância terá tudo isto para os nossos políticos empenhados que estão na luta pelo prémio do mais populista?

    Se, pelo menos, houvesse uma vacina contra o desleixo…

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Ouvir um som e sentir o gosto das coisas

    Ouvir um som e sentir o gosto das coisas


    Ouve.

    Ser o filho do meio de uma sucessão de guerras culturais tem destas coisas. Um karma, talvez, de saber que o irmão mais velho já cá estava e já outro mundo viu, e de reconhecer que o irmão mais novo precisa das atenções especiais de quem ainda não controla o corpo e a mente (e eu controlo?).

    Do fim do século, que já não voltará, ficou o gosto do metal. Doce, áspero. Como se a cada quilómetro de auto-estrada e cheiro quente do asfalto a pressionar o peito tivéssemos a certeza que íamos lambendo postes de alta tensão na busca de um gelado Perna de Pau em cada estação de serviço. Era o progresso que sabia assim: a veneno que o nosso corpo destilava com a facilidade de quem se julga imortal (e imoral).

    girl in white shirt kissing girl in blue and white stripe shirt

    Estamos todos numa bolha, cada um de nós; uma bolha fechada de paranoias e gosto metálico. (E que medo se rebenta a bolha!)

    Carpetes estendidas a acumular o cheiro da pele morta dos outros, feltro vermelho a fingir-se de luxo aristocrata quando as cabeças já rolaram na guilhotina, saltos altos com espigões agressivos a marcar os passos de ídolos anoréticos (e as drogas a fazerem girar o planeta), carnes obesas a rodopiar e a atrair a si o campo gravitacional da queda de uma civilização. Palhaços que de cara borratada avançam de gatas, loucos, desvairados, os únicos que com lucidez inata ilustram o esboroar das ilusões.

    Comboios que passam rápidos debaixo de varandas onde uma senhora estende roupa abnegadamente num espaço exíguo, vertiginoso (não tenho mais molas), salta! E a espuma de um dia que se empurra devagar enquanto outros correm, correm, correm.

    Crianças nascem como brechas de luz nestas cloacas e velhos definham em silêncio e solidão entre paredes quadradas de alvenaria, tijolo vermelho (carpetes e sangue), ossos que quebram como giz (gesso nas paredes que mancha, ressoa, o bolor a trepar até ao tecto).

    timelapse photo of train

    A geração dos eternos adolescentes, filhos de sacrifícios humanos movidos a anfetaminas (e a guerra senhores!), comem, comem, comem tudo e não deixam nada. Sinalizam virtudes, mão no peito (canta o hino), mão no peito (diz amen), mão no peito (declama ciência), mão no peito (não ao nuclear!), mão no peito (vai de bicicleta), mão no peito (e segura o coração para que não saia a fugir, que o frágil órgão não aguenta mais inflamações de mentes que não se encontram e vermes que entram pelos ouvidos e nos dão dores de dentes).

    Demasiado?

    A cada música ouvimos um apelo e sentimos o gosto do ferro na terra. Viajamos. Construímo-nos em cima do que já está feito. Pré-fabricados e opiniões. Opiniões pré-fabricadas e a luz que tremeluz da televisão, do ecrã, de mais um aparelho, pequenino, médio, grande, enorme, ligado por USB às nossas vias respiratórias (compra, compra, compra).

    Ouve.

    Podemos deixar as coisas abrandarem? Se somos nós que corremos, dizem os entendidos que não se pode assim dizer, do pé para a mão, que o planeta tenha desatado a mexer-se mais depressa.

    black and white USB data cables

    Se somos nós, como quando fechamos os olhos para dormir, que desligamos a existência e flutuamos em planos de sabores mais meigos, podemos deixar as coisas abrandarem.

    Podemos ser o russo. Podemos ser o ucraniano. Podemos ser o inglês e o americano.

    Podemos ser o italiano, o espanhol e o português.

    E nada que as torres de alta tensão metálica e doce, ásperas e pesadas, nada que turbinas velozes a rasgar o vento para baterem com a tua mão no peito, nada do que elas te dizem, para que corras, é verdade.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • As munições que o Governo dá aos liberais

    As munições que o Governo dá aos liberais


    Quando o sistema de impostos me desagrada evito falar sobre ele. A razão é simples: não dar munições aos liberais e à extrema-direita que vêem na “flat tax” a solução para todos os problemas.

    Sou um defensor acérrimo dos impostos progressivos por achar que é essa a única forma de assegurar serviços públicos de qualidade, pelo menos na saúde, na educação e no apoio ao desemprego.

    Ainda assim, agora vem o “mas”, volto ao tema dos impostos em Portugal por achar que a coisa começa a ultrapassar todos os limites da razoabilidade. E notem que me refiro a Portugal em especial porque no país onde passo metade do ano, a Suécia, ninguém se queixa do elevado valor dos impostos. Apesar da carnificina fiscal, não há que negar essa parte, aparentemente as pessoas identificam-se com a prática e percebem a importância de o fazerem. Deduzo eu pelo que recebem em troca.

    two Euro banknotes

    Esta é a parte importante desta troca comercial entre o contribuinte e o Estado. Nós depositamos um valor mensal e, em troca, o Estado proporciona-nos serviços.

