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  • O marido

    O marido

    Demonic males: uma longa série sobre o masculino, com torrentes de detalhes, exactamente como as pessoas daqui fazem quando lhes perguntamos onde ficam os correios – Episódio 4


    Inicialmente, poucos biólogos levavam a sério a ideia da violência inter-específica. Existia tão pouca evidência de animais a matarem outros do seu mesmo grupo que se presumia que assassínios destes só ocorriam quando qualquer coisa corria mal – os jardins zoológicos estavam sobrelotados ou mal equipados, ou havia um acidente resultante de erros humanos. A ideia combinava-se perfeitamente com a visão da ordem natural das coisas dominante à época, segundo a qual o comportamento animal era concebido para o bem de todos. A selecção natural darwinista funcionava como um filtro desenhado com o propósito de eliminar a violência assassina. O assassínio, por suposto inexistente no restante mundo vivo, era um produto evidente das guerras humanas, pelo que havia que aceitar que, num dado momento da sua ascensão ao poder, o Homo violara as regras da Natureza ao tornar-se sapiens[1]. Aos olhos dos cientistas, os primatas assassinos, tal como os assassinos em qualquer outro grupo animal[2], não passavam de uma fantasia dos romancistas até à década de 70.

    Richard Wrangham e Dale Peterson

    DEMONIC MALES: APES AND THE ORIGINS OF HUMAN VIOLENCE (1996)


    Já ficámos a saber que a violência doméstica entre os chimpanzés é de tal ordem que muitas das fêmeas agredidas chegam a morrer em consequência. Resta acrescentar que o chimpanzé também não se ensaia nada de formar um grupo de comandos que caminha pela savana vários dias até chegar à família mais próxima, a cercar discretamente, esperar pela primeira vítima desprevenida, atacar em massa com grande estridência, gerar o caos e o pânico, matar tantos machos quantos possível e violar todas as fêmeas capturáveis, que depois são arrastadas de volta ao grupo guerreiro e entregues para o resto da vida ao marido que eles lhe escolhem.

    É um cenário bastante familiar, ou não é?

    Os primeiros confrontos entre as primeiras tribos humanas não hão de ter sido muito diferentes disto, incluindo a boçalidade com que cada vencedor trata a fêmea a quem conseguir deitar as unhas.

    Há muito quem argumente que nós não somos mais do que um outro grande primata. E, assim sendo, é evidente que vale mesmo a pena continuar a usar a vida nesta cidadezinha em termos de microcosmos demonstrativo de como o demónio se aloja profundamente dentro da essência masculina.


    Devo dizer que, entre os 16 e os 19 anos, enquanto ainda não tinha idade e depois ainda não tinha dinheiro[3], andei muito à boleia pelo País inteiro. Tudo o que era homem sozinho[4], fosse qual fosse o seu veículo, ao fim de um bocado tentava a sua sorte. Eu dizia “NÃO!”, o homem em causa respondia “Está bem, está bem… mas tens que ver, se eu não tentasse era parvo, não achas?”, e a viagem seguia amena, sem mais sobressaltos.

    Até que cheguei ao Alentejo.

    Nos seis meses da minha primeira experiência corria o ano da glória de 1978, e estávamos todos em pleno PREC – o que quer dizer que, para aquelas bandas, estavam todos em plena Reforma Agrária. Num cenário destes, o que é que espera uma revolucionariazinha de dezoito anos? Oh, aquele seria sem dúvida um povo equalitário e solidário, educado e estudado, enfim: não era certamente dos camionistas daquelas estradas que eu esperava ouvir dizer “a gente damos boleia mas nã damos de graça, óvistes?”, ou “isto pra nós tudo o que tá à beira da estrada é gado”, e outros insultos abertamente insultuosos, e visivelmente perigosos. Não era no Alentejo que eu alguma vez imaginaria que ia acabar ao murro com um motociclista de FAMEL e penico que ficou a bradar impropérios do pior com uma roda torta no caminho de terra por onde tinha tentado desviar-se comigo.

    Mas enfim, tinham passado quarenta anos. Estou no Alto Alentejo, e não no Baixo Alentejo[5], como antes. De certeza que as coisas, agora, já não são assim.

    Família de chimpanzés depois de uma caçada, apanhada a empanturrar-se de carne de gazela.
    É verdade que nós, os Pan troglodytes, temos por hábito ser herbívoros. Mas isso não implica que sejamos necessariamente estúpidos. Sempre que matar não seja dispendioso em termos de energia, e não implique correr grandes riscos pessoais, a caça é uma forma perfeita de garantir quantidades substanciais de comida de alto valor proteico e de grande especial riqueza calórica. Nada que aliás vocês não saibam, ó seus humanos voyeurs que andam sempre a espiar-nos.

    Bastava-me esquecer o motociclista da FAMEL e da luta ao murro. Esse piolhoso era de Estremoz, onde eu estava a pedir boleia para Portalegre.

    O primeiro sinal que, mesmo no Alto Alentejo, tudo continuava a ser assim, veio do gajo do mercado. Eu nunca o tinha visto mais gordo, e vi-o tão pouco que se me cruzasse agora com ele na rua nem o reconheceria. Tinha finalmente conseguido transportar uma boa quantidade dos meus livros cá para casa, e andava obcecada com a questão das estantes. Naquele dia procurava uma estante especial, forte que chegasse para suportar os meus grandes álbuns de História da Biologia, e suficientemente bonita para ficar mesmo ao cimo da escada.

    E não é que encontrei isso mesmo? Era uma estante linda, que parecia um coreto todo feito em ferro forjado. Como acontece com frequência no mercado, comprei-a por tuta-e-meia, feliz da vida.

    O pior foi começar a carregá-la dali para casa num dia de calor vingativo. Eu não transportava outros pesos, mas tinha que parar o tempo todo para limpar o suor dos olhos. Ora, vendo-me fazer todo aquele esforço, um senhor simpático que estava ali à conversa com outros senhores veio oferecer-se para carregar a estante por mim.

    Eu fico-lhe muito agradecida, mas a minha casa ainda é ali no Anónimo[6]. Eu posso é segurar à frente se o senhor segurar atrás, já ajuda muito” – “Ora, menina, eu sei muito bem onde fica a sua casa, ponho-lhe lá a estante num instantinho” – “Mas com este calor...”

    O senhor sorriu, pôs a estante de ferro em cima do ombro, e começou a andar rumo à minha casa. À época ainda me enervava um bocado toda a gente saber onde era a minha casa, mas enfim. Também não deve ser todos os dias que uma menina vem viver para o centro histórico de Estremoz. E, de facto, ainda nem eu tinha acabado de pensar tudo isto e já estávamos à porta de casa.

    Pronto, deixe aqui em baixo que isto ainda são dois andares sem elevador, logo à noite, pela fresquinha, eu peço ajuda às minhas amigas e levamos a estante para cima” – “Ah, não, por favor, eu sei que a menina mora no segundo andar, ponho-lhe já lá a estante e pronto.”

    Bem… se por “e pronto” se entender “e assim que a pousar eu estendo os braços e apalpo-a toda, em todos os sítios onde conseguir apalpá-la”, foi de facto isso mesmo que o senhor simpático tentou fazer. O que quer dizer que, acto contínuo, lhe espetei com um bruto pontapé naquele sítio que faz doer muito aos senhores, ao mesmo tempo que proferia, de forma tranquila mas autoritária, “saia já daqui seu[7]”, enfatizado por um empurrão nos olhos[8], o que acto contínuo fez o senhor simpático cair de costas pela escada abaixo.

    Tinhoso.

    As minhas amigas dizem que estas coisas me acontecem, mesmo com uma idade tão adiantada, porque uma pessoa como eu devia ter um marido, e a ausência dessa entidade representativa do poder na vida em sociedade é tão grave que perturba até os homens mais lutadores.

    Ou seja, e como escreveu o grande Mao Zedong, “O poder cresce sempre no cano de uma arma[9].

    (continua)

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Veja-se a história da serpente, de Eva, da maçã, de Adão, da fúria de Deus, da expulsão do Homo sapiens do Jardim do Paraíso, onde o arcanjo Uriel ficou à porta com uma espada flamejante para que nenhum ser humano pudesse alguma vez voltar a entrar. Não é ciência, como toda a gente sabe. Mas há que admitir que é um pressentimento fantástico.

    [2] Bom… e tal como as plantas carnívoras, ou tal como muitos peixes, incluindo as orcas e os tubarões. Para não falar da raivosa e inolvidável Moby Dick, mas lá está – fantasia de romancista.

