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  • A entrada da Mariana e o regresso do (outro) António

    A entrada da Mariana e o regresso do (outro) António


    O Bloco de Esquerda (BE) deixou de me motivar no período que se seguiu ao Miguel Portas, Daniel Oliveira e Ana Drago. Entrou numa fase de lideranças errantes, e Catarina Martins sempre foi, na minha opinião, um erro de casting. A um político não basta passar a mensagem certa, tem de saber passá-la sem irritar o ouvinte.

    Catarina Martins falhava, habitualmente, nas duas vertentes. Ainda assim não deixei de acompanhar a vida do partido. Posso não ser eleitor do BE, mas sou eleitor de esquerda e, portanto, tudo o que acontece entre o cada vez mais centrista PS e a extrema-esquerda do MRPP me interessa. Extremismos à parte, espero ter essa parte ficado implícita.

    Durante a Comissão Parlamentar de Inquérito ao BES (2014-2015), fiquei a conhecer Mariana Mortágua. Tinha tudo, achei eu nessa altura, para ser uma política de sucesso. Estudava os temas, falava de forma calma e ponderada, usava argumentos lógicos e facilmente perceptíveis pelos eleitores, sem entrar em populismos baratos. Esta parte é importante num político que quer algo mais do que um esporádico bom resultado eleitoral.

    O pouco que fui vendo da vida do BE, desde essa comissão de inquérito foi, essencialmente, para perceber para onde caminhava Mariana Mortágua. Nunca percebi, que me perdoem os seus acólitos, como foi possível manter tantos anos Catarina Martins na liderança, quando se tinha Mariana Mortágua ali ao lado.

    O discurso de uma e de outra é a diferença entre mudar o canal ou ficar a ouvir até ao fim. Depois de algumas eleições catastróficas, e, julgo, quase 10 anos de liderança, Catarina cedeu o lugar a Mariana. Em boa hora.

    Este fim-de-semana, numa sardinhada do BE, Mariana Mortágua deixou duas ideias simples, mas fortes, dada a urgência de ambas. A primeira relacionada com as taxas de juro e com a inoperância do Governo português perante os aumentos do Banco Central Europeu (BCE).

    Com salários que rondam os 800 ou 900 euros, algumas famílias viram a prestação da casa subir de 400 para 700 euros. Não é preciso ser um matemático de eleição para perceber que não se vive assim. Na melhor das hipóteses, sobrevive-se.

    Como pode um país cada vez mais pobre, como Portugal, suportar políticas de aumento da despesa familiar para controlar a inflação? Como é que se pode aplicar a gregos, portugueses e romenos a mesma estratégia que seguem alemães, belgas e holandeses? E por que razão é apenas Mariana Mortágua que repete isto, sugerindo que os bancos, com lucros recorde, absorvam os aumentos em vez de sacrificarem as famílias. Tudo isto é tão óbvio que nem deveria dar argumentos para uma conversa.

    A outra mensagem, relacionada com a Educação, foi a de exigir que as creches fossem incluídas no sistema público de ensino e tal, como as escolas, fossem gratuitas em cada bairro e cidade. Algo que afirmo há pelo menos 14 anos, desde que percebi, na minha vivência de emigrante, que os impostos podem ser usados numa Educação verdadeiramente universal. Da creche até ao Ensino Superior, as mesmas oportunidades para o filho do padeiro e do médico. Tudo gratuito. É isso, e apenas isso, que faz um sistema de ensino universal.

    Uma vez mais, porquê apenas Mariana Mortágua, entre duas sardinhas e um copo de vinho tinto, fala sobre isso? Poucas coisas são tão importantes para um país pobre e envelhecido do que o estímulo à natalidade. As creches gratuitas são parte importante do plano.

    Gosto quando a esquerda fala sobre temas clássicos da esquerda sem se perder em discussões de unicórnios ou casas de banho, por onde o Bloco resolveu andar nos últimos anos. Estes são temas actuais, importantes e prioritários. Ditos de forma perceptível e sem grandes dramas ou demagogias. Mariana não parece encarnar um personagem, limita-se a dizer o que pensa. Ou, pelo menos, é essa a sensação que passa.

    No mesmo fim-de-semana, nas Caldas da Rainha onde há anos se recolheu, António José Seguro deu um ar da sua graça e parece, anos depois da rasteira que lhe passaram, estar disposto a regressar às lides políticas. Sobre Seguro, voltarei noutro texto porque há algo mais para dizer, mas, para já, fico com a impressão de que a esquerda portuguesa se começa a mexer numa direcção curiosa, para o período de oposição que se adivinha.

    Depois de tutti-fruttis, Catarinas, Costas, Galambas, Temidos e Cabritas, o futuro parece apontar para algo mais suportável, para quem não vota em Montenegro, Ventura ou o novo Cotrim (ainda não lhe decorei o nome).

    Já só falta o João Ferreira. Mais década menos década, está ai a rebentar.  

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • 2023 = 1984: a realidade já é a distopia?

    2023 = 1984: a realidade já é a distopia?


    O livro 1984, de George Orwell, retrata um regime distópico e totalitário dominado pelo Partido Interno, que governa a superpotência fictícia chamada Oceânia. Os membros do partido desfrutam de benefícios não acessíveis às demais classes sociais, o Partido Exterior – segunda divisão – e os Proles – o proletariado.

    Esses privilégios passam por melhores roupas, alimentos e bebidas mais abundantes ou moradias mais confortáveis. Tal como a restante sociedade, os membros do partido são constantemente monitorados pelo Grande Irmão, uma figura omnipresente que representa o líder supremo. O partido usa tecnologia avançada, como dispositivos de vigilância em todos os lugares, inclusive nos domicílios, para vigiar e controlar as actividades dos seus membros.

    white red and black wall art

    A verdade é uma construção completamente manipulada pelo partido, que controla a narrativa e distorce os factos, de acordo com seus interesses políticos, através do Ministério da Verdade. Os registos históricos são alterados, os documentos são destruídos e até mesmo fotografias são manipuladas para se adequarem à narrativa oficial.

    As crianças são doutrinadas desde cedo a serem leais ao partido, mais importante que qualquer laço familiar, e incentivadas a denunciarem qualquer comportamento ou pensamento considerado desviante, incluindo dos próprios pais.

    A relação entre guerra e paz é uma das principais ferramentas de manipulação usadas no controlo da população. Existe uma “guerra perpétua” com as outras duas superpotências, a Eurásia e a Lestásia. Essa estratégia visa manter a população num estado de constante medo e tensão, além de justificar todo o tipo de controlo rígido sobre todos os aspectos da vida.

    O partido manipula a informação de forma sistemática e altera constantemente a narrativa da guerra para se adequar aos seus objectivos políticos. Por exemplo, num dado momento, o partido pode afirmar que estão em guerra com a Eurásia e que a Lestásia é um aliado, mas noutro momento, a narrativa é invertida, e a Lestásia torna-se o inimigo.

    photo of Gardens by the Bay, Singapore

    Será que a ficção 1984 não será já hoje uma realidade?

    Há dias, tivemos a reunião de Verão do Fórum Económico Mundial que se realiza todos os anos na China – apesar da propaganda nos dizer que a China apoia a Rússia “contra” o Ocidente. Na prática, foi mais uma reunião dos membros do Partido Interno.

