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  • A direita, a nossa, é uma risota, e das hilárias

    A direita, a nossa, é uma risota, e das hilárias


    Há dias, um dos mais conhecidos líderes da nossa “direita”, presentemente a liderar a Câmara Municipal de Lisboa (CML), publicou um vídeo nas redes sociais, obviamente pago com o nosso bolso, onde lançava encómios à sua gestão e desejava aos lisboetas um feliz 2024.

    A produção começa com a câmara a segui-lo, a caminho da escadaria interior do edifício da CML; surge-nos de camisa branca, de mangas arregaçadas, a dar um ar que trabalha muito e se esforça pelo povo; depois de subir, em passo acelerado, dirige-se ao seu gabinete na CML. Ao entrar, aproxima-se de um móvel com várias fotografias e começa a pegar em cada uma, como se contemplasse imagens de várias figuras da sua família de há muitos anos.

    No vídeo, cada uma corresponde a uma “façanha gloriosa” do seu mandato à frente da CML, onde podemos ficar a conhecer que “deu” 1.500 novas casas, possibilitou “gratuitamente” transportes públicos a mais de 90 mil pessoas, “brindou” 12 mil planos de saúde, “pagou-nos” o início das obras de drenagem para resolver o problema das “alterações climáticas” que assolam Lisboa de tempos a tempos e, pasme-se, fechou a Rua da Prata ao trânsito para, novamente, “combater as alterações climáticas”.

    A coisa termina com um cumprimento em forma de abraço ao Papa progressista e promotor das inoculações experimentais, que há meses nos “oferecera” uma festa de arromba em Lisboa. Enfim, temos de parabenizar a excelente obra de propaganda, que certamente envergonharia a cineasta preferida de Hitler, Leni Riefenstahl. Definitivamente, um megalómano narcisista que nos regala prendas que nós pagamos.

    Para a “direita”, aparentemente o dinheiro da plebe é inesgotável. Tem de suportar a toda a hora um clima natalício e promover uma agenda globalista: as próximas pandemias, as cidades de 15 minutos, o Papa de “todos”, a inclusividade.

    Para não ficar atrás, recentemente, ficámos a conhecer que o líder do partido da anterior personagem beneficiou de IVA a 6% na construção da sua luxuosa vivenda em Espinho, disfarçada de reabilitação urbana. Para o poleá: IVA a 23%; para a casta parasitária, há sempre um amigo nas Câmaras, na Autoridade Tributária ou num ministério que os exime do assalto, enquanto a ralé come e cala.

    O “líder” da “direita” também é um homem de braços abertos à imigração: segundo ele, existe “uma lacuna de população” que deve ser coberta por uma horda de imigrantes que nos pode ajudar; aos portugueses, está reservado o papel de os acolher, atrair e integrar – só falta o frapê e a farda para cada português.

    Todo um contrário para os imigrantes; para estes, não existe qualquer exigência, como por exemplo: contrato de trabalho válido, caução na entrada para pagar a eventual viagem de repatriamento, seguro de responsabilidade civil, garantia de que o empregador o acomoda em casa regularizada e não sobrelotada. Mas para o “líder” da direita é tudo facilidades com o dinheiro dos outros, pois ele não vai para a fila de espera dos hospitais sobrelotados.

    No Parlamento Europeu, temos outro dos figurões do mesmo partido. Há semanas era vê-lo a realizar um discurso laudatório à nossa amada e grande líder, Ursula von der Leyen, eleita ao melhor estilo de uma ditadura comunista. Para este homem de “direita”, a liderança da senhora foi e é extraordinária!, com destaque para a putativa pandemia e a guerra na Ucrânia.

    Será que o personagem estará ao corrente da investigação do Tribunal de Contas europeu à compra multimilionária das inoculações experimentais, negociada pela Comissão Europeia liderada pela senhora? Ou alguma vez pensou nos valores democráticos do Sr. Zelensky? Um líder que impede a liberdade religiosa no seu país, que encerra partidos políticos que se lhe opõem e que nacionaliza canais de televisão desagradáveis à sua liderança.

    Nada disto espanta no Partido Socialista Dois, que dizem liderar a “direita; ou já se esqueceram que há meses andavam de mão dada com o Partido Socialista Um na revisão constitucional ilegal – durante a campanha eleitoral anterior nunca a discutiram, nem tão pouco a apresentaram; certamente que o embuste se repetirá nos meses que se avizinham.

    O que visavam os dois mais importantes partidos socialistas? Autorizar um mero funcionário administrativo a decretar a prisão domiciliária de um cidadão em contexto de uma putativa pandemia; ou a vigiar as nossas comunicações (e-mail, telefone…) durante 24 horas, eliminando por completo a nossa privacidade, a pretexto do “combate ao terrorismo”. O principal partido de “direita” parece seguir as famosas palavras de Mussolini: “Tudo no Estado, nada contra o Estado, e nada fora do Estado”.

    Depois temos o partido dos “liberais”, onde aparentemente os seus líderes não conhecem os valores do liberalismo. Um dos seus principais dirigentes, que em tempos foi o número um do partido, numa recente entrevista soltou umas pérolas acerca das suas convicções: é a favor do aborto; segundo ele, ninguém deve ser proscrito de ser liberal por defender três escalões de IRS, em lugar de apenas dois! Até onde vai a tolerância: 5 escalões de IRS?

    Eu julgava que existiam três valores essenciais nestas cabecinhas: vida, propriedade privada e liberdade. Nada disso, para os liberais portugueses um ser humano no ventre de uma mulher pode ser livremente assassinado e o confisco de propriedade privada dos cidadãos é um direito que assiste ao magnânimo Estado. Mas eles são bonzinhos, permitem que este roube apenas um “bocadinho”.

    Os “liberais” da nossa praça são uma espécie de Bloco de Esquerda, mas que pede “impostos suaves”. No entanto, não abriram a boca sobre o esmagamento dos agricultores holandeses pelo seu colega “liberal” Mark Rutte; não se insurgiram contra o certificado nazi, que segregava cidadãos; apoiaram com todo o vigor as inoculações experimentais; aceitaram e aceitam que as preferências sexuais de cada indivíduo sejam usadas como arma política, incluindo o passeio com bandeirinhas.

    Dá vontade de perguntar aos liberais: as pessoas devem ser reconhecidas por serem bons engenheiros, bons professores, bons matemáticos, bons desportistas ou pelas suas preferências sexuais? Que direitos solicitam para estes movimentos, para além dos que já estão plasmados na Constituição da República Portuguesa (CRP)? Essas minorias discriminadas no emprego, no acesso a locais públicos, como foram os não vacinados?

    Atentemos ao que recentemente fizeram: uma purga interna, ao melhor estilo estalinista, retirando uma deputada de um lugar elegível para as próximas eleições, simplesmente porque ousou candidatar-se à liderança, obtendo 46% dos votos! Enfim, salva-se a sua oposição ao resgate da bancarroteira nacional, mais conhecida por TAP.

    Por fim, o partido dos ciganos, aquele que no início de 2020 propunha alterar a CRP para permitir que fossem “internados compulsivamente todos os cidadãos que apresentassem sintomas de coronavírus mas se recusassem a fazer quarentena”. Ou seja: privação de liberdade sem decisão judicial, bastando haver a suspeita para a prisão domiciliária. A putativa pandemia teve uma única vantagem: revelar que estamos rodeados de milhares de aspirantes a ditadores.

    empty chair

    Importa também recordar o episódio da devolução dos 125 Euros aos portugueses, umas migalhas de um roubo de 106 mil milhões de Euros, em que o partido dos ciganos defendia o seguinte: “Os 125 euros não podem ser gastos em whisky, tabaco e drogas”. Também podíamos acrescentar prostitutas e vinho verde. Esta gente acha-se no direito de se meter em todos os aspectos da nossa vida.

