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  • Entre o certo e o errado, mais 1.000 milhões (de dólares) para mortes em prime-time

    Entre o certo e o errado, mais 1.000 milhões (de dólares) para mortes em prime-time


    Ontem tinha alinhado com os meus botões outro tema para a crónica de hoje, mas a actualidade estragou-me os planos.

    Li que os Estados Unidos tinham disponibilizado mais 1.000 milhões de dólares para a guerra na Ucrânia e comecei a fazer contas à vida. Tenho alguma dificuldade em perceber esta cascata de dinheiro despejado na guerra – e aqui confesso que pode ser um problema herdado da minha profissão.

    Pagam-me para arranjar soluções. Não importa agora para quê. Dão-me problemas e pedem-me soluções. Lógicas, e que nos façam chegar a um produto final que, por sua vez, será vendido a quem o quiser comprar. É na perspectiva desta lógica que olho para o apoio à guerra da Ucrânia. Já passou a fase da emoção, da moralidade, do certo ou errado. Olho para ali e penso: “como é que se resolve isto?”

    Exploded House in Borodyanka

    Para vos ser sincero, a fase da emoção não durou muito. Durante 20 anos andou a União Europeia a branquear o regime russo a troco de gás, e mal meteram os pés no Donbass passaram a ser uma ditadura. Quando cortaram o mapa ali pelos lados da Ossétia, Chechénia ou até Crimeia, ainda eram apenas os nossos fornecedores de energia.

    Lembro-me sempre da frase de Macron, numa reunião de líderes – em 2022, e a memória não me falha –, afirmando que era preciso pedir aos sauditas que aumentassem a produção de petróleo para compensar o boicote à Rússia. Pelo meio, ainda vimos Ursula Von der Leyen a fazer “parcerias estratégicas” com o Azerbaijão para conseguir mais umas botijas de gás.

    Portanto, esta coisa de escolher “democracias amigas” à la carte, e consoante os interesses do momento, é prática que nunca me seduziu.

    A moralidade ainda foi mais constrangedora porque, de repente, a fazer fé na comunicação social portuguesa, o Planeta Terra vivia em paz e todos tínhamos de apoiar a resistência ucraniana: com dinheiro, com soldados, com armas, com as nossas casas. Com o que calhasse.

    Abandoned Battle Tank

    Lembro-me de ter falado nisso ainda o primeiro drone não tinha sido usado e ouvir o novo cognome de “whataboutista”. Ou seja, quem pergunta os porquês de tamanha dedicação à causa ucraniana, em contraponto com a História dos últimos 70 anos, passou a ser uma “whataboutista” – e mais tarde um “putinista”.

    Mas, afinal, o que separa ucranianos de arménios, palestinianos, iemenitas, sérvios, afegãos, curdos, sírios, tibetanos, taiwaneses, georgianos, cubanos, paquistaneses, indianos e tantos outros povos a braços com guerras e ou disputas territoriais? Eu respondo: o interesse, momentâneo, de outros impérios em desgastarem o império invasor. Apenas isso. Algo que muito pouco terá a ver com a defesa territorial ucraniana, e ainda menos com a hipócrita tentativa de salvar vidas.

    É muito difícil, ao fim de ano e meio, continuarmos a discutir a invasão da Ucrânia à luz do certo ou errado. Se assim fosse, teríamos de o fazer para uma enormidade de povos que por isso passam há décadas. E não, não é “whataboutismo”, é apenas não ser idiota e perceber que o Mundo não se divide entre impérios bons e impérios maus. Divide-se entre impérios e seus seguidores. Se é império, não é bom – é tão simples quanto isso.

    black barbwire in close up photography during daytime

    Resta-me, pois, a visão prática que, como expliquei ali em cima, me chega por defeito profissional. Vão os 1.000 milhões de dólares mudar o curso da guerra? Não, não vão.

    Podem os Estados Unidos (e a União Europeia) continuar a despejar dinheiro e a pedir aos ucranianos, àqueles que não vão morrendo, que, em princípio, o resultado final não se altera.  Há algum analista, algum militar, algum comentador, tirando o Zelenski e os seus comandantes mais próximos, que tenha dito que com mais armas e dinheiro a Ucrânia consegue vencer esta guerra? Julgo que não, pelo menos não me lembro de ninguém. Espera…talvez o Isidro da CNN que diz, todas as semanas, que o [inserir aqui nome da arma] vai ser um game changer no curso da operação.

    Mais dinheiro até agora resultou nas mesmíssimas zonas ocupadas pelos russos, em milhares de mortos de parte a parte, na divisão das diplomacias em dois blocos – onde o ucraniano começa a ser minoritário, ao contrário do que a União Europeia nos vai vendendo – e num empobrecimento geral das democracias que são forçadas a enviar dinheiro. Sim, forçadas. Ninguém perguntou aos contribuintes europeus se querem aumentar o investimento na defesa, mas os impostos são canalizados para lá na mesma. Ninguém nos perguntou se concordamos com o ataque cerrado do Banco Central Europeu (BCE) para corrigir o efeito da inflação, mas, a reboque da guerra, tivemos de aceder à duplicação dos custos para a habitação.

    a pile of money sitting on top of a wooden floor

    Se despejar dinheiro não resolve o conflito, qual o motivo de o continuarmos a fazer? Estão a ver o sentido prático da coisa? Se mais uns milhões de pessoas ficarem sem casas, perderem empregos, não aguentarem o custo de vida e rebentarem em dívidas, enquanto enviamos uma ou duas cascatas de dinheiro para a Ucrânia, embrulhadas em tanques e F16… conseguimos, nós, os do império bom, expulsar os russos? Se sim, vamos lá empobrecer um bocado. Se não aparecer um daqueles generais velhotes a dizer que é possível, então se calhar parávamos com isto e tentávamos chegar a um acordo numa mesa qualquer.

    Aquela conversa de apoiar a Ucrânia pelo tempo que for necessário é muito bonita, mas como devem compreender, não é real. Não há apoio eterno a ninguém. Quer dizer, a ninguém que não seja israelita. Ou que não tenha muitos poços de petróleo. Assim é que é.

    Há quase dois anos que andamos a tentar uma só solução que, invariavelmente, produz os mesmos resultados. Não sei como funcionam as reuniões entre Bruxelas e Washington, mas se eu apresentasse estatísticas destas, no meu trabalho, já me tinham despedido.

