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  • Viver na estrada: o sonho transformado em pesadelo

    Viver na estrada: o sonho transformado em pesadelo


    Durante muitos anos, tive como ideal de vida uma solução que me permitisse trabalhar e, ao mesmo tempo, ir vendo o Mundo em permanência. Imaginava-me a viver num veículo qualquer, a trabalhar de forma remota e, noite após noite, ir avançando na direção desejada.

    O melhor que consegui foi fazer isso por períodos curtos de algumas semanas. Nunca descobri a solução mágica de coordenar esta opção com as responsabilidades de manter um ambiente estável e mais convencional para a minha família. Portanto, ser pai e marido ganhou sempre a ser nómada digital sobre rodas. O que também não me aborrece, devo dizer. Voltarei à estrada, ou ao mar, quando as crias estiverem prontas para voarem sozinhas.

    green and white van

    Pensava nisto enquanto via uma reportagem sobre o aumento nas vendas de auto-caravanas, procuradas hoje em dia como uma alternativa às crescentes dificuldades com a  habitação, em Portugal. Já não achei a solução tão idílica e aventureira como nos meus sonhos originais.

    Sabia que algumas famílias se tinham mudado permanentemente para casas pré-fabricadas em parques de campismo, para casas de familiares, para habitações divididas com outras famílias e, nos casos mais graves, para a rua. Mas ainda não tinha visto esta opção de pagar um crédito automóvel para viver nele.

    Na reportagem em questão aparecia uma senhora que trabalhava na câmara de Cascais e que ia rodando vários parques de estacionamento, para contornar a proibição das 48 horas para este tipo de veículos. Mostrou-nos o seu dia-a-dia e explicou que parava naquela zona para ficar perto das imediações da escola do filho. O miúdo, como é lógico, não apareceu em frente às câmaras. Ninguém quer que na escola se saiba que a morada real é um parque de estacionamento.

    Mas o que me impressionou mesmo foi a família em questão. Tudo normal, tudo dentro do que se imagina ser a contribuição normal para a sociedade. A mãe tem um emprego permanente, um salário e o filho vai para a escola. Nada de estranho aqui. Mas com o fruto do trabalho não conseguem pagar um aluguer ou contrair um empréstimo para compra.

    silver sedan parked beside white van

    Não estamos a falar de alguém que desistiu, que já nem tenta, que deixou a vida seguir por caminhos mais duvidosos ou que se excluiu da sociedade enquanto membro contributivo. É apenas alguém que vai trabalhar e não consegue pagar uma casa. Não é aqui que percebemos que falhamos enquanto sociedade?

    Normalmente, quando vemos um desgraçado a dormir num cartão nas arcadas da Almirante Reis, somos rápidos a julgar. “Foi a droga”, “perdeu tudo no vício”, “não quer trabalhar”. Raramente temos o discernimento de perceber o mundo de razões que atira alguém para o meio da rua. Apontamos o dedo. Logo. É uma forma de dormirmos bem com a nossa consciência. Não há nada a fazer por aquele desgraçado.

    Mas…e agora? O que fazer quando os juros das prestações bancárias duplicam ou triplicam? Como é que se aponta o dedo a milhares de famílias que ficam aflitas e sem salários que combatam estes aumentos que ninguém percebe? Foi algo que fizemos? Pagámos poucos impostos? Trabalhámos menos do que devíamos? Qual foi a nossa falha, enquanto sociedade que trabalha 40 horas por semana, para de repente estarmos a viver em caravanas, parques de campismo ou quartos com casa de banho partilhada? Qual é a diferença entre isto e os famosos bairros de “trailers” nos Estados Unidos, para onde vão aqueles a quem a falta de segurança social não permite segurar uma habitação convencional?

    white and red building under white clouds during daytime

    Como é que nós, num continente onde o apoio na doença e no desemprego sempre foi o cartão de visita, onde os impostos sempre serviram para garantir o suporte social, de repente estamos a caminhar na mesma direção dos que toda a vida viveram na selva do liberalismo e do individualismo? Como? Não é da liberdade, não se iludam, é do individualismo e da roleta do salve-se quem puder.

    Vejo no Instituto Nacional de Estatística que Portugal tem cerca de seis milhões de apartamentos e que 10% da população vive sozinha. O ritmo de construção não é enorme (110.000 edifícios na última década) mas, somando o que existe, ao que se vai erguendo e à quantidade de agregados familiares, é mais ou menos simples de perceber que, em teoria, há tectos para todos. Onde estão as casas, pergunta-se?

    Não deixa de ser extraordinário que, em todas as ações do Estado para combater os problemas na habitação, ainda ninguém lhes tenha exigido (a começar pela oposição) que entreguem um estudo com todos os imóveis públicos disponíveis para reabilitação ou ocupação, por parte destas famílias que simplesmente já não conseguem pagar as prestações.

    crystal chandelier

    Se pensarmos um pouco nisto, não é assim tão complicado chegar a uma solução. Ou a várias. Até porque o problema é perceptível para todos. Uma hipótese é os governos obrigarem a banca a ignorar a
    Lagarde e a arcar com o prejuízo, deixando as prestações como estavam. Outra é, eles próprios, usarem o dinheiro dos impostos para pagar os aumentos (como ao que parece o Governo de António Costa se propõe a fazer até 2024). Não deixa de ser uma opção política.

    Se acharam uma boa ideia desviar o erário público para manter pessoas saudáveis em casa, certamente não se importarão de o fazer agora para lhes assegurar a dita casa. Até porque, com as notícias que já se vão ouvindo dos vendedores de máscaras, não tarda estão a pedir novos confinamentos. Não dá para confinar sem casa, não é? Pensem lá nisso.

    Há ainda aquela hipótese mais rebuscada de se tentar o aumento de salários, a comelar pelo mínimo. É que isto de ver a inflação como indexante e justificação de todos os aumentos, menos dos salários, deixa quem trabalha numa situação de prisão e desespero permanente. No fim de tudo isto, também não seria mal pensado, enquanto se ataca a vertente financeira da coisa, que o Estado começasse a abrir as portas dos seus imóveis, tomando as dores de uma Remax dos pobres.

    aerial photography houses

    Das várias soluções possíveis, entre as leis da economia e as puras opções políticas, o que eu vejo são os trabalhadores a serem largados à sua sorte enquanto empobrecem a cada mês. Uma pessoa que trabalhe
    não deve ser pobre. Ponto final. Este é um princípio basilar de um país que se julga desenvolvido.

    Em Portugal já se perdem a conta aos que, trabalhando, já nem pobres conseguem ser. Perder o direito à habitação e ver que o Estado Social, para o qual todos contribuímos, pura e simplesmente não existe, é um desespero total, um atestado de terceiro-mundismo e, pior, terreno fértil para as demagogias da
    extrema-direita que se aproveita destes problemas para vender um mundo onde a solidariedade social não existe. Podem agradecer aos sucessivos governos do centrão.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Futebol Clube do Porto 1.0

    Futebol Clube do Porto 1.0


    Vislumbro – melhor dizendo, até diviso – relevantes vantagens de se ser cronista. De futebol ou de outra qualquer coisa, mas neste caso falo nas belas-artes de matraquear bitaites sobre bola, que ademais nem sequer têm de ser sobre tácticas e incidências, sobre os quais agora me agarro por desfastio, descontração e descompressão.

    Por exemplo, por uma crónica futebolística, se eu meter o Lagardère (não é a Lagarde) no meio do título, para caracterizar uma forma destemida e irresponsável de gestão do jogo pelo árbitro, certamente não terei uma queixa na Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) nem outra a ser tratada pelo Provedor do Adepto do Rio Ave, que por uma daquelas circunstâncias infelizes preside também ao  Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas (CD-SJ) e, como a vida é feita de engulhos, há jovens que ainda o têm como professor.

    Por outro lado, presumo que, mesmo vindo a escrever de forma desfavorável sobre um qualquer agente desportivo, e venha ele a ser alvo de um inquérito disciplinar, não fará certamente como o Dr. Filipe Froes que por ter sido visado num inquérito disciplinar pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS), no decurso de notícias em outros jornais, veio aos autos acusar-me de ser eu um dos “jornalistas negacionistas difamadores”, e daí difama-me, a despropósito, incluindo no seu processo uma queixa contra mim na ERC, estúpida e ridiculamente apresentada por ele próprio, e ainda, não satisfeito, um vergonhoso parecer do CD-SJ que vale tanto como quem o pariu: nada. Nem chegou a ser um aborto; saiu de lá o produto de uma gravidez histérica… Isto está tudo ligado – sou eu a dizer, que nem sequer sou de teorias da conspiração.