    Se os nossos filhos estudarem sem pagar, se formos assistidos nos hospitais sem grandes custos, se tivermos uma pensão de reforma decente e, no caso de cairmos no desemprego, termos uma qualquer protecção, em princípio a população não se queixará muito. Imagino eu.

    Em Portugal, mesmo para um opositor da selva urbana defendida pelos liberais e do “cada um por si” exigido pela extrema-direita, começam a faltar argumentos para justificar a brutal carga fiscal. 

    Numa semana em que voltei a ouvir falar de Alexandra Reis e devoluções de indemnizações milionárias ou, de desvios do erário público para garantir obras aos amigos de PS e PSD, pergunto-me: até onde é que cada trabalhador tem que ser esfolado para pagar este circo todo?

    person standing near the stairs

    A inflação vai baixando com alguma consistência mas as taxas de juro continuam a aumentar.  Nos bens de consumo também não se nota grande abrandamento na escalada de preços e, segundo alguns economistas, mesmo quando a inflação regressar ao mítico 2%, não se espera que os preços regressem aos valores pré-guerra. O mesmo para os transportes onde uma deslocação na Europa custa hoje três ou quatros vezes mais, se compararmos com os preços praticados antes da pandemia.

    Num destes dias, entrei num café e pedi um iogurte. Um simples iogurte que, desde o dia anterior, tinha subido cerca de 30%. Quando perguntei a razão de tamanha exponencial à funcionária, ela encolheu os ombros e disse: “já sabe, a Ucrânia e tal…”. A Ucrânia está para a escalada de preços como o Aursnes para o onze do Benfica. É pau para toda a obra. 

    O dia até me estava a correr bem quando recebo a carta para pagar o IMI (Imposto Municipal sobre Imóveis). O IMI é capaz de estar no pódio dos impostos mais estúpidos. Ninguém percebe bem a razão de pagar, anualmente, um imposto por uma coisa que é sua e que, ainda por cima, já foi alvo de carga fiscal a valer na altura da compra.

    man in purple suit jacket using laptop computer

    Uma pessoa quando compra uma casa já paga alguns milhares de euros em IMT e Imposto do Selo. Ou seja, o Estado já nos leva uma fatia na compra. Depois leva outra, maior, na venda. Tudo bem, não queremos especulação e tal. Mas depois ainda nos pede uma mesada, anual, pela existência da casa.

    A dada altura uma pessoa paga taxas e taxinhas já sem saber de quê. Mas pior… o que é que recebe pelo que paga? SNS e escola pública destruídos, salários na função pública miseráveis, roubos e mais roubos do erário público descobertos a um ritmo semanal. Fica difícil, muito difícil, para um convicto apoiante do sistema público, defender o assalto fiscal português quando a moeda de troca é uma mão cheia de nada ou uns subsídios mata-fome.

    Também não sou um fã da conversa de emigrante do “lá fora é que é” mas, efectivamente, é possível pagar muitos impostos, ficar com dinheiro no bolso para viver, ter serviços públicos de qualidade e não pagar impostos idiotas que cobram duas e três vezes a mesma coisa. Há décadas que PS e PSD, enquanto dividem autarquias e tachos para os boys, partilham uma única ideia para aumentar receitas: mais impostos.

    wallet, empty, poverty

    E por maior que seja o jackpot, vai sempre parar ao mesmo sítio. Estradas, clientelas, bancos, boys, empresas de amigos, PPPs ruinosas. Já para produção de mais valias, aposta em tecnologia e nos cérebros formados em Portugal, educação universal ou alívio fiscal, preferimos deixar para os países de primeiro mundo que nos vêm roubar os miudos à porta das universidades.

    Parece-me uma estratégia óptima para quem quer continuar a competir entre os mais pobres.

    Pessoalmente sinto-me cercado. Dependo de aviões para me deslocar todos os meses, pago impostos em dois países europeus a braços com a inflação desregulada e manietados por um estúpido apoio eterno a uma guerra entre impérios, disputada em território neutro. Já vamos em 3,5 anos disto.

    Primeiro a pandemia, a loucura das restrições e o aumento das dívidas soberanas. E agora esta crise militar com a fatura da covid-19 lá enfiada, tudo para ser pago pela antiga classe média europeia. É trabalhar até rebentar para pagar custos de vida que há muito deixaram de ser comportáveis. 

    loaf, bread crumbs, crumbs

    Nunca votaria em qualquer partido à direita do PS, incluindo o próprio, mas por esta altura do campeonato, dada a pobreza crescente em Portugal pergunto, qual seria o problema de reduzir os impostos e deixar cada trabalhador com mais dinheiro no bolso?