    Nestes eventos, um grupo de multimilionários não-eleitos determina de que forma seremos governados. O líder destes encontros de Verão e membro do Partido Comunista da China, o Sr. Li Qiang, no seu discurso de abertura, falou-nos da incontornável putativa pandemia dos últimos três anos: “A Covid-19 não será a última crise de saúde pública que a humanidade enfrentou. A governança global da saúde pública necessita ser aprimorada”.

    Tradução: vêm aí mais “pandemias” – antigamente, emergências inesperadas que ocorriam num intervalo de mais de 50 anos –, mais “inoculações experimentais”, a identidade digital, em que necessitamos que as populações entreguem a soberania dos seus países a organizações globalistas não eleitas, como a Organização Mundial de Saúde (OMS), para que esta restrinja a nossa liberdade de circulação, através de certificados nazis, como forma de chantagear e ameaçar os dissidentes não disponíveis para “dar o bracinho”.

    woman in black off-shoulder dress

    A este respeito, nos últimos dias, o Ministério da Verdade já anunciou que os fabricantes das inoculações experimentais já reservaram inventário para uma “futura pandemia”. Dominam o passado e futuro!

    Para além do discurso de abertura, tivemos vários encontros paralelos, com as usuais menções à “transformação”, “reconstrução”, “emissões zero”, “sustentabilidade”, “estabilidade alimentar”. Tradução: um governo mundial, aliado a multinacionais monopolistas, com energia caríssima para os pequenos negócios, por forma a arruiná-los, usando a fraude das “alterações climáticas”, e gafanhotos no prato da populaça, em lugar de carne de vaca – a flatulência destas é perigosa para o “clima”.

    Da guerra ao “Vírus”, passámos para a guerra entre a “Rússia e o Ocidente”, tendo a Ucrânia como palco de “batalha”; apesar disso, no final de 2022, na cimeira do G20, a primeira e a China juntaram-se ao segundo para propor o aumento da vigilância e a censura sobre a “desinformação” na Internet, implementar CBDCs (Moedas Digitais dos Bancos Centrais) e introduzir passaportes digitais de “vacinas”, com base “na experiência” da putativa pandemia.

    Também temos “intervalos” na guerra, onde os líderes ocidentais visitam a toda a hora Kiev – durante esse intervalo já repararam que nunca caem bombas –, com o propósito de abraçar o “Novo Churchill”, o “democrata” que encerra televisões, prende opositores e suspende actos eleitorais até ao “final da guerra”. Mesmo com acções de terrorismo de Estado, onde se destroem infra-estruturas de milhares de milhões de Euros, nenhum dos beligerantes parece estar interessado em apurar responsabilidades. A perfeita manipulação do Ministério da Guerra.

    Guerra é paz e paz é guerra, onde as únicas vítimas são os ucranianos e russos que se matam entre si, em nome dos valores “democráticos” do Ocidente, da “integridade territorial” da Ucrânia – quantos silêncios tivemos quando era o lado “certo” a invadir – ou da “desnazificação” pelos russos, com os dois autocratas – um há mais de 20 anos no poder – a acumularem poder e riqueza sem fim, tal como a máquina militar dos Estados Unidos, que tem vindo a realizar bons negócios à conta dos papalvos europeus, que se limitam a “lançar” sanções económicas contra o seu principal fornecedor de energia.

    A verdade é mentira e a mentira é verdade. Há mais de 100 anos, a inflação era definida como o aumento da quantidade de dinheiro em circulação; mais massa monetária à procura dos mesmos bens e serviços levaria inevitavelmente à subida generalizada dos preços. Agora, nada disso, segundo o Ministério da Verdade, trata-se de um índice de preços elaborado pelos governos, precisamente os que mais beneficiam com o assalto silencioso às massas – em 2022, à boleia da inflação, o Estado português assaltou a população em 106 mil milhões de Euros, qualquer coisa como 10 mil Euros por pessoa.

    Entre o final de 2019 e o final de 2021, a Sra. Lagarde aumentou o seu balanço em 4 biliões de Euros (12 zeros), que serviu para os bancos imprimirem dinheiro como se não houvesse amanhã (o agregado M2 atingiu um ritmo de crescimento anual de 16,7%!), provocando que a maioria dos preços das principais matérias-primas registasse subidas vertiginosas entre o início da putativa pandemia e o final de Fevereiro de 2022 – início da guerra da Ucrânia –, como foi o caso do Petróleo e do Gás Natural que subiram 351% e 169% respectivamente.

    Apesar da evidência, a Sra. Lagarde veio-nos dizer que “as alterações climáticas afectam a inflação…a inflação é a fera… que os banqueiros centrais…querem domar e disciplinar”! Terá sido o CO2 que levou a Sra. Lagarde a comprar, com dinheiro de monopólio, as obrigações de Estados falidos aos bancos, para estes implementarem o roubo aos contribuintes a favor das farmacêuticas, laboratórios de análises clínicas, farmácias e apaniguados do poder durante a putativa pandemia?

    Depois do escol ter aplaudido os engodos às massas “oferecidos” pela Sra. Lagarde, levando-as a comprar casas com taxas 0%, “entaladas” agora com juros acima de 5%, em nome da saúde primeiro e a economia vê-se depois!, temo-lo agora “muito aborrecido” – apenas crocodilos a chorarem lágrimas – com a receita da Sr. Lagarde para enfrentar a elevada inflação que ela mesmo criou! Nas últimas semanas, detalhou-nos o plano:

    pink pig coin bank on brown wooden table

    O Meijengro da República, membro do Partido Exterior, disse-nos que os “bancos centrais devem ter muito cuidado com aquilo que dizem“. Tradução: não dêem nas vistas, caso contrário, a populaça apercebe-se do assalto que lhes foi perpetrado. Uns dias antes, escutáramos esta pérola sobre o mesmo tema: “É possível que não se tenha nenhuma verdade segura sobre o futuro”.

    O seu ajudante ainda logrou atirar-nos com uma pérola superior: “O aumento de lucros extraordinários tem contribuído mais para a manutenção da inflação e não as subidas salariais. Isto limita muito a capacidade do enfrentar porque se não acertamos bem no diagnóstico a terapia raramente acerta”! Reparem, a culpa nunca é deles, é sempre do Prol ou das empresas que lhes pagam as contas.

    Entretanto, o projecto do Euro Digital avança a todo o vapor, será, em conjunto com a identidade digital, um autêntico gulag digital que nos será servido, onde será possível ao Estado vigiar e rastrear todas as nossas compras, deslocações, rendimentos e preferências.

    closeup photography of gold-colored ornament

    Tal como o Ministério da Verdade de “1984”, os órgãos de propaganda garantem-nos que tudo será uma maravilha, jamais o BCE estará interessado em partilhar dados de cidadãos com os governos. Tal como nos diziam durante a putativa pandemia: há que confiar nas autoridades!

    Tal como era previsível, os bancos, autênticos braços armados do Partido Interno, começam agora a “desbancarizar” cidadãos dissidentes da narrativa oficial. Desta vez, foi o político Nigel Farage, um dos grandes impulsionadores do Brexit, algo que não agradou ao Partido Interno e que permitiu aos britânicos verem-se livres da URSS/ União Europeia.

    Uma relação de décadas com um banco, onde aí tinha a sua conta individual e de negócios, comunicaram-lhe que por “razões comerciais” as suas contas seriam encerradas. Não lhe valeu de nada ir bater à porta de vários bancos, pois nenhum o aceita como cliente. Isto é o que irá acontecer a quem não alinha na “narrativa oficial” do Partido Interno.

