Etiqueta: Destaque Opinião

  • Montenegro & Infarmed & Sondagens & Diário de Notícias

    Montenegro & Infarmed & Sondagens & Diário de Notícias


    A Acta Diurna foi, muito provavelmente, o primeiro jornal da História. Criado na Roma Antiga, no ano 59 a.C., por ordem de Júlio César, tratava-se de uma folha de informação pública onde eram registados e divulgados acontecimentos políticos, decisões judiciais, anúncios e até mexericos. Afixada em locais de grande circulação, a Acta Diurna tinha como propósito dar conta do quotidiano, funcionando como um instrumento de transparência – ou, ao que tudo indica, de propaganda e controlo da informação.

    Inspirado neste conceito ancestral de noticiar os factos do dia, o PÁGINA UM decidiu registar a marca Acta Diurna, para lançar um podcast de comentário regular sobre a actualidade e temas que orbitam em torno das abordagens do próprio jornal. Mas não só. Também haverá espaço para outros assuntos que, por diversas circunstâncias acabam por não ser desenvolvidos em formato escrito.

    O Acta Diurna será conduzido por Pedro Almeida Vieira e Elisabete Tavares, podendo contar, pontualmente, com convidados externos que tragam outras perspetivas ao debate. Não é um podcast de entrevistas, é um espaço de análise crítica, com o selo do jornalismo livre do PÁGINA UM.

    No episódio de hoje, três temas + um:

    1. Luís Montenegro segura-se ao poder no PSD, mesmo que venha a ser formalmente arguido. A ética republicana continua à deriva.
    2. O presidente do Infarmed, Rui Santos Ivo – um dos paladinos do obscurantismo durante a pandemia –, é promovido à cúpula da Agência Europeia do Medicamento. O prémio pela obediência.
    3. A manipulação das sondagens através do enviesamento das amostras, criando margens de erro colossais e cenários eleitorais artificiais que distorcem a percepção pública.
    4. A situação crítica do Diário de Notícias, com novos atrasos no pagamento aos seus colaboradores. Mais um sintoma da degradação do jornalismo tradicional.

    O Acta Diurna será um espaço para quem quer pensar além das narrativas dominantes. E o primeiro episódio já está disponível.

    Acesso: LIVRE, mas subscreva o P1 PODCAST com um donativo mensal de 2,99 euros. Ajude o PÁGINA UM a amplificar o seu trabalho.

  • O silêncio de Gouveia e Melo

    O silêncio de Gouveia e Melo


    Depois de presente no palco mediático quase diariamente ao longo de quatro anos, Gouveia e Melo (GM) anda recolhido este ano. GM invocou férias e também falta de liberdade. Mesmo quem não notou que andou no palco mediático desde 2021 acha que ele está em silêncio, só interrompido por um artigo no Expresso e uma fugaz aparição com um banal e inócuo comentário sobre estabilidade política. Este silêncio parece artificial; será uma tática para o protocandidato a Presidente da Republica (PR) evitar ser questionado. Mas pode ser mais do que tática. Dadas as exibidas vaidade e necessidade de vedetismo e aplauso será um silêncio que lhe custará aguentar.

    Poucos dias após deixar o comando da Armada, revelaram-se nos media alguns apoiantes. Primeiro, foram dois destacados maçons, logo desautorizados, sem GM dar a cara, talvez visando mostrar-se independente da maçonaria. Seguiram-se Ângelo Correia e Isaltino Morais, que não foram desautorizados, e que merecem uma observação mais incisiva.

    Esperava o apoio de Isaltino Morais, desde que GM o condecorou com a medalha de “Vasco da Gama” (por despacho, quando o decreto-lei 49052 atribui a competência a ministro e por portaria). O Correio da Manhã destacou o facto, uma e outra vez. Ninguém reagiu a este uso de recursos públicos; só o PÁGINA UM e o jornal que dá mais palco mediático há anos a GM notaram o facto – que interessa a todos os cidadãos, pois contraria a alegada probidade do protocandidato. Está muito bem escrutinar políticos; e não interessa saber como GM gastou recursos públicos, por exemplo, em condecorações? Ou em ajustes diretos?

    Isaltino Morais também ganhará circunstancialmente com este apoio, pois chateará o PS e o PSD, e quiçá sobretudo Luís Marques Mendes. Como o voto é secreto, duvido que se venha a saber se Isaltino Morais concretizou no voto este apoio verbal a GM.

    O apoio de Ângelo Correia pede mais atenção. Também em entrevista televisiva, pareceu ser um mentor mais do que só um apoiante. Parece que gosta de ser mentor; mas não lhe vejo sucesso. Com o estilo habitual que aparenta conhecimento e segurança sobre o que está a dizer, mas basicamente retórico, disse que distribuir vacinas foi um “ato político”, indiciando a origem da frase de GM de que “não era qualquer militar que fazia aquilo”, e parecendo revelar a ideia que sustentará a sua campanha – afinal é político… Disse que o conhece “há muitos anos”: e quer dizer o quê? Disse que a candidatura “não é contra os partidos, é para fortalecer os próprios partidos políticos”, que GM “sabe criar poderes compartilhados”, ou promover consensos: só me faz rir! Será que conhece GM além da “guerra do croquete”?

    Além de revelar a vulgar superficialidade sobre a interpretação de sondagens, destaco uma frase favorita dos populistas: GM “vai apoiar-se no povo, não vai apoiar-se nas elites” – como se GM visasse uma mole de pessoas manipuláveis e sem instrução. Mas escolheu o Expresso para apresentar o seu manifesto político…

    Mas o que é “o povo”? Há quem defenda “GM a presidente e Ventura a primeiro-ministro”; há quem queira votar em José Sócrates; há quem queira “algo diferente”. Todos se queixam dos “maus políticos”. Mas não percebem a superficialidade da sua conduta: é por escolherem com base na imagem e na propaganda – que exaltam a diferença – e não na conduta e na substância do passado dos candidatos, que são eleitos “maus políticos”. A superficialidade confirma-se no facto de os mesmos insistirem em não aprender com as más escolhas.

    Os referidos apoiantes de GM pouco disseram de objetivo nos media, mesmo sobre vacinas. Parece que é assim que acham que chegam ao “povo”. Nenhum referiu, por exemplo, que GM foi acusado por um tribunal superior por crime praticado em serviço, ou que o Tribunal de Contas o acusou de excesso de ajustes diretos. O que nem um apoiante de GM consegue explicar é: como pode alguém com um perfil executivo e sem formação nem experiência política exercer bem o cargo menos executivo e mais político do regime? Instados a explicar, ouvem-se castelos no ar ou um ensurdecedor silêncio – acham que assim convencem mais do que as dezenas de convencidos que alimentam as sondagens? Aliás, que fariam sem estas sondagens?

    No fim, Ângelo Correia falou mais de si próprio do que de GM (alguém se surpreendeu?); mostrou o que ele acha, mas não mostrou que GM é um moderado e menos ainda que é um moderador, conhecedor e cumpridor da Constituição (CRP). Como pode ser um moderador, em especial dos partidos, se busca e tem mais apoios entre quem despreza os partidos, como se vê nas redes sociais? Quiçá “mentor” e protocandidato sonham com o apoio de um ou mais dos grandes partidos. Apesar dos esforços, até para lhe darem um CV académico, Chega e CDS não dão sinal de apoiar GM; talvez percebam que é contranatura.