    [3] Primeiro para tirar a carta (diga-se em abono do meu estoicismo que passei neste exame uma hora depois de ter passado no exame de Cálculo 2, sem dúvida a mais traumatizante de todas as disciplinas do meu curso, e mesmo no fim do Primeiro Ano, quando a pessoa já se arrastava de cansaço e ainda nem tivera direito de pôr um pé na praia); e depois para comprar o Carocha quatro anos mais velho que eu, onde o nosso colega João Rabaça pintou um noitibó na porta do meu lado, e que, além de fazer toda a Lisboa-Vilar de Mouros com seis pessoas lá dentro à data do primeiro festival, também aguentou dois anos de saídas de campo pelo meio de sapais, e carreiros de terra rumo a praias desconhecidas, até ser trocado por outro ligeiramente mais jovem, exactamente da minha idade e igualmente dado a viajar sem fim. As letras da matrícula eram HB, pelo que o baptizámos com o nome controverso de Herri Batasuna.

    [4] A menos que fosse um gajo porreiro, já com um emprego fixo destinado a ajudar a família e pouco mais velho do que eu. Isso era diferente. Conversávamos imenso, falávamos do que é que gostaríamos de fazer quando pudéssemos, ouvíamos cassettes e era costume gostarmos das mesmas músicas, e nenhum de nós acreditava no casamento porque é o género de vida que mata o amor. Fomos uma geração bestial, na qual ainda hoje tenho muito orgulho.

    [5] Em 1978, eu estava a aproveitar o segundo semestre daquela interessante experiência que antecedeu o 12º ano e se chamou “ano propedêutico” para ganhar umas massinhas a trabalhar em Aljustrel com os miúdos da telescola. Até esses miúdos tinham aquele olhar alentejano que varre as mulheres de alto a baixo. Foi nessa altura, a ouvir confidência atrás de confidência das raparigas da minha idade que não tinham ninguém com quem falar, que comecei a ter umas ideias, ainda vagas, sobre um romance policial que veio a chamar-se ADEUS, PRINCESA.

    [6] AHAHAH. Não, não sou minimamente dada a distracções. Nunca direi onde fica a minha casa.

    [7] Parece-me inútil inserir a longa sequência da frase. As escadas são altas, pelo que qualquer vira-lata ainda demora o seu tempo a cair delas abaixo. E eu não me calei enquanto ele não embateu na porta e deu de frosques.

    [8] Isto tem a virtude  de perturbar a visão, fazer chorar, e em consequência assustar imenso os senhores. Quanto mais os anos passam mais nós vamos aprendendo, não é.

    [9] Não, não é nenhuma metáfora de gosto duvidoso. É uma verdadeira ideia de como viver correctamente dentro da colmeia. Resta-nos esperar que o tempo se despache a transformá-la num arquetípico tigre de papel.

  • António Costa e o momento Luísa Brandão

    António Costa e o momento Luísa Brandão


    António Costa voltou a mostrar nas comemorações do 10 de Junho como é que se consegue atravessar a turbulência dos casos da TAP, escândalos de ministros desde os tempos do Cabrita, uma pandemia, uma guerra, pobreza crescente, inflação descontrolada, taxas de juro altíssimas e famílias desesperadas e, ainda assim, manter o cargo de primeiro-ministro durante sete anos.

    Este foi o homem que chegou à liderança do PS depois de António José Seguro atravessar sozinho o deserto e, em eleições nacionais, o que formou Governo sem ser o mais votado (felizmente, acrescento eu aqui).

    Portanto, meus amigos: António Costa é hábil, político de corpo e alma (para o bem e para o mal) e pensa as jogadas uma semana antes dos oponentes.

    Naquelas tristes comemorações do Dia de Portugal destacam-se sempre três coisas: discursos aborrecidos com recados que não servem para nada, a quantidade de latas velhas que a cada ano vai desaparecendo do desfile (positivo) e o barómetro de popularidade aos políticos em funções.

    Marcelo, o habitual rei do “não chove nem molha” recolheu o apoio popular, Galamba foi o alvo-mor dos apupos e não há quem perceba como é que este homem ainda é ministro.  Costa andou no limbo, teve que suar pelo voto e… safou-se.

    Fez questão de andar a pé com a mulher no meio dos professores descontentes e enfrentou-os. Certamente ia preparado para isso, mas a paciência com que falava e era interrompido (ou insultado) sem perder a calma, mostra que nada lhe acontece por acaso.

    Deixou os jornalistas apanharem o teor das conversas com alguns professores que o apertaram e tinha as medidas do descongelamento das carreiras na ponta da língua. Costa é um rapaz que se prepara.

    Um grupo mais restrito de professores fez-lhe o favor de o insultar com cartazes de muito mau gosto e índole racista. Meus amigos: numa luta onde a razão está toda do lado dos professores, dar tiros de pólvora seca com uns cartazes que até ao Chega envergonhariam (ou talvez não), é fazer do Governo um alvo de simpatia popular. Com este tipo de pensamento tão limitado e uma visão tão reduzida da realidade, espero que nenhum daqueles professores dê aulas de história. Seria uma verdadeira catástrofe.

    A Fenprof afastou-se deste grupo de professores e traçou a linha da decência. E fez bem. Na luta pelos direitos laborais, ou em qualquer luta, não se usam argumentos racistas. Se o fizermos a causa está perdida antes sequer de começar. 

    Até que chegou o momento Luísa Brandão. Uma professora que fez 120 km para se meter na fila das selfies.

    Chegada a sua vez, disse que não queria fotografias mas sim ser ouvida. Falou das suas preocupações e de tudo o que ia para lá dos salários, nomeadamente a vertente pedagógica e a falta de condições em que os professores trabalham.

    Costa ouviu, debateu, argumentou e sacou o golpe de génio: prometeu, em frente a um batalhão de jornalistas, que lhe ligaria para discutir aqueles temas e ainda lhe pediu o número de telefone, escrito num papel para que em redor ninguém ficasse com ele. É o tocar no chão e meter-se ao nível dos problemas de cada um de nós. É o ganhar a simpatia entre quem o insulta. Saiu entre sorrisos e boa disposição.

    No dia seguinte poucos falavam do “momento Galamba” do discurso do presidente da República (quando disse que era preciso cortar alguns galhos estragados) e muitos contavam a história de Luísa, a professora da Póvoa de Lanhoso, que saíra de casa com a convicção de que chegaria à fala com o primeiro-ministro. 

    Em princípio, ninguém se lembrará de confirmar, daqui a umas semanas, se Costa efectivamente lhe ligou mas, naquele dia, o ódio ao Governo caiu em Galamba, a indiferença em Marcelo e Costa, uma vez mais, passou pelos pingos e saiu em ombros.

    Anselmo Crespo dizia na CNN que por muito mau que seja o Governo, as pessoas olham em redor e pensam nas alternativas. Ventura e Montenegro. Montenegro e Ventura. É pouco, muito pouco. Costa mete-os no bolso com duas ou três Luísas.

    A direita ainda se arrisca a perder as eleições mais fáceis da história.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O himalaia da estupidez

    O himalaia da estupidez


    A covid-19, doença chegada de um mercado chinês sob transmissor ainda pouco claro, apesar de se terem massacrado milhões de visons, e acusado pangolins e morcegos, acabou por decreto.

    Já não há doença! Ontem havia, mas agora não!

    Destruídos milhões de negócios e empresas, desequilibrado o padrão mundial de comércio e chegado à mortalidade cataclísmica de 4,1 milhões de pessoas em três anos de desgraça. Os valores são crus e frios, não têm família, não gozam de emoções, e por isso, em 2019 só de doença cardiovascular morreram 9 milhões de pessoas no Mundo, mais do dobro de toda a crise covid-19. Estes números crescem a cada ano, e por isso, nos anos sob a ditadura pandémica, morreram 21 milhões de pessoas de doenças cardiovasculares e Doença Pulmonar Obstrutiva. Muitos milhões morreram de cancro e vários milhões de fome e outras infecções.

    woman peeping at window

    O que aprendemos da covid-19? Primeiro, que matava muitos idosos, e sobretudo aqueles que frequentavam residências, lares e cuidados continuados. Os idosos nas suas residências, autónomos, em seus lugares ficaram para contar a história do tempo em que ninguém os visitava, em que os plastificaram, em que lhes falavam com acrílicos de permeio.

    Os lares, os lugares onde a concentração de idosos era maior, tiveram grandes dificuldades em conter o vírus. Nem as medidas mais fascistas, o desrespeito constitucional do direito à liberdade, a presença de escafandros, as desinfecções de mãos, pés e boca, contiveram o SARS-CoV-2. 

    Então, países como a Suécia, a Dinamarca, introduziram uma discussão sobre os lares, as medidas de envelhecimento saudável, a opção autónoma, independente, o reforço do pensamento de que a nossa casa é um castelo defensivo.

    a blurry photo of a man walking down a street

    Os idosos amontoados são uma bênção das epidemias, são uma selva seca onde nasce a chama. A opção pode ser investir nos domicílios, subsidiar a colocação de polibans, a colocação de suportes de mobilidade, a educação e formação para exercício, o apoio aos familiares que cuidam.