    Há uma e uma só hipótese que qualquer pessoa de bom senso consegue perceber: negociar. Sem “mas” ou discussões de ética e moralidade. Há um problema real que afecta toda a gente e que não tem solução no campo de batalha. Despejar dinheiro não salva ucranianos e só adia a decisão final. Chegaremos sempre ao mesmo ponto – e com um número de mortos maior.

    oval brown wooden conference table and chairs inside conference room

    Isto, claro, partindo do princípio de que a alucinação que faz os sonhos molhados de alguns (a NATO entrar directamente no conflito de forma oficial – pela outra já lá está) continua a ser colocada de parte, como parece ser o caso. Os Estados Unidos aparentemente estão contentes com o negócio e não parecem dispostos a trocar sangue. Desta vez, ficam-se pela promoção do evento, troca comercial, venda de pipocas no espectáculo e, no fim, tomam o lugar do concorrente mais cotado quando ele estiver cansado.

    Ninguém, na verdade, parece estar muito preocupado com os ucranianos hoje ou o que sobrará da Ucrânia amanhã.

    Enfim, há dias, um leitor deste nosso jornal colocou-me a seguinte pergunta: “não tem a Ucrânia o direito de se defender e não deve ser apoiada nesse esforço?”. Eu disse-lhe que a resposta era tão longa e complexa que daria um texto. E deu.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A corrupção pavoneia-se em Portugal

    A corrupção pavoneia-se em Portugal


    Há uma corrupção entranhada, enraizada na sociedade portuguesa. E mais perniciosa porque feita à descararada, é pública e notória, todos os dias se passeia, se pavoneia, nos registos do Portal Base, defronte dos olhos dos contribuintes, do Tribunal de Contas, do Ministério Público, das pessoas de bem.

    Temos um país supostamente democrático que, com a sua dimensão, com a sua estrutura burocrática, não consegue, ao fim de meio século de democracia, eliminar o obscurantismo e a falta de rigor na aplicação de dinheiros públicos, tendo, ao invés, transformado a contratação pública no mais medonho campo de cultivo da corrupção que se tem metastizado em todos os sectores da res publica.

    euro banknote collection on wooden surface

    Bem sabemos, conhecendo a natureza humana, que nem com os concursos públicos conseguiremos evitar desvios e enviesamentos nas decisões de como gastar melhor os dinheiros públicos, mas a decência democrática não pode suportar que, por dá cá esta palha, se opte pela celebração de contratos por ajuste directo. Não é um, nem dois, nem de vez em quando; está a tornar-se uma anormal normalidade.

    O ajuste directo é, de uma forma simplificada, feito depois de alguém com funções públicas pegar num telefone e, enfim, falar com outro alguém de uma empresa para resolver um alegado problema público, pago exclusivamente com dinheiros públicos, e isto por causa da urgência ou de outras justificações espatafúrdias para que se caia na alçada das excepções muito maleáveis do Código da Contratação Pública.

    Nesse acto não se sabe, na esmagadora maioria das vezes, as razões da escolha (porquê esta e não a outra empresa) nem se o motivo se justifica, até porque, em muitos casos, temos contratos de centenas de milhares de euros – ou até de milhões – para a compra de bens ou serviços que, em abono da verdade, era fácil de prever com muita antecedência que seriam necessários, e então justificar-se-ia lançar um concurso público.

    euro, gift, hand

    Em apenas oito meses, de acordo com uma rápida análise do PÁGINA UM, contratos públicos por ajuste directo acima de 100 mil euros já ultrapassaram os mil milhões de euros. É uma enormidade, e não é preciso especular demasiado para perceber que, em grande parte dos casos, há corrupção pura e dura – que só o desinteresse intencional dos partidos políticos (todos) e a passividade do Ministério Público e do Tribunal de Contas se mantém e prolifera.

    O Boletim diário que o PÁGINA UM decidiu começar a publicar este mês, destacando sobretudo os contratos por ajuste directo, responde a uma necessidade de recordar, em cada dia, esta situação infesta.

    Talvez assim se comece a reparar que os ajustes directos não se fazem apenas na execução de empreitadas de construção civil ou na aquisição de medicamentos – talvez a única situação em que o ajuste directo se poderá justificará em muitos casos, embora a necessitar de outro tipo de controlo sobre os administradores e médicos influenciadores –, mas em muitos outros sectores.

    Cito três, por serem tão evidentes, onde se mostra urgente uma espécie de Operação Mãos Limpas: 1) serviços de segurança e vigilância; 2) limpezas de instalações; e 3) restauração e catering.

    Close-Up Photo Of Person Cleaning The Table

    A quantidade de contratos sucessivos por ajuste directo para estes três tipos de serviços – onde proliferam diversas empresas, onde a concorrência é, por isso, extremamente forte, e as necessidades são contínuas – não é justificável num quadro de transparência. Salta à vista aquilo que se passa. Em alguns casos, estamos a falar de contratos de milhões de euros.

    Mas o problema da corrupção financeira é que também ela é moral. Quando falamos de corrupção, através de contratos por ajuste directo, estamos a tratar também de contratos de poucas dezenas de milhares de euros, que servem para “ajudar” a empresa do “amigo”, ou do “afilhado” ou do “militante”. É para isso também que os ajustes directos servem: através de dinheiros públicos “amigar” gestores públicos e políticos com certos empresários, muitos que criam empresas ao domingo para contratar com entidades públicas no dia seguinte, e não apenas pelos lindos olhos de cada uma das partes.

    Enfim, tudo isto não tem sido nem será jamais bom para o contribuinte; mas é seguramente excelente para as empresas que vão singrando consoante as operações de “relações públicas” e outras mais “privadas) – e muitas que são preteridas em certos contratos por ajustes directos, nem se queixam, esperando que venham a beneficiar de similar esquema através de outras entidades públicas.

    E lamentavelmente, tudo isto também é, acredito, muito benéfico financeiramente para muitos políticos e gestores públicos.

    five red apples on white surface

    Através do PÁGINA UM, e sabendo que este é um caminho solitário na imprensa – até porque, enfim, as próprias empresas de media também assinam contratos por ajuste directo, alguns sem ser sequer reduzido a escrito –, procurarei com a divulgação dos Boletim P1 da Contratação Pública e dos Ajustes Directos – e também com os rankings mensais dos contratos mais chorudos, também com a lista das entidades públicas e das empresas privadas que mais recorrem a expediente – sensibilizar os leitores, os cidadãos e contribuintes, para um problema que mina e continuará a minar a democracia.

    Pode ser apenas uma voz isolada, sem significado, a gritar que o rei vai nu – e pode mesmo, ao contrário do conto de Hans Christian Andersen, isto não servir, por agora, para nada. Porém, pelo menos não participei no deboche à democracia. E isso, como contribuinte, pode não me servir de consolação – porque a corrupção é uma forma de roubo e também de abuso de confiança –, mas como cidadão servirá de consolo: pelo menos, eu tentei.