    O que dizer das suas propostas de aumento vertiginoso de despesa pública, sem nunca nos explicarem de onde vem o dinheiro: cortes em outras despesas ou mais assaltos ao nosso bolso? É um partido que continua a propor medidas para agravar expressivamente a fraude do Estado Social, um colossal esquema piramidal e uma gigantesca fonte de conflitos entre gerações. Recordemo-nos que hoje os idosos pedem que o Estado confisque os activos para garantir os seus rendimentos, ou seja, estão nas mãos de demagogos, mentirosos e oportunistas. Caso tivessem descontado para um porquinho mealheiro, em lugar de um esquema fraudulento e falido, não estaríamos sujeitos a esta demagogia barata.

    Nesta desgraça, salva-se a deputada Rita Matias, uma verdadeira opositora da Agenda 2030, ao contrário da esmagadora maioria de toda a “direita” e provavelmente de quase todos os colegas de partido.

    Com esta “direita”, quem precisa de um “neto de sapateiro” para nos espoliar, humilhar e desrespeitar?

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


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  • A mediocridade garantida até 10 de Março

    A mediocridade garantida até 10 de Março


    Quando Marcelo Rebelo de Sousa anunciou a data das eleições legislativas para 10 de Março, lembro-me de ter pensado que seria um martírio termos quatro meses de campanha eleitoral. Mas estava longe de imaginar esta a pobreza franciscana, desde que António Costa anunciou o seu despedimento.

    Nestes tempos, há uma luta quase deprimente, entre o Partido Socialista (PS) e o Partido Social Democrata (PSD), para fazerem prova da sua honestidade. Andamos há um mês a fazer a “revisão da matéria dada” e a contar os “tutti-fruttis” que cada um destes partidos traz para a mesa das negociações.

    pair of pink boxing gloves

    Hoje, enquanto escrevo, discute-se a compra de acções dos CTT por parte do Governo PS e a renovação da casa de Montenegro, que, na realidade, foi uma construção de um prédio novo. Amanhã, deve começar a aparecer a participação de Pedro Nuno Santos na empresa da família, e lá para a semana que vem deve voltar a privatização da TAP e o frete feito ao Neeleman.

    Os dois partidos que tomam todas, mesmo todas, as decisões, que foram moldando a realidade portuguesa desde 1976, e que desperdiçaram rios de fundos europeus em estradas, corrupção e clientelismo, chegam a 2024 sem nada para dizer excepto apontar os roubos do vizinho.

    Mas faz sentido… E sabem porquê? Porque no essencial, cada um destes partidos do ‘centrão’, serve para criar carreiras aos seus quadros, garantir um emprego para a vida em redor de altos cargos públicos e, já agora, enriquecer alguns dos seus membros. É preciso gritar muito e apontar o dedo, dando a ilusão que se tenta marcar a diferença quando, em rigor, PS e PSD são faces parecidíssimas da mesma moeda.

    Vejam como as principais caras do PS são as mesmas, década após década. Gente que não passou um dia  a trabalhar noutra coisa que não fosse um cargo público arranjado pelo partido. Pessoas que se sentam a opinar e legislar a vida de milhões de portugueses sem nunca terem contacto com as dificuldades do mercado de trabalho, de um empréstimo bancário, da luta por uma casa.

    Há casos de filhos de antigos ministros ou altos quadros do PS que, mal saíram das universidades, já estavam em lugares elegíveis nas listas de deputados. Regionais, nacionais, não importa. São carreiras garantidas, zero idas a entrevistas de emprego, a mediocridade garantida e perpetuada nas costas dos ‘papás’ e do cartão do partido. Gente sem um dia de vida passado na realidade, e que nos tenta convencer que conhece as nossas dificuldades e até sabe quais são as soluções para os nossos problemas.

    Como é que alguém que nunca foi a uma entrevista de trabalho, que teve uma casa oferecida pelos pais, que teve passagem facilitada na universidade e que foi colocado numa assembleia, a legislar sobre temas que desconhece, me pode entender e/ou ajudar? Como é que medíocres destes se perpetuam décadas na função pública em cargos de decisão, entre PS e PSD? Como?

    Enquanto o PS “faz a renovação” com os filhos dos que por lá andam desde 1980, o PSD cria alianças em reuniões onde estão, e tomem nota, Nuno Melo, Manuel Monteiro e Paulo Portas. Estão a um Freitas do Amaral, versão original, de fazer bingo do século XX.

    Enquanto se digladiam com a ilusão da honestidade e nos dão a ideia de um combate político, vão, isso sim, tratando da vida e evitando qualquer compromisso. Casos como o do tutti-frutti são importantes porque nos explicam aquilo que é a divisão do poder, ao longo de décadas, entre dois partidos. Os pactos de não agressão, a divisão da riqueza, a garantia que todos conseguem roubar do mesmo pote. Essa é a realidade da ascensão ao poder em Portugal e é isso, em resumo, que explica o atraso do país. Isso, e tratar da vida dos membros dos partidos, das suas carreiras, da garantia de emprego e prosperidade. E sem qualquer compromisso real com os eleitores. Já nem se dão ao trabalho de disfarçar com uma ou outra proposta. É um vazio de ideias; uma mediocridade que se arrastará penosamente até Março.

    Não é fácil sair disto, porque não há renovação na cena política. Não há espaço para quem vem de fora e não depende de aparelhos partidários. Não há como sair disto, mas é relativamente fácil perceber como aqui chegámos. Basta pensarem que partimos ao lado de Espanha nesta corrida, há quase 40 anos, e hoje eles são uma potência e nós um dos países mais atrasados da Europa. Os fundos correram em toda a Ibéria. Mas enquanto Espanha desenvolvia o tecido produtivo, nós financiávamos a indústria do betão, as parcerias público-privadas (PPP) das estradas e jovens agricultores que queriam comprar jipes e renovar os montes.

    No meio deste marasmo de ideias, aparece o Chega e a Iniciativa Liberal (IL), outro deserto de propostas, mas absolutamente essenciais na formação de uma coligação de poder com o PSD. A única diferença entre estes partidos e o actual poder, é que tanto IL como Chega ainda não tiveram hipótese de chegar ao pote. Quando lá estiverem, farão o mesmo ou pior. Com a agravante de tanto IL como Chega terem, na sua génese, a missão de desviar o máximo de dinheiro possível dos serviços públicos para os privados. No fundo, fazerem aquilo que o PS já começou a fazer com este Orçamento do Estado e aplicarem a machadada final no SNS e na Escola Pública.

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    Restam Livre, Partido Comunista Português (PCP) e Bloco de Esquerda, que parecem ainda ter algum compromisso com os trabalhadores e as condições de vida, sendo que duas destas forças já se manifestaram positivas quanto a futuras coligações de esquerda. Contudo, a avaliar pelas sondagens, as suas votações serão bastante baixas.

    Vivemos a realidade da mediocridade na política portuguesa e, segundo percebo, boa parte dos portugueses acha que a solução para os problemas da democracia virá de um partido anti-democrático que nem quadros consegue arranjar (o Chega), ou outro que, ao fim de alguns anos, ainda nem conseguiu concordar com uma visão política ou uma ideia que aguente mais do que 15 dias (a IL).

    Estamos de facto a entrar no restaurante que serve mau vinho e a achar, convictamente, que a água da sanita é o acompanhamento alternativo perfeito para o bacalhau do almoço.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • Somos tão pequeninos

    Somos tão pequeninos

    A catástrofe saía do abismo majestosamente. Parecia mais uma aparição do que um ataque. Reinava uma espécie de silêncio colossal. Dir-se-ia um sonho passando sobre o mar: as lendas contam visões semelhantes.”

    Victor Hugo

    NOVENTA E TRÊS (1874)


    Aqui de onde estamos quem é que nos vê?