    Acho que não foi por acaso que surgiu nos media o mito de que nada se conhece sobre o pensamento político de GM. Desde logo, Ângelo Correia contrariou esse mito, com a ideia de que distribuir vacinas foi um ato político… De facto, GM já tomou posições políticas, o que entendo que violou o dever de isenção, que vincula os militares no ativo; é só googlar e lá estão. Mas o esforço do apoiante foi demolido pelo protocandidato no artigo no Expresso, que mostrou com exuberância a falta de preparação política e as ambições despropositadas, pontos evidenciados por reputados especialistas, que o analisaram (por exemplo, António José Seguro, Henrique Monteiro, Vital Moreira, e Teresa de Melo Ribeiro).

    Este mito parece ter sido plantado nos media pela agência de comunicação, informal ou formal, que guia GM, pois desvia a atenção da conduta e do passado ao longo de décadas – que revela a pessoa, que é o que importa num órgão político e unipessoal – para um cenário futuro que se pode construir, através da propaganda e da imagem. Se não houver agendas ocultas e a superficialidade mediática não prevalecer (concretizada em meia-dúzia de buscas no Google e de declarações de amigos), haverá jornalistas a escrutinar o passado de GM, com rigor e objetividade, e eleitores interessados em se informarem.

    Sem querer ser exaustivo, nem ir muito atrás, é de recordar que GM recusou expressamente entrar na política, dizendo até “Se isso acontecer, deem-me uma corda para me enforcar”; e confirmou a posição um ano depois e dois anos depois. Em janeiro, recusou um jantar numa tertúlia em Alcochete, sendo citado sem desmentido com a declaração de “O meu nome não é para andar a vender bilhetes”. Porém, está marcado para março no Hotel Sheraton, um almoço do ICPT, cuja inscrição custa €52, contra os €30 da tertúlia. Então GM vai-se apoiar no povo e não nas elites… Mais graves são as suas contradições sobre a conscrição até pelo alarme social que causaram. Estão à vista a integridade e a preparação política de GM…

    GM disse que era “impiedoso com os malandros”, revelando-se polícia, acusador e juiz num só. Creio que custará a Ângelo Correia ensinar a GM o que é “autoridade democrática”; que um democrata é tolerante à crítica; ou que usar os tribunais para perseguir quem diverge dele torna improvável que GM cumpra a CRP e o juramento presidencial. Aliás, a atitude autoritária, que evidenciou ao longo de 45 anos de vida militar, de não tolerar quem dele discorda aumenta o medo que Ângelo Correia diz hoje existir na sociedade portuguesa, medo que mata a democracia. E apoia quem alimenta tal medo, que mata a democracia…

    E estará aqui a explicação do silêncio de GM: um mentor e um especialista de imagem têm de ensinar GM a “mudar de farda”; isto é, têm de ensinar-lhe muitas frases bem-sonantes, e técnicas de propaganda para afastar aquilo que eram “medalhas” do passado e que agora lhe dará jeito esquecer, para agarrar “o povo”. Pelo manifesto no Expresso, tem muito para aprender… Há quem diga que se ensina a CRP numa semana… já para debater com António Vitorino, nem Ângelo Correia mostrou estar convencido de poder correr bem a GM…

    Uma das lições aprendidas com o mandato do atual PR, e que alguém ensinará a GM, é que o modelo de inconstitucionalidade de normas, estabelecido na nossa Constituição, confere ao PR um amplo espaço de atuação, no qual ele até pode violar o espírito, senão até em alguns casos a letra, da CRP, com impunidade. Penso que isso vai GM aprender depressa.

    Como previ, GM é só a carranca da barca. Já se sabe quem lhe “leciona” a “Introdução à Política”. Falta saber quem o está a ensinar propaganda política e a fazer podcasts. E falta saber o que vão inventar para persuadir a maioria dos eleitores de que GM é moderado e vai ser o moderador a que a Constituição, e bem, vincula o Presidente da República.

    Jorge Silva Paulo é doutorado em Políticas Públicas


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Os jornalistas soldados de Ursula

    Os jornalistas soldados de Ursula


    Alterações Mediáticas, podcast da jornalista Elisabete Tavares sobre os estranhos comportamentos e fenómenos que afectam o ‘mundo’ anteriormente conhecido como Jornalismo. No 18º episódio, analisa-se o fenómeno bizarro que afectou os media na cobertura do anúncio de que a Comissão Europeia quer que União Europeia leve a cabo uma despesa recorde na compra de armamento. Também se analisa um caso de ‘cegueira’ do jornal Sol que publicou um artigo de opinião sobre a pandemia de covid-19 disfarçado de notícia.

    Acesso: LIVRE, mas subscreva o P1 PODCAST com um donativo mensal de 2,99 euros. Ajude o PÁGINA UM a amplificar o seu trabalho.

  • Expresso e a ‘manchete-panfleto político’

    Expresso e a ‘manchete-panfleto político’


    Alterações Mediáticas, podcast da jornalista Elisabete Tavares sobre os estranhos comportamentos e fenómenos que afectam o ‘mundo’ anteriormente conhecido como Jornalismo. No 17º episódio, analisa-se o fenómeno bizarro que levou o Expresso a fazer manchete com um manifesto de campanha política de um eventual candidato às presidenciais. Também se analisa uma deliberação recente da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista sobre uma queixa de um pivot da CNN/TVI.

    Acesso: LIVRE, mas subscreva o P1 PODCAST com um donativo mensal de 2,99 euros. Ajude o PÁGINA UM a amplificar o seu trabalho.

  • A jabuticaba dos juros brasileiros

    A jabuticaba dos juros brasileiros


    No Brasil e fora dele, costuma-se gracejar sobre alguma excentricidade pátria, referindo-se a ela como “jabuticaba”. Apesar de existir noutros países, corre a lenda de que a árvore que produz este fruto seria exclusividade nacional. A fruta pequena, semelhante à uva, de sabor doce e levemente ácido, incorporou-se de tal forma ao vocabulário nacional que é difícil encontrar alguém que não identifique a ironia quando se qualifica algo como sendo fruto da jabuticabeira. Atualmente, porém, nenhuma jabuticaba é maior e mais reluzente do que a taxa de juros praticada pelo Banco Central brasileiro.

    De acordo com o ranking mais recente, a taxa real de juros do Brasil – isto é, a taxa de juros em vigor, descontada a inflação projetada para os próximos doze meses – situa-se em 9% ao ano. Este patamar é superior, por exemplo, ao da Rússia (8,5% anuais), que se encontra em guerra, e quase o dobro do México (5%), a economia latino-americana mais semelhante à brasileira em dimensão.

    Na última reunião do Comité de Política Monetária (Copom), a taxa Selic – referência para transacionar títulos públicos – subiu para inacreditáveis 13,25% anuais. Como se isso não bastasse, o próprio Copom já prometeu aumentar mais 1 ponto percentual na próxima reunião, em março. Trata-se do mesmo patamar que a Selic atingiu em 2015, no auge da crise económica do governo Dilma Rousseff.

    Quais as diferenças de lá para cá, porém?

    Em 2015, a inflação terminou o ano em 10,67%, 4,17% acima do teto da meta de então (6,5%). Hoje, a inflação de 2024 fechou nos 4,83%, meros 0,33% acima do teto da meta em vigor (4,5%). Ou seja: aplica-se a mesma dose do remédio (juros de 14,25% anuais) para uma inflação que é, na métrica de desvio, doze vezes menor do que naquela época (4,17% vs. 0,33%). Para uma unha encravada, portanto, o Banco Central brasileiro receita quimioterapia.