  • Vencem-nos pelo cansaço

    Vencem-nos pelo cansaço


    A estrutura de atendimento de doentes hoje é uma escada de insatisfação. O primeiro degrau é o das pessoas, elas mesmas, que estão insatisfeitas com a vida, com o custo desta, e com a desesperança de trabalhar e não conseguir sair da cepa torta. Trabalhar não garante Habitação, Educação, Segurança, Justiça e Saúde. Mais grave é que não garante aquecimento ou conforto. É o maior falhanço da governação portuguesa.

    Isto traduz-se em depressões, ansiedades, desespero, relações doentes. Casa onde não há pão…

    O degrau seguinte é buscar soluções gratuitas onde se inclui o recurso a urgências hospitalares. As urgências servem para suprir a falta de Medicina Familiar, a má prestação aos cuidados continuados, a ausência de apoios eficazes nos lares, os constrangimentos criados sobre as consultas privadas.

    Em França, a opção pode ser consultar um clínico, fazer os exames que pede e o dinheiro segue o paciente. Assim se retiram milhares de pessoas de urgências sobrelotadas. É o misto entre público e privado. Aqui a ideologia não quer. Se tenho um problema de pele poderia ir a um atendimento dermatológico. Se a próstata me perturba ia a um urologista.

    Deste modo, o Estado pagava o valor que custam estes atendimentos, directamente aos clínicos nos seus espaços. Mas claro que a ideologia tem destruído, com milhares de regras e certificações, o exercício privado e pessoal da Medicina.

    Os constrangimentos forçaram a encerrar o que nunca causou problemas, para agora produzir monstros empresariais que abrem como cogumelos na voracidade das seguradoras. 

    O degrau seguinte foi encerrar portas de atendimento para barrar o acesso desta vertigem que são as queixas miúdas, as queixas pequenas. Os doentes não sabem se o que agora sentem é grave, mas ouvem esses canais televisivos de estupidez sem fim a lançar o pânico, a conduzir a discursos de medo. Podiam verter a estratégia em ensino, em formação do simples, em atendimentos por Whatsapp filmados em directo. O queixoso adoraria ver-se na TV e a sua questão respondida em directo seria uma aula. Torci o pé, apareceu-me rubor na mama, hoje tenho o rabo quente, sinto este sinal a crescer… Construíamos doutores da mula russa, mas agora com a experiência de terem visto algo semelhante na TV.

    O degrau maior é o espaço de urgências como a do Hospital dos Covões, onde um ou outro médico se atreve a enfrentar a horda de queixosos que não tem outro lugar onde ir. São dezenas de pedintes de clemência e ajuda por aquilo que não sabem se é grave, mas não têm outra porta, ou não a querem usar, ou acham que nas urgências é melhor.

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    A verdade é que esperam, fazem alguns exames, são vistos de modo indiferenciado entre indigentes mal comportados, loucos sem soluções na actual organização dos serviços públicos psiquiátricos, ansiosos crónicos, superutilizadores de urgências (milhares inscrevem-se mais de 15 vezes por ano em urgências, além de consultas, atendimentos privados), etc.

    Neste processo, a gestão não se preocupa com os tempos de espera, não se preocupa com a falta crónica de agentes de qualidade, com agentes médicos que aportam eficiência. A urgência dos Covões é já uma anedota e um case study do que não devia estar aberto no sistema.

    O problema não são os doentes, nem os serviços, mas a ausência de uma Administração Regional de Saúde (ARS), a ausência de liderança do sistema. Uma ARS ausente, de cabeça enterrada na areia, sem soluções de atendimentos, sem avançar estudos sobre a satisfação dos doentes.

    man in black t-shirt lying on couch

    Hoje, dezenas de doentes abandonam as urgências, vencidos pelo cansaço, tentando soluções que desconheço, fugindo do desespero que é ser pobre apesar de trabalhar.

    A realidade é uma trovoada de desinteresse, um lugar onde o director de urgência do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC) nunca aparece, onde o gestor-mor do CHUC nunca se inscreve para perceber aquilo que construiu. Ando tão envergonhado desta peça de teatro em que me colocaram de actor! 

    Diogo Cabrita é médico


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Vitória de Guimarães 4.0

    Vitória de Guimarães 4.0


    A experiência é um posto – um lugar-comum que, vistas as coisas como são, se usa (o lugar-comum) por isso mesmo: por se aplicar em muitos casos, e ainda melhor no caso em apreço deste cronista, eu, que, ainda esta tarde, munido da experiência, andei à caça dos abusos em ajustes directos em contratos públicos, e agora aqui estou, muito célere na viagem, graças à experiência, de já saber todos os ritos, neste preciso momento, a ver a aquilina Vitória (que já foi buzzard) esvoaçando.

    Sinal, portanto, de chegada bem antes do apito inicial, e sem ter de encetar jornada duas horas antes para compensar percalços e engulhos. Ou seja, já calejado pela experiência anterior, mais lesto e em passo decidido me vi, e mais quem quis ver (que deve ter sido só os seguranças), assomar à tribuna de imprensa, não direi em apoteose, mas já munido do corriqueiro e usual, mas mesmo assim aconchegante, lanchezinho para recuperar as energias derretidas nas escadarias. Não tive de descer para o ir buscar como há duas semanas, que me esquecera de pedir a senha.

    Mas nem me estava muito a lembrar de experiências deste jaez; nesta minha novel e nobre função de cronista da bola tenho ainda muito a aprender, a saber: trazer um casaquinho a partir de Setembro, que aqui na Varanda da Luz, ventando, já faz um fresquinho incómodo…

    (entretanto, começa o jogo; podem ver a concorrência para conhecerem as formações iniciais das equipas…)

    Na verdade, falava mais na “bagagem” que trouxe, na mochila, para tema a propósito, ou ter um tema de propósito: sendo a peleja contra Vitória Sport Clube, achei que poderia haver algum alinhamento favorável, não sei bem a quê, se trouxesse o livro saído do prelo e dado sogrinha mesmo à estampa pela Kathartika, uma editora de Guimarães, sobre um certo espanhol do mundo de futebol vítima de alopecia totalis.

    (ai, ai, ai, ai, que o Vitória quase marcava… bola ao poste; estivesse o Vlachodimos na baliza e com o azar do grego seria golo, e o Roger Schmidt culpá-lo-ia da abébia do defesa benfiquista… e às tantas ainda era golo.

    Entretanto, como não posso estar a interromper a escrita em cada parágrafo, acrescento só agora que, minutos atrás, o Di Maria quis fazer um chapéu ao Bruno Varela, mais outro antigo guarda-redes do Benfica algo maltratado, mas saiu-lhe copa baixa).