    No dia em que se faz a grande reverência pública ao sonho europeu do recém-falecido Jacques Delors, diz-nos Cavaco Silva que de bom grado teria dado uma palavra de circunstância ao presidente do actual Parlamento Europeu mas enfim, sendo tudo isto uma democracia, “por questões de protocolo não me foi possível marcar este encontro.O quê? Sendo tudo isto o quê? Não lhe foi possível o quê? Credo, que este senhor, desde que foi primeiro-ministro no tempo da CEE do outro senhor, na altura em que Portugal era considerado, para todos os efeitos, a sistemática “cauda da Europa,” sempre teve uma falta de jeito para falar às massas que até faz doer. A pessoa estremece de desagrado, recorda muitos momentos penosos de construções furiosas de muitas autoestradas indevidas entre muitas oliveiras arrancadas[1], imagina como teria evoluído o nosso país se os parceiros fossem outros nessa altura, e, por fim, respira fundo. Delors, ao menos, já não escreverá as suas memórias íntimas, e Portugal não aparecerá nelas a fazer várias péssimas figuras[2].


    Passam poucos dias do Ano Novo e poucos minutos das sete da manhã. A esta hora a padaria costuma abarrotar de fieis devotos prontos para irem trabalhar a seguir, mas hoje as nossas tropas reduzem-se a metade, dado que a outra metade conseguiu congeminar um plano de feriados e dias de folgas pessoais para gozar em família ou em solidão – mas para gozar, o que, antes de mais qualquer outra coisa, significa não estar na padaria da Teresa e do Pedro, às sete e meia da manhã. A outra metade de nós, aqueles que não foram ocultar-se dos olhares ferozes da rotina laboral para lado nenhum[3], troca galhardetes mais baixo que do costume, porque o tom geral da vozearia é mais limitado e ninguém quer dar ideia, sobretudo àquela hora matutina, de que, por uma questão de elementar prudência, observou silêncio em casa e em vez disso foi antes gritar para a padaria. Além disso, toda a gente tende a falar mais alto quando a Teresa está presente, porque a miúda é um verdadeiro dínamo, sempre a correr de um lado para o outro, sempre a despachar serviço como se a pureza, a garra, e a sobrevivência da sua alma neste mundo e no outro dependessem do ruído da registadora a abrir e fechar, ou do anúncio em altas vozes para que todos os que se reúnem ali dentro e no aglomerado junto à porta oiçam logo e fixem bem quanto é que deve cada cliente, ou do sorriso meio malandro e muito calado de raposinha vencedora que descobriu os pintainhos[4] com que ela corre de um lado ao outro do balcão. A Teresa pratica todos estes truques de grande vendedora, mas o Pedro não. E, por isso mesmo, como hoje a Teresa foi tratar de uns papéis à Conservatória logo ali à hora de abertura para não ter que se demorar muito, a padaria está curiosamente calma.

             Tratar de papéis logo a seguir ao Ano Novo.

             Que sufoco, na vida de recibo verde deste jovem casal[5].

    person making dough beside brown wooden rolling pin

             E eis que nos damos conta, devagar, devagarinho, por entre os aromas do café acabado de tirar e do pão acabado de chegar, por entre as vozes brandas desta manhãzinha dos primeiros dias do novo ano, de uma pincelada mais sufocante ainda no primeiro plano desta tela. Começamos a notar que o Pedro faz as manobras que lhe competem especialmente devagar porque tem a sua mão direita em gesso, com uma grande ligadura por cima.

             “O que é que foi isso aí, ó Pedro?”, pergunta, finalmente, alguém que vai trabalhar a seguir.

             “Foi no dia de Natal,” responde o marido da Teresa com um meio sorriso.

             “E como é que arranjaste isso?

             “Epá. O que é que queres? Estava a ligar um atrelado a um reboque e fiz porcaria.

             “Epá.

             Entre a Véspera de Natal e o Dia de Ano Novo quase tudo é um feriado. São dias sossegados em que todos os estabelecimentos fecham as portas para que todas as famílias possam juntar-se. São os momentos em que se repara que estas cidades pequenas, estas cidades como Estremoz, são mesmo pontinhos no mapa que o tempo foi varrendo para longe de tudo e banhando numa calma enorme. São os dias de nos sentirmos melhor do que em todos os outros. Mesmo assim, no dia de Natal propriamente dito, o jovem marido do casal que comprou a nova padaria que está sempre cheia aproveita o pouco tempo livre que ainda tem para ligar atrelados a reboques. E faz porcaria. E aquilo deve ser bastante grave, porque se ouvem várias vozes a dizer “ah”, mas não se ouve nenhuma voz a perguntar por quanto tempo vai ficar com a mão direita assim tão desastrada, ou se poderá guiar naquele estado, ou se quê.

             Não se fala das desgraças.

             Quem está longe de tudo e é muito pequeno só ganha em aprender depressa a ser estóico.

             Há muitas alturas em que a distância dói.

             Como se eu ainda precisasse dela, avança uma ilustração.

             Mesmo ao meu lado está uma senhora, também ela de aspecto muito jovem[6], que eu nunca vi antes na padaria.

             Felizmente a questão esclarece-se depressa, porque do outro lado do balcão está um homem que pelos vistos a conhece bem[7]. Entretanto, eu faço de conta de que não estou a ouvir nada.

             “Olá Mariazinha!”, saúda-a o homem, com um grande ponto de exclamação todo feliz[8]. “Então por aqui? E tão cedo?

             “Tenho que ir ali ao Tribunal assim que ele abra, que é para não passar a manhã inteira na fila,” responde de imediato a Mariazinha, que não levanta a voz mas está evidentemente muito irritada.

             A minha casa fica na praça grande que vai ter à praça mais pequena ocupada pelo Tribunal. É por isso que eu venho a esta padaria tomar café e conheço tão bem os personagens que aqui param à hora de abertura, mesmo sem fazer grandes perguntas a seu respeito. À frente do Tribunal fica a praça de táxis, e aliás ou me engano muito ou este homem que meteu conversa com a Mariazinha é um taxista[9]. Diante da praça de taxis, do outro lado da rua, fica a padaria. É impossível esconder o que quer que seja, seja lá de quem for[10]. Ele pode contar a sua versão desta conversa a toda a gente que levar a toda a parte em todos os dias desta semana que se avizinha. As pessoas da padaria também podem. Na realidade, até o Pedro pode. E, através dele, até pode a Teresa, que nem sequer está aqui. Além disso posso eu, que escrevo estas crónicas; e comigo pode o nosso director, que decide sozinho os detalhes da sua ilustração[11].

    silhouette of man during sunset

             A Mariazinha não pode nada, porque não está interessada em nenhum de nós e já sabe que não tem qualquer poder face ao Tribunal. Eles vão decidir o que muito bem lhes apetecer. Ela está só a tentar decidir que única frase fará sentido oferecer ao Senhor Doutor Juiz para encerrar o caso.

             “Estão sempre a pedir papeladas inúteis aos Directores de Turma,” comenta o homem, obviamente versado em questões de escola.

             “Ah,” suspira ela. “Desta vez não me chamaram enquanto DT. Chamaram-me enquanto professora Maria Armanda.

             “Quem é que fez queixa de si, ó s’tora?”, pergunta, ainda da porta e já toda de mão na anca[12], a voz da Teresa, que acaba de chegar dos seus deveres de recibo verde e está pronta para um bom combate de cidadania.

             Mariazinha encolhe os ombros.

             “Deixe lá, ó Terezinha. É mais que era um café e um arrepiado[13] e tenho que ir andando para ver se me despacho a horas que aquilo é por ordem de chegada.

             “Vamos com calma que ainda não está lá ninguém. Se calhar nem vai estar, que ainda nem estamos nos Reis e o pessoal aqui pensa que isto é Badajoz, é para celebrar até aos Reis. O que é que aconteceu, então, para a Mariazinha ter que vir a Juízo?