    Portugal foi numa via diferente. Portugal, através das suas cabeças extraordinárias, vai lançar mais cinco mil camas de cuidados continuados. Portugal vai ajudar a concentração, para preparar o cenário da próxima gripe, da próxima legionela, do SARS-CoV-3.

    Por vezes, vou ao espelho e digo dez vezes que sou eu que não entendo, sou eu que sou estúpido, sou eu que ignoro os factos.

    Depois, vejo os jornais, pesquiso e encontro números que demonstram como esta solução tem sido uma tragédia e uma indignidade. São imperdoáveis os dois anos de cárcere a que se votaram os idosos. O resultado foi que neles se deram as maiores taxas de mortalidade da covid-19 – aqui e noutros países.

    Envelhecer é uma programação, tem uma logística própria, tem uma previsibilidade – não podes envelhecer e ficar sem acesso à tua casa. Não podes deixar-te num prédio sem elevador até à perda da locomoção.

    two men playing chess

    A nossa existência pode ser pensada com antecedência e o nosso envelhecimento deve ser equacionado e preparado. Claro que há instituições pensadas com sofisticação, com elevação, onde se encontram momentos muito agradáveis, actividades importantes para o bem-estar e a manutenção de tarefas.

    Claro que há famílias limitadas nas opções, porque a vida é um tractor sem sentimentos, que nos lavra as vontades e desejos. Estúpido mesmo é optar por mais este serviço político de distribuir umas camas de cuidados continuados que vão ter custos de manutenção a ultrapassar os mil milhões. O investimento nos votos continua até que uma bancarrota regresse.  

    Diogo Cabrita é médico


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Decreto: é racismo caricaturar lábios de António Costa. Promulgue-se!

    Decreto: é racismo caricaturar lábios de António Costa. Promulgue-se!


    O Polígrafo – essa entidade obscura financiada pelo Facebook para combater a desinformação e censurar quem foge da narrativa – faz hoje, sob a  pena do jornalista Gustavo Sampaio, uma das peças mais enviesadas do wokismo de que já assisti, para gáudio dos bons costumes. A partir de agora está decretado: caricaturar os lábios do Primeiro-Ministro é racismo. Daqui a nada, caricaturar só. Falar mal dele, também. Promulgue-se!

    Para vitimizar o primeiro-ministro, fazendo eco do guru Luís Paixão Martins, de um suposto jornalista que faz serviços no Partido Socialista, e de uma directora de uma revista que adora parcerias com empresas estatais, que por sua vez terá aproveitado as palavras de António Costa a chamar “racista” a um dos manifestantes no passeio à Régua.

    Escreveu Gustavo Sampaio que “sob uma caricatura do rosto de António Costa com nariz de porco, lápis espetados nos olhos e lábios sobredimensionados – ao estilo das personagens de “Tintim no Congo”, álbum de banda desenhada de Hergé publicado em 1931, notório estereótipo racista que era comum nos desenhos de pessoas africanas nessa época –, o primeiro-ministro enfrentou ontem um grupo de professores em protesto,”, para depois concluir ser “Verdadeira” a auto-pergunta: “Cartazes com caricatura racista de António Costa têm sido utilizados em manifestações de professores desde há meses?

    A caricatura – como forma de humor e sarcasmo, mesmo como crítica política – é assumidamente exagerada, jamais pode ser vista em sentido literal. Pode, no limite, uma caricatura ser de mau gosto, mesmo feia, falhar o alvo, mas jamais a expressão exagerada de uma característica física se deve classificar como racista. Enfim, tal como uma caricatura com lápis espetados nos olhos, não deve ser vista à letra. De contrário, comportamo-nos como os extremistas religiosos.

    Mas aquilo que verdadeiramente se mostra surpreendente nesta tentativa de vitimização de António Costa – e na postura de um fact-checking enviesado – é a intencional falta de memória.

    Fui rever a memória, pesquisando sobre caricaturas de António Costa, para saber como antes dos (agora racistas) professores lhe faziam os lábios, incluindo ao seu boneco no programa humorístico Contra-Informação.

    Enfim, surpresa! Ó surpresa! Todas as caricaturas, sem excepção, o retratam com lábios exagerados. Eram preconceitos racistas e ninguém dizia nada? Foi preciso Luís Paixão Martins, Filipe Santos Costa, Mafalda Anjos e Gustavo ‘Polígrafo” Sampaio descobrirem racismo em lábios exagerados, tal como fazia esse malvado do Hergé nas aventuras do Tintim, não é?

    Deixo aqui uma galeria “sacadas” da Internet, uma parte das quais publicada em órgãos de comunicação social. Escolhi as 20 primeiras que me apareceram.

    Estas não eram racistas, portanto. Não, não eram. Só agora aquela que apareceu na Régua e em outras manifestações de professores são racistas, porque, enfim, começam a irritar o Primeiro-Ministro confrontando-o com erros de governação. Em que Mundo sisudo vivemos agora em que se pode desarmar um manifestante munido de uma caricatura chamando-lhe racista? E o Polígrafo foi criado mesmo para isto, não foi?

  • Duas canelas para três canídeos, ou a história da perseguição ao suposto pior jornalista português

    Duas canelas para três canídeos, ou a história da perseguição ao suposto pior jornalista português


    Se o Jornalismo português fosse Roma, estaria agora a arder por mor de uma cáfila de Neros. Cáfila no sentido de caravana de mercadores; não de camelos, embora haja muitos por aí, mas sobre os quais não convém os chamar pelos nomes que mereceriam, para evitar difamações, porque são gente que, embora sem escrúpulos comete as maiores manigâncias, se acomete em público dos maiores do pundonores.

    A Roma do Jornalismo arde pelas conivências políticas, pelos fretes empresarias, pelas relações promíscuas, por escribas de conteúdos comerciais vendendo artigos noticiosos, por consultores sem carteira a passarem-se por jornalistas, por entrevistas compradas (e as que não são, parecem, ou legitimamente ficam sob suspeita), por uma liberdade de imprensa cada vez mais ameaçada com as redes sociais a determinarem o que é lícito ou não escrever e ver.

    E, enquanto a Roma do Jornalismo arde, que fazem as três entidades com um teórico papel regulador e moralizadora? Assistem à fogueira, tocando harpa? Não: a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) e o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas (CD-SJ) jamais poderiam estar quietos enquanto a Roma do Jornalismo arde.

    choir in room with turned on lights

    Estas excelsas defensoras do rigor, isenção e independência da Imprensa estão muto activas.

    Mas elas não estás atrás de entrevistas pagas na rádio a ministros por ex-jornalistas que se assumem como jornalistas, apesar de deterem uma empresa de assessoria política. Ou também a presidentes de Câmara.

    Elas não estão a investigar os jornais que criam secções editoriais dedicadas ao Ambiente mas onde se pode comprar notícias como quem compra roupa num pronto-a-vestir.

    Elas não questionam empresas de comunicação social que vendem publicidade travestida de notícias.

    Elas não incomodam empresas de comunicação social que angariam parcerias a troco de dineiro para prémios mas onde se contratualiza com o “parceiro” a realização de entrevistas, feitas até pela directora da revista dessa empresa, e de artigos de opinião.

    Elas não chateiam jornalistas que se vendem no LinkedIn como relações públicas e consultores de marketing nem jornalistas-escribas-de-conteúdos que tanto escrevem notícias para jornais como peças de marketing para empresas privadas numa completa promiscuidade.

    two black and white dogs near link fence

    Elas não questiona, sequer jornalistas, sobretudo se forem simpáticos, por assinarem contratos com o Governo, mantendo à mesma a carteira profissional.

    Elas não vão saber dos compromissos assumidos por directores editoriais e jornalistas de cara laroca quando estes se pavoneiam em moderações e apresentação de eventos de cunho comercial, que servem ademais para criar lobby político e institucional.

    Eles não aceleram processos que ponham em causa a rentabilidade de empresas de comunicação social que vão acumulando contratos promíscuos às dezenas, uns atrás dos outros. E isto com entidades públicas, porque com empresas privadas não há rastro dos contratos.

    Não, eles estão agora preocupados, num projecto crucial, e por isso uniram esforços: identificaram e querem castigar o pior jornalista português.

    E quem ele será?

    Ora: EU.

    Assim mesmo. Porque só pode mesmo ser o pior jornalismo português aquele jornalista que consegue, em simultâneo, e de uma só assentada, apanhar com três processos, um por cada uma destas três entidades.

    Em minha defesa pública, em vez de zurzir, mais uma vez, nos métodos destas três entidades, através de um artigo de opinião munido da carteira profissional de jornalistas – porque, daqui a nada, até a opinião merece censura, e em vez de três, tenho seis processo –, opto então por vestir a pele de escritor, no pressuposto de não constar, ainda, que ande a Sociedade Portuguesa de Autores (da qual sou sócio) a inquirir estilos.