    Retomando a meada ao fio. Não, não estou a falar do famigerado ou facinoroso Luis Rubiales, mas sim do mais comedido e discreto Roberto Martínez, o agora seleccionador português de quem sei muito pouco, ou quase nada, a não ser que fora um mediano médio do Wigan, e de outros clubes secundários das Terras de Sua Majestade, antes de enveredar pela carreira de treinador da Bélgica, e nos ter eliminado no Europeu de 2020, que afinal foi no ano seguinte. Enfim, estranho mundo da Ludopédia, onde se contratam os generais que outrora nos derrotaram os sonhos…   

    (Goloooo… caraças, grande trivela do Di Maria, e excelente cabeçada de Jorge Fernandes, cuja folha salarial ainda por cima não é assinada pelo Rui Costa mas sim pelo presidente do Vitória de Guimarães, que não sei quem é [fui ver: chama-se António Miguel Cardoso; eu desde o filósofo Pimenta “o que hoje é verdade, amanhã é mentira” Machado que pouco sei das lideranças vimaranenses)

    Tenho a insuspeita esperança de não ter tempo de dar uma leitura ou folheadela nesta biografia do espanhol, escrita por um jornalista belga (Benoit Delhauteur), mesmo se adianto que, por curiosidade, já vi que tem bonecos (fotos) e que termina na actualidade, porquanto fala no CR7, e garante já que Portugal está apurado e que, por isso, aparentemente o jogo da próxima na Eslováquia será a feijões. “Marquemos então encontro para assistir ao episódio seguinte da saga, na Alemanha, onde terá lugar o próximo Campeonato da Europa, em 2024” – esta é a derradeira frase…

    (tenho um feeling que não vou ter tempo, porque entretanto um [imprudente] golpe de artes marciais do João Mendes sobre o Otamendi, com o competente cartão vermelho subsequente, leva-me a pensar que isto hoje vai ser mais fácil do que as três vitórias do Vitória nas três primeiras jornadas do campeonato poderiam pressagiar)

    Até porque, na verdade, trazia aqui preparado um discurso sobre treinadores espanhóis que, no caso do Benfica, não trazem boas memórias: José António Camacho, que andou por aqui duas épocas há duas décadas, não conseguindo melhor do que o segundo lugar na Liga – o que para um benfiquista que se preze é um rotundo fracasso –, e Quique Flores, que, em 2008-2009, melhor não fez, com um triste terceiro lugar, apesar do então apoio da Orsi Fehér

    (olha, dito e feito: golo do Di Maria. Isto promete ser jogo fácil, até porque, enfim, mesmo em ritmo pouco intenso [isto sou eu aqui a dizer, refastelado numa cadeira], o Benfica está agora a jogar bem, com bom entrosamento [caramba, já escrevo futebolês à segunda crónica] e objectividade)

    Diga-se, também, que o Porto teve os “seus” espanhóis: estava aqui a pesquisar, na memória e na Internet, e apanho o Víctor Fernández, na época de 2004-2005, e sobretudo o Julen Lopetegui, entre 2014 e 2016, que deveria ter ficado mais anos para maior felicidade do Jorge Jesus aqui na Luz.

    Confesso que sou, porém, um optimista, porque, mesmo trazendo algum trabalho feito de casa e alinhavado umas ideias sobre aquilo que seria uma crónica sobre este jogo contra o Vitória, esta se mostra difícil de compor quando se tem de “tener un ojo al gato y otro al garabato” – expressão que melhor fica aqui, não só por andar em castelhanices, mas sobretudo por, desta sorte, evitar o uso do mais problemático “ter um olho no burro e outra no cigano” –, porque as “incidências” até estão a ser agradáveis, e pouco apetece tirar os olhos do relvado.

    (e nem de propósito, o turco Köckü faz um golo de “belo efeito” [estou a ficar lindo, com repetidos idiotismos futebolísticos] ao “fechar do pano” [irra!] já nos descontos, que agora são à meia dúzia, mesmo quando na primeira parte)

    Entretanto, o intervalo sempre serve para ir dando uma mirada no texto já escrito e para sacar incorrecções e gralhas, bem como para complementar um ou outro “apontamento”. E…

    (e… o Aursnes nem me dá tempo para escrever mais um parágrafo para compor melhor a estrutura da crónica, marcando o quarto para o Benfica logo a abrir o segundo tempo. Será hoje o mítico 15 a 0?)

    Isto hoje, de facto, vai ser uma crónica estranha – se é que seria suposto não ser –, o que agrava as expectativas para as seguintes, porque saindo-me mal nesta segunda da presente época, por não conseguir estancar o entusiasmo de lampião por uma noite agradável, acabo por hipotecar as seguintes, porque vou granjear ódios de leitores portistas, sportinguistas – e quiçá, vimaranenses, se forem muitos (acho que não) –, e não demonstro um pingo de equidistância e independência clubística. Ao cuidado da CCPJ e da ERC…

    Que seja! Ganho por 4, ganho por mil.

    Enfim, e logo eu que até estava a pensar, depois de falar mais do livro do Roberto Martínez – ainda por cima com a capa onde se destaca o vermelho e branco, apenas com o dito espanhol com parte da cabeça em perfil –, que ainda teria tempo para abordar a situação financeira do jornal desportivo A Bola, que tem jornalistas e o Sindicato em polvorosa por os novos donos, os suíços da Ringier Sports Media Group, quererem mandar dois terços da força de trabalho para o olho da rua.

    Pudera! A empresa de A Bola está em piores trabalhos do que o Vitória de Guimarães hoje na Luz, e nem sequer vê uma luz salvadora ao fundo do túnel. Pelo que vejo das contas do ano passado (e trouxe os papéis para cotejar o “desastre”), tem um capital próprio negativo de quase 1,7 milhões de euros, contabilizou receitas de 8,6 milhões de euros, e depois gastos de cerca de 3,6 milhões de euros para pessoal e um pouco mais de 3,9 milhões de euros em serviços externos, além de um serviço da dívida (devido ao elevado endividamento) que lhe “comeu” o parco valor positivo dos resultados operacionais. Tem ainda uma dívida ao Estado de 252 mil euros. Já vimos pior, não vimos, Luís Delgado? Já vimos pior, não vimos, Marco Galinha?

    A empresa de A Bola parece uma equipa de futebol português, com a diferença de que a administração de um clube de futebol não despede dois terços dos jogadores esperando que as receitas se mantenham e os lucros venham… Enfim, voltarei ao tema nas páginas normais do PÁGINA UM sobre a situação financeira das empresas de media.