    Falemos de bola.

    (entretanto, lá começou o jogo; ambiente fantástico, mas o estádio não está lotado, pelo menos vislumbro, ou diviso, umas clareiras, sobretudo atrás da baliza do lado sul)

    Mas, já agora, a grandíssima vantagem de se ser cronista é aqui poder prescindir de certos princípios de isenção e eliminar exigências de credulidade, e daí, mesmo num escrito que será apenas publicado ao fim de 90 minutos – mais os 20 prováveis minutos de acréscimo que o Futebol Clube do Porto necessitar se lhe estiver a correr mal a vida –, poder usar, e até abusar, de uma certa linguagem mais criativa. E também me socorrerei de fontes anónimas, das mais suspeitas, como convém a uma crónica pouco objectiva e mais recreativa.

    (os very lights já estão a fazer das suas, e daqui da Varanda da Luz, uma fumaça das diabos enevoa o relvado; lá em baixo, jogo repartido, mas ainda não tive grande tempo para olhar o gramado)

    Portanto, tenho desde já que antecipar que, por fontes anónimas mas conhecedoras dos meandros mais esotéricos, me foi garantido que isto hoje vai dar para o torto.

    (não vão acreditar em mim, mas estava a escrever a palavra “torto” e o Fábio Cardoso dá uma sarrafada no David Neres, que se escapulia pela ala esquerda: directo para o balneário. O Cardoso, não o Neres, porque este recuperou. Estranho que em quatro minutos de sururu o Sérgio Conceição se mantenha no banco… O Porto já está a ganhar 1-0 em cartões vermelhos… Entretanto, livre sem perigo)

    Mas qual a razão de eu antecipar, por via das minhas fontes esotéricas, que isto – leia-se, jogo – vai dar para o torto, quando nem sequer terminou o primeiro quarto do jogo (ou o primeiro quinto, se estimarmos já os prováveis descontos à Porto)? E mais ainda: sem estar o Pepe a jogar?

    Por ser Lua cheia. Ainda mais uma super-Lua cheia, a última do ano, como bem avisa o sempre atento Público, mais rigoroso em assuntos astrológicos – ou astrais ou astronómicos, eu sei lá, para eles deve ser o mesmo – do que a quantificar verdadeiramente os desperdícios financeiros dos negócios das vacinas.

    Bem sei não ser conveniente a um jornal sério, e defensor da Ciência, como se arroga o PÁGINA UM, alegar agora com questões astronómicas, às quais estão também associadas assuntos da Astrologia – embora, hélas, o nosso Galileu Galilei até foi, além de tudo aquilo que se sabe, um profundo estudioso dessas matérias ditas esotéricas, sendo famosas as cartas astrológicas que delineou para as suas filhas e muitos poderosos.

    (ui, isto está mesmo a ficar lindo… Rafa a meter o turbo, pelo lado direito, uma alegada sarrafada de David Carmo, que corta um possível isolamento. O árbitro dá apenas amarelo; é chamado pelo VAR para possível vermelho. João Pinheiro mantém a decisão, mas dá outro amarelo a Taremi por protestos; temos assunto para a semana nas tertúlias futebolísticas)

    Enfim, já nem vale a pena estar a fazer previsões sobre o caldo entornado, porque agora já só falta o Benfica marcar um golo…

    (e ia sendo um, chuto em esforço de David Neres ao lado, com Rafa a estorvar)

    … para que tudo fique num pandemónio.

    Neste momento, em abono da verdade, já só espero que não se comprove as “previsões” do cronista do PÁGINA UM, Diogo Cabrita, que no Facebook ainda agora vaticinou: “O meu sonho agora era: jogo quezílento, três vermelhos, estádio da Luz interdito por very lights, Sérgio Conceição três jogos de suspensão, resultado final dois a dois, adeptos dos dois lados tristes, frango do ucraniano…”

    (intervalo… ah, entretanto, lembram-se da última crónica sobre o fresquinho de Setembro, que convidava a trazer um casaquinho da próxima vez? Assim fiz: está um calor de ananases!)

    Entretanto, entre descer esta Varanda da Luz, de onde vos escrevo e o reabastecimento de água, passa-se o intervalo, Então ‘amlá ver‘ – como o nosso cronista Tiago Franco, indefectível benfiquista diz que o António Costa fala – esta segunda parte… Ou isto anima ou vou ter de encontrar tema paralelo para dissertar… Vou dar uns minutos, entre pôr o olho no relvado, onde o Benfica porfia poucochinho, e as fotos que vou seleccionar, entre as quais um muro das lamentações em redor da estação de metropolitano do Alto dos Moinhos, onde um montão de benfiquistas se foi lamentar, fisiologicamente falando, de ser humano. Em pé, claro…

    (já agora, sobre os meus colegas de varanda de hoje, isto é, os da bancada de imprensa, tudo muito calmo e contido. E o Benfica a começar a perder oportunidades, agora mesmo foi o Otamendi a rematar para fora sem oposição, às tantas a recordar-se dos cortes defensivos quando estava no Porto; e antes disso, o Diogo Costa a fazer uma excelente mancha a remate subtil de Neres)

    Enfim, ou isto melhora, ou vai haver noite desagradável, e não é por ser eu benfiquista, que somente satisfeito se fica com uma vitória, ainda mais sobre o grande rival. Digo isto porque, enfim, vivendo um benfiquista com uma portista, mesmo se ma non troppo

    (e pronto: goloooooo! Di Maria! Grande regresso. O homem está a fazer aquele percurso do bom filho à casa retorna…. Agora é que isto vai aquecer. Imaginemos a cabeça do Sérgio Conceição… Ouve-se pirotecnia; o que significa que a Liga esfrega as mãos com a multa a aplicar ao Benfica; talvez devesse ser como noutros países para haver mais controlo de entradas)

    Esta crónica está a ficar mesmo gira, pelo menos para mim, porquanto se começo a dissertar sobre um tema, sucede algo que muda o rumo.

    (entretanto, mais uma “boa” intervenção do Otamendi: remate isolado na grande área, depois de uma jogada de canto estudada, mas para cima. Com o Otamendi, como há uns anos, a baliza do Porto fica segura!)

    Queria eu dizer que, coabitando benfiquista com portista – um escândalo o wokismo não defender que eu seja benfiquistO e um homem como o Luís Gomes não seja um portistO; a sociedade tem muito a evoluir… – nunca um empate, parecendo um dividir o mal pelas aldeias, é um bom desfecho. Um empate vale sempre como derrota, pelo que haja sempre um vencedor, e fé em Deus para não irritar em demasia o perdedor…

    (entretanto, três substituições em simultâneo do Benfica ao minuto 84, incluindo Di Maria para a ovação, e Roger Schmidt a congeminar estratégia de contenção para os últimos 30 minutos de jogo…)

    Veremos entretanto como será a minha recepção caseira depois dos 96 minutos (deram só seis minutos… mais um escândalo que alimentará debates pela semana), se janto, na verdade, porquanto a porção do farnel do Benfica aos jornalistas se esfumou sem se perder a esfaima.

    (e pronto, antes de acabar, o Francisco Conceição dá uma cuzada em pleno ar contra o Otamendi… foi cómico, porque o filho do Sérgio Conceição tem um metro e setenta, enquanto o brutamontes do Otamendi, que lhe mandou beijinhos em troca, um metro e oitenta e três. Serenou tudo; afinal não se confirmaram os prognósticos da super-Lua cheia)

    E pronto: סליתא וסליתא – está consumado. Giro: o WordPress aceita caracteres de aramaico.

    (e a equipa do Futebol Clube do Porto lá foi fazer o seu número de provocação, com gritos de união, junto às claques do Benfica; coro normal de assobios e vaias dos adeptos benfiquistas, muito teatro, mas eu até compreendo os jogadores e equipa técnica do FCP: os assobios dos nossos antagonistas, mesmo quando parecemos derrotados, são o que nos dá força para continuar… portanto, força, Porto: queremos ganhar-vos na segunda volta, convosco fortes, mas, claro, atrás de nós na classificação. Como agora justamente estão…)

    Tenham todos uma boa noite. Mesmo os portistas. E sobretudo os portistas. E sobretudo um aviso: isto é só um jogo; coisas a sério é aquilo que vou escrevendo durante os dias da semana… Não levem tão a sério o futebol.

  • Perdura, porventura, ternura

    Perdura, porventura, ternura

    Há pequenas coisas, como, por exemplo, sentir areia nos dentes enquanto comemos fruta na praia, que sabe à ferrugem que avistamos ao longe numa escultura imensa, maciça, de ferro a oxidar ao longe, lacrau áspero de rabo eriçado na nossa direcção (vou picar, vou picar!)