    Além disso, a um escritor – tal como a um morto, segundo Florbela Espanca – nada se recusa, podendo assim usufruir, aqui, de uma outra aura, de uma persona, mesmo se catalogada de doido, para desta sorte poder chamar os bois pelos nomes a quem me quer dar marradas.

    No caso, sói melhor dizer-se canídeos a quererem morder canelas.

    Contemos então assim a história da perseguição às minhas canelas por três esfaimados canídeos.

    black short coated dog in blue and brown wooden box

    Num dos cantos temos então o mastim da 24 de Julho, canídeo com nobres funções constitucionais de guardião da Liberdade de Imprensa, mas que, como é obediente e bom de ouvido (ouve bem as vozes do dono), incomoda quem incomoda os donos e compadres, e vai daí pode morder até quem não deve, e quando morde sabe esconder quem o manda morder. O mastim da 24 de Julho não protege a Imprensa; protege sim os denunciantes que se queixam de jornalistas incómodos. Não dá a cara nem nome ao denunciantes, podendo assim aqueles fazer denúncias caluniosas à vontade do freguês, mesmo se as notícias são rigorosas e indicam todos os passos para a obtenção da informação.

    Aliás, mesmo quando dão caras às denúncias, pouco importa: veja-se que já se viu uma certa entidade reguladora da comunicação social aprovar actos de censura a um jornalista, sob a forma de deliberações, por notícias que resultaram na abertura de processos pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde. Noutras notícias, o jornalismo de investigação ganha prémios; aqui censuras.

    Portanto, eis-nos agora num jogo de adivinhação, mas sem prémio final. Mesmo se, por desfastio, o mastim da 24 de Julho não queira, de quando em vez, morder mesmo a canela, e até arquive a queixa, ao esconder quem lhe dá ordens para morder canelas, está a convidá-lo ad nauseam a repetir queixas. E assim se bloqueia o trabalho jornalístico independente.

    Agora, falemos no mastim dos Restauradores, com cadeado em certo palácio com a nominata correspondente à parte mais extrema da nascente, diz-se a jusante, e que há muito afiam dentipontiagudos, como escreveria Joyce. Ali, amealham-se emolumentos por carteiras (que já são apenas cartões), mandam-se umas bocas e bitates sobre bons princípios deontológicos e independências (ou pendências sempre adiadas), mas na hora da verdade, quando surgem denúncias concretas sobre graúdos e compinchas, moita carrasco, ou, na melhor das hipótese, o rato caga uma caganita, e depois ainda se apressa a enterrá-la. Ali, está-se para servir o corporativismo, isto é, os compinchas, e portanto mate-se o mensageiro que ande a espalhar mensagens comprometedoras.

    Mas, ali, os mastins de mérito. Tão de mérito que se pode imaginar a fazerem alas, pela escadaria do palácio, de sorte a recepcionarem uma queixa das mãos de Sua Excelência o Chefe de Estado-Maior da Armada Almirante Henrique Eduardo Passaláqua de Gouveia e Melo, antigo Director de Faróis, alcandorado a herói por mor de anunciar que “vencemos o vírus” em Setembro de 2021 (apesar de todas as restrições só terem terminado em Abril de 2023).

    Mais uma vez, o mastim dos Restauradores quer “premiar” um jornalista com um processo disciplinar, uma repreensão escrita como estratégia para lhe retirar a carteira. Pouco importa se, na base da notícia, estão documentos administrativos que só foram disponibilizados pela Ordem dos Médicos após sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa.

    Pouco se lhes importa se a notícia se baseia em despachos governamentais e normas sanitárias, acrescido de conhecimentos contabilísticos. Pouco importa se o putativo candidato a Belém, e o ai-Jesus de muita imprensa, meteu efectivamente a pata na poça. Há que abrir sim, um processo disciplinar a toda a força, e seguir a linha de actuação do mastim da 24 de Julho que há uns meses já fez um frete, para satisfazer uma denúncia, hélas, anónima, metendo-se até em interpretações contabilísticas absurdas. Nisto, vale tudo.

    Na raiva de se afiambrar à canela, o mastim dos Restauradores nem reparou, no meio da sua sapiência de mérito que abriu processo disciplinar por via do porta-voz da Armada, mesmo sem procuração nem mandato de Sua Excelência o Almirante (que incutiu tanto pavor a pais, que correram para vacinar os filhos saudáveis que, a bem dizer, para a doença em causa, tinham um risco de morte menor do que o da picada de um mosquito).

    Ah, essas formalidades!, para que servem elas para o mastim dos Restauradores, todos “de mérito”. Se Sua Excelência o Chefe de Estado-Maior da Armada pode usar recursos técnicos e humanos da Armada para tratar de assuntos de casa, também o mastim dos Restauradores pode bem borrifar-se para detalhes legais. Preciso mesmo é repreender publicamente o pior jornalista de Portugal, manchar-lhe a credibilidade, para assim se escafederem as denúncias que ousa fazer.

    man sitting on chair holding newspaper on fire

    Aliás, neste momento, o mastim dos Restauradores até capaz, sagaz, seria de aceitar abrir um processo contra um jornalista se Sua Excelência o Almirante apanhasse um resfriado.

    E, por fim, temos no terceiro extremo deste triângulo os mastins dos Duques de Bragança, da rua, não de D. Duarte Nuno, que também quiseram participar da festa, recebendo de braços abertos uma queixa para censurar o pior jornalista português.

    Já é a segunda vez. A primeira foi feita com tamanha desavergonha, em Janeiro do ano passado, por um editor da CNN Portugal de membro do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas. Na altura, o mastim dos Duques de Bragança, meteu o rabinho entre as pernas, e o senhor Caetano deverá já estar a tratar da sua vidinha noutra perrera.

    Agora, regressaram ao ataque. Por queixa de quem?

    Ora… do mastim-mor dos Restauradores. Parece mentira, mas não é.

    Aliás, se formos a ver, os três mastins articulam-se muito bem. Por exemplo, os mastins da 24 de Julho e dos Restauradores já me quiseram morder as canelas por duas vezes com estratégia similar. O denunciante vai primeiro bater à porta da 24 de Julho, fazem-lhe o frete, e depois corre a seguir para a porta dos Restauradores para nova censura. Nas duas, as notícias resultaram em investigação pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde. Em ambas, a censura dos mastins veio sem se preocuparem em saber o resultado dessas investigações.

    Desta vez, o mastim-mor dos Restauradores ficou chateado por lhe porem em causa o mérito, que objectivamente não tem, e vai daí acha que dizerem e provarem que não o tem é um crime de lesa-majestade. O mastim-mor dos Restauradores até poderia abrir um processo disciplinar para morder mesmo as canelas do malvado jornalista, mas, chatice, teria de lhe abrir um processo segundo mandam as regras do Código do Procedimento Administrativo, e o jornalista podia defender-se arrolar testemunhas, solicitar audiência prévia e recorrer ao tribunal.

    Nanja. Isso dava muito trabalho e o desfecho poderia ser desfavorável.

    Daí preferiu o mastim-mor dos Restauradores preferiu passar a tarefa aos colegas mastins dos Duques de Bragança, porque ali a única regra é o livre arbítrio, e o juiz é o acusador, que é o receptor da queixa. Assim sendo, os mastins dos Duques de Bragança abrem processos por e-mail, sem se identificarem nem identificar o relator, limitam os meios de defesa e impõem resposta a quesitos feitos ao melhor estilo de um Torquemada, onde cada pergunta contém a acusação e a sentença. É um jogo viciado; uma perda de tempo por evidente mancomunação dos dois mastins, do queixoso e do inquiridor.

    Tudo isto se tem vindo a passar nas últimas semanas enquanto o PÁGINA UM, além de denunciar as promiscuidades de jornalistas e imprensa, mostra ser o único órgão de comunicação social com uma estratégia consistente de luta em prol da transparência e contra o obscurantismo da Administração Pública, buscando documentos escondidos.

    O PÁGINA UM tem, se a memória não me atraiçoa, 18 processos de intimação para a obtenção de documentos administrativos nos tribunais. Tivemos a coragem de contrariar os caprichos do Conselho Superior da Magistratura, do Infarmed, do Ministério da Saúde, da Ordem dos Médicos, da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde, do Instituto Superior Técnico, da própria Entidade Reguladora para a Comunicação Social, da Parque Escolar e do próprio Governo.