    Não diria isto se visse uma boa aplicação do dinheiro dos impostos mas convenhamos, enquanto a população empobrece e perde as casas, a classe política e as elites, vão dividindo o bolo e enriquecendo, entre negócios escuros com abutres que voam desde sempre na órbita do Estado. São muitos, são demasiados os exemplos de gestão danosa das nossas contribuições.

    Valerá a pena continuar este modelo onde as pessoas empobrecem, os serviços públicos vão desaparecendo, as contribuições vão aumentando e uma minoria, já não tão silenciosa, vai enriquecendo nas costas da corrupção? 

    person holding stainless steel fork

    Se não querem construir uma escola universal, se não querem recuperar o SNS, se não querem falar com os professores, se não querem dividir a riqueza colectada por quem trabalha, então colectem menos. É simples. Se vamos continuar a salvar bancos, a pagar PPPs ruinosas, a roubar e a desviar descaradamente o erário público e a “dar salários a boys que se estão a cagar”, então deixem de virar as pessoas ao contrário até que dos bolsos caia a última moeda.

    É imoral e pornográfico. Dividam a riqueza, forneçam serviços públicos de qualidade, tenham vergonha na cara e deixem, os sucessivos governos, de conduzir Portugal a uma república das bananas de terceiro mundo. Se assim não for, baixem pelo menos os impostos e deixem cada um tentar a sua sorte.

    Pior do que está não fica.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A coruja

    A coruja

    Demonic males: uma longa série sobre o masculino, com torrentes de detalhes, exactamente como as pessoas daqui fazem quando lhes perguntamos onde ficam os correios – Episódio 2


    “A inteligência é uma coisa que todos nós conhecemos bem, como um livro antigo, ou um amigo de há muito tempo. Mas, e o que será a sabedoria? Se a inteligência é a capacidade de falar, a sabedoria é a capacidade de ouvir. Se a inteligência é a capacidade de ver, a sabedoria é a capacidade de ver longe. Se a inteligência é o olho, a sabedoria é o telescópio. Porque a sabedoria representa a nossa capacidade de sairmos da ilhota de nós próprios para começarmos a grande viagem através do mar.

    Richard Wrangham e Dale Peterson

    DEMONIC MALES: APES AND THE ORIGINS OF HUMAN VIOLENCE (1996)


    Aos seis meses, o Sebastião está enorme. Continua a ser um cachorrinho com comportamentos de cachorrinho, mas quando quer brincar com um transeunte incauto as patas dele já chegam aos ombros da pessoa. Em metade das vezes, o visado assusta-se seriamente. Na outra metade, o visado já o conhece e diz-me logo que lhe ponha a trela senão ele foge, ele pode causar um acidente de automóvel[1], e além disso ele é um cão tão bonito e tão esperto que alguém mo rouba de certeza[2]. Para um longo passeio sem trela, em que ele possa pular e espinotear tanto quanto lhe apeteça desde que não faça barulho[3], só mesmo esperando pela noite e tomando a direcção das ruazinhas do Castelo, que são tão estreitas e onde é tão problemático estacionar que quase não há carros, e onde àquela hora já quase não se vê ninguém. O homem que depois do Natal se apaixonou pelo meu cão[4] mora mesmo ao meu lado, é pedreiro, e ganhou ultimamente o hábito de vir passear connosco.


    O Rogério é do Norte, e não é nenhum santinho. Já passou uma boa temporada em Pinheiro da Cruz, e ficamos por aqui. Ele tem pena, porque gostaria muito que eu escrevesse um romance sobre a sua vida, dado que a considera excepcionalmente transbordante de erros[5]. Enfim, essa vida seria não mais que uma réplica de milhares de outras, sempre com os mesmos planos, os mesmos erros, e os mesmos crimes e castigos – qualquer coisa talvez mais útil para o progresso da sociologia[6] do que para o florescimento da literatura.

    Nessas noites, que agora parecem ter ocorrido há milhões de anos-luz, o Rogério usou imensas variações erradas sobre adjectivações muito simples, todas elas tão bizarras e inesperadas que nunca mais conseguem esquecer-se. Ainda por cima, em certas alturas até podem dar vontade de rir, o que é extremamente grave porque perdem logo o peso moral que, de facto, carregam consigo[7]. Às tantas até os meus dois ex-namorados de Estremoz foram corridos a patético, ou mesmo a individual completamente patético, nem me lembro porquê nem agora me interessa. Mas não é todas as noites que uma ouvinte atenta apanha com sequências assim tão brilhantes de palavras e coisas[8]. Mesmo que não queira. Já sei que vou guardá-las comigo para o resto da vida.

    A coruja-das-torres, que como tem um nome feminino não fala. No entanto, ouve tudo com muita atenção.

    Entretanto, em estrita obediência às leis imutáveis da Natureza, eu armava-me na coruja da anedota. Aquela que o outro senhor comprou para fazer dela um papagaio, e a seguir respondia a quem lhe perguntasse “então e a tua coruja, já fala?” com um enfático “não, falar ainda não fala… mas  ouve tudo com muita atenção!”.