             Mariazinha está visivelmente encorajada por este “nós” – e, claro, também pela ideia de que não haverá fila para a inscrição no tribunal. A solidariedade dos fregueses cresce num murmúrio simpático. Ela enche o peito de ar, olha para mim no sentido de me incluir no número dos apoiantes desconhecidos, e despeja:

             “Mais cedo ou mais tarde isto chegava aqui. Estava-se mesmo a ver. Só que, se fosse em Beja, ou em Elvas, era logo um escândalo. Há cerca de um mês, a meio de uma matéria importante, dei por uma das alunas a mandar sms ao namorado. Confisquei-lhe o telemóvel até ao fim da aula, e, como ela me amandou com uma data de palavrões valentes, mandei-a sair da sala, também até ao fim da aula. Ela levantou-se para sair, mas a mexer-se muito devagar e sempre a fazer-me aquele gesto com os três dedos.

    brown wooden stand with black background

             De sobrancelhas erguidas ou franzidas  em sinal de interrogação estupefacta, a audiência da padaria reproduz o único gesto com os três dedos que lhe ocorre como perdidamente ofensivo, gesto esse que a jovem professora confirma com vários acenos de cabeça. Os murmúrios solidários crescem de tom. Ela vê-se obrigada a falar também mais alto.

             “Pois então vejam bem, a menina foi para casa queixar-se aos pais de maus tratos psicológicos na sala de aulas, os pais queixaram-se disso mesmo à direcção, a direcção suspendeu-me a mim por um mês, e agora tenho que ir eu explicar ao juiz o que foi que aconteceu ao certo.”

             O protesto cresce a toda a nossa volta. Eu estive calada este tempo todo, mas agora não consigo deixar de dizer, num sussurro de horror,

             “Parece um filme americano”.

             E a Mariazinha, também num sussurro,

             “Pois, mas em Lisboa seria um escândalo, um verdadeiro escândalo. Mas estamos em Estremoz, e aqui ninguém protesta. Estamos muito longe, e somos muito pequeninos. Ninguém protesta.[14]

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Eu estava a trabalhar nos Estados Unidos, antes da invenção da internet. Falava-se, apenas, de uma tal de World Wide Web em fase de montagem. De cada vez que vinha a Portugal as pessoas falavam, sobretudo – e falavam disto positivamente horrorizadas – dos pastores que eram pagos para não  trabalharem e das oliveiras que eram arrancadas. Sobretudo as oliveiras que eram arrancadas. Ninguém precisava de um diploma. Toda a gente entendia que aquilo era o fim do mundo.

    [2] A que vem tudo isto? Eu digo-vos a que vem tudo isto, seus perdidos. Mas acreditem. Nunca deviam ter deixado a expressão hipertexto ficar sem sentido há tanto tempo. É perigosíssimo.

    [3] E nisto não há nada pior do que a pessoa ser o seu próprio patrão. Posso testemunhar.

    [4] E ainda bem que os comeu, é ou não é? Estavam a ser engordados à força com hormonas, e seja como for há demasiados pintainhos neste mundo, certo?

    [5] Módulo comparativo para todos os outros. Aliás, nem precisam de ser jovens. Nem sequer precisam de ser casais. Basta, apenas, serem portugueses que sufocam às mãos da Autoridade Tributária e Aduaneira – e já mereceram todo este parágrafo, com todas estas intenções.

    [6] Pode parecer uma contradição nos termos, mas as cidadezinhas pequenas e quietas são assim. Até as mulheres jovens têm ar de senhoras.

    [7] Este homem não tem nenhuma aparência jovem nem deixa de ter: tem aquela aparência neutra própria dos homens, que são pessoas simples, e portanto, regra geral, muito menos descritivos do que as mulheres. Coitados.

    [8] Falar alto em voz feliz independentemente das circunstâncias é outra característica genérica e neutra dos homens. Coitados.

    [9] Pelo menos a qualificação acertaria na perfeição com o arquétipo do homem batido que sabe tudo sobre tudo. Até sobre papeladas inúteis que os Tribunais pedem aos Directores de Turma, que, por seu turno, são pessoas tais como a Mariazinha. Perguntem-lhe como é que é a vida de um DT na Islândia, que um bom taxista também sabe.

    A propósito, um taxista sabe. Os gajos dos Uber nem pensar.

    [10] Até de mim, que não sou deste filme mas já estou com as antenas todas espetadas para ver se percebo bem o que é que se passa entre a Jurisprudência e a Escola, entre as sete e meia e as oito da manhã.

    [11] Eu sei, dantes as ilustrações também eram comigo (diferença: tinham legendas). Depois fiquei cada vez mais maravilhada à medida que o lado lunar com um toque de psicopata do director se foi revelando na tarefa árdua de ilustrar o nosso folhetim de Verão CARTAS DE AMOR, e acabei por delegar por completo essa tarefa nele (que, pelos vistos, estava francamente a gostar). Como estamos numa nota de rodapé e não queremos que ninguém se perca, note-se que, aqui, cada parênteses com itálico dentro corresponderia a uma nota de rodapé se isto fosse uma passagem do texto. Assim, esta passagem vale enquanto portagem de hipertexto.

    Somos cultos.

    E vocês têm que pagar para seguir em frente.

    [12] Parafraseando Mário de Carvalho, in CASOS DO BECO DAS SARDINHEIRAS: a filha do Andrade prepara-se para discordar e interromper, “já toda de mão na anca”.

    [13] Este bolo é de Estremoz? Ou não? Não perca tempo – atire a moeda ao ar, acerte, ligue para o 707-562-330, e ganhe já este magnífico híbrido!

    [14] Claro que também ninguém faria escândalo em Lisboa, porque, pura e simplesmente, nós somos portugueses e baixamos a bola. Deixamos entrar sem luta todas as porcarias inventadas na América, e esta atitude é perigosíssima.


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  • Os mais novos que façam

    Os mais novos que façam

    O ‘activista’ Sérgio Tavares publicou esta semana um vídeo no seu canal de Youtube onde inquiria os transeuntes nas ruas do Porto sobre as suas intenções de voto para as próximas legislativas. Ressalvando que a vox populi (ainda mais do que as sondagens) tem enviesamentos que, do ponto de vista de rigor, deixam muito a desejar, ouvir esta ‘amostra’ da ‘voz do povo’ mostra-se esclarecedora sobre a suposta ‘invencibilidade’ do Partido Socialista.

    Houve um excerto, em particular, que se tornou ‘viral’, atingindo centenas de milhares de visualizações e suscitando comoção nas redes sociais: uma senhora dizia que, no dia 10 de Março, tencionava votar para “manter o que está” (o Partido Socialista) porque já é reformada, e que os sucessivos escândalos a que temos assistido em Portugal também são comuns “nos outros países”. Questionada sobre a necessidade de haver um “grito de revolta”, retorquiu que, por ela, deixa-se andar, e acrescentou: “os mais novos que o façam”.

    E é nestas alturas que somos confrontados com o ‘lado negro’ do voto universal, tido como uma enorme conquista do mundo Ocidental.

    Note-se que a posição desta cidadã não poderia ser mais legítima. Com o avançar da idade, se não antes, é natural que se instalem o comodismo e o desejo de segurança. É normal, e expectável, que um reformado queira apenas assegurar a sua subsistência e não deseje alterações profundas ao status quo. Mais vale pouco, mas certo, do que o risco de perder o pouco que se tem.

    Na verdade, o insensato é exigir que os reformados – que, como sabemos, são muitos, neste país envelhecido – tenham ambição e uma visão de futuro para o país, e que se preocupem, por exemplo, com propostas no sentido de estancar a sangria de jovens para o estrangeiro (um dos muitos males com que nos debatemos).