    Ainda há dias o PÁGINA UM teve uma vitória histórica retumbante, conseguindo, depois de uma sentença e um acórdão já favoráveis, que o Supremo Tribunal lhe concedesse o direito de acesso à mais importante base de dados que permitirá uma verdadeira avaliação independente ao desempenho dos hospitais do Serviço Nacional de Saúde e aos indicadores de saúde da população portuguesa. Nem uma linha a imprensa dita mainstream dedicou ao assunto, continuando a preferir veicular a narrativa do Governo de que não há informação.

    Fizemos tudo isso – as intimações nos tribunais administrativos – não por desejo de conflito, mas porque nos últimos anos, enquanto nos aproximamos do meio centenário do 25 de Abril, verificámos que o obscurantismo, a manipulação e a mentira grassavam e desgraçavam a nossa democracia. E era confrangedor assistir à passividade da imprensa, da velha imprensa.

    Passividade, não – conivência. Nos últimos anos, passámos a ter uma imprensa acrítica, seguidista de narrativas, que nada questionou, e que, pelo contrário, rapidamente estende a mão ao Estado e às empresas, vendendo-se, enquanto perdiam alegremente a qualidade e a independência, os únicos atributos legítimos, os únicos activos legítimos, a serem vendidos… aos leitores.

    Mas que interessa isso, não é? Para os mastins é, sim, fundamental morder as canelas de quem lhes coloca um peso nas consciências. E mostra-se mais fácil e cómodo eleger quem os denuncia como o pior crápula do jornalismo português.

    Será que pensam mesmo que, descredibilizando-me, os seus deméritos se tornam virtudes?

    Enfim, há algo de irónico nestes processos.  Enquanto o PÁGINA UM, um projecto jornalístico independente e disruptivo que deveria ser acarinhado entre os pares (estou à espera do convite da organização do 5º Congresso dos Jornalista para falar sobre os 18 processos de intimação nos tribunais para acesso a documentos administrativos, por exemplo), se destaca, com os parcos meios que possui, na luta contra o obscurantismo do Estado, revelando escândalos e questionando as relações perigosas entre poder e imprensa, temos as instituições responsáveis pela regulação e ética no jornalismo a morder-lhes as canelas desde o nascimento.

    Em vez de investigar a fundo as denúncias apresentadas por mim, preferem direccionar os seus esforços para me silenciar por mensageiro incómodo, colocando a minha cabeça a prémio.

    Desde que li o Elogio da Loucura, escrito por Erasmo de Roterdão em 1509, fixei esta passagem: “Procede imprudentemente aquele que não se acomoda às coisas presentes, que não obedece aos costumes, que esquece aquela lei dos banquetes: ‘Bebe ou retira-te’; enfim, que quer que a farsa não seja farsa. Pelo contrário, serás verdadeiramente prudente, vendo que és mortal, não querendo saber mais do que os outros, convivendo ou errando de boa vontade com a universidade dos homens. Dirão que isto é tolice. Não o nego, mas concordai que é essa a maneira de agir na farsa da vida.”

    Bem sei que os mastins da 24 de Julho, dos Restauradores e dos Duques de Bragança seguem a lei do banquete, mas eu recuso-me a agir segundo eles nesta farsa da vida.

    clear wine glasses on table

    Entretanto, contando a história de três canídeos que se esforçam por morder-me as duas canelas, peço a opinião ao ChatGPT. Juro que me respondeu, em bom português do Brasil: “É quase como se estivéssemos presenciando um espetáculo de circo, onde os canídeos saltitam ao redor do jornalista, mordiscando suas canelas, enquanto o público assiste perplexo a essa encenação bizarra. Mas vamos ser honestos, essa não é uma comédia divertida; é uma triste realidade que expõe a fragilidade da liberdade de imprensa em nosso país.”

    E depois, pergunto-lhe se acha o uso das metáforas das canelas e dos canídeos demasiado agressivo. Responde-me: “Em um país onde jornalistas são perseguidos por órgãos reguladores, a liberdade de imprensa está ameaçada. Com ironia e sátira, expomos as contradições e absurdos desse cenário. É hora de defendermos a liberdade de expressão e a verdadeira função do jornalismo: informar, questionar e desafiar o poder. Afinal, só temos duas canelas para enfrentar três canídeos famintos”.

    Afinal, começo a gostar mesmo muito do ChatGPT. E cada vez menos deste país.

  • A maldição das condecorações

    A maldição das condecorações


    Chegou o 10 de Junho e os fornecedores de medalhas e comendas da Presidência da República esfregam as mãos numa demonstração de felicidade.

    Este é o Natal dos empresários do ramo.

    As encomendas, que foram sempre volumosas, passaram a ser extraordinárias com o Presidente dos afectos e selfies.

    Desde o 25 de Abril, as medalhas distribuídas rondam as vinte mil.

    Eanes, um militar circunspecto, entregou 4.602, Mário Soares, 5.145, Jorge Sampaio 4307 e Cavaco Silva 2.325.

    Espera-se um recorde absoluto do actual Presidente.

    Portugal, como se sabe, está cheio de gente empenhada na luta pela melhoria da vida dos seus conterrâneos, de cientistas brilhantes e com descobertas marcantes, de desportistas aclamados pelo talento reconhecido internacionalmente, de escritores consagrados por obras notáveis, de actores prestigiados por interpretações aplaudidas à exaustão, de músicos ilustres criadores de obras que todo o mundo conhece, de actores procurados por todas as grandes companhias de teatro ou realizadores de cinema.

    Isto para não falar dos inúmeros políticos que nos enchem de orgulho cada vez que se pronunciam no Parlamento, nos diversos Ministérios ou na Presidência da República.

    Quem não se curvou, respeitosamente, depois de ouvir algumas intervenções de Parlamentares, na Casa da Democracia?

    Quem não levantou, alguma vez, a cabeça e olhou, de modo sobranceiro, para um pobre estrangeiro com quem se tenha cruzado, depois de escutar, enlevado, as palavras de um qualquer Ministro, a explicar, de modo simples e pragmático, as medidas tomadas para resolver o mais complicado dos problemas?

    Quem não aguardou, com impaciência, que o Presidente Marcelo se dirigisse à Nação, quer num discurso patriótico quer numa ida a comprar gelados, certo de que as suas palavas dissipariam as mais preocupantes dúvidas e acalmariam os mais tenebrosos receios?

    Quem não aplaudiu, veementemente, o regresso, ainda que fugaz, de Cavaco, que nos permitiu concluir que, por mal que pensemos estar, estamos muito melhor do que no tempo áureo do homem de Boliqueime?

    Toda esta gente é merecedora de uma medalha no peito.

    É tudo gente que o Povo quer ver justamente agraciado com um penduricalho ou um colar.

    A ânsia com que a população aguarda os nomes dos seleccionados este ano é enorme.

    Mais, o Povo estaria receptivo a outros nomes e a outras profissões.

    Desde logo, por exemplo, os comentadores televisivos que nos esclarecem as dúvidas, nos indicam o caminho, nos sugerem interpretações.

    Começando por Marques Mendes, um crítico à sua dimensão, que fala convictamente sobre qualquer tema.

    Há, pois, uma quantidade enorme de portugueses que merecem e esperam, ansiosamente, por uma condecoração.

    Pessoalmente os nomes interessam-me por uma única razão:

    Vendo a lista dos condecorados eu sei quem serão os arguidos em processos judiciais nos próximos meses.

    É da praxe.

    O Presidente condecora, o Ministério Público acusa.

    Não sei se por causa da conhecida inveja dos portugueses, a verdade é que, nos últimos anos, condecorado mediático torna-se, em pouco tempo, arguido.

    Muitas vezes condenado.

    Recordo alguns nomes com o cuidado de os colocar por ordem alfabética porque sei que as suas acusações são de gravidades muitíssimo diferentes e acreditando, até, que alguns acabarão por ser considerados inocentes:

    António Mexia, Armando Vara, Carlos Cruz, Cristiano Ronaldo, Dias Loureiro, Diogo Gaspar, Duarte Lima, Helder Bataglia, Henrique Granadeiro, Jardim Gonçalves, João Pereira Coutinho, Joe Berardo, Jorge Ritto, José Mourinho, José Sócrates, Lino Maia, Macário Correia, Manuel Maria Carrilho, Mesquita Machado, Narciso Miranda, Ricardo Salgado, Rovisco Duarte, Valentim Loureiro e Zeinal Bava.

    Tenho a certeza de que faltarão alguns, mas esta lista dá para entender que há uma maldição nas condecorações.

    Tenho a certeza de que não passará pela cabeça de qualquer um dos responsáveis pela distribuição destas distinções, depois de ler os meus textos, ousar pensar, sequer, em entregar-me a mais insignificante delas.

    O meu mais sincero bem-haja.

    E faço votos de que o Presidente o condecore por essa inteligente decisão.

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Crise nos certificados de aforro: mais uma peça de teatro?

    Crise nos certificados de aforro: mais uma peça de teatro?