    Eu não ouvia o Rogério com muita atenção por ser mulher, e muito menos por ser coruja. Era, apenas, porque sou escritora. Sei que das páginas de um qualquer CV pode saltar subitamente aquela agulha que andou perdida por dentro dos palheiros durante dezenas de anos, e era por causa dessa agulha que eu descobria, por exemplo, quem é que matou o JFK[9]

    À medida que foi criando mais confiança, e como, sendo homem,  gosta muito de falar, o Rogério foi entrando em catarses cada vez piores[10] sobre os seus erros do passado. Eu, como sou mulher e gosto muito de ouvir, ouvia-o com muita atenção. Uma semana depois da conversa que se segue, o Rogério vai usar-me como isco para extorquir quase oitocentos euros às minhas irmãs. Mas, na altura, não existindo qualquer antecedente, ninguém podia adivinhar este desenvolvimento trágico. O Rogério estava a contar-me uma das suas múltiplas separações com uma minúcia tão enorme quanto incompreensível.

    Ó Rogério, tu desculpa, mas não entendo. Que mal é que essa senhora te fez para te vires embora para todo o sempre, sem nunca mais voltares sequer a ver os teus filhos sem ser no telemóvel?” – “UMA SENHORA és tu. A outra BEM QUERIA ser uma senhora, mas era apenas uma grandessíssima preguiçosa. Nem sequer me passajava as meias!” – “Então e tu não sabes passajar as tuas próprias meias, como toda a gente?” – “Clarinha, há uma ordem natural  das coisas para o que fazem as mulheres e o que fazem os homens. Se ela quer ser desnaturada, pois saúde e passe bem, que eu esses desrespeitos patéticos[11] não tolero.”

    (continua…)

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Não se percebe se quem sofre com o acidente é o animal ou é a máquina, mais qu’importe. Um acidente é sempre uma desgraça.

    [2] Não é para me gabar, mas o meu cão é, de facto, particularmente bonito. E incrivelmente esperto. Um dia destes conto-vos a história da banana. Está prometido.

    [3] A palavra de ordem para o cachorrinho enorme não fazer barulho é “Sebastião! Queres ir para a rua?”, mesmo quando estamos no meio da rua. História prometida para o dia em que vier ao caso a história da banana.

    [4] Que é como quem diz, mas se não me chateasse tudo bem, e ele nunca me chateou, mesmo.

    [5] Obviamente, este livro seria uma biografia, e nunca um romance. Mas isso eram detalhes que na altura diziam pouco ao Rogério, que só queria contar-me tudo para expor os erros da sociedade, por forma a tornar a sociedade melhor. Nem que fosse só um bocadinho. Valeria a pena. Na versão dele.

    [6] Ou enfim, talvez para a estatística.

    [7] Como veremos mais tarde.

    [8] Ao menos eu não sou patética: sou tão fina que apenas introduzi veladamente no texto uma alusão ao famoso livro de Michel Foucault AS PALAVRAS E AS COISAS – UMA ARQUEOLOGIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS, publicado originalmente em 1966 com um grande impacto quase instantâneo sobre todas as áreas de especialidade relacionadas com a História das Ideias. Em vez de inventar palavras, traduzo-as e copio-as com todo o cuidado, sem não zugeben os mínimos enganos. Es ist ganz anders, como diria o outro antes de se virar para o balcão e pedir à refugiada de qualquer sítio islâmico onde correu tudo mal einem hamburger bitte.

    [9] Uma pessoa nunca sabe quando é que, de repente, sem aviso, uma história vai mudar completamente de rumo, já não ser uma banalidade, e então valer a pena passá-la a romance. Nem vale a pena imaginar o que nos pagariam para “contar tudo”.

    [10] Ou melhores, conforme as preferências literárias do ouvinte que escuta o palrante. O pior é que eu detesto psicopatas e filmes de terror. Mas aguentei firme. Aquilo podia, de facto, ter lá um JFK dentro em qualquer próxima frase.

    [11] O Rogério adorava palavras, e, para falar de forma culta, incorria por vezes, repetidamente, em erros crassos como este famoso “patético”. Eu nunca disse nada. Era um fato grunge de alta costura que lhe ficava a matar.

  • O campeão voltou

    O campeão voltou


    Embora o PÁGINA UM não seja um desportivo, é dificil fugir ao tema do fim-de-semana na minha habitual crónica de segunda-feira. Desde logo por razões económicas e estruturantes para o país, uma vez que, como é sabido, dizem, em ano de título vermelho, o PIB dispara e o PSI20 atinge máximos históricos.

    Provavelmente, o caro leitor até já recebeu troco em demasia depois da bica matinal. Isso é o “efeito Benfica” a funcionar na vida de quase todos nós. A alienação perfeita que nos deixa, umas boas 48 horas sem pensar no Galamba, no Costa, no Ventura, no Montenegro e até no Cavaco, que, de quando em vez, lá sai do sarcófago para assustar o líder do PSD em funções.