    No final de Novembro, aliás, foi divulgada uma sondagem do Centro de Estudos e Sondagens de Opinião da Universidade Católica que mostra, precisamente, que o PS tem nos maiores de 65 anos mais de um terço dos seus eleitores (35%). Em contrapartida, nos jovens entre os 18 e os 34 anos, colhe a preferência de apenas 6%. É, além disso, o partido mais favorecido pelos que apresentam níveis de escolaridade mais baixos.

    woman holding democracia signage

    Percebe-se assim que, se contássemos exclusivamente com os mais jovens, a composição da Assembleia da República seria muito diferente, e a hegemonia do partido agora liderado por Pedro Nuno Santos teria os dias contados. O mesmo aconteceria se privilegiássemos o voto de quem concluiu pelo menos o ensino secundário, ou o superior.

    Talvez por isso, diga-se a propósito, os partidos à esquerda tenham chumbado um projecto de resolução da Iniciativa Liberal para que se ensinasse literacia financeira nas escolas – e o Bloco de Esquerda até tenha dito que a proposta visava “doutrinar” os alunos. Aparentemente, ensinar os mais jovens a gerir o seu dinheiro é doutrinação, mas dizer-lhes que talvez fosse boa ideia mudarem de sexo, já não é.

    Na rubrica de Sérgio Tavares, vemos também portugueses ‘alienados’ da política; uns, por terem perdido a esperança, outros apenas por desinteresse. Mais uma vez, absolutamente legítimo e normal. E embora alguns possam atribuir a culpa aos agentes políticos por este alheamento, a verdade é que uma fatia significativa da população simplesmente não tem aptidão ou interesse em matérias políticas. Não importa quantos direitos políticos se ofereça; será sempre uma minoria a envolver-se e comprometer-se activamente com um desígnio maior para o país.

    hands formed together with red heart paint

    E é por isso que a visão de uma soberania popular plena expressa na possibilidade do voto para todos tem mais de romântico do que real. Como de resto já foi estudado, e como pudemos observar durante a pandemia de covid-19, as “massas” são altamente manipuláveis. Não são elas que fazem revoluções, ou que mudam os destinos de uma nação. Assim, em democracia, vence quem é mais hábil a manobrar o povo, e não necessariamente quem é mais competente ou idóneo.

    Em todo o caso, vale lembrar que hoje o “jogo” está de tal maneira viciado, que as fichas devem ser postas noutros sítios. O combate político deve fazer-se de outras formas. A cruzinha que somos convocados a fazer de quando em vez, e que faremos no dia 10 de Março, já se tornou quase uma mera formalidade. Sobretudo nestas circunstâncias em que o voto dos muitos que encolhem os ombros e dizem “os mais novos que façam”, tem o mesmo peso desses “mais novos” que estão sôfregos por fazer, e mudar, alguma coisa.

    Maria Afonso Peixoto é jornalista


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


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  • Reflexões sobre (más) reformas

    Reflexões sobre (más) reformas


    As Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) terão em Março de 2024 concluída a sua reforma, no decurso de um diploma legal de Maio do ano passado. Mas de que estamos a falar?

    Estamos a falar de cinco CCDR com cinco Presidentes e quatro vice-presidentes, e estes terão estatuto de gestores públicos, com salários melhores e com indemnização se forem demitidos. As CCDR viram institutos públicos, com gestão financeira autónoma, gerindo uma diversidade enorme de assuntos, e integrando institutos e direcções-gerais nas áreas de ambiente, território, agricultura e saúde. É uma reforma ao estilo do desaparecimento do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) para o integrar nas outras polícias.

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    A realidade permite antever conflitos de funções e enormes atritos administrativos. As Câmaras também têm funções nestes domínios e vão encontrar presidentes de CCDRs a ingerir nas decisões deles, referentes a PDM, florestas, utilização pública, etc.

    O caminho é o mesmo para as Unidades Locais de Saúde (ULS). A construção de monstros ingovernáveis como a ULS de Coimbra, com mais de quinze mil funcionários, terá consequências nas baixas de qualidade, na conflitualidade interinstitucional, na sensação subjectiva de submissão de todos aqueles que são abarbatados pelo Hospital Universitário de Coimbra, que deste modo utiliza as outras ‘casas’ e lhes mata a história e a organização.

    A ULS de Coimbra é um tiro no porta-aviões e teremos de penar uma década para repor o Serviço Nacional de Saúde (SNS) em níveis de atendimento e de qualidade semelhantes ao que existia em 1998. A realidade é hoje uma estrada de ambulâncias em serviços de táxi para gaudio de milhares de abusadores e de utilizadores sem escrúpulos.

    Um negócio que a par dos cuidados continuados veio parasitar os custos da saúde. Hoje, gastam-se muitos milhões de euros numa ideologia contra a família e a importância dela no cuidar e no restabelecer. A aposta tem de ser no domicílio, no respaldo familiar protegido e acarinhado.

    Estamos a construir um futuro que altera funcionalidades ancestrais que estavam a funcionar, que ninguém avaliou para remodelar e se decidiu implodir em prol de uma reformulação sem reflexão. Há exemplos destes disparates no passado que serviriam de exemplo para o que aí vem.

    A reestruturação da EDP não trouxe qualquer vantagem para os portugueses que agora pagam mais e têm mais dificuldade em lidar com a central telefónica dos call centers. A TDT foi muito pior para os lugares recônditos do interior obrigando o povo a ter de se sujeitar a preços elevados se quiser ter informação. 

    Outro exemplo glorioso das reformas malsucedidas foi a criação do tribunal administrativo, e de uma maneira de litigar que demora décadas, fazendo Portugal perder milhões e milhões de euros em infindáveis litigâncias com empresas.

    black transmission towers under green sky

    Que mudança faria sentido? Obviamente que toda aquela que brota de uma realidade incontestável. Imaginemos a reforma da administração do território com base na redefinição dos municípios. Claro que faz sentido acabar com um município de um território desertificado, com menos de seis mil votantes. Claro que faz sentido subdividir por cada zona de cem mil indivíduos uma capacidade organizativa a que podemos denominar município.

    Assim, Lisboa teria vários municípios, mas desapareciam milhares por esse país, construindo capacidades representativas mais eloquentes. Deste modo a gestão do espaço por pessoas eleitas retirava significado a estas divagações de siglas, copiadas de outros países, que nos empobrecem cada vez mais.    

    Diogo Cabrita é médico


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  • Em Lisboa, só o Papa merece ruas limpas

    Em Lisboa, só o Papa merece ruas limpas


    Confessando que a amostra não cumpre o nível de rigor, por exemplo, das sondagens da Aximage para para os periódicos da Global Media – como aquela que, em Agosto de 2021, a quatro semanas das eleições autárquicas, dava 51% a Medina e uns míseros 27% a Moedas… –, as ruas de Lisboa neste primeiro ano da graça de dois mil e vinte e quatro da era de Cristo estão uma imundície. Uma porcaria. Uma estrebaria, que só se mostrará “fermosa”, parafraseando o Cavaleiro de Oliveira, se morarmos a cidade, de cima para baixo, com miopia, de um miradouro, como por exemplo o da Graça, bairro de onde tirei as fotografias que aqui apresento.

    Não são diferentes de outros dias, e de outros bairros, como é o caso do Bairro Alto e Santa Catarina, por onde mais perambulo, exemplos tristes de falta de higiene e asseio, apesar dos recursos dos impostos dos contribuintes e das taxas de turismo. Não é dinheiro que falta.

    Mas todos os anos, que me recorde, Lisboa anuncia-se ao primeiro dia de Janeiro, sempre com a mesma cara: suja. Começa a ser uma tradição. Uma péssima tradição.