    Depois da guerra na Ucrânia, temos agora a guerra na França, onde hordas de imigrantes decidem destruir tudo no seu caminho, em lugar de confiar nos tribunais e no Estado de Direito, próprio de uma sociedade civilizada.

    blue and yellow striped country flag

    O agente do Partido Interno lá do sítio, que há um ano e meio queria “irritar os não vacinados”, praticando a segregação e incitamento ao ódio, e foi capaz de esmagar qualquer resistência ou revolta da população à tirania Covid-19, não logra agora proteger a propriedade privada dos franceses. Para ele, a culpa nunca será da imigração descontrolada que ele promove, mas, pasme-se, das Redes Sociais!

    Neste sentido, o Ministério da Verdade, em coordenação com a URSS/União Europeia, já vem em seu auxílio, através de uma nova directiva que contém estas preciosidades:

    • As plataformas terão de parar de exibir anúncios para utilizadores com base em dados sensíveis, como a religião e opiniões políticas. O conteúdo gerado através de inteligência artificial, como vídeos e fotos manipulados, conhecidos como deepfakes, terá de ser identificado. Tradução: têm de vigiar e identificar todas as notícias que nos desagradam;
    • As empresas também terão de realizar avaliações anuais dos riscos que as suas plataformas representam numa série de questões, como a saúde pública, a segurança infantil e a liberdade de expressão. Elas serão obrigadas a apresentar as suas medidas para lidar com tais riscos.” Tradução: retirem o conteúdo que possa colocar em causa as miraculosas vacinas e censurem qualquer opinião dissidente;
    fire burning on the road with high rise buildings during daytime photography
    • Empresas externas vão auditar os planos das empresas proprietárias das plataformas. A equipa de fiscalização da Comissão Europeia terá acesso aos seus dados e algoritmos para verificar se estão a promover conteúdos prejudiciais, como aqueles que coloquem em risco a saúde pública ou durante as eleições.” Tradução: tenham cuidado, pois teremos direito a entrar nas vossas instalações, sem aviso prévio ou respeito pela propriedade privada, para ver se censurais o que vos ordenamos, em particular durante as putativas pandemias ou a realização de eleições “livres”, para as quais desejamos obter os “resultados certos”.

    George Orwell ficaria agora assustado com a nossa realidade: já supera 1984.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Os cidaDeus do Haka Woke

    Os cidaDeus do Haka Woke


    Woke vem do inglês stay woke e para nós é um “acorda” intenso. Talvez um Acordai do Lopes Graça. Hoje todos temos uma concepção mais desperta para os problemas do Mundo, todos fomos catequizados pelo politicamente correcto e todos seguimos, revoltados, os maus tratos a animais e a pessoas. No entanto, a sensibilidade é escalável.

    Os woke querem despertar a nossa revolta para os problemas ancestrais de escravatura, a segregação racial, sexual, identitária, etc. Há uma ocupação do espaço político pelo movimento woke. Parece que o uso da expressão se generalizou em 2014 com o movimento Black Lives Matter.

    yellow and brown leaves on white ceramic tiles

    Os migrantes incluem-se nesta sopa woke. A sopa inflamatória dos woke, conjuga dezenas de temas e congrega a rede social num espaço vigiado, muito escrutinado que possuem línguas afiadas e viperinas. Um woke discorda de nós e imediatamente nos cataloga de fascista, retrógrado, racista, criminoso.

    A gritaria recorda-me o Haka, gritado e encenado pelos neozelandeses e pelas neozelandesas antes dos jogos de rugby. O Haka woke é uma barbaridade sobre os que insistem nas touradas, sobre os que não seguem a cartilha da responsabilidade humana como principal causa de aquecimento global, sobre os que defendem que o excesso de gatos é uma praga para o ecossistema, sobre os que defendem prostituição legal e clara, sobre os que discordam da política das migrações europeia, sobre os que em nome da redução de consumo e de pegada ecológica acham que deve haver balizas aos pets, sobre os que não concordam com a humanização animal, sobre os que acham errado indemnizar a História, devolver patrimónios conquistados.

    A Haka woke é uma igreja ululante e insultante que cai sobre quem ousar divergir dos seus paradigmas. A pandemia foi um exemplo da força descontrolada do eu opinativo sobre o respeito dos outros.

    rugby team dancing in the field

    O eu opinado não necessita ser sábio, não carece de dúvidas; é um novo texto religioso que leva a mudar a escrita, obriga a alterar a linguagem, penaliza discursos. O grande problema é que nada é imutável e todo o conhecimento científico tem por pressuposto a incerteza, porque uma ínfima descoberta pode mudar todo um raciocínio bem construído.

    Mas hoje há milhões de eus gabarolas, de pessoas que não estudando concluíram certezas: são os “cidaDeus” que não entendem que há outros. Os cidaDeus falam haka, ligam o telemóvel alto em restaurantes, colocam colunas de música na praia, estacionam frente a garagens, furam pneus para castigar compradores, pressionam condutores mais lentos.

    Claro que a maioria destes eus é internauta e ulula despido, ou insulta sem travões. Há cidaDeus woke e há os que o não são. Pegam-se num fanatismo cansativo que está a desmerecer as redes sociais. O inaceitável para cada um baixou de limiar, e agora basta um sussurro, um vislumbre, uma vírgula mal colocada para choverem perfis falsos e perfis verdadeiros carregados de ódio, língua de fora, palavrões, perfídia.

    a couple of kids that are on a slide

    Os trolls fabricam-se a pedido dos partidos. Um troll só tem direitos e sensibilidade; para os outros é toca a lavrar. Vêm desestabilizar, enfurecer, provocar os incautos que ousaram deixar a opinião. Desde 2014 com a cultura woke este fascismo tem tomado a governação da Europa que agora está a viver o ateísmo aos cidaDeus. Uma onda de direita já conquistou a Dinamarca, a Finlândia, a Itália, a Suécia, e é uma força crescente em França, Portugal, Espanha, Alemanha.

    A vitória dos novos ateus existe há vários anos na Hungria e Polónia. Comedimento é a palavra-chave para este problema, bom senso é essencial para alterar este percurso, mas o que não serve mesmo é o cinzentismo do PSD, a falta de posicionamento daqueles que estão exaustos dos cidaDeus que falam haka e tem por ideologia o woke.

    Diogo Cabrita é médico


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Repórter TVI: jornalismo deplorável sobre um milionário improvável

    Repórter TVI: jornalismo deplorável sobre um milionário improvável


    Apresentada como uma reportagem de investigação pela jornalista Raquel Matos Cruz (CP 7077), o Repórter TVI do passado dia 21 de Junho, em horário nobre, intitulado “Júnior, o milionário improvável”, da autoria da jornalista Conceição Queiroz (CP 7851), não é apenas uma peça antológica de péssimo jornalismo.

    É sobretudo um retrato cruel da imprensa sem ética, sem moral, sem responsabilidade, que deveria envergonhar qualquer jornalista, sobretudo os bons, onde se incluirá os bons que ainda haverá (não sei por quanto tempo) pela TVI. Cada dia que passa sem que ninguém na TVI se pronuncie sobre “aquilo” é um prego no caixão do moribundo jornalismo lusitano.

    Raquel Matos Cruz, jornalista e coordenadora do Repórter TVI.