    Votar à esquerda não é a minha única qualidade. Também sou adepto do Benfica e cozinho razoavelmente bem. Um achado, eu sei.

    A primeira análise técnico-táctica que gostava de fazer foi a qualidade da festa. Luz, cor, foguetes e fumarada. Um estrondo que se viu da lua. Parecia um sábado de feira em Beirute no meio de um raide israelita. “Nem os árabes faltaram”, dizia-me um amigo de Barcelos que nos apelida de várias coisas, resultantes do cruzamento das nossas tetravós com os invasores mouros.

    Um pouco racista, bem sei, mas em dia de festa raramente me chateio. E, de facto, é verdade que a sul somos mais mascarrados, morenos e bonitos. Não era por isso que me ia aborrecer com o meu amigo pálido, adepto de um clube mais regional, que pensava que cuscus era marca de creme para as estrias.

    Bom, mas chega de falar dos outros. Voltemos ao aspecto táctico da coisa. Como foi possível a festa ter começado quase em Junho quando, em Março, tínhamos 10 pontos de avanço? Sim, tínhamos. Eu falo do clube como se estivéssemos todos dentro de campo a cruzar para a bancada como o Gilberto. Padeço desse mal, reconheço.

    Dois factores contribuiram para se lançar o primeiro foguete, no Marquês, bem nas barbas do leão às portas de Junho: Roger Schmidt e cascatas de penaltis, entre Abril e Maio, para o nosso mais directo rival.

    Schmidt conseguiu repetir a dose do período pós-mundial (primeira derrota do ano em Braga) com uma agravante: uma semana de férias para os jogadores que não foram às selecções.

    Na altura fiquei a pensar a que propósito parava ele os trabalhos daquela maneira quando, a cada interrupção, a equipa parecia regressar em ritmo de pré-época. A direcção do Benfica também achou boa ideia renovar o contrato do treinador por esta altura. Estava o clube nos quartos da Liga dos Campeões, a 10 pontos dos segundo na Liga; enfim, já cheirava a festa. Menos a mim, que gosto de comemorar depois de ganho, e não percebi, de todo, a paragem ou sequer a renovação. Eu pertenço à geração do Euro 2004, do golo do Kelvin e de várias finais europeias perdidas; portanto, já tive a minha dose de festas que não chegaram a ser.

    Dito e feito, no regresso das selecções, o Benfica perdeu seis pontos com duas exibições miseráveis. A primeira no clássico contra o Porto, onde nem cheirámos sequer a bola. Temia-se o pior, mas, com algum tremor, lá fomos aguentando os quatro pontos restantes até o jogo com o Braga. Foi aí, no sprint de Rafa, que ficámos com a certeza que o campeonato já não fugiria, porque, a partir dessa vitória, o jogo em Alvalade deixava de ser importante.

    Durante este período, Roger Schmidt mostrou que escolhe um 11 base e tem um núcleo reduzido de jogadores. Quando o sistema táctico é contrariado pelos adversários, ou os jogadores entram em subrendimento, ele não tem a capacidade de alterar nada.

    Seja no banco ou na semana de trabalho. João Mário desapareceu depois do jogo com o Porto e não saiu do 11. Musa justificou lá entrar e nem por sombras. Neres passou tempo em demasia no banco para se jogar com um meio-campo de posse e sem capacidade de explodir no um para um. Valeu a inclusão de João Neves, a recuperação de Florentino (cuja saída ninguém percebeu) e Fredrik Aursnes, um autêntico pau para toda a obra, que, caso Vlachodimos continue trapalhão com os pés, não me admirarei de ver com as luvas calçadas no jogo da Supertaça.

    Na parte final da maratona faltou ao Benfica acabar com a discussão. Na Luz, contra o Porto, ou em Alvalade. É aí que se conquista o brilho das vitórias. Estarei certamente isolado nesta opinião, hoje, mas por minha vontade, daria um abraço a Roger Schmidt, agradecia-lhe o trabalho feito e oferecia-lhe uma boleia até à Portela. Depois batia à porta de Ruben Amorim e informava-o que estava na hora de voltar para casa.

    Não vejo no treinador alemão a pessoa certa para inovar ou sequer mudar o que está feito. Dificilmente ganharemos com a mesma receita e os erros deste ano foram óbvios e, ainda por cima, repetidos.

    Mas, enfim, concedo que o tempo é de festa e ninguém quer saber disso. O filho de Roger Schmidt disse, a um jornal qualquer, que o pai queria sair do Benfica com as quatro estrelas conquistadas. Se for assim, meu amigo, retiro tudo o que disse e ainda mordo a língua.