    As razões invocadas para justificar a alta da Selic são de uma insensatez sem precedentes. Argumenta-se, por exemplo, que o “risco fiscal” brasileiro – isto é, o facto de o governo gastar mais do que arrecada – é elevado. Falta, contudo, explicar por que nos Estados Unidos, que exibem um défice orçamental superior à soma de todos os outros défices dos grandes países do mundo civilizado, o Banco Central (FED) está a reduzir a taxa de juros, em vez de a subir. Além disso, tal como no ano passado, o governo federal cumpriu a meta de défice prevista para 2024 (0,09%), apesar das previsões do mercado.

    Pior que isso, só o argumento de que a taxa de juros sobe para conter as “expectativas de inflação”. Como são aferidas essas “expectativas”? Através de um compilado a que o BC decidiu chamar “Boletim Focus”. E quem são os responsáveis pelas “previsões” compiladas neste boletim? As mesmas instituições financeiras que lucram absurdamente com a taxa de juros obscena que o BC impõe ao país. Numa espécie de profecia autorrealizada, se o Boletim Focus supõe que a inflação vai subir – ainda que não exista base factual para isso –, a taxa de juros tem de aumentar também, para produzir o que, no jargão financeiro, se chama “ancoragem das expectativas”.

    Se esta lógica circular não bastasse, o Boletim Focus – embora reverenciado como um oráculo pelo Banco Central – erra em demasia, e erra muito. Aliás, só erra. Uma reportagem recente do portal UOL apurou que, de 2021 até agora, as previsões do Boletim Focus estiveram erradas em “apenas” 95% das vezes. Ou seja: o BC brasileiro usa como parâmetro para fixar a taxa de juros um instrumento de medição que só acerta em 5% das ocasiões.

    A ineficácia da Selic na economia real

    Mesmo que puséssemos tudo isto de lado, o aumento da Selic ainda assim não seria justificável. Como qualquer pessoa pode compreender, a utilização da taxa de juros para combater a inflação pressupõe uma transmissão mecânica entre oferta e procura de dinheiro. Se a taxa de juros – ou “o preço do dinheiro” – sobe, mais capital é poupado e menos é gasto em consumo. Se o consumo cai, a procura por produtos também diminui. E, se a procura cai, aumenta consequentemente a oferta, resultando na redução dos preços.

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    Ocorre, todavia, que esta lógica deixou há muito de fazer sentido no Brasil. Aqui, quando um cidadão vai ao banco pedir um empréstimo, não é a taxa Selic que lhe vão cobrar. É a taxa do crédito pessoal da loja ou a do cartão de crédito do banco. Em média, estas taxas variam entre 200% e 400% ao ano – percentuais superiores aos dos usurários, que trabalham à margem da lei.

    De que forma um aumento de 5% na Selic influencia este tipo de crédito? Em nada. Para o bem e para o mal, o brasileiro não é conhecido por fazer contas ao comprar. A única conta que faz – quando faz – é para saber se a prestação do produto cabe no seu orçamento. Pouco importa se, no final, terá pagado duas ou quatro vezes o valor do bem.

    Além disso, aumentar de forma acrítica a taxa básica de juros revela-se absolutamente ineficaz para enfrentar choques externos. Por exemplo: se o preço do petróleo disparar, os preços da gasolina e do gasóleo sobem. Por consequência, sobem também os custos de transporte e dos produtos nos supermercados. Mas que efeito terá o aumento da Selic sobre isto? Nenhum. Sendo o petróleo uma commodity internacional, de nada adiantará subir juros para enfrentar um choque de oferta externo. O mesmo vale para quebras de safra, como está a acontecer com o café atualmente.

    Alternativas esquecidas

    Por isso mesmo, a melhor forma de combater a inflação no Brasil não é aumentar até ao infinito a taxa básica de juros, mas estabelecer medidas macroprudenciais, como o compulsório imposto aos bancos ou a limitação do parcelamento de empréstimos. É através destas medidas que se reduz efetivamente a liquidez do sistema e, consequentemente, se arrefece a atividade económica.

    Brazillian flag

    Curiosamente, o mesmo mercado que clama contra o “risco fiscal” mantém um silêncio obsequioso quanto ao efeito deletério dos juros na dinâmica da dívida pública. Por achar pouco um corte de R$ 70 mil milhões (cerca de 12 mil milhões de euros) nos orçamentos de 2025 e 2026, o mercado passou a cobrar 3% a mais na Selic. Pelo nível atual da dívida, isso implica algo como R$ 150 mil milhões (cerca de EU$ 25 mil milhões) por ano. Hoje, o défice orçamental do governo federal ronda R$ 1 bilião por ano (170 mil milhões de euros), sendo 99% deste valor composto apenas pelo pagamento de juros da dívida. Para ficarmos em um exemplo muskiano: este montante daria para comprar o Twitter por três vezes, com direito a troco. Trata-se da maior transferência de riqueza do setor produtivo para a ciranda financeira de que há registo na história do país.

    Como os únicos economistas sensatos que aqui desembarcaram foram comidos pelos caetés, ficámos reféns de uma banca alheia ao país e de um Banco Central incapaz de quebrar este círculo vicioso. Em vez de conduzir expectativas, é conduzido por elas. Triste sina deste pobre Brasil.

  • A agência de notícias ‘trans’ Lusa & o caso CCPJ

    A agência de notícias ‘trans’ Lusa & o caso CCPJ


    Alterações Mediáticas, podcast da jornalista Elisabete Tavares sobre os estranhos comportamentos e fenómenos que afectam o ‘mundo’ anteriormente conhecido como Jornalismo. No 16º episódio, analisa-se o fenómeno bizarro que levou a Lusa a ‘esquecer’ contexto de relevo na cobertura de uma notícia sobre desporto feminino. Também comento o caso que levou a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) a ponderar não revalidar o meu título profissional, sem qualquer motivo, ao fim de 27 anos de carreira.

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  • Trump visto pelos profetas do caos e mercadores das catástrofes

    Trump visto pelos profetas do caos e mercadores das catástrofes


    Deliciam-me mais os profetas da desgraça do que os arautos da esperança. Há algo de magnético em quem, armado de pena ou verbo, anuncia o caos como um comerciante de banha da cobra no meu Mercado de São José ou um vendilhão de quinquilharias na vossa Feira da Ladra. Não é que me falte simpatia por um Bloch, mais as suas utopias de um amanhã ideal; por um Rousseau, mais o seu contrato social que redime o homem moderno; ou por um Marcel, e mais o seu amor humano como antídoto contra o desespero – mas há uma certa majestade sombria em Hobbes, com o seu Leviatã a triturar liberdades; uma certa gravidade lúgubre em Schopenhauer, que fez das cegas vontades o motor do sofrimento universal; ou mesmo uma certa altivez tenebrosa em Nietzsche, que, proclamando a morte de Deus, nos legou a necessidade de criar sentido num universo vazio.