    Já escrevia o médico e escritor português Guiilherme Centazzi, em meados do século XIX, que “Lisboa, que todos nós estamos vendo, e que os estrangeiros e os vindouros hão-de julgar pelo que lerem… Lisboa (não se faça do preto branco, nem se queira embutir gato por lebre), examinada em globo é uma coisa; em detalhe, é outra. Em globo, ninguém lhe negará aparato, beleza, opulência, grandeza, etc., etc.. Em detalhe, de fora para dentro, é tal e qual como esse famigerado siciliano que, no domingo, se paramentava com luzentes vestiduras, sem despir a camisa com que tinha andado a mariscar os anzóis durante a semana. Lisboa, em síntese, é majestosa; em análise, é um covil lastimoso de miséria e lama.“

    E cá temos Lisboa no primeiro dia do Novo Ano igual ao ano anterior. Feriado que haja em Lisboa, é dia santo na loja, o que significa lixo a transbordar em tudo o que é canto, e em tudo aquilo que não é canto.

    Aguentamos um dia com lixo? Claro que sim.

    Aguenta-se, se a compreensão for desmesurada. Aí aguenta-se tudo, incluindo ruas imundas no primeiro dia do ano.

    Se aguentamos que, por exemplo, Carlos Moedas, o edil de Lisboa, gaste dinheiro público com um vídeo de promoção pessoal ao estilo de estrela pop norte-americana, mangas de camisa branca arregaçadas, a subir a escadaria dos Paços do Concelho como um ‘salvador’ – aguentamos tudo, incluindo ruas imundas no primeiro dia do ano.

    Se aguentamos ver Carlos Moedas prometer, no Twitter, que “em 2024 vamos continuar a construir memórias, a alcançar vitórias, mas sobretudo a fazer Lisboa”, mas logo no primeiro dia temos um “Feliz 2024” com ruas imundas, e não há problema – aguentamos tudo, incluindo ruas imundas no primeiro dia do ano.

    Se aguentamos ver Carlos Moedas, no dito vídeo promocional, sugerir (porque está ele sempre presente) que quem deu as casas a carenciados, concedeu transportes públicos gratuitos, pagou as obras de drenagem e mais uma série de outras coisas, foi ele e não os dinheiros públicos (e todos nós) – então aguentamos tudo, incluindo ruas imundas no primeiro dia do ano.

    Se aguentamos ter pagado mais de 614 mil euros a uma empresa de trabalho temporário para suposto reforço da limpeza de ruas durante a estadia do Papa na Jornada Mundial da Juventude por duas semanas, mesmo se não houve qualquer necessidade, mas aceitamos que todos os anos comecem com as ruas imundas – de facto, então, aguentamos tudo, incluindo ruas imundas no primeiro dia do ano.

    A gestão de uma Câmara, sobretudo de Lisboa, não pode continuar a servir somente como trampolim político, como a história recente nos tem demonstrado, de que são exemplos Jorge Sampaio, Santana Lopes e António Costa, que atingiram depois lugares de topo no poder.

    Moedas tem legitimidade para aspirar a outros voos, se assim desejar e fizer por isso. Mas, até lá, faça também o básico: e o básico é ter as ruas de Liosboa decentes todos os dias do ano. E se não houver funcionários públicos para o primeiro dia de cada ano, então aí sim justifica-se a contratação de empresas de trabalho temporário por um dia. Afinal, como munícipes, não somos menos do que o Papa.

    Ou para Moedas seremos?


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  • O novo ‘Muro de Berlim’ que nos quer ‘proteger’ dos ‘fascistas’ e da ‘desinformação’

    O novo ‘Muro de Berlim’ que nos quer ‘proteger’ dos ‘fascistas’ e da ‘desinformação’


    Era um documento simples e fácil de compreender. Nele constava uma lista específica, ordenada, de casas com as respectivas áreas e preços. Havia na redacção quem não conseguisse entender o que lá estava escrito, incluindo uma jornalista que tempos depois acabou a escrever duas manchetes falsas que o jornal publicou.

    Infelizmente, ao longo de mais de 25 anos no jornalismo económico, constatei que este caso que aqui relato está longe de ser o único. A maioria dos jornalistas que encontrei não lida bem com números, tabelas, estatísticas – e factos científicos. Em muitos jornalistas mais jovens, junta-se a falta de ‘memória’ sobre acontecimentos históricos, como o ‘Muro de Berlim’, o qual era visto pelo regime soviético como essencial para ‘proteger’ o povo dos elementos e influências ‘fascistas’ e a sua ‘desinformação’.

    A baixa literacia em várias áreas, que afecta como um vírus a classe jornalística, é bem vista por governos e grandes empresas. Torna-se mais fácil fazer passar os comunicados de imprensa com números e dados falsos ou enviesados. Com jornalistas desgastados, cansados, com jornalistas com baixa literacia em áreas-chave, com ausência de pensamento crítico, é muito fácil transformar a imprensa em ‘colaboracionista’. E é isso que temos, hoje, em geral.

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    A baixa literacia matemática, estatística, financeira – e também científica – não afecta apenas jornalistas. E o objectivo é que tudo se mantenha assim.

    Ainda no dia 21 de Dezembro foi chumbada no parlamento uma recomendação ao governo para que “dê a preponderância devida à literacia financeira em contexto escolar”. A proposta teve os votos contra do PS e do Bloco e a abstenção do PCP e do Livre.

    Manter a população na ignorância é bom para quem quer governar (ou lucrar a vender produtos e bens) sem grandes perguntas ou oposição.  

    Uma proposta sobre reforço da promoção da literacia financeira em contexto escolar foi chumbada.

    No caso dos jornalistas, se poucos souberem fazer cálculos simples, melhor. Se poucos (raros) souberem ler artigos científicos, compreender metodologias e interpretar dados, melhor. Viu-se na pandemia de covid-19 como a maior parte dos jornalistas demonstrou ser fácil de enganar. (Pudera. Se não conseguem contestar dados, fazer cálculos simples ou relacionar eventos da actualidade com a História…)

    Este terreno de baixos conhecimentos em áreas-chave, nomeadamente por parte de jornalistas, é ideal para a construção do novo ‘Muro de Berlim’, que está em marcha avançada. Como o muro erguido para dividir a Alemanha, que o regime soviético via como essencial para ‘proteger’ o povo de ‘más’ influências e ‘propaganda’ fascista.

    Desta vez, é um muro invisível mas bem real que está a ser erguido por um regime político ocidental capturado por interesses económicos, minado pela corrupção e conflitos de interesses, assente numa ideologia tecno-totalitária. Um regime que está a legalizar, através da aprovação de novas leis, a censura de jornalistas e de notícias verdadeiras, o silenciamento de ‘dissidentes’.

    Muro de Berlim. Antes era físico.

    O ‘combate’ à ‘desinformação’ e ao ‘discurso de ódio’ é a desculpa deste regime e desta ‘revolução cultural’ para reprimir o povo, a liberdade e a imprensa. Como no tempo do regime soviético e do Muro de Berlim que ‘protegia’ o povo dos ‘fascistas’ e da sua ‘desinformação’. As desculpas mudam. Os objectivos são os mesmos: reprimir, silenciar, vigiar e controlar.

    Um regime que premeia o lucro e a ganância (veja-se o caso, na União Europeia, da milionária compra opaca e suspeita de vacinas contra a covid-19, a recente prorrogação por uma década da autorização do uso do perigoso glifosato na agricultura ou as medidas políticas restritivas impostas na pandemia sem qualquer base científica, as quais levaram grandes empresas e bancos a obter lucros recorde e obscenos estes últimos anos, face aos danos gigantescos provocados à população e pequenos negócios).