    (depois do quarto golo, tudo mais calmo… vou agora descansar um pouco, e desfrutar da Varanda da Luz, enquanto termino o lanche)

    Entretanto, isto animou aqui para os lados da tribuna da imprensa, ao minuto 76, onde estou rodeado por radialistas, que agora confirmo serem garantidamente de Guimarães, porquanto um atabalhoado golo do Vitória acaba de ser celebrado com um entusiasmo semelhante ao relato de Victor Hugo Morales do “El Gol del Siglo”, com que Maradona sentenciou a vitória da Argentina no Mundial de 1986. Enfim, pena que o resultado já estava no 4 a 0; e 4 a 0 continuará, porque o Nélson da Luz (Luz, caramba!, os astros estão todos ao favor da Luz) meteu mão à bola. Valeu pela foto que tirei ao radialista, que até veste vermelho, e que não parecia tão empenhado a gritar golo quando foram os outros quatro do Benfica. E esses valeram…

    (e, passando o tempo, a acertar mais uns pormenores, um penalti a favor do Benfica; Di Maria já com a bola na mão para facturar o bis… e o VAR anula a decisão. Bolas: era uma mão-cheia hoje)

    Fica para a próxima. E por aqui me fico, que ainda se tem de fazer mais uns acertos e caçar gralhas – e eu nem tenho olhos de águia. E meter isto no site do PÁGINA UM ainda demora uns minutos, e se não me despacho ainda me apagam… a Luz.

    Ah! e a próxima crónica, se não me engano, será com o Futebol Clube do Porto… se me deixarem vir ou se me concederem a devida acreditação.

    As luzes vermelhas, entretanto, ainda continuam acesas, só vejo ali um companheiro em escritas, e eu tenho de regressar a casa para descansar, e estar também com quem desejo estar, que a vida não é só futebol… Digo eu, que não paro de escrever.

  • Mas afinal que mal vos fez o Avante?

    Mas afinal que mal vos fez o Avante?


    Três anos depois, ainda estamos, por aqui e por ali, a discutir a mesma coisa: o ódio ao Avante. 

    Para um povo que gosta de festa em geral, venha ela de onde vier, esta comichão com a rentrée do Partido Comunista Português é algo que me fascina.

    Primeiro, foi a pandemia e o perigo de contágio na Quinta da Atalaia. Depois, foi a guerra e a fábula do apoio à Rússia. 

    Notem que eu até compreendo os gritos do Milhazes sobre o tema: ele, que durante algumas décadas andou esquecido a viver (e comer) à custa do regime que agora critica, precisa desta sua versão de Milhazes para continuar em antena. Parecendo que não, é mais confortável estar na antena da SIC do que numa cabana na Sibéria a traduzir as memórias do Estaline.

    Agora vocês, leitores inteligentes e sem amarras, podem olhar para o Avante de uma forma mais prática e menos apaixonada.

    Digam-me: que tipo de português não aprecia um bom festival gastronómico? Tasquinhas com diferentes sabores a preços económicos. Iguarias dos 18 distritos portugueses. A possibilidade de almoçar espetada em pau de louro (na zona da Madeira). Jantar uma carne de porco à alentejana (na zona de Beja). Um moscatel para abrir o apetite na casa de Setúbal. Uma queimada bem forte, lá para a madrugada, na Galiza, ali perto das tascas internacionais.

    Portanto, se não gostam de música, livros, política, teatro ou actividades desportivas… podem ir lá só pelo comer.

    Se gostam de música, normalmente o cartaz é interessante e distribui-se por mais do que um palco. Há uma orquestra com obras clássicas, há música popular, há rap, há metal, há rock, há músicas do mundo; enfim, o teu estilo passa ou passou por lá, certamente. 

    Depois de se ter “pedido”, no ano passado, que os artistas boicotassem a Festa do Avante, este ano o nosso Zé Milhazes foi mais comedido e pediu-lhes só que anunciassem, antes de cada actuação, se apoiavam a invasão da Ucrânia ou não. Reza a lenda que o bom do Zé exigiu aos Red Hot Chilli Peppers que declarassem o seu desagrado com o consumo de álcool pelos jovens, antes de actuarem no Super Bock, Super Rock.

    Eu aprecio muito esta fábula do “se vais ao Avante, apoias a invasão da Ucrânia”. Desde logo porque tenho uma vida onde a pressão é uma constante e necessito de momentos de descontracção. A frase: “o PCP apoia a Rússia de Putin”, tem sido a minha favorita desde que aqueloutra do “são só 15 dias para achatar a curva” saiu de circulação. 

    Andava o sr. Putin a vender gás por toda a União Europeia e aos beijos com os principais líderes, e já o PCP escrevia contra as suas acções. Tal como no tempo de Iéltsin. Mas Milhazes, que andava nessa altura a fazer pela vida e que classificou em Junho, o regime de Putin como extrema-esquerda, não deve ter reparado de que lado ficou o PCP.

    Continuando…

    Vamos então assumir que também não ligam a música, e que a comida não vos puxa. Podem ir ver teatro ou até navegar perdidamente pela feira do livro. É certo que encontrarão por lá as obras do Manuel Tiago, mas, que diabo!, algum livro vos captará a atenção. 

    Se a literatura também não for a vossa praia, então é porque, em princípio, gostam de jogar à bola. Pois bem, formam uma equipa e entram nos torneios. No fim, bebem umas cervejinhas e, se ignorarem as camisolas do Che, até parece que estão na praia com os amigos.

    Portanto e em resumo: há uma infinidade de razões para irem a uma festa, para lá da componente política, por esta reunir vários tipos de eventos num só local.

    Dito isto, mas se vocês forem do tipo que não gosta de comer…

    Ou se forem do tipo de terem pezinhos de chumbo para a dança…

    Ou se forem do tipo de não querer jogar uma futebolada…

    Ou se forem do tipo de desdenharem um copo…

    Ou se forem do tipo de adormecer num teatro…

    Ou se forem do tipo de nem estarem virados para bancas de livros…

    Ou se forem do tipo de nem apreciarem um concerto…

    Ou, enfim, se forem do tipo de nem sequer quererem estar na converseta entre amigos…

    Então… vocês são só chatos, perdoem-me a revelação. 

    Mas, nesse caso, ainda há uma solução: fiquem em casa… a ver o Milhazes.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Rubiales: entre o feminismo e a hostilidade aos homens

    Rubiales: entre o feminismo e a hostilidade aos homens

    No auge do movimento MeToo, Marianne Williamson, uma escritora norte-americana e candidata presidencial pelo Partido Democrata nas últimas eleições, fez uma publicação na sua página de Facebook em que alertava para os excessos do clima persecutório instalado em relação aos homens, dizendo que, no que toca ao assédio, “existe uma diferença” entre um “criminoso” e um “idiota”.

    Choveram críticas por parte dos seus seguidores. Dias depois, Williamson revelou ter sido vítima de violação na sua juventude. Aqueles que se apressaram a julga-la só podem ter engolido em seco ao saber que a autora tinha sido vítima, não de um mero “idiota” que lança um piropo indesejado ou se atreve numa investida um pouco mais arrojada, mas, efectivamente, de um crime horrendo e cobarde.

    O beijo de Rubiales é uma situação que se encaixa na perfeição à advertência de Williamson. Não sei se Rubiales é um idiota – talvez! –, mas muito dificilmente se poderá, racional e honestamente, acusá-lo de ter cometido um crime.