    Não há nenhum jogador que me pareça merecer destaque individual, porque quase todos, do 11 base, e os quatro ou cinco que habitualmente entravam, contribuíram decisivamente em partes diferentes da época. Ainda assim, quero deixar uma nota para o Rafa, que fala pouco e corre muito. É um facto que falha para lá da nossa paciência, mas é ele, há anos, e independentemente de quem vai entrando a cada Agosto, que empurra invariavelmente a equipa para a frente. Época após época.

    Li que Sérgio Conceição afirmou que o Porto tinha sido, e era, a melhor equipa da época. Julgo que ele se esqueceu de completar a frase com um: “e só deixámos o Benfica 30 jornadas em primeiro lugar para os confundir”.

    O treinador do Porto faz, há anos, omeletes sem ovos. Com um ou outro jogador de futebol, uns Zaidus para fazer número e Otávios, que saem do departamento de dança e coreografia para fazer uma perninha. E tem mérito, note-se. Mesmo com a primeira posição no ranking mundial de penaltis, não é qualquer treinador que ganha com os plantéis que são oferecidos a Conceição. Infelizmente, o mérito dele acaba aí e não consegue, por uma vez que seja, perder com educação.

    Já nós, os adeptos do Glorioso, voltámos a mostrar que é possível ganhar por nós e para nós. Festa, cânticos, muito vermelho, certamente vários excessos… e nem uma palavra para os clubes rivais, nem um só coro a chamar nomes a quem não está ali, nem uma só claque a gritar por clubes alheios à festa. Bem sei que Neres, lá para o meio da farra, borrou um pouco a pintura no Instagram, mas é a excepção que confirma a regra. E como foi chatear o Otávio, até acaba por ser serviço público.

    Em conclusão, com ou sem Schmidt, parece-me boa ideia que comecem já a fazer uma equipa que garanta o 39: a mim dá-me jeito e ao PIB português nem se fala.

    Mais um ou dois dias disto e lá para quinta-feira, falamos de coisas sérias.

    Parabéns aos restantes 5.999.999 campeões.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A taberna como referência

    A taberna como referência


    Foi penoso, ao longo das últimas semanas, seguir a novela das aventuras e desventuras da TAP e de quem a dirige a nível empresarial e político.

    Fomos obrigados a ouvir, durante horas e horas, todo o tipo de debates, “análises”, comentários, afirmações, desmentidos, pedidos de demissão e histórias rocambolescas, com que os nossos deputados se têm entretido, praticamente a tempo inteiro, no Parlamento.

    flying white and red airliner plane

    À falta de preparação intelectual, e do conhecimento das matérias realmente importantes para o nosso dia-a-dia, entretêm-se a dar opiniões e a exigir respostas, sobre temas que estejam ao alcance do “povinho”.

    O objectivo é simples:

    Pegar num caso que demonstre o falhanço de um adversário político, criticar este com a maior veemência, se necessário realçando um ou outro ponto que, mesmo sendo duvidoso, possa aumentar a revolta de quem escuta e, ouro sobre azul, criar um escândalo.

    Vejamos o caso concreto que está na moda.

    Tudo começou com uma indemnização de quinhentos mil euros a uma administradora da TAP, que a CEO “convidara a sair”, e que, passadas poucas horas, seria chamada para assumir um lugar noutra empresa do Estado.

    man sitting on gang chair with feet on luggage looking at airplane

    Uma Oposição, composta por um Partido (PSD) que anda, há sete anos, com vontade de “ir ao pote” – mas sabendo que tem de esperar mais três, dada a maioria absoluta do PS – com um inesperado apoio de outros com assento parlamentar, não se tem preocupado com qualquer outro assunto ou problema do país na esperança de que o clamor à volta do caso leve o presidente da República a dissolver o Parlamento e marcar eleições.

    Hipótese, aliás, sugerida várias vezes por este nos intervalos das suas múltiplas opiniões sobre futebol, cinema, educação, moda e gastronomia, entre outros.

    O ruído aumentou com a entrada em cena dos rapazes do Chega que, cientes de que o PSD nunca teria votos para governar sozinho, não só exigem eleições imediatas mas, também, fazer parte do novo Governo e, inclusivamente, indicando os Ministérios que pretendiam passar a tutelar.

    E dizem tudo isso num discurso feito, propositadamente, para ser entendido e apoiado pelo seu eleitorado mais fiel: os habituais frequentadores das inúmeras tabernas do nosso país.

    Ou seja, fixando-se em dois ou três pontos, que cheirem a escândalo, repeti-los em frases curtas, compostas por palavras que não tenham mais de três sílabas, e insultando, a plenos pulmões, quem deles tenta discordar.

    O ideal é, depois, fazerem acusações que possam pôr em causa a idoneidade dos que pretendem atacar, mesmo que alterando os factos.

    Como no caso do adjunto de um Ministro, que foi demitido e, depois disso, “levou”, do que tinha sido o seu local de trabalho, contra a vontade da Directora do Gabinete, um computador do Estado porque garantia ter, nele, textos pessoais.