    A suposta reportagem, recordemos, começou pela boca de Raquel Matos Cruz, que a apresenta. O texto, também escrito, e ainda agora disponível no site da TVI, e guardado aqui, continua sem qualquer nota ou aviso, e é exemplar:

    Ao longo dos últimos anos as criptomoedas, sobretudo a bitcoin, já fizeram muitas fortunas. Este é também um mercado perigoso por ser extremamente volátil e de risco muito elevado, onde basta um instante para perder tudo. O português Renato Júnior teve a sorte, e naturalmente a sabedoria para sobreviver às oscilações deste mercado e para hoje viver faustosamente às custas da bitcoin.

    Tem 29 anos e é um exemplo de quem conseguiu singrar no mercado da moeda virtual. Deixou a escola para trás e aos 17 anos emigrou para o Canadá, onde foi trabalhar nas obras. Com o dinheiro que amealhou investiu num computador e num telemóvel e esta foi a porta de entrada para o mundo do dinheiro digital.

    Começou com um investimento de 100 euros. Atualmente, vive no Dubai e é de lá que gere um negócio de milhões. Para trás fica uma infância nem sempre fácil de um rapaz que fintou o destino.

    Esta é a história de Renato Júnior: o milionário improvável.

    Toda a peça retrata Renato como um herói, e aquilo que mais salta à vista é a ausência de confirmação sobre tudo aquilo que diz, e sobretudo sobre a empresa e actividade (supostamente legal) que diz desenvolver.

    A jornalista Conceição Queirós aparenta não ter procurado saber se a empresa tinha registos, se era credível, se era reconhecida por entidades reguladoras, se havia clientes satisfeitos ou insatisfeitos. Nada.

    Aquilo que a jornalista Conceição Queirós, a sua coordenadora, a também jornalista Raquel Matos Cruz, e, enfim, o director da TVI, o também jornalista José Eduardo Moniz – que tem uma das mais antigas carteiras profissionais no activo, a número 71 – permitiriam com a emissão desta reportagem foi promover uma quase certa fraude, a atender pelo que se observa no site do suposto Digital Bank Labs.

    Os incautos, que foram no canto da sereia da reportagem da TVI, podem bem cair no logro de investir milhares de euros – aliás, o mínimo do “investimento” é de 10 mil euros, segundo o site da dita Digital Bank Labs – numa suposta empresa de um “herói” (com uma fortuna “avaliada acima de um bilião de dólares americanos”, segundo as palavras do próprio) que, na verdade, nem contacto nem escritório físico possui ou é conhecido.

    E, agora, quando se procura um contacto no site, surge o aviso “We’re experiencing Over Demand and it’s impossible to contact us at this moment, please come back later”.

    Ainda se poderia acreditar numa ingenuidade quer da jornalista Conceição Queirós – que mal disfarçou, ao longo da reportagem, a sua alegria pela estada no Dubai no meio daquele suposto luxo adquirido pelas bitcoins, ao ponto de até agradecer e desejar felicidades ao Renato – quer da sua coordenadora quer do director da TVI.

    Embora não seja nada agradável, até por se ter sempre responsabilidades nem que seja por negligência, ninguém no jornalismo está livre de ser ludibriado. Mas uma coisa é ser enganado, outra é não admitir erros e manter tudo como se nada se tivesse passado de anormal.

    Passou sim, e tudo aquilo é absolutamente anormal.

    Aviso actual que surge nos contactos da suposta empresa Digital Bank Labs.

    Uma dezena de dias após a emissão de uma vergonhosa reportagem que vergasta a verdadeira investigação jornalística – e sabendo-se o quão improvável é a legalidade dos “negócios” de Renato Duarte Júnior (e do seu obscuro Digital Bank Labs) no mundo dos cripto-activos, e sabendo-se ainda da abertura de um procedimento por parte da ERC, e sobretudo os avisos formais da CMVM e do Banco de Portugal –, o silêncio e a inacção da TVI é intolerável.

    Ou talvez não. Afinal, já tudo é tolerável quando o jornalismo se mostra deplorável.

  • Como matar um sonho!

    Como matar um sonho!


    Não creio que haja algo de mais gratificante do que podermos exercer uma profissão de que se goste tanto que nem dê para definir como “trabalho”.

    Se a conseguirmos desempenhar, ao longo da vida, sendo ainda principescamente remunerado por tal e, graças a ela, ganharmos o estatuto de “pessoa mediática”, é o cúmulo da felicidade.

    Essa será, provavelmente, a principal razão que leva centenas de pais, por todo o mundo, a investir fortunas para que os seus filhos possam tentar vencer nessas carreiras.

    person seated on grass

    Principalmente se considerarem que têm essas vocações.

    O futebol será, provavelmente, o exemplo mais forte.

    Não deve haver espectáculo, em todo o mundo, com tantos seguidores nem onde se invista mais dinheiro.

    A quantidade de jornais, revistas, programas de rádio e televisão que vivem deste fenómeno é caso único.

    A ligação dos adeptos às diversas equipas supera, em muito, a que os crentes têm para com as suas igrejas.

    Um adepto que se revolta quando se levanta a hipótese de aumento de uns euros aos seus governantes, considera da mais elementar justiça que se assinem contratos, com jovens de dezoito anos, com salários mensais superiores ao de todos os membros do Governo do país durante um ano.

    Obviamente que este cenário só poderia levar ao aparecimento de oportunistas querendo facturar com as expectativas das famílias de jovens a quem se aponta talento.

    man playing soccer game on field

    Portugal não é diferente e os casos de exploração sucedem-se.

    Nenhum com a gravidade do último caso conhecido.

    Gente importante, e com cargos na estrutura futebolística nacional, e na política, criaram uma escola, pomposamente chamada de “Academia”, para jovens a quem se reconhecesse o dom para este desporto.

    O presidente da “Academia” era, nem mais nem menos do que, o Presidente da Mesa da Assembleia-Geral da Liga Portugal.

    Entre os seus “embaixadores” constava um ex-Secretário de Estado e ex-Presidente da AICEP e TAP cujas funções, segundo o próprio, consistiam em fazer contactos com vários players nacionais e internacionais, institucionais e empresariais”, estando, entre essas entidades, “Embaixadas de Portugal no estrangeiro, Embaixadas do estrangeiro em Portugal, SEF, Ministérios e Departamentos Governamentais e empresas privadas nacionais e internacionais”.

    4 women playing soccer on green grass field during daytime

    Estes nomes e cargos, que eram apresentados aos potenciais interessados, levaram a que muitos pais, de países estrangeiros e longínquos, lhes confiassem os filhos, pagando propinas que chegavam aos dois mil euros mensais, para os formarem como futebolistas.

    O destino era uma “escola” em Riba de Ave que, veio a saber-se agora, não passava de um esquema, que as autoridades consideram criminoso, com o único intuito de ganhar dinheiro.   

    Nas buscas ao local as autoridades encontraram mais de cem jovens atletas, estrangeiros, muitos deles menores, que dormiam em camaratas fechadas a cadeado.

    Os jovens tinham acesso limitado ao exterior, tinham ficado sem os documentos e eram muitas vezes sujeitos a medidas disciplinares.

    Alguns deles, em entrevista à Rádio Renascença denunciaram a prática de retenção de passaportes dos atletas, por parte da direção, e queixaram-se de má alimentação e de restrições de circulação.

    Pelo que as autoridades concluíram que eram, alegadamente, vítimas de uma rede de tráfico de seres humanos.

    yellow and black soccer ball

    Ao contrário do “Embaixador” distraído, o Presidente do Sindicato dos Futebolistas não se mostrou surpreendido.