    Tivemos mais uma polémica do regime. Desta vez, foi o cancelamento da série E dos Certificados de Aforro, a tal que proporcionava uma taxa bruta de 3,5%, e que foi substituída pela série F com uma taxa de “apenas” 2,5%, que, contas feitas, representa cerca de 30% inferior à primeira.

    Isto foi o suficiente para se levantar um “coro de protestos”, insinuando-se a velha questão de que os Governos estão “a mando” da banca; esta, ao sentir os depósitos bancários dos seus clientes a fugir, “pressionou” o governo e este, de imediato, “baixou as calças” e suspendeu a “fantástica” série E dos 3,5%.

    pink pig coin bank on brown wooden table

    Em face deste insidioso cancelamento, a “extrema-direita” decidiu chamar ao Parlamento o Ministro das Finanças; de imediato, para não ficar atrás, a “extrema-esquerda” solicitou uma audiência de urgência ao mesmo ministro das finanças, o Dr. Medina. Para completar o ramalhete, o segundo principal partido socialista do regime não abandonou a arenga e soltou a acusação de que o Governo estava a “acabar com a classe média com mudança nos certificados”.  

    Como o leitor pode imaginar, isto não é mais que uma gigantesca encenação das muitas há muito praticadas pelo regime, semelhante àquela ida a um bar ao lado da Assembleia da República, onde depois de uma sessão parlamentar acalorada, um deputado da nação, depois de uma palmada nas costas, dirige-se ao outro: – “Desculpa lá, mas hoje, no calor da discussão, excedi-me, não merecias!”; – ao que o outro responde: – “Não há problema, somos todos amigos, afinal estamos todos no mesmo barco, ambos vivemos à custa do desgraçado povo português”.

    Há décadas que os aforradores portugueses estão a ser assaltados, mas apenas extemporaneamente alguém se indigna. Basta-nos observar o que se passa nos últimos 11 anos. Comecemos com a inflação em Portugal, que é quase sempre superior à taxa a que os bancos (taxa MROs) se financiavam junto do Banco Central Europeu (BCE).

    Evolução da inflação (%) em Portugal e das taxas (%) de financiamento ao sistema bancário praticadas pelo Banco Central Europeu (BCE) entre Abril de 2011 e Junho de 2023. Nota: MROs são as taxas praticadas pelo BCE para as operações principais de refinanciamento. Fonte: Banco de Portugal. Análise do autor.

    Durante 76 meses, entre Março de 2016 e Junho de 2022, os bancos puderam obter empréstimos junto do BCE à caríssima taxa de 0%, repito 0%, autêntico dinheiro grátis. Desde 2011, apenas durante um período de 10 meses, as taxas de juro praticadas pelo BCE foram superiores à inflação, ou seja, praticamente desde a existência do BCE, os bancos puderam solicitar empréstimos ao BCE a taxas de juro reais negativas!

    Sendo assim, por que razão iriam pagar fosse o que fosse aos desgraçados dos aforradores. O leitor ainda não reparou que nos últimos anos os clientes tornaram-se um verdadeiro empecilho para os bancos?

    Vamos lá à questão relevante: o leitor aceitava emprestar as suas poupanças a uma taxa que nem cobre a inflação? A resposta parece-me óbvia.

    Vejamos o caso de 2022, o leitor tinha uma poupança de 100 Euros e desejava comprar um brinquedo para o seu filho que custava igualmente 100 Euros. Caso desejasse deferir essa compra para o ano seguinte e depositasse a sua poupança num banco, com sorte, iria possuir no final do ano 101 Euros aproximadamente; no entanto, o brinquedo já custaria 108 Euros! E se depositasse no fantástico certificado de aforro da série E, entretanto cancelada, teria 103,5 Euros, mesmo assim insuficiente para pagar os 108 Euros!

    euro banknote collection on wooden surface

    O assalto aos aforradores ocorre desde o aparecimento do BCE, mas ninguém quer discutir o elefante na sala. Qual a diferença entre o leitor e o BCE? O leitor tem de trabalhar para obter rendimento e deferir consumo para lograr obter uma poupança, enquanto o BCE, com um simples apertar de um botão do computador, faz aparecer o dinheiro – autêntica magia! – em nome de um estímulo à economia. O leitor se o fizer, o calabouço será o seu destino mais certo, pois não trabalha para o bem comum.

    Para além da repressão financeira, juros que não cobrem a inflação, temos recentemente uma inflação galopante. Os órgãos de propaganda do regime dizem-nos que a culpa é da guerra na Ucrânia ou mesmo da ganância pelo lucro por parte dos executivos das grandes superfícies. Na verdade, Estado, Bancos Centrais e bancos fazem parte do mesmo grupo de salteadores, todos coordenados na verdade. Os partidos apenas servem para distrair as atenções.

    Em 2020, tivemos a putativa pandemia, onde todos íamos morrer e ir à falência. De imediato, apareceu o nosso anjo salvador: com a impressora, iria resgatar-nos de uma quase certa crise financeira!

    person holding white and red card

    Fica sempre a dúvida: se é assim, qual a razão para o Zimbabué e a Venezuela não serem enormes potências económicas, já que imprimir dinheiro é uma arte por aquelas paragens?

    Entre o início de 2020 e Junho de 2022, o balanço do BCE subiu 4 biliões (4 seguido de 12 zeros). Esta massa monetária serviu para comprar toda a dívida emitida pelos vários Estados europeus. Este dinheiro gerou aquela frase que desbaratava: primeiro a saúde, a economia vê-se depois!

    Para onde foi? Para as pessoas ficarem em casa a não trabalhar, para as empresas de análises clínicas, para o pagamento de fornecedores das várias empresas do Estado, através de ajustes directos, para as farmacêuticas – quem não se recorda das 10 doses por cidadão? -, para horas extras dos profissionais de saúde, para os órgãos de propaganda difundirem o terror a toda a hora. Uma festa!

    Evolução do balanço do BCE, em biliões de euros, entre 2011 e Junho de 2023. Fonte: Banco de Portugal. Análise do autor.

    Qual era o fluxo deste dinheiro: o estado realizava um leilão de dívida pública, os bancos compravam e depois vendiam ao BCE, com este a pagar com dinheiro de monopólio – aquele que o leitor tem de obter com o suor do seu trabalho. No final, quando o BCE recebia o pagamento de juros do Estado, devolvia-lhe uma parte a título de dividendos! Estão a ver: todos felizes!

    Foi um préstito de apaniguados em festa! Até tivemos o Presidente do Conselho de administração – agora é mais pomposo chamar-se Chairman – da Bancarroteira Nacional a dizer-nos que era “hora de ligar as rotativas do BCE sem limites!”.

    Enquanto as rotativas do BCE operavam sem limites durante a putativa pandemia, cada Euro do nosso bolso valia cada vez menos, operando-se a maior transferência de riqueza dos pobres e classe média para as castas superiores da sociedade, obviamente, tudo em nome do bem comum.

    Variação (%) do preço de diferentes matérias-primas (contratos futuros nas bolsas norte-americanas) entre 30 de Março de 2020 e 23 de Fevereiro de 2022. Fonte: Yahoo Finance. Análise do autor.

    Entre o final de Março e 23 de Fevereiro de 2022 – atenção, antes do início da Guerra da Ucrânia -, as principais matérias-primas subiram exponencialmente nos mercados internacionais, como o Petróleo e o Gás Natural que subiram 351% e 169% respectivamente; mas parece que só deram conta do fumo expelido pela rotativa depois do início da guerra em nome da “liberdade e da democracia”.

    Enfim, tratou-se de mais uma excelente peça de teatro, em que uma parte do gang simulou a sua indignação com a violência do assalto à população perpetrado pela outra parte. Passado uns dias, a borregada lá irá voltar à sua “vidinha” e encolherá os ombros sempre que as suas poupanças são assaltadas. O culpado, garanto-vos, nunca será identificado!

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O Milhazes é todo um outro campeonato…

    O Milhazes é todo um outro campeonato…


    Nunca percebi o fascínio que temos por conversas vazias de conteúdo em horário nobre. Se for na tasca da minha freguesia no intervalo do Benfica, entre minis, eu não só percebo como até aprecio. Mas, na televisão, todos os dias à hora da sopa, ter de levar com especialistas em banalidades, é coisa que me aborrece.

    Repito esta parte, porque é importante: acho óptima uma boa conversa de café; só que gosto de as ter… no café. Não sei se me faço entender.

    Assim, transformar conversa de café em homília diária é coisa que me faz pensar nos critérios de quem liga a televisão.

    Durante a pandemia recebemos doses reforçadas do Froes, que nos vinha mostrar o catálogo de vacinas que os patrocinadores mandavam.

    Ou então era o Carona, que a meio do processo deixou de ser médico e passou a romancear o sofrimento.