    A polícia e os Serviços de Segurança foram recuperar o aparelho, que até foi devolvido de livre vontade, e fez-se disto um caso que, há quem considere, devia fazer cair o Governo.

    Até aceito que a chamada do SIS foi infeliz e que o mais certo teria sido chamar a PSP e mandar prender o tal adjunto por furto, ou roubo, conforme a interpretação da violência havida no gabinete.

    Levar o caso ao ponto a que chegou, nos termos em que chegou, com o vocabulário usado por políticos que querem ser governantes, acabou por confirmar a fragilidade da nossa Oposição que se vê obrigada a agarrar um episódio caricato por absoluta incompetência para debater os verdadeiros e graves problemas políticos do País.

    Desde logo a Saúde, a Justiça, a Educação de um modo geral e a luta dos professores em particular, o modo como investir o dinheiro proveniente da Europa, etc. etc. etc..

    O PSD é chefiado por um pseudo político, sem capacidade para ganhar, sequer, uma eleição a qualquer Junta de Freguesia, que permite que, no Parlamento, nomeadamente na Comissão de Inquérito, os seus deputados tenham entrado no mesmo registo dos populistas, com insultos e tentativas de humor ridículas. Aí, o Deputado Rios de Oliveira é uma fotocópia, pior que os originais, como sempre, da malta do Chega.

    Pior, só mesmo o acéfalo da Iniciativa Liberal, um tal Rui Rocha (Calhau seria mais indicado) com um palavreado absolutamente primário e deprimente.

    O resultado de tudo isto é que, pensar que o Presidente Marcelo, por muito líder da Oposição que queira ser (e tem sido) e por muita vontade que tenha (e tem) de ver o seu Partido a dirigir o País, vai usar a “bomba atómica” é estar completamente fora da realidade.

    Marcelo sente que este segundo mandato, que tem sido muito mau, acabaria em total desastre se promovesse novas eleições já que o PS as ganharia, de novo, atendendo à falta de categoria de uma Oposição que tem como referência os eleitores de taberna.

    Aliás, só mesmo bêbedo alguém votaria nos partidos que a compõem. Por mim falo já que seria a primeira vez que, com o cuidado de tapar o símbolo para não me sentir muito mal, votaria no PS.

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O Estado é o nosso Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda

    O Estado é o nosso Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda


    No romance de Camilo Castelo Branco, A queda de um anjo, o personagem Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda é um fidalgo português da província. Casou-se por interesse com Teodora Barbuda de Figueiroa, igualmente, claro está, de boas famílias. Era um amante da tradição e dos bons costumes.  

    Em certa altura, a vida perfeita de Calisto foi abalada com a sua eleição como deputado, obrigando-o a partir para Lisboa. Na capital, ele conhece uma mulher chamada Adelaide e apaixona-se loucamente, sentindo, pela primeira vez, o verdadeiro amor.

    grayscale photo of person holding glass

    Mas, para desgraça de Calisto, Adelaide não correspondeu ao amor de Calisto, dado este ser um homem casado – esta, aparentemente, tinha princípios. Desta forma, Calisto teve de virar-se para outras paragens. E assim aconteceu. Pouco depois, ele conhece a jovem viúva do general Ponce de Leão, uma brasileira loira, com cerca de trinta anos. Esta aceitou o amor de Calisto para obter uma pensão. Calisto apaixona-se perdidamente e monta-lhe uma casa. A partir deste momento, foi a total transformação de Calisto: passa a adoptar costumes modernos que antes condenava; o verdadeiro Calisto, aquele que sempre existira, enfim, revelara-se, finalmente.

    O Calisto dos portugueses é o Estado. É tão amado, mas tão amado, que os portugueses depositam nele toda a sua confiança. Nas suas instituições, nas suas agências de notícias, nas suas certificações, nos seus estudos, nas suas estatísticas.

    Os portugueses e os demais povos ocidentais têm uma espécie de relação infantilizada com o Estado. Adoram ser inimputáveis, serem tratados como criancinhas, receberem ordens e directrizes. No fundo, o papá Estado é tudo na sua vida!

    woman showing gold-colored ring

    Não logram ver que existem regras distintas para eles e para o Estado. Se um privado, como a Dona Branca, defrauda os demais com um esquema piramidal, deve ser severamente punido.

    Apesar de tudo, ninguém se atreve a apontar o dedo à Segurança Social, um fraude sem paralelo e que apresenta apenas duas diferenças em relação ao celebérrimo e falecido Sr. Madoff: (i) a adesão ao esquema é obrigatória, com ordem de cadeia para quem se recusar a aderir; (ii) a saída do esquema é apenas possível no momento em que o Estado assim o decide, sejam 60, 62, 65 ou 70 anos. O Sr. Madoff usava os seus encantos para captar os clientes, enquanto o Estado diz-nos que estamos a praticar solidariedade intergeracional!