    Podemos exasperar-nos. Tentar cuspir, selectivamente. Ou podemos tentar continuar a mastigar, o mínimo de movimentos, até a engolir quase assim, como está. Engolir a praia suja, a bem da paz de espírito.

    Explicarmos a alguém como vemos, as coisas, exige articulação suave, candura, um refinar a areia até ser pó dourado entrando pelas narinas, bem dentro, até respirarem a nossa verdade, e nada verem mais, e o deserto ficará nos seus olhos, ondulado e amarelo.

    Person Foot Prints on Sands Photo

    Palavras.

    Falarmos com paredes é exercício de lamento, duro, emparelhado e sólido. Cego. Surdo também. Mais fácil o murmúrio, sempre, entre dentes (talvez o mínimo de movimentos para engolir a areia com sumo da fruta), o sol queimando as vistas e o horizonte a bater-nos o cabelo, na cara. Aguentar a nortada e continuar, se as mãos tremerem esforçamo-nos para que não notem, que não acudam.

    Mas o corpo diz mais, mais do que a boca.

    Então, assim, fácil é enredar-nos. Descobrimos, se calhar, que não conhecemos os nossos pensamentos (como não conheço os teus), e divagamos, e viajamos, e papagueamos frases curtas, que nos deram embrulhadas e torcidas nas pontas (rebuçados), caramelo sem gosto, a gosto.

    Oh Deus! (deuses!), quantos caramelos a derreter ao sol, a colar a areia ao céu da boca!

    photo of silhouette photo of man standing on rock

    Sacode! Sacudamos! Que se o corpo ainda tiver força para sacudir, talvez se espantem então para longe os magros demónios que se penduram nas nossas costas. Como sombras de mãos que, dançando sozinhas, povoam o tecto, enormes, para distrair a birra.

    E se tropeçarmos, porventura, temos de nos agarrar, cada vez mais a algo terno, que nos ampare, que a idade não perdoa, e perdura.

    Mariana Santos Martins é arquitecta

    P.S. A autora pede humildemente aos seus esforçados leitores que se deleitem com a hiperligação no início do texto em pleno, ouvindo, mas também vendo. Porque o Belo é urgente.


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Querem um ladrão na crise da habitação? O Estado!

    Querem um ladrão na crise da habitação? O Estado!


    Um dos grandes temas da actualidade é a crise na habitação. Efectivamente, obter um tecto a preços acessíveis tornou-se missão impossível para a grande maioria dos portugueses. Por um lado, as prestações do crédito à habitação duplicaram num espaço de um ano; por outro, registaram-se fortes subidas nos preços dos novos contratos de arrendamento nos últimos meses, que não é mais do que uma defesa dos proprietários às medidas governamentais que se anunciaram.

    Nos últimos meses, o Governo propôs uma legislação que designou por “Mais Habitação”. Prevê várias alterações: congelamento de rendas para os novos contratos, com base no último contrato de arrendamento dos últimos cinco anos, arrendamento forçado, fortes restrições ao licenciamento e novos tributos sobre o negócio de Alojamento Local.

    Para acrescentar mais um “problema” à crise, recentemente o Instituto Nacional de Estatística (INE) publicou o indexante para actualização das rendas no próximo ano (2024): 6,9%. De imediato, os órgãos de propaganda lançaram reptos ao Governo no sentido de uma intervenção, tal como sucedeu no ano passado: apesar de uma inflação de 7,8% em 2022, os senhorios apenas puderam actualizar as rendas em 2%, ou sejam, uma perda de 5,4 pontos percentuais em termos reais.

    O ambiente para os proprietários não é famoso. Até já se lhes lançou um odioso à expressão: “cada um mete o preço que quer na sua propriedade”.

    Ora, isso simplesmente não é verdade, pois cada um pede o preço que entender pela sua propriedade; mas, para que haja negócio, terá de haver alguém disposto a pagar o preço pedido.

    É um princípio sobejamente conhecido: quando a liberdade é respeitada, as transacções entre pessoas são voluntárias e livres. Até hoje, não se conhecem proprietários, em busca de “lucro fácil”, que tenham sacado de uma pistola, apontando-a à cabeça do inquilino, a exigir a assinatura do contrato de arrendamento. Aliás, quando se assina um contrato livremente, as regras são claras para ambas partes, incluindo a actualização da renda.

    aerial view of city buildings during daytime

    Neste contexto de crise, surgem todos os dias propostas mirabolantes para a debelar, como, por exemplo, esta saída da pena do Tiago Franco, também cronista do PÁGINA UM: quem tenha emigrado e estava a pagar um crédito à habitação em Portugal, pode reflectir as subidas da prestação sobre o inquilino. Certamente, que tal liberalidade já não se aplica ao famigerado “especulador” que arrenda uma casa adquirida através de um crédito à habitação, nem tão pouco ao que decidiu investir as poupanças de uma vida no mercado de arrendamento, por forma a fugir à repressão financeira do Banco Central Europeu (BCE), onde o aforro é, há mais de uma década, remunerado a 0%.

    No primeiro caso, segundo a proposta, o inquilino paga o empréstimo ao emigrante que, ao final de umas décadas e sem sobressaltos de maior – pode enviar o aumento das prestações ao inquilino! – tem mais património, está mais rico. No caso do segundo e do terceiro, já não é bem assim, pois estão sujeitos ao “tenebroso” mercado e ao terrorismo de Estado, onde o respeito pela propriedade privada começa a ser inexistente.

    Mas vamos então supor que o Emigrante do Tiago Franco comprou uma casa no Lumiar, em Lisboa, em Julho de 2019 por 327 mil euros: um T2 de 90 metros quadrados (m2), a 3.632 euros o m2. Para isso, contraiu um empréstimo bancário com as seguintes condições: 40 anos, Euribor a 12 meses + 1% de spread, financiamento a 100%.

    Como a Euribor a 12 meses naquele momento se encontrava em -0,3%/ano, a prestação mensal ao banco seria de 780 euros. A este custo, acrescia o condomínio (75 euros/mês) e os seguros da casa (75 euros), totalizando 930 euros. O mercado de arrendamento aplicava 13,3 euros por m2, uma renda mensal de 1.200 euros, obtendo, desta forma, uma margem de 270 euros por mês.

    Em Julho de 2023, em resultado da subida da taxa Euribor a 12 meses, as prestações mensais do empréstimo à habitação “saltaram” de 780 euros para 1.610 euros, um incremento de 830 euros. Segundo a proposta, o inquilino passaria a pagar 2.030 euros por mês, em lugar de 1200 euros, garantido o mesmo lucro ao Emigrante do Tiago Franco.

    Aplicando a mesma situação para o “malvado Especulador”, que não emigrou, e assumindo contratos anuais com novos valores de renda em cada ano, estaria a receber 1.460 euros (16,2 euros por m2) de rendas mensais em Julho de 2023. Como seriam os seus custos? Pagaria agora 1.610 euros de prestação mensal, acrescido das despesas de condomínio e seguros, o que seria um encargo mensal de 300 euros por mês, em lugar de um rendimento!

    Por fim, o “malvado Especulador” que adquiriu a mesma casa, mas, neste caso, com as suas poupanças, por forma a fugir dos juros 0% no banco. Em Julho de 2019, a rendibilidade anual seria de 4,4% (1.200 × 12 ÷ 327.000), em termos reais praticamente o mesmo, já que nessa altura a “inflação oficial” estava em torno de 0%. Em Julho de 2023, a situação, aparentemente, seria mais favorável: uma rendibilidade de 5,36% (1.460 × 12 ÷ 327.000). Acontece que a inflação situa-se em 7,8%, representando uma remuneração real negativa da poupança: -2,3%. As suas poupanças valem menos!

    Não incluímos nesta equação o Ladrão-Mor, que nos assalta os rendimentos prediais em 28% (ainda há quem peça o englobamento, talvez para ajudar um pouco mais o mercado de arrendamento) e aplica o Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis (IMT) sobre a compra. Não se considera o Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI), já que este tributo – roubo – é deduzível em sede de IRS para os rendimentos prediais, ao contrário dos juros do empréstimo bancário!

    Podemos então imaginar a presente situação dos “Especuladores” que decidiram meter-se no mercado de arrendamento através de um empréstimo bancário. Mas já no caso do Emigrante, é todo um mundo especial, pois “está ao fresco” das subidas da taxa de juro da Sra. Lagarde.