    Eram heróis que choviam em horário nobre. Quem não se lembra dos votos ganhos pelo deputado e médico do PSD, Ricardo Batista Leite, aquando das mortes que não aconteceram no hospital de Cascais. E quando não eram estes artistas, ainda vinha o Antunes que, no meio de umas pausas das medições de montanhas, nos recomendava quantos dias é que devíamos ainda usar máscara ou ficar fechados em casa.

    Lembro-me de ouvir economistas na SIC Notícias a discutirem medidas de Saúde Pública decididas pelo Anders Tegnell na Suécia. O Tegnell, que andava por África quando o Ébola rebentou, era contestado por Marias (e aqui o nome não é ficção) que gritavam por confinamentos.

    E “nós” ouvíamos aquilo, sem contestar, e ainda chamávamos assassino a quem andava pela rua. Se há coisa que a covid-19 me ensinou foi que a estupidez humana é mesmo infinita. Bem sei que hoje já não se encontra uma alma a favor dos confinamentos, mas, na altura, iam todos na conversa de café da Maria. 

    A cada nova miséria, entre os entendidos que, de facto, percebem da poda, aparece sempre uma rock star

    E neste ano e meio de guerra, o galardão tem de ser entregue ao Milhazes. Por vezes até fico com pena do Rogeiro, ao lado de tal personagem. Entendo que nesta temática (a guerra), quase todos os analistas falem na condição de adeptos e que puxem a coisa para a sua cor. Acaba por ser inevitável. Poucos dão opinião de forma isenta e, entre estes, também se contam pelos dedos aqueles que nos fornecem alguma informação útil e relevante.

    Sabemos que o Rogeiro há 30 anos que estuda a matéria e, obviamente, é um entendido do assunto. Justifica as suas posições, mais ou menos apaixonadas, com dados. Dá para o ouvir e, pelo menos, ficar a pensar.

    Mas o Milhazes é todo um outro campeonato.

    Entendo que, no início disto tudo, o homem tenha aparecido pelos estúdios de televisão para traduzir umas coisas de russo e tal. Um espécie de Mourinho que foi fazer uma perninha a Barcelona como tradutor de um inglês, e, quando deu por ela, já estava com o pé na bola. Só que o Mourinho tem talento. Ou teve, pelo menos.

    O Milhazes não. A quantidade de disparates é de tal maneira grande, e a “informação” tão inútil, que não se percebe a quantidade de horas que lhe são dispensadas.

    Como da componente militar, aparentemente, nada percebe, Milhazes dedica-se a fazer de alcoviteira de Zelensky. Fala mal de russos em Portugal, sejam eles professores universitários ou membros de associações de acolhimento.

    Todas as semanas nos aparece ele com grandes revelações de propaganda russa, vídeos fabricados e coisas do género, com a alegria de quem descobriu a pólvora. Como se numa guerra algum dos lados falasse verdade, como se numa guerra a propaganda não fosse, sempre, e em qualquer circunstância, uma das armas. 

    Mostra-nos todos os nazis do lado russo, e transforma aqueles que, de suástica no braço, combatem do outro lado, em defensores da liberdade. Em determinados momentos, José Milhazes parece um crítico da imprensa cor-de-rosa, daqueles programas da manhã, em versão russofóbica. Nem o Avante escapa a este justiceiro. No ano passado, criticou os artistas que lá iam, dizendo que estavam a ser cúmplices com um partido que apoiava a invasão da Ucrânia. Este ano, pelo que percebo, voltou a repetir o discurso. Milhazes é, por esta altura, a melhor publicidade que a Festa do Avante pode ter.

    Este discurso bafiento contra quem pede conversas de paz ser putinista ou apoia a invasão, está ao nível do “assassinos” ou “negacionistas” de há pouco tempo para quem era contra a inutilidade dos confinamentos. Hoje somos todos, eu sei.

    E Milhazes repete esta conversa, a toda a hora, entre os disparates que vai dizendo e a ausência de análise que nos vai presenteando. Ainda assim, tal como o Froes nos vendia vacinas, esta rock star da guerra vai vendendo uns livros e percorrendo o país a espalhar a sua sapiência. A história das rock stars repete-se quase sempre, ainda que o motivo do estrelato seja diferente.

    Aqui há uns dias, no meio da cegueira ideológica, Milhazes afirmou que a Rússia era uma ditadura de extrema-esquerda. O disparate passou e aparentemente ninguém deu por ele, vindo da boca de um estalinista arrependido.

    Aliás, é caso de estudo um homem que passa quase quatro décadas numa ditadura, metade do tempo nas mãos de Putin, e só nos estúdios da SIC é que descobriu aquele ódio todo a quem lhe deu de comer e, pelo vistos, continua a dar.

    Quando chegou a casa e começou a receber gratificações do André Ventura, lá percebeu o disparate, e no programa seguinte fez a correcção e pediu desculpa. Mas não conseguiu terminar a frase sem repetir um daqueles bordões mais clássicos deste ano. Olhou para o Rodrigo Guedes de Carvalho e, com aquela cara de quem tinha terminado um tinto menos veludado, disse: “por ser uma ditadura de extrema-direita, ainda é mais esquisito que o PCP a apoie”.

    Estranho, estranho, estranho mesmo é ver como o Milhazes se consegue aguentar no ar tanto tempo com uma encenação tão mal montada. Não via um espectáculo tão pobre e duradouro desde que saí a meio do Cats, numa noite de má memória no Coliseu dos Recreios. 

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • As janelas, que nos hospitais se tornam quadrados

    As janelas, que nos hospitais se tornam quadrados


    A luz azulada, emanada do computador, recorta o perfil gentil daquela mulher contra o meu olhar ensonado.

    Um perfil doce de mãe, cansada, que, cuidando do bebé numa enfermaria, neste quarto piso de hospital, se apoquenta em terminar trabalho, para aquela empresa na segunda-feira não sentir a sua falta.

    Um semi-sorriso, meigo, o olhar, concentrado, o cabelo, amarrado, no topo do fato, de treino, as esquinas, das omoplatas, a revelarem-se, na camisola, e curvada, num ninho, o adormece, num sussurro, baixo.

    Deu-me bolachas, um iogurte, uma maçã, uma t-shirt limpa e o tal sorriso, meigo, de mãe, mãe de toda a gente, tudo, tudo doce.

    Eu, olhem, sabem… Dei-lhe palavras, que tenho muitas, e ela lá ia mordiscando todas, pacientemente; às vezes lá lhe sacava o riso aberto, e sentia-me finalmente a retribuir a atenção silenciosa que ela me dispensava, com elegância.

    Ouvem-se pi, pi, pi, e choros, coisas que caem noutros pisos, tosses, mais choros, o burburinho das máquinas, e cadeiras e mesas, que parecem vaguear sozinhas pelo edifício. Os cadeirões, repousos de mãe, descansando ossos, grasnam loucamente para se abrirem, e cada uma, de nós, hesita em sequer deitá-lo (deita-te) pi, pi, pi.

    A medo passa, mais uma noite, e pergunta-se, a medo, a uma enfermeira de olhar enervado, se temos direito a pequeno almoço.

    – Não! E não o vai deitar agora que ele começa a chorar e depois não me vai ouvir a explicar! (deita-te).

    lighted brown tunnel with black metal pipes

    Já sem medo, perguntamos se temos direito às visitas, para poder aproveitar a avó a chegar, e pudermos assim acorrer, a correr, à casa de banho, numa outra paz de espírito.

    – Não! E só pode o pai e a mãe ou outro acompanhante designado. Na obstetrícia decidiu-se fazer assim, e por isso já sei que ontem era diferente, mas hoje é assim, porque houve uma reunião e a pediatria não vai fazer diferente e tem de compreender que as visitas só vêm desestabilizar o serviço (deita-te).

    Aqui, aprendemos gestos, formas, de deslizar, truques, para imobilizar, um pequenino, mentiras que repetimos, sem cessar, para que acreditem, que vai passar, que a dor é precisa (deita-te).

    Uma mãe montou ninho, naquele quarto, cinco sacas, tamanho jumbo, almofadas, jogos, livros, cartas, comida, comida, comida, roupa (deita-te), e o pai, sem entender tanta daquela coisa (deita-te).

    Mas a mãe monta este ninho, para o seu passarinho, põe a alma no bolso, entra pela porta, para compor as penas, em desalinho, dele (deita-te, deita-te, deita-te).

    Movem-se tristezas, nos corredores, e nem sou digna de observar, estas lindas almas. Que doces são.

    silhouette of children's running on hill

    Aquele menino, crachá de médico e estetoscópio ao pescoço. Já possui privilégios, acesso às áreas reservadas, domina já rodapés e circuitos.

    Batas azuis, brancas batas, um rapaz bonito encosta-se ao contentor do lixo, preto, companhia de elevador. Observo: curioso como me habituei já a evitar tocar nos contentores, e agora sou passageira de uma relação íntima que não me lembro muitas vezes que existe.