     As feministas radicais, inebriadas como sempre pela sua misandria, sôfregas por qualquer pseudo-escândalo que sirva de oportunidade para gritar aos quatro ventos os chavões do “machismo tóxico” e “patriarcado opressor”, aproveitaram o caso Rubiales para se lançarem uma vez mais num apedrejamento público digno da Idade Média.

    Com o respaldo da comunicação social, que sem despudor se posiciona sempre no mesmo lado da barricada – o do feminismo bacoco hegemónico –, e das verdades absolutas, enquanto finge ser imparcial e democrática, o assassinato de carácter de Luis Rubiales, sem qualquer direito a defesa no “tribunal” da opinião pública, é já irreversível.

    Na CNN, há poucos dias, a directora da Visão, Mafalda Anjos, afirmava que são muitos e variados os exemplos de beijos e afectos públicos não consentidos, mas, para provar o seu argumento, precisou de ir buscar um caso ocorrido há 20 anos, entre Halle Berry e Adrien Brody numa cerimónia dos Óscares. De facto, nada mais demonstrativo de uma “pandemia” de assédio, do que ter de reportar-se a um episódio que se passou há duas décadas!

    Ainda assim, mais confrangedor do que ver feministas militantes e jornalistas de órgãos de comunicação social falidos nas suas habituais pregações, tem sido assistir à quantidade de homens que se perfilam para arrasar Rubiales numa mesquinha sinalização de virtude. Será este fenómeno inverso da mítica “solidariedade masculina” um espelho da progressiva queda de testosterona entre os homens, nas últimas décadas?

    É também de salientar a hipocrisia a que, de resto, este wokismo já nos tem habituado. Há menos de dois anos, a famosa cantora brasileira Anitta, afirmou que escolhera um bailarino apenas porque queria ter relações sexuais com ele, e não consta que tivesse havido na nossa praça qualquer manifestação de repúdio. Também aqui estava em causa uma relação de “subalternidade”. Imagine-se se Rubiales tivesse proferido semelhantes palavras – cairia o Carmo e a Trindade.

    Mostra-se, pois, evidente, que os casos “espontâneos” de demonstração de desejo pelos homens por parte de mulheres não merecem a mesma pronta condenação dos arautos da “igualdade”. Quando muito, são aplaudidos e vistos como um sinal de empoderamento.

    Devemos, por isso, perguntar-nos a que se deve esta duplicidade de critérios, quando o que se alega é defender a paridade de tratamento entre os sexos. Hoje, aliás, ao contrário do que o wokismo nos quer fazer crer, a masculinidade é vilipendiada, desdenhada, alvo de chacota, tanto em séries da Netflix, em livros, como na comunicação social e todos os espaços mainstream.

    Para deitar mais achas para a fogueira, a propósito do vídeo que tem circulado de Jenni Hermoso, no autocarro, a rir-se do beijo juntamente com as colegas, a comunicação social tem-nos também brindado com supostas “análises” psicológicas. Dizem os “especialistas”, ouvidos pela CNN, que a amena cavaqueira, em que Hermoso participou, se enquadra num “mecanismo de defesa”. Não sendo de descartar essa hipótese, é pertinente questionar por que motivo a imprensa se presta a estas “cambalhotas” argumentativas para determinar que Hermoso é uma vítima indefesa?

    Tendo em conta a “caça às bruxas” (ou aos homens), e os exageros que o movimento MeToo inaugurou, parece que, longe de uma preocupação genuína com as mulheres, esta gigantesca onda de indignação com o chocho de Rubiales brota, de facto, de uma hostilidade arreigada aos homens.

    statue of angels

    Mais: apelar à criminalização do beijo de Rubiales e Hermoso – o qual, aliás, inicialmente não suscitou qualquer queixa por parte da jogadora – é um desrespeito para com verdadeiras vítimas de abusos sexuais.

    Qualificar este incidente, que, no máximo, foi um disparate imponderado, como um crime sexual, seria apenas absurdo, se não fosse também perigoso, por arruinar, quiçá injustamente (quem não se lembra do caso Johnny Depp – Amber Heard?), a vida e a carreira de um homem, sem apelo nem agravo.

    Maria Afonso Peixoto é jornalista


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O pão e a broa

    O pão e a broa


    O pão é o alimento, por excelência, do português.

    Lembro, na infância, o prazer que me dava assistir a todo o cerimonial da sua preparação.

    As mulheres da casa, depois de lavarem as mãos com mil cuidados, preparavam a farinha, acrescentavam o fermento, água e sal, misturavam tudo, com as mãos, durante larguíssimos minutos.

    Depois, na mesa de madeira, colocavam a massa que “sovavam” durante vários minutos até que a consideravam preparada.

    Depois, davam-lhe o feitio que queriam. De um modo geral umas bolas de diversos tamanhos.

    cereal and three buns

    Antes de ir para o forno o pão era benzido.

    As mulheres faziam, nele, o sinal da cruz e rezavam a Oração do Pão:

    “São Mamede te levede, São Vicente te acrescente, São João te faça bom pão, a Virgem Nossa Senhora te deite a Santa Bênção.”

    Nalguns locais, acrescentavam:

    “Em louvor de São Gonçalo que não saia insosso nem salgado. Que Deus te acrescente que é para comer muita gente.”

    Na maior parte das aldeias o pão era preparado em fornos comunitários sendo que cada família tinha o seu próprio dia para o cozer.

    Só as casas ricas tinham o seu próprio forno a lenha onde eram, igualmente, preparados outros petiscos, como os assados.

    Depois de pronto, o pão era guardado em arcas de madeira e dava para toda a semana.

    Por incrível que possa parecer a qualidade até melhorava a cada dia que passava.

    Para os cristãos o Pão é “o Corpo de Deus” e daí o imenso respeito que merecia, quer quando dele se falava quer no modo como era tratado, por todos, desde a infância.

    Ao lado de cada prato, no início das refeições, havia sempre uma fatia de pão, que não podia ser cortado de qualquer maneira.

    Como se dizia na altura, “comida sem pão, só no Inferno a dão”.

    Se no fim sobrava um pouco, ou se algum bocado de pão caía ao chão, nunca, mas nunca, se deitaria fora sem, primeiro, lhe ser dado um beijo.

    Ainda hoje, dezenas de anos passados, reconheço com humildade que sigo esses preceitos, mesmo sabendo que “este” pão nada tem a ver com aquele de que venho falando.

    Hoje compramos um produto industrial que, por muito saboroso que pareça, quando sai do forno e é comido ainda quente, é intragável à tarde.

    Só que, o verdadeiro apreciador do pão não o come enquanto quente.

    “Pão quente, muito na mão e pouco no ventre” ou “Pão quente, nem a são nem a doente”.