    Aquilo que me deixa perplexo em toda esta crise acaba por ser o desrespeito total pela propriedade privada, um dos nossos principais direitos naturais: a vida, a liberdade e a propriedade privada. As sociedades que mais protegem estes direitos são as mais prósperas, e não o contrário.

    Reparem, em toda esta discussão, tende-se sempre a culpar a suposta ganância do proprietário e nunca a do Ladrão-Mor: o Estado.

    Close-Up Shot of a Person Counting Paper Money

    Foi o Estado, através do BCE, que imprimiu mais de 4 biliões de Euros (atenção: 12 zeros) desde o início da putativa pandemia, a verdadeira causa da inflação que hoje vivemos. Com este dinheiro, vindo do “ar”, em que o BCE imprimia enquanto o Governo emitia dívida pública, pagou-se fornecedores de testes, farmácias, fabricantes de inoculações experimentais e fornecedores de fraldas faciais. Foi também com este dinheiro que se pagou a profissionais de saúde, enquanto os hospitais afinal estavam como nunca estiveram, ou seja, nunca estiveram tão vazios.

    Assistimos, nos últimos anos, ao maior processo de redistribuição de riqueza da História da Humanidade, onde, através da inflação, os pobres e a classe média foram assaltados a favor da casta parasitária e de multimilionários próximos do poder. Para o proprietário e inquilino foi uma roubalheira sem fim, mas a culpa nunca se assacou ao Ladrão-Mor.

    O roubo deste nunca é suficiente. É sempre preciso mais. Não satisfeito, prepara-se agora para evitar uma actualização das rendas de acordo com a inflação, roubando uma vez mais os proprietários. Prepara-se também para congelar as rendas, uma medida que destruiu as principais cidades portuguesas. Ainda se recordam como eram, há uns anos os principais centros urbanos do país, com edifícios devolutos e ruas desertas à noite?

    Close Up Photography of Person in Handcuffs

    As pessoas investem apenas onde existam garantias de que os seus direitos de propriedade sejam respeitados; caso contrário, não acontece. A oferta só aumenta assim. Ter mais casas no mercado exigirá liberdade negocial da renda e liberdade de actualização da renda, e sobretudo o fim do roubo e das restrições ao licenciamento de novas construções e alojamento local.

    Mas isso não será suficiente; também será necessário abolir o BCE, evitando que se criem bolhas imobiliárias à conta de juros 0% durante anos a fim e o roubo a favor da casta próxima da fonte do dinheiro.

    Uma coisa é clara: não é roubando uns para dar a outros que se irá resolver um problema que nos atormenta a todos.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Portugal: o país (agora) perfeito para homens como João Porfírio Oliveira

    Portugal: o país (agora) perfeito para homens como João Porfírio Oliveira


    João Porfírio, de apelido Oliveira, é um matemático. Ainda mais das Matemáticas Aplicadas. E tanto se aplicou que está, há muitos anos, neste mundo dos números que são os hospitais. Está no lugar certo.

    Bem sei que houve um certo engenheiro que, em tempos, nos quis fazer acreditar que as pessoas não são números, mas um hospital enche-se sempre de números, sobretudo na hora de pagar facturas com dinheiros públicos a empresas privadas. Ou nas camas em falta. Ou nos médicos e outros profissionais de saúde em falta. Os nas horas de espera nas urgências. Ou nos dias a aguardar por consulta, diagnóstico ou operação.

    Ora, o nosso matemático João Porfírio sabe da poda no que diz respeito a contratos:, que mete sempre muitos números, porque há saída de fundos públicos para empresas privadas: como presidente da administração do Hospital de Braga já “despachou”, desde o início de 2022, qualquer coisa como 175.842.431,68 euros dos nossos impostos para fazer cumprir 4.162 compras.

    Mas o nosso matemático João Porfírio também deverá saber, ou deveria saber, que há uns números, com aptidão burocrática – essa coisa chata mas funcional de que nos falou Max Weber –, que visam transmitir ao povo, que paga a factura, e até lhe paga os salários, quando e como ele gasta o nosso dinheiro.

    Por exemplo, o nosso matemático João Porfírio deve saber que, na contratação pública, o 20 é um número fundamental: é o prazo máximo em dias úteis para se introduzir o relatório de formação de um contrato após a sua celebração ou início da sua execução no Portal Base.

    Para um matemático, o 20 não é um número nada próximo de 900 nem de 1140 nem de 840 nem de 744 nem de 958 nem de 845 nem de 831 nem de 1133 nem de 851 nem de 956 nem de 926 nem de 857 nem de 733  nem de 882 nem de 810 nem de 1000 nem de 839 nem de 930 nem de 868 nem de 1127 nem de 999 nem de 763 nem de 858 nem de 875.

    Esses números gordos, de três dígitos, representam o tempo, em dias, que a administração do matemático João Porfírio – leia-se, o Hospital de Braga – demorou a colocar no Portal Base diversos contratos superiores a 100 mil euros (mais um número), um total de 32 (mais um número) para ser preciso, estabelecidos entre 2020 e os primeiros meses de 2021 (até Maio) para a compra sobretudo de máscaras, luvas de nitrilo e outros equipamentos de protecção individual, bem como de zaragatoas e testes.

    Só estes 32 contratos totalizaram 7.013.105 euros (mais um número). Compras, na sua generalidade, relacionadas com materiais e equipamentos para a nobre luta contra a covid-19: um regabofe de ajustes directos sem contrato reduzido a escrito e sem controlo prévio. Aliás, nos elementos colocados no Portal Base dois e três anos depois não há forma sequer de se saber quantidades compradas nem outros detalhes relevantes. Foi um gasto “para o bem”, logo pode-se gerir o dinheiro mal.

    [presume-se que um matemático como o João Porfírio só aprecie ver a forma de letras em equações, fórmulas, funções, expressões algébricas e generalizações; de resto terá ele, porventura, ou má ventura nossa, comichão quando as vê em folhas com cláusulas, deveres e obrigações do adjudicante e da adjudicatória em prol do interesse público e da transparência na gestão de dinheiros dos contribuintes]

    O matemático João Porfírio também não aprecia, aliás, que um jornalista se incomode, e o incomode, por ser revelado que a sua administração no Hospital de Braga publicou no Portal Base, entre os dias 1 e 13 deste mês, um total de 393 contratos todos por ajuste directo, e com um valor global de 10.933.025,57 euros. Tudo, portanto, por ajuste directo, que é a melhor forma de fazer negócios privados mas o pior quando se trata de dinheiros públicos.

    O matemático João Porfírio aprecia contratos por ajuste directo, e basta olhar para os números do Hospital de Braga, e por isso se abespinha por um jornalista sugerir que um contrato por ajuste directo é uma janela que se abre à corrupção. É – ponto. Por esse motivo há regras para que não se passe pela janela, e isso consegue-se reduzindo ao mínimo o recurso ao ajuste directo. Ponto.

    Vai daí – e como ainda por cima porque um jornalista tem o descaramento de revelar como se combina um ajuste directo (“pega-se no telefone ou envia-se um e-mail, e está feito”; não sei outra forma de serem preparados; talvez haja um outro método, porventura matemático –, o matemático João Porfírio também não gostou de ver tantos números numa tabela estatística compilada pelo PÁGINA UM usando dados oficiais do Portal Base com os gastos do Hospital de Braga em contratos de mão-beijada, que é mesmo disso que se trata quando se usa este procedimento como regra na gestão de dinheiros públicos – à Lagardère, como coloquei num título.

    E atrevimento à Lagardère, como o do personagem do romance oitocentista de Paul Féval, não faltará, confesso, ao matemático João Porfírio. Depois das revelações do PÁGINA UM, ao invés de fazer contas à vida, e corrigir os seus procedimentos de gestor da res publica, e de um hospital onde os recursos são sempre escassos, desviou um funcionário público (porque deduzo que não tenha gastado o seu precioso tempo a escrevinhar, até porque, lá está, “ele é mais números”), para que fossem exaradas duas queixas contra mim na Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) e no Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas (CD-SJ).

    [talvez ainda tenha seguido uma queixa para a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista, porque agora passou a ser norma atacar-me pelas três frentes]

    Questionou-me, aliás, se o funcionário, talvez um jurista – porque até dá doutas sugestões à ERC sobre a tipologia de “castigos” e de “abjurações” que me deveriam aplicar – não deveria antes estar a introduzir contratos no Portal Base ou a elaborar documentos preparatórios de concursos públicos, reduzindo assim a quantidade de ajustes directos do Hospital de Braga.