    Até porque já tinha denunciado estas situações, em 2021, quando alertou o então Secretário de Estado da Juventude e do Desporto para o problema.

    Garantiu que, na altura, foram convocadas as organizações, directa ou indirectamente envolvidas neste caso, nomeadamente o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, a Segurança Social e o Ministério dos Negócios Estrangeiros, que “houve uma reunião”, mas que “nada mais foi feito”.

    O terminar (ou o adiar) da concretização dos sonhos desta centena de jovens é muito preocupante.

    Os prejuízos, que este episódio pode trazer para as Academias dos clubes profissionais, que tanto têm dado ao desporto e a centenas de jovens, são incalculáveis.

    Nada que mereça a milésima parte da atenção concedida, quer pelos nossos políticos quer pelas nossas televisões, por exemplo, ao célebre roubo de um computador do gabinete de um ministro.

    timelapse photo of soccer player kicking ball

    O Governo, pelo Secretário de Estado da Juventude e Desporto, já veio considerar que “é inaceitável, chocante e condenável a situação que o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras nos deu a conhecer, publicamente, através de uma operação de tráfico de seres humanos numa academia”.

    Que teste magnífico para a nossa Justiça.

    Vai ser curioso conhecermos a decisão, lá para 2040!

    Vítor Ilharco é secretário-geral da APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Tedros, o super-herói, e Froes, o super-Onan

    Tedros, o super-herói, e Froes, o super-Onan


    Não foi a primeira vez que Tedros Adhanom Ghebreyesus, o director-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), recebeu um doutoramento honoris causa. Nem será a última, com a cerimónia hoje na Universidade de Coimbra.

    Antes da pandemia, já ele coleccionara pelo menos três: um pela Universidade sueca de Umea, em 2018, e as outras duas em instituições de ensino superior inglesas: Universidade de Nottingham e Universidade de Newcastle, ambos em 2019.

    Depois do surgimento da covid-19 foi ele já distinguido por mais quatro vezes. Em Julho do ano passado, pela Universidade de Edimburgo, na Escócia. Já este ano foi a vez da Universidade de Pretória, na África do Sul, e da Universidade Mediterrânica da Albânia lhe darem o consolo de mais honoris causa, antes da Universidade de Coimbra.

    Tudo isto é banal, e não deveria causar-nos assim tanta celeuma ver uns universitários a entreterem-se a atribuir honoris causa a torto e a direito, muitas vezes não por razões científicas ou intelectuais mas mais por causas de índole pessoal ou política que beneficia mais quem entrega do que quem recebe.

    Enfim, vanitas vanitatum et omnia vanitas. Já vi bem pior, como, por exemplo, agraciar Gouveia e Melo com um honoris causa pela Universidade Nova de Lisboa apenas pela sua “eficácia” como operador de logística de um fármaco, cuja administração até envolveu crianças e jovens saudáveis que nunca precisariam do dito.

    Por isso, debater o polémico passado público e político, como governante etíope, de Tedros Adhanom Ghebreyesus não me interessa demasiado para o caso em apreço. Talvez interessasse mais saber a falta de coragem da OMS em apurar a verdadeira origem do SARS-CoV-2, por exemplo.

    Ou a própria gestão caótica e ineficiente da OMS, que jamais teve liderança na pandemia, e ademais mostrou-se incapaz de manter sem constrangimentos os programas de rotina de vacinação para doenças evitáveis e de apoio sanitário em países subdesenvolvidos.

    Falhou rotundamente, e em franjas da população mundial com elevadíssimas taxas de mortalidade infantil. Por exemplo, em Julho de 2021, a própria OMS e a UNICEF revelaram que 23 milhões de crianças perderam as vacinas básicas, mais 3,7 milhões do que em 2019. Mais recentemente, a UNICEF relatou que os níveis de vacinação infantil (segura) para doenças evitáveis desceu para níveis de 2008.

    Também poderia questionar como é possível a OMS ter recentemente aceitado eleger um representante da Coreia do Norte para o seu Conselho Executivo.

    Ou também debater a influência das farmacêuticas e de organizações supostamente beneméritas mas com demasiada influência supranacional no seio da OMS, que se prepara para ter a tutela “política” em futuras pandemias.

    Mas não. Interessou-me mais, por puro entretenimento de uma hora e meia, assistir à sessão encomiástica ao director-geral da OMS na vetusta Universidade de Coimbra, vestida a rigor, com capelos e verdeais, e música, e toda a parafernália que nos remeteu quase aos tempos do rei D. Dinis.

    Nem de propósito, a alusão às Cortes régias faz aqui todo o sentido, porque ali sempre foram apreciadas tanto os bobos como os cortesãos. Os primeiros, com as galhofas, entretinham; os segundos, com as lisonjas, também.

    Ora, ambos os papéis ficaram, nesta sessão da Universidade de Coimbra, a cargo do pneumologista Filipe Froes, o médico com mais relações promíscuas com farmacêuticas, que se consegue livrar das consequências de um processo disciplinar da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde com um “veto de gaveta” patrocinado pelo ministro da Saúde, e que tem artes e manhas para continuar a ser ouvido pela comunicação social mainstream. O facto dessa comunicação social ter cada vez mais relações comerciais com as farmacêuticas é apenas uma coincidência…

    Mas não fujamos do foco. Filipe Froes foi escolhido para o elogio académico do director-geral da OMS na entrega do doutoramento honoris causa pela Universidade de Coimbra. Aconselho vivamente o visionamento, a partir do minuto 23, porque estamos perante não propriamente um Discurso do Rei mas sim perante um Discurso do Hipócrita. Froes é, de facto, um personagem. Um François Vatel do século XXI, sem a parte do suicídio, que adula e encanta “cozinhando” o seu “peixe”. Se salva vidas como pneumologista, não sei – acredito que sim. Mas ressuscita seguramente mais egos com a sua léria.

    A minha passagem predilecta na sua louvaminha ao Tedros é, confesso-vos, aquela em que compara a acção do director-geral da OMS ao Santo António do sermão aos peixes do Padre António Vieira.

    Disse ele, sem se rir, que Tedros “não necessitou da alegoria de se dirigir aos peixes para falar aos homens e às mulheres”; falou, actuou e interveio directamente “para enaltecer o valor sagrado da vida humana, de todas as vidas humanas, e para alertar os perigos da corrupção, da vaidade, do egoísmo, da intolerância, da prepotência e sobretudo da ignorância muitas vezes com a ilusão do conhecimento”. Eis um tratado da hipocrisia em poucos segundos.

    Depois, elogiando Tedros como “salvador” de milhões de vidas, e investido de engenho camoniano, Flipe Froes amaciou a glande política do Governo, ao glosar que “também aqui Portugal honrou a sua História e o seu passado de glória, e foi pioneiro em mostrar ao Mundo, por mares dantes pouco navegados e tumultuosos, o caminho para a vacinação e para a mitigação de um pandemónio que tanto atormentou o Mundo”.

    Mas isto da erudição cansa, e portanto Froes não podia deixar de fazer o papel de truão, concluindo que “numa linguagem mais próxima dos tempos e, sobretudo, dos jovens de hoje, se a OMS foi a Guardiã Planetária e a Estrela da Vida, Tedros Adhanom Ghebreyesus foi o nosso Super-Herói”.

    E Filipe Froes foi e será sempre o nosso Super-Onan. O nosso masturbador-mor.