    Se um privado manipula o mercado, “prática que consiste em alguém que tem uma influência significativa sobre a oferta ou procura de determinado instrumento financeiro, aproveitar-se dessa possibilidade de forma a distorcer o preço de referência, pode ser punido com uma pena de prisão até três anos ou com pena de multa. E o que acontece aos Bancos Centrais que todos os dias manipulam os preços das obrigações com dinheiro de monopólio? Nada, estão a “estimular a economia”, estão a “trabalhar para o nosso bem”.

    Como podemos ser tão facilmente ludibriados por um lento e sub-reptício confisco a tudo o que produzimos: pagamentos por conta, retenções na fonte, taxas de segurança social com dois conceitos, empregador e trabalhador, que na verdade são pagas do mesmo bolso, do empregador, em que este é responsabilizado criminalmente se falha, taxas na conta de electricidade, taxas e impostos sem fim num simples litro de gasolina.

    person holding black android smartphone

    São impostos sobre o consumo, sobre a propriedade, sobre a aquisição de propriedade, sobre ganhos mais-valias, sobre a poupança, sobre o rendimento; nem mesmo o assaltante mais prodigioso se lembraria de tal esquema!

    Em 2022, o Estado português arrecadou 106 mil milhões de euros em receitas, o que representa cerca de 10 mil euros por cidadão português, incluindo idosos e crianças; 40 mil euros numa família de quatro pessoas.

    Se o Estado português não assaltasse subrepticiamente, através de múltiplos conceitos, e apresentasse uma conta única do assalto a cada cidadão no final de cada ano, neste caso 10 mil Euros, seguramente ocorreria uma revolução.

    Mas os portugueses continuam felizes. Felizes por serem vítimas de um assalto sem fim. O escol que os domina e parasita, ri-se, todos os dias, a bandeiras despregadas da condição de escravatura da população. A máquina de extorsão é paga pelas vítimas, e trata-as como se de criminosos se tratassem à mínima falha. Nada, nem ninguém, põe na ordem esta máquina, que executa as suas cobranças mesmo quando os cidadãos impugnam judicialmente as suas decisões.

    O Estado até se julga no direito de regular todos os aspectos da nossa vida. Proíbe-nos de consumir drogas, promovendo o crime organizado, a violência e a miséria de muitos. Apesar de não afectar a liberdade de terceiros, quer decidir os locais onde podemos adquirir e ter os nossos vícios, em nome da nossa saúde.

    red and white no smoking sign

    Há dois anos, este Estado tirano forçava a inoculação de toda a população com substâncias experimentais, desenvolvidas em menos de um ano. Mais uma vez, tudo em nome da nossa saúde. O Estado “só quer o nosso bem”, mesmo quando fecharam os hospitais durante a falsa pandemia, era tudo para “salvar vidas”!

    Apesar de pagos com o saque à população, uma panóplia de serviços é anunciada como “gratuita”, seja a saúde ou a educação, adoptando quase sempre modelos soviéticos. Um planeador central, um burocrata ao serviço dos salteadores, contrata todos os funcionários e fornecedores que inevitavelmente termina em corrupção, ladroagem e compadrio. No caso da educação, até serve para o Estado doutrinar os nossos filhos a serem subservientes e pagadoras felizes de tributos.

    O mais surpreendente? Aceitarmos o confisco permanente por via da inflação. Deixámos a um cartel bancário e a um Banco Central que os coordena, em nome do Estado, roubar-nos permanentemente através da emissão contínua de dinheiro por contrapartida de dívida.

    Os bancos, com uma licença bancária, podem livremente emitir dinheiro, enquanto o comum cidadão, caso o faça, vai directamente para os calabouços (artigo 262º): “Quem praticar contrafacção de moeda, com intenção de a pôr em circulação como legítima, é punido com pena de prisão de três a doze anos.” Isto é para nós, para eles, justifica-se tudo em nome do bem comum!

    person holding white and red card

    O mais extraordinário? Quando o Estado obriga os privados a policiar gratuitamente todos os movimentos financeiros dos cidadãos, em nome, vejam só, do combate à lavagem de dinheiro e ao terrorismo. Ou seja, o cidadão tem de se submeter, sem resistência, tal como um gladiador, ao assalto. Por outro lado, qual a legitimidade para combater o terrorismo?

    Não há organização mais terrorista que o Estado, seja na invasão de países (Iraque, Síria, Afeganistão, Líbia…), onde se assassinam milhões e milhões de pessoas em nome da “liberdade” e da “democracia”; seja quando o Estado atropela as nossas liberdades, decretando a nossa prisão domiciliária, em nome do “combate a um vírus invisível”; seja quando o Estado deseja inocular-nos de forma coerciva com uma substância experimental, tal como as experiências do Dr. Josef Mengele, através de um certificado digital; seja quando o Estado legaliza o assassinato de pessoas, através do aborto ou da eutanásia.

    Será que finalmente iremos apercebermo-nos que o Estado é na verdade Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda, uma personagem de Camilo Castelo Branco? Está na hora de acordarmos, pois vivemos numa tirania!

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.