    A verdade, minhas graciosas leitoras e veneráveis cavalheiros, o pessimismo é mais convincente do que o optimismo. Afinal, o desgraçado que tropeça, e cai, tem a gravidade como aliada; já o esperançoso que tenta voar, desafia Newton e os seus dogmas, e ademais se escaqueira, volta e meia, qual Ícaro, no empedrado da realidade. Se, na História, os arautos do colapso anunciaram catástrofes – muitas vezes concretizadas –, na Filosofia ofereceram-nos sempre uma doce melancolia, um antídoto contra o excesso de alegria que, amiúde, turva os olhos da razão.

    Porém, ah!, sublime ironia, os profetas da desgraça raras vezes se revelam derrotistas em absoluto. Há, em si, intrinsecamente, nos seus lúgubres presságios uma oculta centelha de esperança. Por exemplo, quando Hobbes pintava, de forma austera, o homem como um lobo, murmurava uma redenção pelo contrato social. Quando Marx previa a luta de classes, vislumbrava também, a despontar no horizonte, um paraíso do proletariado. Quando Hannah Arendt, traçava um diagnóstico implacável sobre os totalitarismos, desvendando a banalidade do mal, sonhava com a resistência como redenção da Humanidade contra a apatia moral.

    Destarte, os melancólicos visionários resguardam no bolso um sonho envergonhado de salvação – como quem, prevendo tempestades, secretamente leva um guarda-chuva na esperança de, enfim, poder dar conta do recado.

    Ora, se até os filósofos, nos seus extensos e densos tratados, revelam essa dualidade entre a desgraça e a redenção, o que diremos dos jornalistas? Esses modernos agoureiros que, com teclados em riste, anunciam o juízo final em directo, embora escondendo um brilhozinho nos olhos, porque, para eles, o apocalipse é uma mercadoria.

    Os jornalistas são, nos tempos hodiernos, as Cassandras de antanho, mas escrevendo agora textos escatológicos, cheios de metáforas vulcânicas e de previsões de derrocadas iminentes. Porém, ao pintar o caos, buscam redenção nas vendas de assinaturas ou nos gráficos de audiência, e sem o peso trágico de qualquer maldição. Enquanto Cassandra era ignorada na sua clarividência, os jornalistas da calamidade são amplificados por cliques, partilhas e manchetes. Não é a verdade que os move; é a economia do pânico.

    Mas – ah, ironia das ironias! –, no fundo do seu ser, eles não desejam o fim do mundo. Não, nanja, nunca! Eles querem, sim, o mundo à beira do abismo, suspenso, sem cair. Que proveito lhe daria um apocalipse consumado? O fim das receitas publicitárias, das transmissões urgentes, dos likes e das partilhas que alimentam o seu pecúlio. Convenhamos, uma ruína universal lenta e documentada é bem mais proveitosa do que um esvaziamento cósmico vertiginoso e sem papel.

    O agora subdirector do jornal Expresso, Pedro Candeias, mostrou-se por estes dias, em letras, um belíssimo exemplar dessa nova linhagem de Tirésias contemporâneos. Não, não me refiro à cegueira literal, mas àquela outra, mais sofisticada, que, pré-anunciando um desastre – iminente ou improvável, indiferente lhe é –, logo congemina a oportunidade de o transformar em manchete.

    Escreveu ele – e logo ele, que até há pouco andava a narrar pontapés na bola e os meandros de suas transações comerciais – uma pungente ode ao alarmismo apocalíptico internacional! Confesso que, ao lê-lo, senti-me transportado para uma assembleia medieval de oráculos vaticinando a queda iminente do céu.

    E que espectáculo, este seu texto! Uma verdadeira sinfonia de exageros que faria o meu saudoso Quincas Borba gargalhar ao ponto de quase sufocar na própria filosofia. Imagino-o, ao ler tal peça, a exclamar triunfante: “Ao vencedor, as batatas… e ao Candeias, o pânico!” Sim, porque ali não há lugar para o tom sereno do cronista ponderado, somente para a verve inflamável de um fervoroso profeta..

    Ora, garantiu-nos o Candeias – com a solenidade de quem descobre a pólvora explodida há séculos – que bastará Trump ser empossado na segunda-feira para que, vejam bem, “o mundo que acordar na terça-feira pouco terá a ver com o que se deitou no domingo anterior.” Um “facto”, segundo ele!

    Ah, e que magnífica obra do engenho humano é a sua capacidade de se anunciar uma “nova ordem mundial”! Não importa que a História, essa senhora teimosa e sarcástica, já tenha discorrido com séculos de caos perfeitamente ordenado: cruzadas, colonizações, revoluções industriais, mundiais e digitais; sempre a mesma orquestra, de homens explorando homens, apenas com novos instrumentos a desfiar e a desafinar.

    Nada que o cândido Candeias subverta e descubra no senhor Trump o inédito protagonista de uma ópera bufa onde o protecionismo é o prelúdio, o aquecimento global o refrão e as ameaças geopolíticas a batida do tambor. “Nova era”, diz-nos. Oh, e já não ouvimos antes variações desta sinfonia? Quando os Habsburgos dominaram meio mundo com a subtileza de um rinoceronte num salão de porcelanas? Quando Napoleão, em delírios cartográficos, decidiu que um mapa não era mais do que um rascunho à espera da sua assinatura, caneta numa mão, baioneta na outra? E Hitler? Ah, o que me faz o Candeias: descambei no desgraçado reductio ad Hitlerum. Pronto: vejamos então o Tio Sam, já um tanto pançudo e cheio de corantes, fast food e diabetes. Bem antes de Trump, não singrou o Tio Sam por mares nem calcorreou continentes para ajustar umas tacadas entre um embargo e outro, umas pancadas entre uma invasão e outra.

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    Para o Candeias, de que serve olhar para Woodrow Wilson, para Franklin Roosevelt e até para Ronald Reagan, que alternavam entre o escudo do isolacionismo e o florete do protecionismo, qual mosqueteiros indecisos? Ah, esses, claro, não eram magnatas imobiliários de frases curtas, mínimos substantivos e tweets bombásticos. E não havia, para lhes acender as chamas do ego, um Musk, essa figura que é o sonho húmido tanto dos capitalistas aventureiros como dos jornalistas paladinos na luta contra a desinformação que, amiúde, alimentam.

    Mas Candeias, esse santo observador, acredita que cada nova fanfarra trumpiana inaugura um concerto jamais ouvido. E ignora, coitado, que, per saecula saeculorum, se têm tocado as mesmas melodias, somente variando os arranjos. O mundo, sei bem, não é senão um velho teatro, com actores renovados e cenários gastos.

    Para o Candeias, tudo lhe é novo. A Gronelândia, coitada, diz ele, uma vítima trágica de “insinuações musculadas”. Já não bastava a Rússia, agora surge a ameaça norte-americana? A base aérea de Thule caiu de para-quedas em 1951, presumo. Imagino agora os fiordes em polvorosa a preparar discursos de boas-vindas com tradutores simultâneos para o peculiar dialecto trumpiano, porque encontrar lá uma população equivalente à da Póvoa de Varzim disseminada em território vinte e quatro vezes maior do que Portugal não será tarefa fácil para os marines.