    Longa e boa vida terá, que o mundo sempre lhe concederá, portando-se assim, boas prebendas e melhores sinecuras, porque isto anda bem para quem se banqueteia, como já dizia Erasmo de Roterdão.

  • Uma folha amarrotada é uma construção

    Uma folha amarrotada é uma construção

    Esta coisa do viver tem corpo mas também tem tempo. Como esse corpo que vestimos, e que esticamos a pele nos ossos, à medida que nos pomos de pé na vida, à medida que esse vestido fica solto, amarrotado e enrugado, onde antes existiam dobras, e a velhice se instala e nos aninha. A pele transforma-se em peles, todas as que vestimos, remendamos e engomamos ao longo do tempo.

    Eventualmente, livres da pintura que pode esconder as brechas de terra seca que se abrem pela nossa cara, livres da roupagem que pode encobrir as manchas que povoam os nossos braços, livres para avistar os derrames que trepam pelas nossas pernas, vemos o tempo e não o corpo. Afinal, a quarta dimensão é visível e real, só que não conseguimos ver num momento só.

    naked woman lying on bed

    (E as curvas, as curvas onde alguém se pode aninhar em nós, onde nos podemos aninhar em alguém. Sento-me no teu colo e encaixo a cabeça na curva do teu pescoço e que descanso posso sentir, que alívio, que até o ar parece correr melhor dentro de nós se podemos repousar no carinho que um corpo encontra com outro corpo.)

    A casa que nos embrulha não é diferente. Também se cansa, também se estraga e envelhece. Também decai e morre, também sofre abandono e entranha o cheiro das nossas peles nas paredes. (Será que fico a cheirar à minha casa?)

    Tudo precisa de cuidado, de limpeza, de ternura, de um abraço. As coisas também. (As pessoas também.)

    Mas os anos passam, e nós não vemos o tempo, a não ser quando ele já passou. Pensamos sempre que é cedo de mais ou tarde de mais. Pensamos sempre que há um ontem, um hoje e um amanhã, e que o hoje é já tão enorme que não dá para olhar para ontem ou imaginar o amanhã.

    close-up photography of human hand

    Não dá para falar mais baixo sem que os sussurros se infiltrem nas portas até enferrujarem as dobradiças que rangem, grasnam em cada vaivém. E não dá para falar mais alto sem que as vibrações sacudam as janelas e lá fora vejam que almas querem fugir a bater as asas e voar. (Longe, longe desta casa vou encontrar a minha casa.)

    Cavar a terra para descobrir um projecto é como preparar o terreno para semear fruto desconhecido. Na verdade, não sabemos se estamos a pôr água de mais ou água de menos, não sabemos se quer sombra ou se quer luz. Só sabemos que, entre as ervas daninhas e o mundo a viver em volta, cada vez mais nos pavimentam os espaços vazios para que só passem as rodas, porque se passarem os pés sabemos que nos vamos queimar.

    Da folha vazia passamos à folha amarrotada, no fim talvez cheguemos a um origami preciosamente podado, que levou tempo a mimar, aparar e amparar.

    O mundo agora é feito de folhas amachucadas numa pressa. Amarfanhadas. Atiradas para o ar como quem tenta acertar no cesto dos papéis. Estas folhas sem desenho sempre existiram, espraiam-se pelas estevas desde sempre, agarradas o mais possível a ribeiros, que alimentavam campos, ou estão encavalitadas em buracos onde se conseguem enfiar nas cidades.

    person with green yellow and pink paint on hand

    Mas estas folhas de ontem tinham uma coisa que as folhas de hoje não tinham: tempo. Tinham demorado tempo, tinham custado tempo, tinham durado no tempo, tinham materiais feitos com o tempo infindável da natureza que sempre existia e sempre existirá.

    E isto, simplesmente isto, tinha uma dignidade que não conseguimos hoje ver nas placas pré-fabricadas empilhadas num armazém enorme, sujo de colas e venenos vários que nos apressamos em assemblar por cima da cabeça e respirar intensamente.

    Então, agora passamos por muita construção. Muita mais do que alguma vez a minha avó viu. A terra já não entra dentro da cozinha de casa, o Estado (essa entidade sobrenatural) até já tanto construiu, e tantos de nós saíram das barracas.

    Porque estais então tristes? Porque estais então cansados?

    two children sitting on ground with dried leaves

    Posso ser eu a desenhar o espaço da curva do pescoço onde deveis repousar a cabeça e respirar de alívio?

    Digam-lhes, não nos tirem as casas. Sejam elas como forem, não lhes chamem velhas nem tortas. Não nos digam que o nosso corpo polui o tempo, dêem-nos carinho, cuidado e limpeza. Criar demora, digam-lhes, aguardem.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Agora que já não há pobres…

    Agora que já não há pobres…

    Adeus… No cais, no último dia, crioula e flébil, com a criança ao colo, cujos cabelos louros brilhavam de um navio que viera do Norte, ela dizia-me – … mas leva, leva… – e estendia-me aqueles olhos azuis num corpinho esfarrapado e escuro. Eu perguntei – Mas tu dás-me o teu filho? (como podia eu levá-lo, que loucura a dela). E ela respondeu-me: – Leva… se ele fica aqui, morre de fome.

                    Jorge de Sena

    ANTIGAS E NOVAS ANDANÇAS DO DEMÓNIO (1940)


    Um pequeno ensaio sobre as formas tão bem concebidas que se tornam quase invisíveis de continuar, sistematicamente, a empobrecer a população e a fortalecer os infames 1% de quem já não se aguenta nem ouvir falar. O Trump faz parte dos 1%, o Putin faz parte dos 1%, e chega.


    A Martina veio da Roménia agarrada às três filhas e com pouco mais, fugida num rompante à violência doméstica[1]. Em Estremoz encontrou um namorado romeno, que se chama Cornel e trabalha nas obras, e que, sobretudo, a trata como uma princesa. Também foi em Estremoz que a Martina descobriu uma casinha para viver, arranjou emprego a servir à mesa num dos restaurantes enormes da Feira, mas – e esta é a parte que eu não sei explicar bem, mas pouco importa[2] – enquanto não começar a receber o apoio da Segurança Social e as Autoridades Competentes não certificarem devidamente que a tal besta violenta não anda por aí, não pode ter as meninas com ela. Estão numa espécie de asilo, ou orfanato, ou lar, ou o que queiram chamar a tudo o que diz respeito a armazenar crianças, onde – diz o namorado[3] – “não lhes falta nada”.

    Eu fico calada, mas é evidente que, acima de tudo, lhes falta a Mãe. E há-de faltar-lhes a segurança de saberem que desta vez, no lugar de Pai, está um homem que as estima, que não se mete nos copos, que se farta de trabalhar, e que, com o que ganha e com o pouco tempo que lhe sobra, ajuda a sua nova familiazinha tanto quanto pode.

    A Martina não tem dinheiro para visitar as filhas mais do que de quinze em quinze dias. O Cornel é de uma tal dedicação ao seu novo projecto de vida que tira o dia para ir com ela, e ajuda sempre a pagar as viagens.

    Mas são assim tão caras, essas viagens?

    Quer-se dizer, de Évora para Estremoz o bilhete da camioneta custa 4,80 Euros. E, de Évora para Estremoz, a distância é de 46 quilómetros. Tendo em conta que, do Alandroal para Estremoz, a distância é apenas de 24 quilómetros…

    Que raio de transporte é que vocês usam, para tu teres que ajudar a Marina?