    Monstros mortos de pé: é o que os hospitais, os nossos, são.

    – Você tem de entender que as refeições são um serviço à parte, e não somos nós responsáveis pela organização.

    Eu entendo tudo. Eu quero é sair daqui. Só me custa não poder levar estas mães comigo, e as crias delas e os ninhos também.

    A vigília permanente, recortada, a luz azul, e ainda há quem queira proibir, ou deseje obsolescer, a palavra “mãe”.

    Noite dentro, aqui todas as janelas são quadrados, polígonos luminosos, mantendo-nos alertas ao mundo, lá fora, na rua, na estrada, num movimento sem importância.

    white bird on brown coconut husk

    Noite dentro, todos os quadrados estão enviesados, nascem losangos, e trapézios.

    Monstros, mortos de pé, com formigueiros, a tentar manter de pé, e a circular pelos circuitos, enquanto empurram contentores deslocando ar pastoso por vários canais. Lixívia, máquinas (pi pi pi), mopas, tabuleiros, sopa, sem sabor, onde os legumes morreram há largas horas, pão de dias (dias maus, maioritariamente), olhares pálidos, cansados, de acompanhantes resignados, pavimentos descartáveis, vinílicos (sabem o efeito dos vinílicos na saúde?), e poliéster (voltem as mantas de lã, por favor: mas porque deixaram as formigas de ter respeito pelo que é natural, como nós?)

    Assim é, quadrados com viés, a bandeirinha da república, na entrada do bloco, a recepção renovada, a ripado de carvalho, para ter cara lavada. E os órgãos, em sepsis, escondidos atrás das paredes…

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Faz sentido o dinheiro não ter pátria?

    Faz sentido o dinheiro não ter pátria?


    Actualmente, nos cursos de Economia, ou mesmo da escrita ou da boca dos principais fazedores de opinião especializados em Economia, é muito comum escutarmos os chavões Keynesianos de que o Estado ou o Banco Central necessita de “estimular” a Economia.

    As duas principais escolas de pensamento económico, os Keynesianos e os Monetaristas (os discípulos de Milton Friedman), estão de acordo que a preocupação primordial é manter a despesa agregada.

    green plant in clear glass vase

    Em momentos de recessão, os primeiros defendem o incremento dos défices e da dívida pública como forma de “estímulos” à economia; os segundos, que os Bancos Centrais desatem a imprimir dinheiro, reduzindo os requisitos de reservas dos bancos e as taxas directoras, levando à subida de preços e evitando, desta forma, que o PIB recue.

    No caso de Milton Friedman, ele até se regozijava com o colapso dos acordos de Bretton Woods em 1971, momento em que o Ouro deixou de ter qualquer papel no sistema monetário e o Dólar norte-americano (USD) de ser convertível a uma paridade fixa contra o Ouro (na altura em torno de 35 USD por onça).

    A partir dessa data (1971), as moedas tornavam-se fiduciárias, deixando de estar ancoradas a uma matéria-prima, o Ouro, que tinha sido o dinheiro da humanidade durante 5 mil anos, passando a flutuar livremente nos mercados (taxa de câmbio), de acordo com a oferta e a procura.

    O valor de uma dada moeda deixava de estar nas reservas de Ouro ou em USDs, convertíveis em Ouro, mas apenas porque o Estado emissor a decreta com curso legal, isto é, nenhum comerciante ou homem de negócios a pode recusar em pagamento e serve em exclusividade para pagar impostos.

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    As pessoas têm “fé e confiança” no seu uso como intermediária de todas as trocas na economia. Em conclusão, o valor da moeda fiduciária é baseado principalmente na confiança e estabilidade do Estado emissor e na economia que representa.

    A partir de 1971, os Bancos Centrais passaram a imprimir as reservas do sistema bancário na quantidade que desejassem, sem quais restrições, apenas com o apertar de um botão de computador, deixando de estar condicionados por essa relíquia bárbara, o Ouro, que foi substituída por dívida pública.

    Na prática, a força monetária das divisas tinha desaparecido, atendendo que para além de deixarem de serem escassas, o Banco Central passava a poder inundar o mercado com nova oferta de moeda, através do aumento das reservas dos bancos. As emissões de reservas passavam a ser por contrapartida de dívida pública, o activo que veio substituir o Ouro.

    Daqui resultaram duas situações. O país com a moeda reserva do Mundo, os Estados Unidos, podia fazer crescer a dívida pública e os défices a perder de vista, atendendo que cada vez que havia uma inundação do mercado por novos USDs, estes tinham sempre procura internacional: países terceiros necessitavam de USDs para liquidar importações ou exportações ou para emitir dívida pública.

    Ainda hoje, os Estados Unidos beneficiam deste estatuto, mas está em risco de o perder, em resultado do descalabro das suas contas públicas e a permanente ameaça, através do exército norte-americano, que exerce sobre os países que desejam verem-se livres do sistema financeiro assente no USD. Vejamos as últimas notícias sobre a adesão ao grupo dos BRICs.

    low angle photo of city high rise buildings during daytime

    Os demais países, sempre que eram negligentes com as suas contas públicas, isto é, imprimiam dinheiro para cobrir défices e emitiam nova dívida pública, sofriam uma queda da sua moeda nos mercados internacionais, pois não existia procura internacional por essa nova moeda lançada ao mercado.

    Com o lançamento do Euro em 1999, associado a um enorme Banco Central, como é o caso do BCE, veio permitir a países como Portugal deixassem de estar condicionados pela disciplina dos mercados; era a entrada numa nova era de “regabofe” de défices e dívida pública a perder de vista.

    A evolução da dívida pública portuguesa é o espelho perfeito da evolução que expus anteriormente. Até à implementação da democracia, a dívida pública era praticamente inexistente, atendendo que o então Escudo estava ancorado a uma das maiores reservas (8º) de Ouro do Mundo.

    A adesão de Portugal a um enorme Banco Central fez disparar a dívida pública, com uma subida absolutamente meteórica para os actuais 280 mil milhões de Euros.

    Evolução da dívida pública portuguesa entre 1947 e 2020 (em milhares de milhões de Euros). Fonte: Banco de Portugal. Análise do autor.

    Sempre que existem dificuldades, o problema é facilmente resolvido através de novos estímulos: o governo emite dívida pública e os bancos compram; de seguida, estes vendem ao Banco Central, bastando-lhe emitir novas reservas a favor dos bancos. No final do período, o governo ainda recebe dividendos do seu Banco Central!

    Com tantos estímulos, tal como defendem as duas principais escolas de pensamento económico, já devíamos ser uma Suíça? Não, as taxas de crescimento económico anteriores à implementação da democracia são muito superiores, aproximando-se da estagnação económica com a adesão ao Euro.

    Estes dados desmentem por completo as teorias económicas reinantes, pois com reduzida dívida pública, contas públicas no verde e uma moeda forte, ancorada numa das maiores reservas de Ouro do mundo, foi possível obter crescimentos económicos nunca vistos para economia portuguesa.

    Evolução da taxa (%) de crescimento real do PIB português entre 1953 e 2020. Fonte: Banco de Portugal. Análise do autor.

    A permanente sangria das contas públicas a partir da implementação da democracia é uma evidência como se pode constatar na imagem seguinte.

    Um importante aspecto é sempre ocultado destas análises económicas mainstream: é fundamental a existência de poupança, sem a qual não é possível ocorrer a acumulação de capital. O capital não vem de uma impressora de notas, mas pela restrição de consumo que é posteriormente investido em capital fixo (fábricas, máquinas, computadores…), o verdadeiro motor da prosperidade.

    Para haver poupança, é fundamental que a moeda seja uma reserva de valor; o seu valor aquisitivo permaneça e o dever permanecer ao longo de décadas e séculos; e porquê? A pessoa sabe que pode acumular moeda com segurança, que não irá perder valor.

    As moedas fiduciárias falharam clamorosamente neste aspecto, como demonstrei em artigo anterior. O Bitcoin foi a resposta a este problema, pois não está controlado por ninguém, muito menos por Estados com um apetite insaciável por mais despesa pública.

    Evolução (%) dos défices públicos em percentagem do PIB. Fonte: Banco de Portugal. Análise do autor.

    Após a publicação do livro “A Desnacionalização do Dinheiro”, o grande economista austríaco Friedrich Hayek, em resposta a uma pergunta colocada por um jornalista dizia: “Não acredito que venhamos a ter boa moeda até que a retiremos do Governo…Não podemos retirá-la das mãos do Governo à força. Tudo o que podemos fazer é, de alguma forma matreira e remota, introduzir algo que ele não seja capaz de travar.

    Sem o Estado fora do dinheiro, não é possível sairmos desta estagnação económica a que nos conduziram.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.