    Por agora, neste lamentável episódio – porque as denúncias feitas pelo PÁGINA UM deveria, num país decente levar um gestor público do quilate do matemático João Porfírio a ser investigado ou a ser demitido; a envergonhar-se, e não a queixar-se –, há também um outro facto simultaneamente lamentável mas com uma nota anedótica do ponto de vista das probabilidades matemáticas.

    A parte lastimável mas esperada é que a ERC e o CD-SJ foram a correr abrir-me processos sob a queixa do matemático João Porfírio, não porque apontem algum erro ou inexactidão, mas pelo estilo de escrita. Hoje, aprecia-se um jornalismo comedido, brando, compreensivo, colaborativo, um jornalismo não-jornalismo.

    A parte anedótica – que até ao matemático João Porfírio causaria espanto – advém das circunstâncias do processamento da notificação da queixa: talvez na corrida para ver quem me acusava primeiro, mesmo com procedimentos distintos e recursos diferentes, os e-mails da ERC e do CD-SJ chegaram-me exactamente no mesmo dia, na mesma hora e no mesmo minuto.

    A probabilidade estatística disto suceder, de forma aleatória – assumindo que não foi combinado – será, presumo, próxima do acerto no Euromilhões. Por outro lado, a probabilidade destas duas entidades não me censurarem é – visto o historial e o pântano institucional instalado, onde um jornalista que denuncia acaba por ser linchado por entidades falsamente criadas para proteger a liberdade de imprensa – é próxima de zero.

    Em todo o caso, uma promessa: deixarei de escrever sobre a gestão do matemático João Porfírio, de apelido Oliveira, e de outros, quando este e os outros cumprirem com escrúpulo as regras legais e de transparência da contratação pública e não usarem a excepção do ajuste directo como se fosse a regra.

    É um objectivo aparentemente utópico, até porque, ainda ontem a administração do matemático João Porfírio fez publicar no Portal Base mais, pelo menos, mais quatro mui suspeitos contratos, todos por ajuste directo. Três desses contratos são por prestação de serviços de segurança das instalações hospitalares, entregues de mão-beijada (não há outro termo) à Securitas.

    O primeiro contrato foi assinado no dia 31 de Março, portanto, em vez de ser divulgado ao fim de 20 dias úteis, o matemático João Porfírio acha que quem diz 20 também pode dizer 150. Mas curiosamente a cláusula da vigência tem a particularidade de dizer que “o contrato entra em vigor na data da sua assinatura e será válido até 31 de março de 2023, sem prejuízo das obrigações acessórias que devam perdurar para além da cessação do contrato”. Ou seja, pela leitura deste contrato, aparentemente, o contrato termina no próprio dia da assinatura, embora depois a informação de registo aponte para os 90 dias. Como o matemático João Porfírio acha que, contrariando a lei não tem sequer de mostrar o caderno de encargos de um ajuste directo, temos assim um exemplar caso de um ajuste directo que se faz assim por 147.646,86 euros, argumentando “urgência”.

    Aliás, da mesma ambiguidade (e atraso no prazo de publicação) sofre o segundo contrato com a Securitas assinado a 15 de Junho, mais um por ajuste directo e com o mesmo valor do anterior. Sabe-se que terminou no dia 30 de Junho mas não se sabe ao certo quando começou. Presume-se que terá sido no dia 1 de Abril, mas num contrato público não deve haver presunções. Nem sucessivos ajustes directos em prestações de serviços que podem e devem ser programados.

    E que dizer então de novo contrato de prestação de serviços com a Securitas assinado pela administração do matemático João Porfírio, agora em 24 de Agosto, pelo habitual ajuste directo e preço costumeiro (147.646,86 euros)? Dizer apenas que, na verdade, nem sequer foi assinado; há contrato, é certo, mas estamos agora perante um ajuste directo sem honras sequer de redução a escrito, abusando-se de mais uma excepção legal, que escancara portas à corrupção. Não há já nada em papel. Tudo legal, mas tudo imoral. Mas, em abono da verdade, ao matemático João Porfírio que interesse têm essas futilidades (contratos escritos claros) com letras, compromissos, resultado da livre concorrência e formação adequada de preço?

    Nada. Zero, que é também um número.

    O matemático João Porfírio Oliveira assinou no dia 4 de Abril de 2023 um contrato que entrou “em vigor na data da sua assinatura” e que seria “válido até 31 de Março de 2023“. No registo do Portal Base está indicado que vigora por 91 dias…

    E, por fim, ironicamente, o quarto contrato diz respeito a mais um ajuste directo à ITAU, a empresa de fornecimento de refeições que assinou 11 contratos por ajuste directo com o Hospital de Santo António, conforme ontem o PÁGINA UM revelou. Mas no caso do contrato no valor de 645.191,67 euros (não são trocos) com o seu hospital, o matemático João Porfírio conseguiu uma impossibilidade “física”: assinou ele próprio (com a sua colega da administração Sónia Duarte) no dia 4 de Abril de 2023 um contrato que, na cláusula terceira, diz tão-só o seguinte: “O contrato entra em vigor na data da sua assinatura [portanto, 4 de Abril de 2023] e será válido até 31 de março de 2023, sem prejuízo das obrigações acessórias que devam perdurar para além da cessação do contrato“.

    Já temos, portanto, contratos com duração de tempo negativo…

    É este o senhor matemático que fez queixa contra mim na ERC e no CD-SJ. É este senhor matemático que continua a ser presidente do Conselho de Administração do Hospital de Braga. É este senhor matemático que vive no melhor dos mundos, neste Portugal decrépito e sem valores, porque pode tudo fazer com a maior das desfaçatezas e até, em simultâneo, fazer-se de vítima.

  • Então ‘amlá ver’ as eleições da Madeira…

    Então ‘amlá ver’ as eleições da Madeira…


    Imagino que vos tenha escapado, ontem que ali, entre o primeiro remate certeiro de Bah e a confirmação final de David Neres em Portimão, aconteceram, em simultâneo, eleições regionais na Madeira. Ou, como disse Maria João Avillez, o caso de estudo da democracia portuguesa.

    As eleições para a Assembleia Regional da Madeira são, de longe, o momento mais soporífero da jovem democracia portuguesa, e resumem-se, desde que me lembro de existir e saber ligar uma televisão, a discutir o tamanho da vitória do PSD. Nos tempos de Alberto João íamos de maioria absoluta em maioria absoluta. Hoje, já nem tanto, mas a região continua um bastião da direita, em particular do PSD.

    person standing near table

    Alberto João Jardim deixou um legado difícil de seguir nos dias que correm, é um facto. Era um homem que às segundas, às quartas e às sextas gritava “independência” da República Portuguesa em frente aos jornalistas, e que nos restantes dias da semana, em conversas privadas, lá tentava que o primeiro-ministro em funções fosse perdoando a dívida da Madeira.

    Dizia-me um madeirense, saudoso do seu Alberto, aqui há uns dois anos em Câmara de Lobos, enquanto bebericava uma poncha: “O hospital aqui está uma vergonha. Temos  todos de ir para o Funchal para não morrer. Se o Alberto João ainda lá estivesse, faziam um hospital novo e depois logo se via quem pagava! Agora este Miguel Albuquerque, não sabe como enrolar os cubanos…”

    Portanto, não tem tarefa fácil o amigo Miguel. E muito menos a piada do seu antecessor. Era essa, aliás, a única razão pela qual se acompanhavam as eleições na Madeira. Perceber que bordoada diria Alberto João desta vez, por norma, depois do jantar.

    Ainda assim, Miguel Albuquerque fez o possível para trazer algum “salero” para esta contenda e disse, em alto e bom som, que se não tivesse maioria absoluta, então não entraria em negociações e trataria de se fazer à estrada.

    Pois o bom do Miguel ficou a um deputado da maioria absoluta e, muito bem, adivinharam, não se fez à estrada. Confesso que até ficaria ofendido se um político resolvesse honrar a palavra dada, poder-se-ia abrir um precedente perigoso. Escusado será dizer que Luís Montenegro, o líder nacional do PSD, fez destas eleições um momento de triunfo tal que chegou a ser deprimente. Não só apareceu mais do que o próprio líder regional como ainda tentou, naquele erro clássico das eleições insulares, transpor aquela situação muito particular para a realidade nacional.

    É também perceptível, diria. Montenegro luta pela vida, enquanto Passos se vai aproximando e tenta mostrar que serve para algo mais do que guiar um autocarro desgovernado pelo meio do deserto. O PSD da Madeira, em coligação com o CDS, conseguirá uma maioria absoluta se se juntar à Iniciativa Liberal, o que, a fazer fé nas palavras do deputado eleito pela IL, já deve estar mais ou menos arranjado. Montenegro deverá estar a tomar notas de como é que é possível fazer uma coligação de Governo sem o Chega, embora, a nível nacional, todos saibamos que isso não é possível.