    Oh, você sabe, Dona Clara. Comboio, isso acabou. E camioneta não tem. De maneira que ela vai e vem de taxi, é 60Euros para cada lado, portanto cada viagem é 120Euros. Às vezes ela não tem, mas, como é sempre o mesmo taxista, ele aceita fiado. Só que, depois, ainda fica mais caro.

    Tendo em conta que a bilheteira de Estremoz fica no Bar da Estação da Rodoviária local[4], é inútil ir lá perguntar qualquer coisa a não ser se tem imperial preta ou se só tem branca. Um senhor sempre muito bem posto[5], que é advogado em Lisboa mas foge para a sua terra assim que pode e nessas alturas se cruza frequentemente comigo nos passeios nocturnos do Sebastião[6], indicou-me o Turismo como local onde se pedem informações sobre minudências dessas[7]. E mais acrescentou:

    Não sei se estás bem a ver, mas dantes essas camionetas que fazem a ligação entre as aldeias mais pequenas andavam sempre cheias. Agora, como já não há pobres, toda a gente tem carro, não é? Então claro, cortou-se imenso nesses pequenos trajectos das camionetas.

    Desculpem.

    AGORA QUE JÁ NÃO HÁ POBRES?

    AGORA???

    Mas esta gente vive em que mundo?

    Está mais que estudado, mais que provado, mais que galardoado com o Nobel – toda a gente sabe que não há nada mais fácil do que acabar com a miséria. Só requer vontade política para isso.

    Pelos vistos, esta é a vontade política de uma maioria absoluta que continua a autoapelidar-se de Socialista.

    O raio que os parta.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] O pior, explica ela no seu português ainda muito hesitante, nem sequer era o que o monstro lhe fazia a ela. O pior, mesmo, eram as tareias que dava às filhas quando chegava a casa a meio da noite e podre de bêbado. Chegou a partir a clavícula da mais velha, que aguentou toda a fuga neste estado. Passou um ano e meio. A fractura ainda está a ser tratada no tal depósito de crianças do Alandroal.

    [2] Alguém consegue explicar com absoluta coerência os procedimentos da Segurança Social? E, pior um pouco, por alma de quem é que esses procedimentos implicam separar os pais dos filhos? Desculpem a analogia, mas é que parece mesmo uma daquelas medidas estupendas do Trump.

    [3] Note-se de passagem que este namorado cheio de dedicação tem um corpanzil que mete respeito, e anda a fazer obras cá em casa. Ou seja, aos olhos da população de Estremoz arranjei finalmente um gajo. E que gajo, caros leitores.

    [4] Esse é outro tratamento da população absolutamente indigno. A estação é grande, e costumava ter uma bilheteira, onde uma pessoa podia pedir todas as informações que quisesse. Esta bilheteira fechou durante o primeiro confinamento, e depois nunca mais voltou a abrir. Nem toda a gente tem PCs, nem toda a gente sabe usar a internet, e aliás há imensa gente que nem internet tem. Houve para ali um momento de confusão, em que era frequente as pessoas irem de propósito a Borba, que é uma cidade bastante mais pequena que Estremoz mas ao menos tem bilheteira, para terem a certeza de que estavam a comprar os bilhetes certos. Depois o Bar – que, esse sim, faça chuva ou faça sol, está sempre a abarrotar de convívio com cerveja – viu ali uma óptima oportunidade de facturar mais uns cobres nada desinteressantes, por isso agora a gente compra os bilhetes no mesmo sítio onde compra as empadas e as queijadas. Uma vez a confusão na fila era tal que eu comprei um bilhete para Tavira, e, quando olhei bem para ele, era um bilhete para Lisboa. A senhora da caixa trocou o meu bilhete com o de outra pessoa qualquer. E, para remediar a situação, explicou o caso ao motorista, que se esteve bem nas tintas para a complexidade de tudo aquilo e me levou até Tavira com um bilhete para Lisboa.

    [5] Agora que o dia se prolonga até às 22 horas, e levando em linha de conta que às 21.30 o Sebastião já está no seu posto ao cimo das escadas, a olhar para mim com uns olhos muito grandes de pobre cachorrinho abandonado, vê-se ainda melhor que as camisas do senhor são de botões de punho, que os loafers do senhor são da melhor camurça italiana que há, que só usa cintos de cabedal finíssimo e que nunca anda despenteado – ah, mas tudo isto ainda não é nada. O melhor de tudo, mesmo, é a voz do senhor. Uma autêntica voz de locutor de rádio, em baixo profundo e com sotaque de Estremoz. Este senhor ainda nem fez sessenta anos, quase não tem cabelos brancos, há cerca de três anos deixou completamente de beber, e está disponível. Depois não digam que não vos avisei.

    [6] E não sei se é after-shave se é perfume, ou mesmo se será do shampô com que a sua dedicada Josefa dá banho ao imponente pastor belga que ele traz à trela  – a verdade é que este senhor, além de estar sempre composto, também cheira sempre muito bem.

    [7] Estranhei, não é? Uma banalidade como inquirir da camioneta Estremoz-Alandroal no Turismo? E ele, sempre com aquela sua linda voz, todo satisfeito com o nosso bate-papo porque assim podia fumar um cigarro até ao fim: “Então, ó Professora. Francamente. Hoje em dia, quem é que passa horas a fio a cruzar o Alentejo Profundo nessas camionetinhas que não sejam os turistas?

  • O Aleluia e a chiclete

    O Aleluia e a chiclete


    Não sei bem a que sociedade de consumo imediato se referiam os Táxi, no seu álbum de estreia com o mesmo nome, no longínquo ano de 1981, a década que representou o boom do rock português. 

    Não tenho assim tantas memórias desses tempos, embora já por cá andasse, mas pergunto-me se não estaria a banda de João Grande a antecipar a mudança de século e a sociedade em que nos tornámos.

    Drama, escândalo, miséria e destruição. Tudo consumido ao minuto em doses insuportáveis de sofrimento alheio a que nos tornámos indiferentes. 

    Pensei nisto a propósito de Luis Aleluia, o eterno menino Tonecas como lhe chamaram os jornais no dia em que se soube da sua morte.

    Gosto pouco de abordar dramas alheios sobre os quais, em regra, sabemos ou percebemos uma ínfima parte. Mas parece que Luís Aleluia deixou uma mensagem de despedida, o que me levou a pensar que não tinha mais vontade de andar por cá.

    Este caso é notícia de jornal porque o actor era uma cara conhecida dos portugueses, tal como outros actores, jornalistas, músicos e personagens que nos habituámos a ver, e que, por uma ou outra razão, acharam que era chegada a hora de acabar com o sofrimento.

    Penso, em alturas semelhantes, quantas vezes deve este homem ter pedido ajuda sem dizer muito. Quantas vezes deve ter dado a entender que precisava de algo mais.

    É um traço desta sociedade, a tal de consumo imediato, de já não conseguir ouvir. Não há tempo, não há paciência. Estamos fechados nas nossas rotinas, nos nossos problemas, sem espaço na agenda para quem está ali ao lado.