    Ah, e o Canadá, tão ordeiro, deve estar a polir as suas folhas de ácer por antecipação à suposta – que digo!, garantida! – invasão dos vizinhos norte-americanos. Quanto ao Canal do Panamá, se o Candeias diz que vai suceder, porque não? Nem sei como se esqueceu de nomear a intenção do Trump de cambiar o Golfo do México para Golfo da América. Acho uma excelente ideia para quem já teve um casino chamado Taj Mahal em Atlantic City e o vendeu depois ao Hard Rock Café…

    Candeias é um ingénuo. Se Trump tossir, ele anunciará um surto pandémico de proporções bíblicas. Se Trump sorrir, ele verá nesse singelo gesto o prelúdio de uma nova praxis diplomática. Se Trump elevar a mão para compor a cabeleira ou coçar a cabeça, ele vislumbrará uma conspiração, talvez envolvendo piolhos radioactivos. Se Trump cruzar os braços, ele descortinará o arquétipo de embargos económicos que nem pastel de nata e o queijo de Nisa pouparão. Se Trump bocejar, ele proclamará o despontar de uma era de desmotivação global, um fenómeno tão profundo que Nietzsche, da tumba, virá denunciar. Se Trump errar o caminho para o quarto na Casa Branca, ele afirmará que o mapa dos Estados Unidos se redesenhou durante a madrugada pela secreta tinta de um cartógrafo mefistofélico. Se Trump, enfim…

    Candeias, pobre Candeias, viverá da crença inabalável de que cada gesto de Trump será um decreto; cada palavra um édito; e cada silêncio, ah, cada silêncio, minhas esclarecidas leitoras e doutos leitores, a mais temível das estratégias. Se Trump um dia decidir ficar quieto, Candeias talvez venha anunciar o fim do mundo.

    Na certeza do seu cataclismo, Candeias lançou, porém uma trágica pergunta de ouro: “O que aí vem?” Ninguém sabe”, respondeu, o tonto. Que candura, depois de tudo o que antes postulara. Que leveza de espírito, que irresponsável abertura ao desconhecido! Como se não estivesse estado, neste mesmo texto, a traçar cenários dignos de um Nostradamus em delírio. Ora, afinal acaba a dizer que ninguém sabe o que vem, quando garantiu antes que seria terrível. É a eterna arte do jornalismo sensacionalista: criar um vácuo de incerteza para ali semear o medo e regado a ansiedade.

    Trump e Musk, na narrativa de Candeias, serão, neste cenário de efabulação e de especulação, os monstros míticos que habitarão o seu Olimpo editorial. E então, com a altiva pose de quem carrega a tocha da verdade, Candeias e o seu Expresso vão “oferecer contexto” aos leitores. Enquanto o fim dos tempos não chega ao mundo, aproveita-se o tempo para fazer negócio sobre o fim do mundo.

    Eis, pois, a verdade nua e crua: os jornalistas da desgraça, como Pedro Candeias, têm um segredo quase freudiano. Na sua alma, não são arúspices do fim dos tempos; são gestores da calamidade. Querem o caos, mas que seja um caos lucrativo, como uma girândola em chamas perpétuas que atrai curiosos e vende bilhetes à entrada. Deles se pode dizer que são como Ícaros invertidos: não alçam voo rumo ao sol, descem à escuridão, como garimpeiros malabaristas explorando as profundezas da vertigem até ao tutano. Afinal, é do precipício que vivem, nunca da queda.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.


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  • Robert F. Kennedy Jr. e a cura para a hesitação vacinal

    Robert F. Kennedy Jr. e a cura para a hesitação vacinal


    A única maneira de restaurar a confiança do público na vacinação – que sofreu um grande abalo por causa das mentiras associadas ao lançamento da vacina contra a covid-19 – é colocar um conhecido céptico no comando da agenda de pesquisa de vacinas. A figura ideal para liderar esse processo é Robert F. Kennedy Jr. (RFK), que foi indicado para dirigir o Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos.

    Ao mesmo tempo, temos de encarregar cientistas rigorosos, com um historial comprovado em Medicina Baseada na Evidência, de determinar o tipo de modelos de estudo a adoptar. Dois cientistas ideais para isso são o Dr. Jay Bhattacharya e o Dr. Marty Makary, que foram nomeados para liderar o NIH [National Institutes of Health] e a FDA [Food and Drug Administration], respectivamente.

    white and green ballpoint pen on brown wooden round table

    As vacinas são – juntamente com antibióticos, anestesia e saneamento – uma das invenções médicas mais relevantes da História. Concebida pela primeira vez em 1774 por Benjamin Jesty, um agricultor em Dorsetshire, Inglaterra, só a vacina contra a varíola salvou milhões de vidas. A Operação Warp Speed, que rapidamente desenvolveu as vacinas contra a covid-19, salvou muitos americanos mais velhos. Apesar disso, assistimos a um aumento marcante da hesitação vacinal. Cientistas de vacinas e autoridades de saúde pública que não conduziram testes devidamente randomizados fizeram alegações falsas sobre a eficácia e segurança da vacina e estabeleceram mandados para pessoas que não precisavam das vacinas, semeando suspeitas e prejudicando a confiança do público na vacinação.

    O que correu mal? O objectivo das vacinas contra a covid-19 era reduzir a mortalidade e hospitalização, mas os ensaios  randomizados foram projectados apenas para demonstrar a redução a curto prazo nos sintomas de covid-19, o que não é de grande importância para a Saúde Pública. Uma vez que os grupos placebo foram prontamente vacinados após a aprovação de emergência, eles também não forneceram informações confiáveis sobre reacções adversas. Apesar dessas falhas, foi falsamente alegado que a imunidade conferida pela vacina é superior à imunidade natural adquirida pela infecção e que as vacinas evitariam a infecção e a transmissão.

    Governos e universidades então obrigariam a vacinação de indivíduos já imunizados naturalmente [por terem tido a doença], que era superior [à da vacina], e para jovens com risco de mortalidade muito baixo. Esses mandados não eram apenas anticientíficos; com um fornecimento limitado de vacinas, era anti-ético vacinar pessoas de baixo risco de mortalidade quando as vacinas eram necessárias para pessoas mais velhas de alto risco em todo o Mundo.

    Como os Governos e as empresas farmacêuticas mentiram sobre a vacina contra a covid-19, também estão a mentir sobre outras vacinas? O cepticismo agora espalhou-se para vacinas testadas e verdadeiras, que comprovadamente funcionam.

    E há questões genuínas ainda não respondidas sobre a segurança das vacinas em geral. Um estudo pioneiro realizado na Dinamarca mostrou que as vacinas podem ter efeitos inespecíficos positivos e negativos  em doenças não-alvo, e isso é algo que deve ser explorado com maior profundidade. Os cientistas do Vaccine Safety Datalink (VSD) que estudam vacinas contra asma e alumínio  concluíram que, embora as suas “descobertas não constituam fortes evidências para questionar a segurança do alumínio em vacinas (…) um exame adicional desta hipótese parece justificado.”

    Enquanto o VSD e outros cientistas devem continuar a fazer estudos observacionais, também devemos conduzir ensaios randomizados de vacinas controlados por placebo, como RFK tem defendido. Uma vez que temos imunidade de grupo para muitas doenças, como o sarampo, os ensaios podem ser conduzidos eticamente aleatorizando a idade de vacinação para, por exemplo, um ano versus três anos de idade, enquanto distribuímos o ensaio por uma grande área geográfica para que os não-vacinados não vivam todos perto uns dos outros.