    Na verdade, o pão é insubstituível.

    Não há tortas, bolos, croissants ou brioches que se lhe comparem.

    Só em casos de total impossibilidade de o ter à disposição se deve recorrer a um desses sucedâneos.

    Acabo por dar razão a Maria Antonieta, quando, ouvindo nos seus aposentos a manifestação de um povo esfomeado a pedir pão, terá perguntado:

    “Tanto ruído por não terem pão? Porque não comem brioches?”

    Não fosse a pergunta feita por ignorância (ou sobranceria) e até era justificada.

    Não creio que tenha sido por isso que a decapitaram, mas…

    De qualquer maneira, esta semana pensei no pão, que tenho à minha frente a todas as refeições, pela triste informação da contaminação de um dos meus preferidos: a broa de milho.

    A Direcção-Geral de Saúde (DGS) e a Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) alertaram, no passado dia 10 de Agosto, a população para o não consumo da broa de milho nos distritos de Leiria (aquele onde moro), Santarém, Coimbra e Aveiro, por haver o risco de estar contaminada.

    Segundo os especialistas todos aqueles que tivessem comido broa e sentissem sintomas de “secura da boca, alterações visuais, tonturas, confusão mental e diminuição da força muscular” deviam deslocar-se, de imediato às urgências “uma vez que estamos perante uma toxinfeção que ainda está a ser estudada, e tendo em conta que cada organismo é diferente de outro”.

    (Esqueceram-se de dizer que deviam levar um lanchezinho para aguentaram as horas de espera até serem atendidos e que, obviamente, este não devia ter mais broa.)

    Depois desse alerta, todavia, passaram-se semanas sem nunca mais se ouvir falar deste problema.

    O que me levou a crer que tanto o pessoal da DGS como a da ASAE se teriam oferecido para, como cobaias, experimentarem algumas broas e tivessem ficado com tonturas e confusão mental, esquecendo o propósito do estudo.

    person's hand with dust during daytime

    Vieram, agora, dizer que o problema estava solucionado.

    Na realidade, apesar do silêncio prolongado das autoridades, depois do comunicado de alerta para uma possível intoxicação em (e na) massa, continuei a ver muita gente a comprar broas em padarias e supermercados.

    Eu, que não deixo de comer a minha ração do pão nosso de cada dia, também ia comendo algumas dessas broas, confesso.

    Qual era o problema?

    Mesmo que me calhasse uma das broas contaminadas ninguém estranharia o meu comportamento dado que os sintomas que me provocaria já os mostro no meu estado normal… 

    Vítor Ilharco é assessor


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Preguiça e desordem na Rua da Palma

    Preguiça e desordem na Rua da Palma


    Quem conhece Lisboa dos anos 90 – e mais ainda antes dessa gloriosa época –, bem se recorda dos períodos áureos em que o automóvel era dono e senhor da cidade. O Terreiro do Paço era então um must, com D. José em cima do cavalo a contemplar o Tejo rodeado por Renault 5, Fiat Uno, Opel Corsa, Ford Escort, Peugeot 205. Citroen 2cv, Toyota Corolla, Seat Ibiza, Volkswagen Golf, e mais uns quantos.

    Passeios – não havia. A bem dizer, havia, mas não era para peões, nem para cadeirinhas de bebés nem para velhinhos de bengalas ou andarilhos nem para turistas, que nem sequer sabiam onde ficava Portugal, ou se sabiam pensavam que era o Algarve e pouco mais.

    Ciclovia do Martim Moniz até à Alameda, junto à esquadra da PSP ainda na Rua da Palma, antes do início da Avenida Almirante Reis. Fotografia tirada ontem às 16h11.

    Enfim, as coisas mudaram. Os direitos dos peões e mais tarde dos ciclistas – que são sempre um automobilista em potência, sem carro, ora porque o estacionou ora por opção de vida ou sem ser opção – relevaram-se, e aos poucos também a autarquia alfacinha foi vendo que, bem vistas as coisas, poderia juntar o útil ao agradável: ordenar passeios e tráfego, onde se inclui a implantação de ciclovias, enquanto sacava uns cobres no estacionamento regulado.

    Sabemos também que, enfim, é fácil concordar com medidas em que somos beneficiados, mas na hora do incómodo bem que gostaríamos que se aplicasse uma “excepçãozinha”: afinal, é porque é uma urgência porque se é filho de uma mãe doente; ou é porque é só um minutinho para descarregar isto ou aquilo; ou é porque “não estás a ver que estou a trabalhar, meu palhaço!”.

    E, enfim, andámos ainda anos a fio até se acabar com as sistemáticas segundas filas de carros encostados – por exemplo, ali na Avenida da República – ou com os eléctricos parados, porque se tinha de aguardar pelo fim do cafezinho, quando não do almoço, de alguém que tinha ali parado o seu bólide só porque lhe dava jeito.

    Em redor da 4ª esquadra da PSP existe um vasto espaço para estacionamento de veículos exclusivos para esta força policial. Um espaço para pelo menos quatro veículos estava vago quando o veículo em causa (ao fundo à direita) se encontrava estacionado na ciclovia. Fotografia tirada ontem às 16h16.

    Para o fim deste regabofe não contaram apenas as leis, mas também a ordem. E a ordem, neste caso, é a polícia. Ou as polícias, digamos assim, que em Lisboa são a Polícia da Segurança Pública, a Polícia Municipal e, por extensão, os fiscais da “santa” EMEL.

    O grande problema de haver tantas “policiais” para um teórico mesmo fim é que qualquer um pode sempre empurrar as (suas) falhas para o outro. Por exemplo, se sistematicamente veículos automóveis param em plena ciclovia da Rua da Palma e ao longo da Avenida Almirante Reis, sempre podemos lamentar que nem EMEL nem Polícia Municipal nem Polícia de Segurança Pública andam a fiscalizar direito nem aplicam sanções para desincentivar essa prática, que obriga os ciclistas a fazerem desnecessárias guinadas perigosas para o meio do tráfego automóvel.

    Mas já não se pode lamentar quando é a própria Polícia de Segurança Pública, e mais concretamente a 4ª Esquadra de Lisboa, sita na Rua da Palma, que pespega uma longa carrinha em plena ciclovia – e vai, quem ali a deixou, que tem nome e função, candidamente à sua vida, enquanto 10 metros à frente está vago um longo espaço, exclusivo da Polícia de Segurança Pública, que até lhe daria até estacionar de frente. Teria era, chatice! de andar para traz uns 20 metros. Atravessar a estrada desde a ciclovia onde meteu a carrinha pareceu-lhe mais cómodo, certamente…

    Perspectiva da zona da Rua da Palma com o espaço vago exclusivo dos veículos da PSP e ao fundo, em plena ciclovia, o veículo ilegalmente estacionado. O edifício rosa é a sede da 4ª esquadra da PSP. Fotografia tirada às 16h18.