    Os nossos problemas, as lutas diárias, são o nosso grande drama. Pode ser ir buscar o filho à escola no meio do trânsito da tarde ou discutir a vida da amiga que, entretanto, se afastou. A nossa realidade, por muito simples e corriqueira, não nos permite levantar a cabeça do umbigo e olhar um pouco para o lado.

    man standing in front of the window

    Luís Aleluia disse, numa entrevista há poucos anos, que tinha sofrido maus-tratos e violência em criança. Acrescentou que encontrava amor e felicidade nos amigos e nos palcos. Tal como ele, há um infindável número de anónimos que sofre sem falar, que timidamente assume uma dificuldade, que dá indicações de que o desencanto pela vida vai aumentando. 

    Mas não ouvimos. Não temos tempo. Passamos o dia a consumir qualquer coisa, sem sabor, muitas vezes sem importância, para no dia seguinte começarmos o processo novamente. 

    Mascamos. Deitamos fora. E nunca olhamos em redor.

    A depressão existe e, tal como a sociedade de consumo imediato, mata.

    Sejam simpáticos uns com os outros. Não fechem os olhos aos avisos.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Alice no País dos Lusitanos

    Alice no País dos Lusitanos


    No livro “Alice no País das Maravilhas”, publicado originalmente em 1865, o escritor britânico Lewis Carroll conta a aventura de uma jovem que cai num buraco de coelho e começa uma viagem num mundo surreal e mágico.

    A narrativa começa com a Alice a seguir um coelho branco, apressado, num mundo estranho chamado País das Maravilhas. Lá, ela encontra uma série de personagens peculiares, como o Chapeleiro Maluco, a Lagarta Azul, a Rainha de Copas e o Gato de Cheshire, cada um com características e personalidades únicas.

    O Chapeleiro Maluco conta então, se bem me recordo, uma história irreal e fantasiosa sobre o Reino das Maravilhas, que fazia parte de uma confederação de reinos e prestava vassalagem a um Imperador.

    Mad Hatter costume photography

    Era um dos reinos mais pobres; e, por essa razão, o Rei e os seus ministros imploravam a toda a hora por mais dinheiro junto do Imperador, atendendo que os brutais tributos a que o povo era submetido sempre pareciam insuficientes para cobrir as colossais despesas.

    É certo que o Imperador também não possuía quaisquer recursos, mas possuía uma incrível máquina que produzia dinheiro, uma autêntica magia! Sempre que os reis pediam dinheiro, a máquina começava a cuspir notas e moedas sem fim; desta forma, o Imperador mantinha os seus vassalos felizes, apesar do descontentamento dos povos da confederação, pois os preços, à conta disso, estavam sempre a subir.

    A Corte tinha assim uma vida sumptuosa, o Rei e os ministros viajavam a toda a hora de avião para outros reinos.

    De todos, o Rei era o que gostava mais de viajar. Também gostava muito de ir à praia. Por vezes, até fabricava motivos para viagens oficiais para dar um saltinho a um areal e dar um mergulho em águas quentes.

    O Rei e o seu principal ministro adoravam trapacear o povo, contando-lhe histórias incríveis para o ludibriar e fazer-lhe crer que o amavam muito. Sempre que se encontravam, riam-se a bandeiras despregadas das muitas patranhas que contavam ao povo. Uma vez, até lhe fizeram crer que existia uma doença muito maléfica, para assim o prender em casa e obrigá-lo a tomar uma substância que diziam curar e prevenir a maleita e salvar desde velhinhos caquéticos a jovens robustos. Disseram-lhe que só assim lhe devolviam a liberdade.

    white rabbit standing on grass

    Para além de viajar de avião, o Rei também gostava muito de futebol. Muitas vezes, até tinha por hábito jantar com os jogadores uns dias antes das pelejas, só com o fito de lhes desejar sempre boa sorte. Acreditava também que era um amuleto mais eficaz do que o artilheiro de pés de ouro nascido numa recôndita ilha do reino. Às vezes, até gostava de discutir a táctica com o treinador, ficando altas horas da noite em amena cavaqueira, enquanto se alambazava a petiscos e beberes.

    Certa vez, na véspera de um jogo importante, talvez por estar demasiado concentrado na partida, até se esqueceu de um compromisso: a abertura de um memorial às vítimas de uns incêndios que tinham ocorrido há muitos anos nas florestas do reino e que vitimaram muitas pessoas. Apesar da negligência dos serviços do reino, o Rei e os ministros nunca assumiram as responsabilidades por tal tragédia.

    Espantados com tal ausência, os súbditos pediram uma audiência ao Rei para conhecer os motivos. O Rei não se deixou intimidar. Para espanto de muitos, a sua resposta foi simples e directa: apenas tinha tido conhecimento da abertura oficial, marcada para a semana posterior, pelos órgãos de propaganda do reino, por essa razão, nem à abertura lhe seria possível ir.

    Neste Reino das Maravilhas, não era apenas o Rei que apreciava muito o futebol. O seu principal ministro também. Por exemplo, certa vez, a meio da viagem de avião ao reino dos moldavos, decidiu fazer uma escala para ir assistir a uma partida de futebol, o que gerou muita indignação, pois estas viagens, para além de serem muito dispendiosas, eram sempre pagas pelo povo.

    Mas o Rei tinha sempre uma boa história. Para terminar com aquele burburinho, disse que nada de especial tinha acontecido, apenas a falta de gasolina a meio da viagem; por mera coincidência, ocorrera ali uma partida de futebol e o seu ministro aproveitou para passar o tempo e dar um abraço a um súbdito especial que ali estava, enquanto o avião era reabastecido. Coisa de meia hora.

    Mas a revolta não cessava, com muitos a questionarem-se como tal tinha sido possível, pois parecia-lhes improvável um ministro tão experiente não ter instruído correctamente os pilotos no planeamento da dita viagem. Para acalmar os seus súbditos, disse-lhes que afinal não tinha sido falta de gasolina, mas apenas uma decisão de última hora do seu ministro; afinal, tal como o Rei, ele gostava muito de futebol.

    A agitação teimava em continuar no Reino das Maravilhas. Tinha sido a falta de gasolina ou uma decisão de última hora? As dúvidas persistiam. O ministro, a pedido do Rei, informou os súbditos que o seu gabinete ia dar uma justificação cabal sobre o assunto. Passados uns dias, ela apareceu: tinha recebido um convite para o jogo de futebol e decidira aceitar, atendendo que apenas obrigava a uma paragem a meio do caminho.

    O povo, obnóxio e arruinado por avultados impostos, tinha aprendido uma lição. O Rei e os ministros necessitavam de divertir-se para lhes proporcionarem um bom governo. Tão-só. Não valia a pena levantar dúvidas ou solicitar explicações, no final, era claro que existia sempre um fundo nobre a guiar todas as decisões: o eterno amor ao futebol, essencial ao espírito de uma boa governação.

    group of people playing soccer on soccer field

    Para além destes contos mirabolantes do Chapeleiro Maluco, recordo-me que, no livro de Lewis Carroll, a Alice depara-se com mais situações absurdas e ilógicas. Ela encolhe e cresce de tamanho várias vezes, participa de um chá insano com o Chapeleiro Maluco e a Lebre de Março, joga com flamingos e ouriços e testemunha um julgamento maluco conduzido pela Rainha de Copas.

    Durante a sua jornada, Alice tenta entender as regras e a lógica desse mundo estranho, mas descobre que tudo parece estar ao contrário daquilo a que está habituada. As conversas com os personagens levam-na a questionar conceitos de identidade, linguagem, realidade e lógica.

    Finalmente, Alice acorda e percebe que tudo o que aconteceu foi um sonho: afinal, tinha sido uma visita fantasiosa ao País dos Lusitanos.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


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