    Um regime que promove guerras enquanto apoia o legalizar da repressão da liberdade de imprensa e dos direitos humanos no espaço digital (e na saúde, através de actualizações previstas ao Regulamento Sanitário Internacional). Um regime que está a legalizar o silenciamento de ‘dissidentes’, pessoas com visões diferentes das do regime. Um regime que está a trabalhar para garantir que impedir alguém de circular ou aceder ao seu dinheiro será tão fácil quanto carregar numa única tecla.

    Um regime que está a legalizar o que em 2020 ainda não era legal: censurar; coagir; prender sem culpa; deixar alguém à fome, sem acesso ao seu dinheiro. Da União Europeia, passando por países como a Irlanda, o Canadá, o Brasil, as leis de repressão avançam.

    pasture fence, barbed wire, fencing

    Desta vez, não é um muro feito de betão, mas de leis, financiamento, regulamentos e cumplicidade entre o grande poder económico e político. Desta vez, o muro não tem arame farpado, mas normas, reguladores, grandes tecnológicas e comités políticos que podem decidir o que é ‘verdade’ e quem está autorizado a se expressar. Mas este muro tem o mesmo propósito: manter os cidadãos reféns do regime.

    Este novo muro de Berlim também não divide a Alemanha; ele está a ser construído em redor dos países do chamado mundo ocidental onde os cidadãos vivem cada vez mais controlados, manietados e vigiados – e não é para o seu bem.

    Os media têm um papel crucial em qualquer ‘revolução cultural’. Por isso, outra ‘pedra’ que está a ajudar a erguer este muro são os incentivos financeiros e políticos criados – as ‘cenouras’ – para que os media produzam notícias exclusivamente dentro das narrativas oficiais. São disso um exemplo os apoios para alegado ‘fact-checking‘ (que tem sido, em geral, muito tendencioso e com pouco rigor científico, por exemplo) ou apoios e contratos comerciais diversos vindos de entidades públicas ou privadas.

    question mark, pile, questions

    Falta o passo final, mas o muro está a ser construído. Restringir a liberdade de imprensa e a liberdade de expressão é uma das ‘pedras’ necessárias para a construção do novo muro e está a ser implementada em diversos países e também na União Europeia, com a aprovação de directivas comunitárias criadas alegadamente para defender jornalistas e combater a ‘desinformação’ e o ‘discurso de ódio’, mas que conferem poderes às ‘autoridades’ que podem usar usados abusivamente para minar a democracia, os direitos digitais e o Jornalismo.

    Como em qualquer ‘revolução cultural’ – como a que está em marcha –, ‘para o bem de todos’, estão a ser criadas leis cuja consequência poderá ser o continuar da censura de notícias verdadeiras – que ‘desautorizam’ a versão ‘oficial’ –, o silenciamento de jornalistas e dos que questionem as políticas de governos e ‘autoridades’. Como nos regimes totalitários – fascistas ou comunistas.

    Falta o passo final, mas o muro está a ser construído. Outra ‘pedra’ que está a servir para construir o novo muro é o acto de se ameaçar e intimidar os grandes espaços de informação digital (como as plataformas que operam rede sociais) – como o Digital Services Act na UE ou legislação drástica anunciada na Irlanda. Como aconteceu durante a pandemia, continua a ser eliminada informação verdadeira e silenciadas vozes que contrariam comunicados ‘oficiais’, sob o falso pretexto de ‘desinformação’ (para regimes totalitários, tudo o que não estiver alinhado com as narrativas oficiais é obviamente desinformação).

    Sob o comando de Ursula von der Leyen, antiga ministra da Defesa da Alemanha, os lucros de gigantes das indústrias farmacêutica, de armamento e do sector financeiro prosperam ajudados por dinheiros europeus. Além disso, sob o seu mandato, a Comissão Europeia implementou, desde 2020, medidas anti-democráticas, sem base científica, que deixaram um rasto de empobrecimento, doenças e excesso de mortalidade, tendo ainda violado direitos humanos e civis (como o apartheid infame do ‘passaporte de vacina’). Mais recentemente, têm estado a ser aprovadas directivas comunitárias que abrem a porta a abusos políticos e ataques à liberdade de imprensa, de expressão e direitos digitais.

    Nova legislação imposta para alegadamente proteger os jornalistas e os media contém artigos que, segundo alguns, são autênticos cavalos de Tróia e potenciais ameaças ao Jornalismo e a todas as notícias verdadeiras que as autoridades ou as Big Tech decidam classificar como ‘desinformação’. É o caso de legislação imposta no Canadá e o Media Freedom Act aprovado preliminarmente, em meados deste mês, na UE.

    Falta o passo final, mas o muro está a ser construído. Artistas, actores, escritores, políticos, comediantes, cientistas, professores, jornalistas que falem algo que contrarie ou questione os comunicados ‘oficiais’, são postos de lado, difamados, cancelados, despedidos. São postos num novo Gulag invisível mas eficaz, onde são denegridos, difamados e ostracizados pelos media, não têm trabalho ou apoios públicos e são atirados para o deserto dos classificados como ‘teóricos da conspiração’.

    Falta o passo final, mas o muro está a ser construído. Nos media, é bem visível a onda de se cobrir de forma idêntica os principais temas, além do recurso a insultar e enxovalhar ‘vozes dissidentes’ (lembram-se dos termos ‘chalupas’ ou ‘negacionistas’, ‘putinistas’, etc?) – a onda de ‘revolução cultural’ assente numa ideologia/religião minada de fanatismo.

    Factos e dados não valem nada nesta cultura actual, onde alguns temas ascenderam a categoria de ‘religião’ – seja na saúde, na Ciência, ou na política internacional. Os ‘dissidentes’ são difamados como sendo de ‘extrema-direita’ (em outros regimes eram ‘fascistas’ ou ‘comunistas’) ou com outras acusações falsas que visam apenas desacreditá-los. Os nomes e acusações mudam mas a táctica é a mesma.

    green and white typewriter on black textile

    Até factos históricos e literatura são ‘reconstruídos’ ou mesmo eliminados neste regime – esta revolução ‘cultural’ – que nasce com o novo muro.

    Falta o passo final, mas o muro está a ser construído. Com identidade e dinheiro digitais – em desenvolvimento acelerado –, o controlo e vigilância potenciais são absolutos. Totais. E poderão ser meios usados abusivamente para restringir a liberdade e o acesso a rendimentos de ‘vozes dissidentes’.

    Um muro invisível aos olhos da imprensa, dos jornalistas cegos ou alinhados, mas um muro real. Tão real como um muro de betão e arame farpado e protegido por guardas armados.

    Como sucedeu tantas vezes na História, de forma silenciosa e gradual, um ciclo de totalitarismo ameaça estar à espreita. Do lado de dentro deste novo ‘Muro de Berlim’ não estão parte da Alemanha, ou países como a outrora subjugada Polónia pela Rússia, … Dentro deste muro de Berlim invisível estamos todos nós, ocidentais.

    Este muro não existia nos últimos anos, mas o início deste regime totalitário já era visível. Para implementar medidas anti-democráticas, desde 2020, foram violadas as leis fundamentais dos países. Foram detidos cidadãos, alguns com recurso a violência extrema, em certos países. Foram congeladas ilegalmente contas bancárias a cidadãos que questionaram medidas em países, como o Canadá. Foram impostos mandatos que violaram os direitos humanos e civis e que deixaram um rasto de mortes e mortalidade em excesso e doenças. A pobreza disparou e os mais vulneráveis foram dos mais prejudicados.

    Tudo foi feito de forma ilegal. As novas leis, o novo muro que está a ser construído, ameaça tornar todo esse tipo de violações ‘legais’ no futuro. A normalização da ideia iniciada na pandemia de que quem decide o que é ‘verdade’ não são jornalistas ou cientistas mas reguladores e ‘Big Techs’. A tentativa de eliminação do conceito de direitos humanos em políticas de saúde, bem como o adulterar do conceito de direitos digitais. A normalização da ideia de que não somos soberanos sobre o nosso próprio corpo. A legalização da ideia de que não somos guardiões nem educadores últimos dos nossos próprios filhos.