    Enfim, não estamos apenas perante um acto de preguiça, nem de desleixo nem de má conduta profissional nem de mau exemplo aos cidadãos.

    Estamos sim defronte a um procedimento que envergonha, sobretudo porque se entrou na esquadra para pedir satisfações, se perguntou a um polícia a razão daquele proceder, e depois, vendo a reacção silenciosa e alheada, se recordou os motivos para o Padre António Vieira pregar aos peixes… E lá se saiu como se entrou: com o veículo policial em plena ciclovia e o espaço de estacionamento 20 metros à frente vago.

    PAV


    Todos os textos da rubrica Repórter LX (marca registada do PÁGINA UM), mesmo se num estilo de crónica, são da autoria de jornalistas acreditados, identificados pelas iniciais. Para contribuir com sugestões de situações que lhe causem perplexidade na capital portuguesa, por favor escreva-nos para reporterLX@paginaum.pt.

  • Cimento: crónica dos materiais

    Cimento: crónica dos materiais

    Se entro e ainda está fresco, é doce o cheiro. Sinto a água, ainda no embrulho, recordações de infância trazem-me o barulho de lama, debaixo dos pés, gotas, soltas, sujas, terra, pó, areia.

    Traço 1 para 4. Traço 1 para 2.

    Existem números desenhados a branco, ali, no cimento. Não os vemos, mas eles estão lá (junto ao ferro), não os entendo, mas eles já se levantam (junto ao osso).

    This picture shows the scene of a construction site. In the foreground a hand wearing work gloves is carrying a bucket. In the background a cement truck is visible. Cement is flowing from the truck into the bucket.

    Nervuras de férreo metal, incrustadas com cimento, já petrificado; as mãos do teimoso que recusa as luvas, a pele a queimar. O cimento tudo come, come a água até de nós. E à medida que seca, na nervura do teu pescoço, endurece as circulações e impede o ar chegando à mente.

    Em apneia (e a água por ele a ser bebida).

    Cimento há em que lhe puseram conchas de mar, lá… sal, mais praia.

    Cimento fica que começa a romper (fissurar), o estalo a percorrer o eixo à procura de uma água da juventude, que por mais voltas jamais regressa. Chegou ao fim.

    O curioso mundo do cimento – e do betão, que se arma, que se armam em pedra, sem o ser. Não os entendo muito bem: são, para mim, construções de lama, com números brancos escondidos, e o senhor engenheiro a fazer troça de mim.

    Mas é, afinal, uma caixa de madeira que o embrulha, para a existência, precisa da mãe-árvore para nascer.

    Mas a talocha, o afago, a meiguice de emassar, até o nível soluçar a sua bolha, apenas quando o retiramos… aí, sim, sinto carinho; aí, sim, sinto escultura.

    Green Leafed Plant on Sand

    Que trabalho, que pesado, que suado.

    Reboco. Fino, areado, delgado.

    Reboco.

    Andamos todos a emassar cimento, fissurado.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Vai-te F

    Vai-te F


    Aquilo que aconteceu em Loures, no Hospital Beatriz Ângelo, está a acontecer no país inteiro: doentes esperam horas em Urgências, cada vez em menor número, para encontrar soluções que careciam de camas, cada vez em menor número, com patologias cada vez mais difíceis de estabilizar sem internamentos.

    Também me recordo da decisão do Partido Socialista (PS) de reverter aquela parceria público-privada (PPP) convertendo a casa num problema, onde antes não existia. Também é verdade que aquilo que se passou está directamente relacionado com a idade/saúde dos doentes: pessoas de 95 anos não têm, neste país, um envelhecimento saudável e muitas estão gravemente doentes, e portanto é normal que possam morrer a qualquer momento.

    A esperança média de vida dos homens portugueses ronda os 80 anos. Anormal é não morrer a partir dessa idade. Anormal é pensar que vamos viver eternamente. Anormal é não se aconchegar quem sofre. Anormal é não se evitar transferências de doentes devido à área de residência. Se morresse onde aportou doente, sendo atendido com brevidade, nada era escandaloso nem enchia noticiários.

    Depois há um bombeiro a incendiar os telejornais, porque não usaram as suas capacidades. Uma pessoa da saúde que se lança nos meios de comunicação para demonstrar as suas convicções, devia ter caminho rápido para a rua do seu trabalho, note-se bem, pago pelo Estado. Portanto, temos uma política de saúde que conduz a mortes nos hospitais e às portas destes. Mas votámos em maioria quem já governa há oito anos ainda a falar do Passos Coelho.

    A opção de encerrar para poupar dinheiro foi uma escolha escolar, uma opção de ministros e de políticos que não compreendem o país dos 650 euros por mês. Ninguém consegue sobreviver sozinho com salários indignos que se perpetuam para garantir os erros políticos, como seja:

    1 – Fechar as centrais elétricas (seis mil milhões de euros);

    Antiga central do Pego (Foto: Médio Tejo)

    2 – Manter a TAP (quatro mil milhões de euros);

    3 – Encarniçar o apoio ao BES (talvez dez mil milhões de euros, se incluirmos PT, Banco Novo, etc.);

    4 – Persistir com as perdas fiscais/económicas por termos um tribunal administrativo ineficiente e de prescrições garantidas (talvez mais de quinze mil milhões euros);

    5 – A manutenção de milhares de lugares ineficientes na Função Publica  (talvez outros cinco mil milhões de euros), através do subsídio de fundações falidas, entidades inadequadas e outros chupismos do grande odre que é o Estado;

    6 – Perdas no IVA de empresas milionárias como a EDP (centenas de milhões de euros na venda das barragens;

    7 – Perdões fiscais e indultos a grandes devedores do Estado;

    8 – Ausência de políticas atractivas para as empresas que não querem pagar o IRC em Portugal (talvez mais de 20 mil milhões de euros).

    No mês de Setembro, o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra encerra a enfermaria F nos Covões e, portanto, vai reduzir dezasseis camas, juntando-se às mais de 200 que já se reduziram nos últimos 10 anos. Mas essas camas tinham ocupações zero? Não, estavam sempre cheias.

    close-up photo of assorted coins

    Portanto, isto é um F às pessoas.

    É uma expressão, uma interjeição do poder sobre os doentes: que se F.

    A política de converter a capacidade de trabalho dos profissionais de saúde em tibieza, em negligência forçada, em fio da navalha com altas precoces, adiamento de internamentos.

    Tudo tem consequências e tudo acarreta dor e desconforto sobretudo ao grupo dos 650 euros. Onde vais tratar-te? Onde vais esperar pela vaga? Onde vais curar-te?

    Vai-te F.

    Diogo Cabrita é médico


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.