    Estou confiante de que a maioria das vacinas continuará a ser considerada segura e eficaz. Embora alguns problemas possam ser encontrados, é mais provável que isso aumente em vez de diminuir a confiança na vacina. Por exemplo, verificou-se que a vacina contra o sarampo-papeira-rubéola-varicela [N.D. denominada MMRV ou tetraviral, sendo que em Portugal geralmente se exclui a varicela] causa convulsões febris em excesso em crianças dos 12 aos 23 meses de idade. A MMRV agora é administrada apenas como uma segunda dose para crianças mais velhas, enquanto as crianças mais novas recebem vacinas separadas contra a tríplice viral e varicela, resultando em menos convulsões induzidas pela vacina que assustavam os pais. Embora os estudos de segurança tenham sido inconclusivos, também foi sensato remover o mercúrio das vacinas. Mesmo que acabemos com menos vacinas no esquema vacinal recomendado, isso não é necessariamente uma coisa terrível. A Escandinâvia [N.D. Kulldorf é sueco] tem uma população muito saudável, com menos vacinas nos seus programas de vacinação.

    a couple of people wearing gloves and masks and gloves

    Não vamos restaurar a confiança na vacina pregando ao coro. Após o desastre da covid-19, o objectivo declarado de Kennedy é retornar à Medicina Baseada na Evidências livre de conflitos de interesse. Deixá-lo fazer isso é a única maneira de os cépticos voltarem a confiar nas vacinas, e aqueles que confiam nas vacinas não têm motivos para ter medo disso.

    As tentativas das instituições de saúde pública e farmacêuticas de inviabilizar as nomeações de RFK, Bhattacharya e Makary são a maneira mais segura de agravar ainda mais a hesitação vacinal nos Estados Unidos. A escolha é gritante. Não podemos deixar que os “cientistas pró-vacinas” desequilibrados, que apertam as mãos sobre as orelhas nas perguntas mais brandas, causem mais danos à confiança nas vacinas. Como cientista pró-vacina e, na verdade, a única pessoa a ser demitida pelo CDC por ser muito pró-vacina, a escolha é clara. Para restaurar a confiança nas vacinas para os níveis anteriores [à pandemia da covid-19], devemos apoiar as nomeações de Kennedy, Bhattacharya e Makary.

    Martin Kulldorff é membro fundador da Academia para a Ciência e a Liberdade. Foi professor na Harvard Medical School até ser demitido por não tomar a vacina contra a covid-19, apesar de ter imunidade natural superior. Ele estuda vacinas há mais de duas décadas, ajudando a desenvolver partes dos sistemas de vigilância de segurança de vacinas do CDC e da FDA. Tem um h-index de 67 no Scopus, um valor bem acima dos requisitos de investigadores seniores.

    Este texto foi originalmente publicado no site RealClear Politics sob o título The Cure for Vaccine Skepticism. O PÁGINA UM agradece a Martin Kulldorff a permissão para a sua tradução e publicação em português.


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O ocaso de Fábio Fausto

    O ocaso de Fábio Fausto


    Fábio Fausto não criava nada havia anos. Durante bastante tempo, para não ficar ancorado no vácuo, dedicou-se à contemplação do êxito pretérito, e isso funcionara como uma poderosíssima droga — passara dois terços do tempo a escutar a sua voz e a examinar-se em vídeos, e o outro terço a esquadrinhar o que haviam dito sobre Fábio Fausto e a sua obra: quilómetros e quilómetros e quilómetros de elogios que não conseguira ler e ouvir no pináculo da fama. Talvez tivesse ouvido mil e quinhentas vezes (mil?, duas mil?) os segundos em que um excelso crítico estrangeiro declarara ter Fábio Fausto «expandido e redefinido os limites da arte como ninguém», e lido cerca de quatrocentas vezes o influenciador que sentenciara: «A sua persona reinventou a própria ideia de carisma.» 

    Triturado sob a pletora de novos artistas de pechisbeque, sentia-se, dia após dia, crescentemente apartado do mundo. A revolta e a solidão ardiam dentro de si — o paladar amestrado pela tirania do oco evanescente perdera a capacidade de distinguir a futilidade mais óbvia da genialidade que ocorria duas ou três vezes num século.

                                               

    Procurava acreditar que o tempo depuraria tudo, mas a glória póstuma não o sossegava, e nem dela estava seguro. A própria ideia de o tempo ser o grande juiz da arte assentava no dogma de que, no futuro longínquo, continuaria sempre a haver respeitáveis criaturas que fossem escutadas por outras em número suficiente — algo de que já tinha muitas dúvidas.

    Fábio Fausto não queria apenas cravar uma faca no futuro longínquo. Almejava a eternidade. Sabia, sem grânulo de dúvida, que a merecia.

    O tempo movia-se, e a obra de Fábio Fausto crescia em esquecimento e indiferença. A ansiedade deslizava para a angústia: estaria o Sol eternamente condenado a viver escondido nas trevas?

    As suas últimas criações, que tinha a certeza de serem as melhores, não haviam comovido o público nem a crítica.

    Fábio Fausto temia ainda que não sobreviesse nenhum resplendor ao que já apresentara ao mundo — muito provavelmente, nunca faria nada tão bom como outrora, pelo que preferia não fazer nada. Os concertos e pedidos de entrevistas eram cada vez mais esparsos. A crítica de «servir sempre o mesmo prato requentado» era um pedregulho no esófago quando estava no palco.

    Não tinha luxos nem singulares ambições materiais — o dinheiro que acumulara chegava para muito mais vidas. O seu maior lucro era a vaidade. O terror de o seu génio não ter por onde se manifestar, o horrífico medo de que não se lembrassem dele com a intensidade exclusiva que desejava e merecia, o vazio de não ter espelhos que lhe mostrassem a glória reflectida… tudo isso era algo que não conseguia suportar.

    Precisava de ter uma razão para acordar, tomar banho e calçar os sapatos. Num período de noites insones, descobriu um canal no mundo digital e começou a retrabalhar a sua persona de outrora, ainda que já não produzisse quase nada no domínio da música.

    Ao fim de pouco tempo, publicava algo todos os dias. Não tardou a que publicasse uma dúzia de vezes por dia. Sentindo a temperatura, foi-se moldando em busca do maior número de seguidores. Antes, na música, dava o melhor de si sem contorcionismos mercantis (pelo menos, acreditava nisso), sem pensar nos outros, e conseguira reunir qualidade e êxito comercial apenas com base no seu estro. Agora, na persona digital, não dava um passo sem calcular o que colheria maior aceitação. Talvez não fosse tão sincero, mas não era certamente um exercício menos fechado ao Outro, pensava: era preciso farejar bem o Outro e pressentir as tendências no éter.

    Certas práticas provocavam amolgadelas e fissuras dentro de Fábio Fausto, mas a busca do cintilante número um era mais forte. O vício foi aumentando, até que todo o tempo de que dispunha era para acompanhar o canal. Era um espaço malsão, pensava nos interstícios. E daí? Que espaço concorrencial não produzia aberrações?

    Havia um urso imobilizado em que pugilistas davam socos, numa competição com muitos adeptos, havia um homem muito rico que dava gorjetas no valor de muitos salários e que testava os empregados atirando a comida para o chão e obrigando-os a apanhá-la — «Se queres a gorjeta, apanha!», «Agora, rebola no chão… Não rebolas, não tens gorjeta», «Faz o som de um porco a guinchar», tudo acompanhado das mais fortes gargalhadas e da mensagem final: «E mais uma vez… VENCEU O DINHEIRO!»