    A entrada do Chega no Parlamento regional da Madeira também é uma notícia que merece destaque. Os 12.000 votos e quatro deputados eleitos mostram que o problema do abandono escolar não se resume ao território continental. O partido continua a crescer e esse é um dado inegável e preocupante. Boa parte do eleitorado português não está contente com os problemas que a democracia já tem e vai optando por um partido que, simplesmente, não gosta da democracia na sua base. Elucidativo.

    a black and white photo of a trash can

    A esquerda teve, como é hábito, um mau resultado por aquelas paragens e António Costa nem deu sinal de vida. O líder regional, que ninguém conhecia, pouco mais do que exigir a demissão de Miguel Albuquerque fez, e em Lisboa, a reação ficou a cargo de um senhor chamado João Torres, que possui o cargo de secretário-geral adjunto no PS. Cargo que, até ontem, eu não sabia que existia e hoje percebo que serve, essencialmente, para aparecer quando o secretário-geral tem coisas importantes para fazer. Visto de fora, parece que o PS aceitou de bom grado oferecer a Madeira, e as restantes forças (BE e PCP) pouco mais conseguem do que manter ou recuperar o seu deputado.

    A terceira força mais votada foi o “Juntos Pelo Povo” (JPP), um movimento que não se define por ser de esquerda ou direita. Portanto, uma espécie de PAN sem animais ou de IL sem “flat rate”.

    O meu momento favorito da noite aconteceu quando o deputado eleito pela IL começou a gritar “liberdade”, num assomo tardio da Revolução dos Cravos. Aos poucos, eles vão percebendo o que aconteceu, o que é bom.

    No contorcionismo lamentável de Miguel Albuquerque, a propósito da sua demissão, garantiu-nos que teria maioria sem o Chega e esse seria o ponto de honra que lhe lavaria a cara. Achei essa parte interessante porque mostra, no fundo, o que significa a politiquice de bastidores. E também os líderes que vamos escolhendo ao longo das décadas.

    Ninguém lhe pediu que se demitisse ou não fizesse coligações. Foi ele que adoptou essa estratégia de dar um tiro no pé. Ontem, como se a moral para nada contasse, lá veio dizer que bastaria arranjar uma maioria para governar (contrariando o que o próprio tinha dito) e traçando, ali, um novo compromisso: “atenção que com o Chega nem pensar!”

    Ora… isso acontece porque, como percebemos, precisava apenas o PSD de mais um deputado para a maioria absoluta e a IL servia para esse propósito. Caso contrário, teriam feito o mesmo que Bolieiro fez nos Açores: durante a campanha “Chega, nunca!”; depois dos votos contados, “o Chega até já sabe comer de garfo e faca”.

    Conta o poder, a forma de o conseguir e manter. O resto, nomeadamente a palavra dada ou as expectativas criadas nos eleitores, são duas mãos cheias de nada. E já nem falo na simples e contundente honestidade, porque essa já ninguém a exige ou cobra a político algum.

     A IL terá três ou quatro PPPs na mão para negociar a troco da maioria e, neste caso, não é nada que seja estranho ao PSD Madeira. Tirar ao público para entregar a diversos privados é quase um modus operandi por aqueles lados. A IL vai descobrir uma nova meca.

     Daqui a 4 anos voltamos a falar. Se nos lembrarmos das eleições, claro.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Sim, Clara, eis o desgoverno do Governo

    Sim, Clara, eis o desgoverno do Governo


    Clara Ferreira Alves partiu a loiça toda numa recente presença na televisão: criticou o Portugal da balbúrdia dedicado ao Governo de António Costa. Uma fã da opção socialista, uma certificada defensora do voto à esquerda, percebe agora, de modo retumbante, a ineficácia de uma governação que nada constrói além de um jeito sexual de produzir lei.

    Eles são o mete e tira, o faz e desfaz. Ontem, a TAP era um hub e uma necessidade pública, uma certeza que nos custou mais de três mil milhões. Hoje, a TAP é um presente para a privatização a 100%, mas que não renderá os investidos. Ou seja, a TAP é uma cerâmica concertada que se vende sem pagar a quem o concertou. Ou estamos perante a maior das mentiras: pagámos para concertar e ficou igual ao que estava- uma jarra quebrada, a vender na feira da ladra.

    Sim, Clara, eu apercebi-me do mesmo há vários anos, e por isso me afastei do PS, que aposta nas franjas das minorias, nas decisões sem alicerces e assim cria problemas vindouros em tudo o que toca. São como leis sem regulamentos: não se aplicam apesar de existirem. A nova loucura é a questão da “mais habitação”. O Estado ladrão, dono de milhões de casas devolutas – entre os legados da CP, EDP, barragens, quartéis, hospitais, centros de saúde, escolas primárias, abandonos sem conhecimento de proprietário, muitos no centro nevrálgico de cidades – prepara-se para “obrigar” os proprietários a colocarem no mercado aquilo que herdaram ou compraram com planos bem elaborados, com organização familiar fundamentada. O ladrão invade, como sempre, a cidadania exemplar.

    Mas este é o António que nos deixa com milhares de problemas para regulamentar e resolver.

    Eis as matilhas que sobram das leis de proteção de animais.

    Eis o roubo aos que acreditaram na mobilidade elétrica e que são vítimas do assalto dos carregadores sem ordem e sem lei.

    Eis a enormidade do IVA não pago na venda de barragens.

    an aerial view of a dam in the middle of a lake

    Eis a demência do custo energético depois de se fecharem as centrais de carvão.

    Eis o estado a que chegou a saúde pública, o sistema judicial e penal, o Ensino, os transportes.

    Eis o ataque das minorias à língua, aos costumes, à proteção da família.

    [Sim, há uma quantidade de estupidez que vai do acordo ortográfico em curso até à exigência de desnecessidades construídas para nos entreter em vez de lutarmos por salários dignos e um Estado menos Godzilla, menos King Kong.]

    Este Estado tem um estômago voraz e um cu de benesses que produziu da fortuna de impostos de quem trabalha. Um regador de dádivas para os votos dos simples, dos que, por razões várias, não emigram, dos que se refugiam encostados à sombra do rendimento mínimo, dos que recebem complementos para sobreviver depois dos salários (isto é, em si mesmo, uma enormidade).

    Portugal criou uma Sicília de grupos que protegem suas benesses sem controlo, sem fiscalização e, desse modo, perpétua uma Universidade maioritariamente medíocre, um sistema de Saúde cada dia mais torpe, uma justiça por onde escoam os mega-processos, onde as acusações mal fundamentadas e instruídas esbarram com a lei.

    Sim, Clara, esta balbúrdia é possível porque a liberdade de imprensa e de informação acabou e se presenteiam os seguidores, os camaradas do regime. Recorde-se como um beijo em Espanha foi mais importante que seis mil milhões de impostos gastos a comprar eletricidade de centrais de carvão, mas espanholas!

    Também tu, Clara, tens dito nada sobre isto, sobre o que se passa com as decisões do PAN levadas a cabo pelo PS, sobre os dados que comprovam que não morreu ninguém abaixo de 30 anos em Portugal na tal epidemia que te assustava tanto.

    Também tu, Clara, não queres saber nem te queres informar. Talvez agora, quando te mandarem sair da TV, te retirarem as crónicas do jornal… recorda-te: quem se mete com o PS, leva!

    Diogo Cabrita é médico


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • AR TV: a melhor plataforma para nosso divertimento… ou não

    AR TV: a melhor plataforma para nosso divertimento… ou não


    Quanto maior é a oferta de canais televisivos, menos televisão eu vejo. Não é por qualquer embirração em particular, apenas constato o facto. Uma das razões que me afasta da “caixa mágica” é a mediocridade reinante. Provavelmente, não temos pessoas em quantidade suficiente para encher tantos canais e tantas horas de emissão. Entre reality shows com debates vazios, programas da manhã com entrevistas inenarráveis ou as intermináveis horas de discussão futebolística, com participantes que não conseguem articular duas frases, dou por mim a fugir para outras plataformas, essencialmente pela vergonha alheia das doses cavalares de lixo que nos entram em casa todos os dias.

    Há no entanto um canal, que também tem alguns tesourinhos deprimentes, é verdade, mas que gosto de acompanhar para sentir o rumo que leva o país. A AR TV, pois claro, onde se assiste aos debates parlamentares ou às tão famosas comissões de inquérito. 