    E quando, volvidos poucos meses, era o número um do canal, todas as suas reflexões se extinguiram. Voltara a ser grande, e o labor da manutenção do número um não dava espaço para interrogações de espécie alguma.

    Deixara de sair de casa, estando sempre a alimentar o seu canto concorrido. Ia emagrecendo por não comer, alargando as olheiras, afogando-se no álcool. O Fábio Fausto exibido era, contudo, cada vez mais belo, cada vez mais viajado, cada vez mais dotado de vida singularmente colorida — uma vida que era em si uma obra de arte. O hiato era cada vez maior, exigindo-lhe um esforço sobre-humano para extrair do seu ser mortiço algo vivificante.

    Um dia, caiu inesperadamente para número dois, o mais enervante de todos os números, ultrapassado pelas Tropelias da Girafa Que Lava os Dentes. Estudou bem o inimigo. Pensou em inúmeras tácticas. Fez todo o tipo de concessões. Desatou a criar cenários fictícios, a fazer montagens, a exibir viagens que não realizava.

    Numa noite de álcool e desespero, deixou escapar um desabafo «NA MERDA, FINGINDO ESTAR NO PARAÍSO», que depressa apagou, mas que alguns não deixaram escapar.

    Lutando desesperadamente por ganhar lugares na competição, divulgou pretensos encontros com celebridades de prestígio — ou popularidade, era-lhe indiferente, tão-pouco enxergava diferença entre ambas — mundial. Uma denunciou a fraude. Outras seguiram-lhe os passos. Começou a ser alvo de campanhas de ódio. O seu telefone tocava com pedidos de entrevistas, que recusava. Ao ver a primeira página de um conhecido jornal, viu o seu nome e encharcou-se de álcool e calmantes, o que o convidou a uma estada num hospital. Uma criatura fotografara-o na cama de hospital e vendera a relíquia. Por mais que se tentasse isolar, as notícias entravam-lhe pelas paredes de casa. A conspurcada reputação de Fábio Fausto propagava-se por cada vez mais países, e ninguém, nas esferas privada ou pública, lhe concedia um átomo de solidariedade.

    Fábio Fausto dedicou-se a fazer listas: listas de todos aqueles que lhe deviam fama, dinheiro, contactos e que nunca lhe haviam sequer agradecido, listas de todos os que dera a conhecer ao mundo e que promovera tenazmente a troco de nada senão a crença no seu talento, listas de todos os que entravam em contacto com o celebérrimo artista quando este ganhava um prémio.

    Aqueles que haviam trabalhado com ele, aqueles que o haviam bajulado, aqueles que lhe deviam inúmeros favores: todos se calavam. E os que não se calavam faziam-no para transformar uma nanoagressão numa macroagressão, havendo quem inventasse histórias cruéis que deixavam Fábio Fausto atónito, enquanto os pedidos de cancelamento do seu espaço digital cresciam numa proporção geométrica.      

    Fábio Fausto lembrou-se do único amigo que considerava amigo, mas a chamada desaguou no correio de voz. Levou o carro para muito, muito longe e gaseou-se. Antes disso, activou e programou um mecanismo que continuaria a gerar publicações ad aeternum. No dia a seguir à sua morte, ainda desconhecida do público, subiu dez lugares com a primeira publicação criada pelo programa que comprara pouco antes de morrer. Os Gatinhos Mais Bonitinhos do Mundo caíam de primeiro para quinto, e as recém-chegadas Primeiras Fraldas do Bebé Felipe ocupavam agora o primeiro lugar.

    Manuel Matos Monteiro é escritor e director da Escola da Língua


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Brasil: Esquerda, volver ou Os riscos de um ‘cenário Biden’ em 2026

    Brasil: Esquerda, volver ou Os riscos de um ‘cenário Biden’ em 2026


    O ano é 2023. O começo de um sonho.

    Lula da Silva acaba de assumir, pela terceira vez, a Presidência da República. Eleito numa disputa acirradíssima contra o incumbente, Jair Bolsonaro, Lula dá-se conta do recado que as urnas mandaram-lhe. Sem se preocupar com a reeleição e desprezando as picuinhas típicas do ofidiário brasiliense, o babalorixá petista resolve governar com os olhos voltados para a História. Ao invés de promover um “governo do PT”, Lula coordena um governo de união nacional, refletindo a “frente ampla” responsável pela derrota da máquina bolsonarista. O troféu de “Getúlio Vargas do Séc. XXI” encontra-se ao alcance da mão.

    O ano é 2025. Deu tudo errado.

    Ao contrário do que se desenhava, desde quando assumiu, Lula e seu inner circle parecem ter acreditado que a esquerda – mais especificamente, a esquerda representada pelo PT – ganhou sozinha a eleição. Disso resultou um governo mais à sinistra do que os votos que o elegeram. Ao invés de Fernando Haddad e Simone Tebet, Gleisi Hoffman e Lindenberg Farias. Ao invés de moderação, confronto. Ao invés de Henrique Meirelles, sinais inquietantes de que os erros da tal “nova matriz macroeconómica” (que levaram à débâcle econômica de 2015-2016) não foram assimilados. Ao contrário de tornar-se o Vargas do Séc. XXI, Lula arrisca a tornar-se “Dilma II”.

    Lula da Silva

    O que aconteceu nesse intervalo de tempo?

    Vencedor do pleito mais disputado da nossa breve história democrática, Lula estava careca de saber que iria assumir um país fraturado até a medula. Não só porque o antipetismo – presente desde sempre em todas as eleições presidenciais de 1989 até 2022 – estava lá novamente, mas porque o seu antípoda – o bolsonarismo – havia cupinizado as instituições da República, a ponto de tornar possível uma tosca tentativa de golpe no dia 8 de Janeiro de 2023. Lula sabia que precisava de uma “frente ampla” para derrotar Bolsonaro. O que ele parece não ter entendido, contudo, é que ele também precisava de uma frente ampla para governar o país após tomar posse.

    Em 2003, quando assumiu o governo pela primeira vez, a esquerda não era tão minoritária no Congresso como é agora. Além disso, com o centrão da época, espelhado no velho PMDB, era possível negociar em termos razoáveis, na antiga base do “toma-lá, dá-cá” das emendas parlamentares. Hoje, além de a esquerda estar reduzida a menos de 1/3 do parlamento, o centrão de hoje esbaldou-se nos dinheiros do orçamento que foram sequestrados durante o desgoverno Bolsonaro. Como a Jair não interessava outra coisa senão passear de moto, jet ski e tentar organizar um golpe de Estado, o centrão vendeu os seus serviços em troca do assenhoramento de praticamente toda a verba discricionária existente no orçamento da União.

    Sem maioria congressual e com instrumentos reduzidíssimos para cooptar algo que se pudesse assemelhar a uma “base de apoio”, a Lula restava manter os compromissos que firmara durante a eleição, ou seja, trazer para seu barco toda a gente que se dispusesse a reconstruir o país, de modo a garantir a democracia tão duramente conquistada pela geração anterior. Ao invés de fazer isso, Lula loteou os principais centros de distribuição de poder entre petistas e empalhou duas de suas maiores estrelas (Marina Silva e Simone Tebet) em ministérios que, se não se pode dizer que sejam irrelevantes, possuem pouca ou nenhuma expressão real de poder.

    national congress, brasilia, building

    Em um cenário ideal, Lula viajaria o mundo, vendendo o país com a ajuda de sua extraordinária história política, e deixaria a um preposto (Geraldo Alckmin?) o papel de ser o “primeiro-ministro” na sua falta. Desse modo, a roda continuaria a girar por aqui e Lula seguiria a fazer aquilo que mais gosta: posar de líder global frente à mediocridade geral das lideranças dos países ricos. O que ocorreu, ao contrário, foi que Lula continuou a viajar e, na sua ausência, ninguém ficou empoderado para resolver as divergências políticas do dia-a-dia. Resultado: crises e paralisia da máquina, tudo à espera dos retornos do Presidente para arbitrar os conflitos entre os seus ministros.

    Como se isso não bastasse, ao caos administrativo somam-se agora dúvidas quanto à saúde de Lula. Pela segunda vez em dois meses, o Presidente foi internado para tratar de uma lesão sofrida na cabeça. Ninguém até agora entendeu direito como foi a dinâmica do acidente, mas é certo que ele atingiu a região occipital do crânio, mais popularmente conhecida como nuca. Da queda resultaram cinco pontos e uma cicatriz na cabeça.

    Se Lula fosse apenas mais um velhinho de 79 anos, não seria nada de mais. Infelizmente, as quedas em idosos dessa idade são bastante comuns e, tanto quanto problemas respiratórios ou gastrointestinais, são as maiores responsáveis pela morte nessa idade. Quando não matam directamente, por vezes as sequelas acabam resultando em agravamento posterior do quadro. É o que ocorre, por exemplo, com lesões que fraturam a cabeça do fémur, de cujo pós-operatório muitos idosos não retornam.

    Mas Lula não é somente mais um octogenário. Ele é o Presidente da República. E não qualquer Presidente da República, senão um sujeito que foi eleito três vezes para o cargo e encarna como nenhum outro a idéia de esquerda no país. Sabendo disso, parece no mínimo temerário o modo com o qual governo tratou essa segunda internação de Lula. Nesse tipo de situação, jogar aberto é sempre a melhor alternativa. Voluntariamente, escondeu-se o quadro de saúde do Presidente até que vazasse a informação de que ele havia sido transferido para o Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo.

    Para piorar, depois de terem avisado que tudo correra bem na cirurgia de emergência, o país descobriu sobressaltado que Lula faria uma nova cirurgia. Dessa vez, para cauterizar uma artéria e impedir a recidiva de sangramento na região em que ocorrera a lesão. Segundo os próprios médicos, tal procedimento já estava previsto e não implica maiores riscos para o paciente.

    Se é assim, por que não foi informado isso logo após a primeira cirurgia? E por que, com o Presidente internado na UTI, o cargo não foi transmitido ao seu vice, Geraldo Alckmin?

    Lula da Silva com Geraldo Alckmin durante a campanha eleitoral de 2022.

    A forma atabalhoada com a qual tudo foi feito dá margem à interpretação de que o governo não confia no seu vice. Isso seria uma rematada tolice. Ainda que possa existir algum trauma pela forma através da qual Michel Temer operou para derrubar Dilma Rousseff, Alckmin definitivamente não é Temer. É um político leal, absolutamente cioso das responsabilidades que lhe incubem como substituto do titular. A última coisa que se esperaria dele seria aproveitar esse episódio para destronar Lula do posto.

    Esse episódio, todavia, força a antecipação do debate sobre o destino do país nas próximas eleições presidenciais. Se no pleito de 2022 a grande briga era garantir que Bolsonaro perdesse e que seu sucessor assumisse o cargo, em 2026 a luta vai ser impedir que vença um candidato apoiado pelos Bolsonaro ou, ainda que não seja apoiado diretamente por eles, esteja disposto a anistiar os golpistas todos em prol de uma suposta “pacificação” do país.

    Nesse sentido, o exemplo que vem dos Estados Unidos não poderia ser mais claro. Joe Biden foi, em 2020, o que Lula foi para nós em 2022. Mesmo assim, quatro anos depois, com um governo impopular e com suas faculdades mentais sob questionamento, Biden foi defenestrado da corrida presidencial na undécima hora. Sua substituta, Kamala Harris, não teve tempo hábil para construir uma plataforma de campanha que impedisse a vitória de Donald Trump.

    Lula não é Biden, nem em termos de popularidade, nem em termos de capacidade mental. Entretanto, não parece ser um risco negligenciável chegarmos a 2026 com uma economia em frangalhos – cortesia da absurda alta dos juros no ano passado -, talvez em recessão, certamente com desemprego em alta. São factores que detonam o potencial eleitoral de qualquer incumbente. Se somarmos a isso eventuais questionamentos sobre a saúde do candidato, teremos uma reprise do “cenário Biden”, por mais que Bolsonaro permaneça inelegível.

    O pior que pode acontecer nesse cenário seria Lula continuar no cargo e começar a experimentar um declínio na sua saúde, tanto física quanto mental. Por mais que se queira esconder essa circunstância, uma hora a verdade vem à tona, como aconteceu após o primeiro debate de Trump contra Biden. E aí poderá ser tarde demais para construir uma alternativa eleitoralmente viável para impedir o retorno da extrema-direita ao Planalto.

    man in black jacket standing in front of glass building

    Sabendo disso, o pessoal da cozinha do Planalto deveria começar a vacinar-se contra essa possibilidade. Caso Lula esteja de facto com a saúde em dia e as consequências da sua queda limitem-se a essa última internação, muito bem; vida que segue. Mas, se houver dúvidas sinceras sobre a evolução do seu estado de saúde daqui até 2026, a hipótese de ele renunciar em prol do seu vice deve começar a ser tomada a sério.

    Um eventual acordo de bastidores poderia girar em torno da promessa de Alckmin cumprir apenas um mandato e apoiar Fernando Haddad em 2030. Saindo de cena, Lula ainda permaneceria como grande “guru” político do seu campo, aquele a quem todos acorrem nas piores crises, mas sem carregar o ónus e o desgaste da labuta presidencial. Em suma, Lula só participaria dos lucros, não dos prejuízos.

    Evidentemente, também esse cenário envolve riscos. Ninguém sabe ao certo como seria um eventual governo Alckmin, nem muito menos como ele iria tourear os diversos interesses em conflito no governo, inclusive dentro do próprio PT. Ainda assim, esse cenário parece menos arriscado do que o cenário Biden, ainda mais se o país chegar em crise económica em 2026, como está a desenhar-se.

    an american flag flying in the wind on a cloudy day

    Seja como for, o que se coloca agora são basicamente três hipóteses:

    1) Fica tudo bem, Lula parte para a reeleição e ganha um quarto mandato do povo. Lula torna-se definitivamente o maior político brasileiro de toda a história republicana;

    2) Bem ou mal, Lula renuncia e deixa Alckmin na linha de frente do governo, passando a atuar nos bastidores pela vitória em 2026. Lula será eternamente lembrado como o sujeito com desprendimento suficiente para colocar o futuro do país acima de seus interesses pessoais;

    ou

    3) Lula permanece no governo, com a saúde física e mental deteriorada. Nessas condições, perde a eleição para um Bolsonaro ou um proxy dele. Nesse caso, Lula ficará para a posteridade como um Biden brasileiro, que permitiu o retorno do neofascismo por ego ou por mero apego ao poder.

    Aconteça o que acontecer, Lula terá garantido seu lugar na História. A questão, agora, é saber qual será esse lugar.

    Arthur Maximus é advogado no Brasil e doutorado pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa


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