    Ontem, houve por lá um belo debate sobre política fiscal, que recomendo. É um exemplo clássico de como o nosso Parlamento serve para pouco mais do que preparar eleições, e conseguir, agora na era das redes sociais, 30 segundos de frases fortes para o resumo do jornal da noite ou das televisões/ páginas dos partidos no Facebook.

    O PSD agendou esta sessão, onde se discutiria a baixa de impostos, sabendo que faltam 15 dias para se iniciar as conversas em torno do próximo Orçamento do Estado, onde esse tema já seria central. É a hipótese do PSD aparecer numa notícia com o título: “PSD propõe baixa de IRS e apoio às famílias”.

    Não sei que séries vocês seguem no Netflix ou HBO, mas certamente poucas vos oferecem este nível de entretenimento que a AR TV proporciona. O argumento é fraquinho, admito, faz lembrar aqueles filmes da Jennifer Aniston que começam e acabam sempre da mesma maneira, mas pelo menos uma pessoa pode sair a meio, fazer um xixi ou até perder um episódio, sem deixar de perceber a história.

    O PSD fez de bonzinho e preocupado no episódio de ontem. É o herói que vive isolado na cabana em ruínas, numa floresta distante do Alasca, desde que perdeu a última eleição. Não fala com ninguém, não tem telefone, tudo o que recebe no correio são postais de um amigo distante de Boliqueime. Até que, certo dia, um antigo colega aparece, a meio de uma pescaria, para lhes pedir ajuda e, uma vez mais, salvarem o Mundo. Eles dizem que não, que desistiram da sociedade, mas depois percebem que há mais uma hora de filme para encher – e lá vão.

    Tiram o casaco de pele de urso, fazem a barba e apresentam-se na Assembleia da República com a proposta de baixar os impostos. Ora, aqui percebemos que o filme está na categoria de ficção. O PSD nunca baixou impostos quando governou e, mesmo na oposição, vota contra tudo o que são propostas de lei para alívio fiscal dos trabalhadores.   

    Mas como ninguém presta atenção ao que por ali se passou nos episódios anteriores, dá sempre para fazer três ou quatro telejornais a “lutar pelos portugueses”.

    Uma das minhas partes favoritas é quando os amigos do herói se chateiam e seguem caminhos diferentes. Parecem os Avengers. O Thor gosta de resolver tudo à martelada, o Iron Man prefere a tecnologia de ponta. O Hulk acha que o Thor bate pouco e tenta bater ainda mais.

    O Chega faz de Hulk. Não quer saber de pactos de regime ou das propostas em debate. Basta-lhes partir tudo e gritar alguns segundos para o destaque do José Rodrigues dos Santos. É aliás curioso reparar que na altura das intervenções, subiu ao palanque um daqueles rapazes do Chega que ninguém conhece, que discursou longa e penosamente, para mal dos meus ouvidos. Bom… confesso que meti aquela parte para a frente mas isso agora não importa. Pelo discurso usado, parecia estar no intervalo das corridas de táxi que lhe ocupavam o resto do dia. Contudo, na hora do telejornal, lá aparecem os 10 segundos de gritos do Ventura, o homem que aproveita cada episódio para “lutar contra o sistema”.

    Aparece o Tony Stark, interpretado pela Iniciativa Liberal (IL). Mais lavadinhos e engomados que os do Chega, com vocabulário mais cuidado, piadas topo de gama e escolaridade mínima obrigatória concluída. Ah, e mocassins. Gozam com todos e dizem: “bem-vindos à discussão da baixa de impostos que nós andamos a vender há três anos”. Verdade, verdade. Flat rate e dinheiro público transferido para hospitais e escolas privadas. O fim do Estado Social mesmo que não encontrem um país socialmente justo com flat rate, mas, enfim, quem é que se vai perder com detalhes? A IL achava que, mesmo para ficção, a tentativa do PSD pecava por escassa. O corte fiscal devia ser maior e davam exemplos de como os salários de 1.400 euros iriam ser pouco beneficiados. A tal parte da sociedade que eles defendem e os salários que 75% dos portugueses não têm.

    Mas é por isto que os episódios da AR TV são bons. Há alguma emoção, sim, mas as surpresas são mais contidas. Já se sabe o que esperar de cada personagem e isso cria aquela identificação com eles. Os Simpsons não estão no ar há 30 anos só por causa da música inicial, já todos sabemos quem arrota, quem estuda e quem faz asneiras.

    Reparem que chegámos ao fim do debate sem que a direita no Parlamento se tenha sequer conseguido coordenar no ataque à maioria socialista. E aqui vou escrever socialista com “”, isto é, com aspas.  Para quem viu aquilo, a mensagem é clara: o Governo é tenebroso, mas a oposição não existe. São um grupo de rapazes que, antes de mais, procuram garantir o seu emprego na política. Depois, procuram agradar os lobbies que os patrocinam. E, por fim, tentam marcar algumas diferenças no hemiciclo, dizendo um conjunto de banalidades, promessas vazias que, uma vez alcançado o poder, simplesmente não cumprem.

    O PSD teve maiorias numa altura em que o dinheiro caía do céu. O que fez o senhor Aníbal de Boliqueime? Creches? Desenvolvimento industrial ou tecnológico? Ensino universal? Aumentos do salário mínimo? Não. Andou a fazer negócios com a banca privada, a torrar fundos europeus em estradas e parcerias com os abutres que ainda hoje gravitam em torno do erário público. Criou mais impostos e, enquanto Espanha se ia desenvolvendo, nós íamos fazendo investimento público em construtoras.

    Luís Montenegro era o líder parlamentar do PSD aquando do Governo de Passos Coelho, que aumentou, novamente, os impostos sobre o trabalho. Hoje aparece aos gritos a pedir aquilo que nunca fez, na esperança de não desaparecer depois da travessia no deserto. O PSD é Governo numa região autónoma desde que me lembro, e se quer combater as injustiças fiscais, então pode começar por acabar com as offshores da Madeira. Não precisam de pedir a ninguém, é só usar a maioria e votar pelo fim da bandalheira.

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    António Costa, que também vai anunciado medidas consoante os gritos populares (agora é o apoio para o crédito à habitação, que espero dê em algo palpável), deve olhar para aquela pobreza franciscana do Parlamento com um enorme sorriso e um balde de pipocas digno de se ver.

    Pobres de nós, povo e contribuintes, quando não querendo o Costa, achamos que a solução pode vir de Ventura, Rocha ou Montenegro. É que não servem, sequer, para figurantes, daqueles que fazem coro lá atrás e mexem a cabeça, quando alguém fala aos jornalistas. Quanto mais para decidir a vida de 10 milhões de pessoas.   

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Aborto: e que tal pensar em evitar que uma mulher pense nisso?

    Aborto: e que tal pensar em evitar que uma mulher pense nisso?

    Um recente relatório da Entidade Reguladora da Saúde diz que em 2022 realizaram-se 15.616 interrupções voluntárias da gravidez (IGV) em Portugal, um aumento de 15% face ao ano anterior. Soubemos também que, desde 2018, se fizeram 71.651 abortos.
    Perante estes dados, a primeira coisa que se ocorre na cabeça de certas pessoas é apelar ao alargamento do prazo legal para a prática de IGV, ou “repudiar” os profissionais de saúde objectores de consciência – esses malvados que se arrogam “juízes” morais e se recusam a realizar o procedimento.

    Começo por fazer um esclarecimento prévio: defendo a legalização do aborto, e discordo cabalmente de uma parte da direita que, por vezes, produz grande alarido em posições anti-aborto – e que se opõe até mesmo em casos de violação. Porém, também não concordo, e me parece até macabro, que certos grupos – não satisfeitos com o quadro de despenalização do aborto até às 10 semanas (já desde 2007) – façam deste assunto constante cavalo de batalha, e que, de quando em vez, se lembrem de azucrinar a opinião pública com mais reivindicações.

    a group of people holding up signs in front of the capitol building

    Esta obsessão persistente é sintomática e paradigmática não só de uma sociedade que julga apenas ter direitos, e poucos deveres, como do cerne do movimento feminista, que alardeia ter o bem-estar da mulher no topo das suas prioridades, mas que reduz as suas boas intenções a uma luta fetichista pelo “direito” ao aborto.  

    Uma vez legalmente garantida a possibilidade de recorrer à IGV, como sucede há vários anos, uma preocupação genuína com as mulheres deveria manifestar-se em redor da seguinte magna questão: o que pode a sociedade fazer para evitar que uma mulher sinta necessidade de recorrer ao aborto? Não (apenas) por eventuais questões morais ou religiosas, mas por se tratar de um procedimento doloroso a vários níveis e, a todos os títulos, obviamente indesejável.

    A resposta a esta questão passa indubitavelmente pela literacia, pela educação e pela contracepção, mas, deveria também passar por uma reflexão sobre os efeitos colaterais de uma cultura que promove uma sexualidade inconsequente e isenta de responsabilidades. Isto porque, nos últimos anos, estudos apontaram para uma correlação entre sexo casual e impactos negativos na saúde mental entre jovens adultos. Acresce ainda que este parece ser um problema maior para o sexo feminino, com as mulheres a apresentarem uma maior tendência para arrependimentos em encontros sexuais do que os homens.

    Man Holding Baby's-breath Flower in Front of Woman Standing Near Marble Wall

    Tendo em conta estes dados, seria lógico que, antes de colocarmos o aborto no centro da discussão – como o derradeiro recurso para prevenir uma gravidez indesejada – nos questionássemos antes sobre se a banalização da sexualidade não terá como consequência uma “sexualidade indesejada”. Seja na forma de uma vida sexual iniciada prematuramente, ou de comportamentos sexuais nocivos para a própria mulher.

    Por outro lado, num contexto em que cada vez mais mulheres se debatem com o desolador e deveras preocupante problema da infertilidade, e lutam pela possibilidade de engravidar e de levar a termo uma gravidez, não deixa de ser curioso que as brigadas “pró-escolha” não tenham, sobre este assunto, uma palavra de atenção. Ou, como temos visto em Portugal – perante os crescentes casos de mulheres que enfrentam dificuldades para terem os seus partos assegurados pelo Serviço Nacional de Saúde – , os efusivos activistas “pró-escolha” remetam-se ao silêncio.

    De facto, entre uma mulher que deseje abortar, e uma que deseje engravidar, apenas a batalha da primeira “faz as delícias” dos contestatários de serviço. Ao contrário do “direito” ao aborto, o “direito” à maternidade não parece, pois, constar sequer da lista de preocupações dos que se autoproclamam defensores da escolha, nem merecer qualquer resquício de indignação.

    woman wearing gold ring and pink dress

    Hoje, aliás, vemos celebridades internacionais (feministas) que se denominam, com regozijo, de serem child free, como se a escolha de não ter filhos fosse sinónimo de liberdade e empoderamento, e a maternidade não fosse mais do que um pesado fardo a suportar.

    Assim, é evidente que o movimento feminista “pró-escolha” tem, ao fim ao cabo, um inequívoco pendor anti-natalista. Quando o seu interesse na liberdade e no bem-estar das mulheres se resume a um intenso fervor pró-abortista, fica claro que as suas motivações se prendem menos com o superior interesse da mulher, e mais com uma vontade sinistra de assegurar que, paradoxalmente, se incorra em tantos comportamentos de risco quanto possível (instigando a promiscuidade e a irresponsabilidade) e, ao mesmo tempo, se possa, com o maior dos facilitismos, impedir um filho de nascer, invocando a autonomia sobre o próprio corpo.

    Maria Afonso Peixoto é jornalista


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Gustavo Carona e os meus 31 crimes de difamação (a 5.651,61 euros, cada)

    Gustavo Carona e os meus 31 crimes de difamação (a 5.651,61 euros, cada)


    Durante a pandemia, tanto como o vírus, tivemos de suportar uma chusma de influencers sanitários que, da cátedra dos seus compromissos farmacêuticos ou dos egos de hipócrita bom samaritano, foram vituperando e exprobando todos aqueles que, enfim, consideravam que a gestão de uma pandemia não daria bom resultado com lockdowns restritivos, suspensões de diagnósticos e tratamentos clínicos de outras doenças, restrições anticonstitucionais ineficazes do ponto de vista da Saúde Pública e alarmismos assentados em falta de informação ou manipulação de dados por parte das autoridades governamentais, que se mantém.

    De entre esses, destacou-se um em especial: Gustavo Carona, médico anestesiologista – que se assumia como especialista em Medicina Intensiva, malgrado não estar assim inscrito na Ordem dos Médicos, única entidade que pode reconhecer títulos.

    Black Horse Running on Green Field Surrounded With Trees

    Escuso de rememorar exemplos deste “profeta da desgraça” – que me faz lembrar o bondoso fanatismo religioso fanatismo do Padre Gabriel Malagrida, que tive a oportunidade de retratar no meu romance O Profeta do Castigo Divino.

    Ao longo de mais de dois anos, enquanto era zurzido – e de que maneira – por muitos, também zurzi no Doutor Gustavo Carona, sobretudo no Facebook. Não contei quantas vezes escrevi, mas podem ver aqui. Certo é que ele, ou o advogado por ele, contou e vai daí tenho 31 acusações de outros tantos crimes de difamação.

    Pede o Doutor Gustavo Carona, por todo o sofrimento causado pelos meus escritos, que eu seja condenado a pagar-lhe também uma indemnização de 45.000 euros.

    No processo em que sou por ele acusado – e que seguirá de imediato para julgamento se eu não fizer pedido de abertura de instrução – consta vários casos em que lhe chamei mentiroso e outros adjectivos, para além de o apodar de Doutor Ful HD (acrónimo de Full Humanitarian Doctor, sendo que ele se assumia, usando o inglês, como Humanitarian Doctor), e de outras cómicas alcunhas: Braveheart de Leixões e Cónego Guca Stavorona.

    Pedi ao Midjourney para imaginar o Cónego Guca Stavorona na Inquisição Espanhola.

    Eu não sei o momento em que, nesta geração, se perdeu a capacidade de encaixe para uma linguagem mais viperina, mesmo que sustentada em factos. Mas já acho um absurdo que o Ministério Público concorde com acusações patéticas (no sentido de comiseração) que constituem meros escritos irónicos e sarcásticos às parições literárias do Doutor Gustavo Carona, como esta aqui, ou esta aqui, ou esta aqui, ou esta aqui, ou esta, e sobretudo esta.

    Neste último caso então – onde glosei em reacção a um “apelo” do Doutor Gustavo Carona, em Abril de 2021, a que houvesse “mais amor”, mesmo estando ele a ser supostamente “alvejado por lunáticos”, embora assumindo nada ver e nada ler –, não me importaria de ser “condenado” por difamação: é que, caramba!, neste dia estava mesmo literariamente inspirado.

    DA RECEITA PARA A PUREZA DO CÓNEGO GUCA STAVORONA (27/4/2021)

    Misture-se, primeiro, um parágrafo de dez linhas de presunção beata com uma dose q.b. de superioridade moral, porquanto um médico nunca mente, apenas porque é médico, e um não-médico não pode denunciar as mentiras de um médico apenas por jamais ter enfrentado o desafio de assistir “um doente 2 ou 3 ou 4 semanas ou mais, ventilado nos Cuidados Intensivos”.

    Acrescente-se mais um parágrafo, de igual quantidade de linhas, com ladainhas, ao estilo de um Cristo de ventilador às costas e coroa de ECMO na cabeça, para assim ressurgir em Lázaro pacifista de alvo manto ao peito e máscara FFP2 na fronha, que, perante as ofensivas lanças e as lancinantes ofensas, nunca terá raiva, pois nada vê, e pois nada lê.

    Subtraia-se, porém, dissimulado, que, se não viu, se não leu e se não se enraiveceu, houve então alguém, por ele, avejão por certo, que viu, que leu e que reparou na mentira, e correu a consertar. E só não emendou segunda vez porque, embora a primeira corrigenda somente reentortou o que não nascera direito, já lhe pareceu mal dar depois tanto nas vistas.

    Junte-se, em seguida, e com a delicadeza abençoada de um Pedro Hispano, dez canadas de lamentos pelas atrozes perseguições perpetradas por lunáticos marcianos, terapeutas do reiki da vila da Pocariça, alienígenas de sete dedos, mestres tântricos de Alhos Vedros, hereges de cinco patas, bruxas de vassouras da Vileda, coachs neurolinguísticos de Ouagadougou, tatuadores escanzelados de Rilhafoles e, last but not the least, serôdios de caves do Bairro Alto com a mania de investigar e apanhar aldrabices de médicos humanitários.

    Polvilhe-se, por fim, tudo, com mil perdões aos sandeus, muito amor, e muitos livros para choramingar pedras da calçada. Ah! E não se esqueçam: “Mais amor”.

    Sirva-se abundantemente. A pureza resplandecerá! Milagre!