    E está em marcha a normalização do silenciamento de jornalistas – sob o falso pretexto de ‘desinformação’ – e até do encarceramento de jornalistas – veja-se o caso de Assange, jornalista e preso político num país do Ocidente.

    Memorial relativo ao Muro de Berlim

    O fanatismo, a ganância (por lucro e poder) e a ignorância foram a base para a instalação de regimes totalitários, para a repressão e para crimes contra a Humanidade.

    As novas ‘religiões’ criadas em torno de temas ‘incontestados’, o fanatismo alimentado pelos media, a ganância de grandes indústrias tecnológicas (e não só) e a ignorância são, hoje, de novo, os alicerces para a construção deste novo muro de Berlim.

    (Por falar em fanatismo que se sobrepõe aos factos científicos, veja-se, por exemplo, o caso do artigo científico que comprovou, de vez, a ineficácia do uso de máscara em crianças mas, ainda assim, apesar dos factos, os media citam, sem questionar, os que ainda recomendam erradamente o seu uso, perante os enormes malefícios causados a crianças).

    São novos fanatismos, ideologias totalitárias em pleno século XXI. Mas é, sobretudo, cegueira. Uma perigosa cegueira que contribui para ajudar este muro a levantar-se em torno do mundo ocidental. Um muro silencioso e invisível mas que está a erguer-se.

    Mas, tal como vivemos neste regime pré-totalitário, também surgiram, nos últimos anos, na sociedade ocidental, novas estruturas e plataformas em defesa dos direitos humanos e civis, novos meios de comunicação social independentes, processos na Justiça para aceder a informação escondida e combater os fanatismos, os actos de ganância e a censura.

    Se é verdade que um muro se está a erguer, também a sociedade civil está mais forte, hoje, do que estava em 2020, está mais organizada e preparada para lidar com ataques à democracia, à liberdade de imprensa e aos direitos humanos, civis e direitos digitais.

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    E, como diz o ditado, não se consegue enganar toda a gente, o tempo todo. E não se consegue comprar toda a gente, nem para sempre.

    O muro pode estar a ser construído, mas junto com ele está a erguer-se uma sociedade civil mais consciente e atenta. Estão a erguer-se estruturas – desde jornais independentes a organizações de profissionais e de direitos no mundo digital – que colocam em causa o novo regime que ameaça mergulhar o mundo ocidental numa ditadura comandada, não pela repressão política ou militar, mas pela repressão ideológica, tecnológica e financeira.

    E, se a sociedade civil prosseguir com o reforço dessas novas estruturas e organizações, no final, o mundo ocidental sairá mais forte e também mais consciente. Haverá mais consciência de que é urgente preservar o conhecimento acumulado e a História. E de que é preciso estar atento. Porque, afinal, mesmo com tudo o que a História nos ensina sobre os perigos das ditaduras e ‘revoluções culturais’ com censura à mistura, mesmo com toda a evolução científica e tecnológica, haverá sempre quem esteja disposto a tentar eliminar a democracia, a imprensa e o livre arbítrio. A tentar eliminar o que é preciso preservar a todo o custo: a liberdade.

    Elisabete Tavares é jornalista


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM. Neste caso, o director subscreve até as gralhas.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

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  • Manifesto de Natal by Estraca

    Manifesto de Natal by Estraca


    De volta a Dezembro, esquecemos tudo novamente

    Voltamos a ser mais humanos, a sopa quente do sem-abrigo,
    dos Aliados ao Oriente

    e este ano, excepcionalmente, temos o apoio do Parlamento,
    dos partidos

    Toma uma sopa e um panfleto, mas só comes se votares! Ouviste?

    Viva a campanha eleitoral

    em época de Natal.

    Viva Portugal!

    Tudo ao rubro entre o Wonderland, as compras e o trânsito infernal, o funeral da democracia e o orgulho nacional,

    da bandeira sem as quinas e os castelos.

    [Já agora, mudem também a poesia de Fernando Pessoa, o fado de Amália e o nome de Lisboa para… Lisbon; é mais bonito.]

    Vai, cala-te e come.

    Come mais um aumento da renda,

    da luz,

    da água.

    Reclama que está caro; é o progresso da agenda globalista: sem nada, feliz e cada vez mais escravo.

    A casa não é tua,

    o carro também não.

    Até o teu filho já é propriedade do Estado.

    Mas aguenta, aguenta, Zé Povinho, lamenta, mas no sofá: sentadinho, caladinho, a mandar postas de pescada na internet.

    “Eu sou Chega”, “ele é PS”, “o meu partido é que é honesto!”.

    “Mas que cor é que ele veste?”

    Isso é que importa, não é?

    Tirar o poder ao povo e dar aos políticos, e eles adoram isto, de dar aos políticos e tirar ao povo.

    Até aqui, nada de novo,

    mas pronto, vamos dar seguimento.

    Este ano, tivemos o aparecimento em massa do movimento burguês pelo clima, com um enorme esforço e financiamento internacional.

    Tivemos também o desentendimento da família PS. Eu relembro: 10 mudanças no alinhamento do Governo,

    com despedimentos por corrupção.

    Mais recentemente, o afastamento do Costa, que de repente voltou ao posto. Em breve… está na Europa.

    Tivemos o Galamba, o aluno do nosso querido engenheiro, o grande José.

    Ele está fora, mas continua sempre lá no meio.

    Ó Galamba passa a ganza que a bófia não vê, e o povo não sente o cheiro,

    nem da ganza, nem do dinheiro.

    Faz um esforço, corta no jantar, reduz no almoço.

    Hospital, ou é privado, ou acabas morto.

    Saúde é para quem tem dinheiro. Neste país, é assim,

    já dizia o outro: uns são filhos, outros enteados, e outros… Nuno Rebelo de Sousa.

    Mas que venha 2024, com este grande aumento de ordenado.

    Já dá para comprar uma tenda nova e um casaco para os dias mais frios.

    É que isto com as alterações climáticas nunca se sabe.

    Aumenta a mortalidade, os enfartes,

    está tudo comprovado.

    Um aparte, cenário internacional: Rússia, Ucrânia, Israel, Palestina. Já só falta China e Taiwan.

    Não querendo ser chato, para terminar… desculpa, podes-me… um obrigado à Cristina Ferreira, ao Cavaco, ao Marques Mendes, ao Malato, ao ChatGPT, ao José Alberto Carvalho, ao Papa Francisco, à Kikas, à Joana Marques, à Prozis, ao lítio de Montalegre e às bifanas de Vendas Novas.

    Acho que não me esqueci de ninguém.

    Um obrigado.

    Feliz Natal e Bom Ano Novo.

    Até para o ano.

    Estraca é um rapper e activista


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O Natal é sempre o fruto que há no ventre da mulher

    O Natal é sempre o fruto que há no ventre da mulher

    A cama do menino Jesus era um colchão no chão, com pouca roupa, tão pouca que o menino raramente se despia, e muito menos no Inverno. Era, sem dúvida, um mau costume; mas também o Inverno é um mau costume.”

    Jorge de Sena

    ANDANÇAS DO DEMÓNIO (1944)


    Então,  mas…

    …é ou não é verdade que 15% das mulheres tem ventres onde nunca há frutos?

    Caraças, estes malditos detalhes.

    Dão com os escribas em doidos.


    Vamos lá, agora deixem-se de tretas. Um lugar-comum que está grosseiramente errado logo à partida não se vai tornando ligeiramente correcto, e depois cada vez mais correcto até andar próximo de expressar a verdade, apenas porque é repetido milhões de vezes, espraiando-se pelo curso dos séculos e correndo pelas veias da geografia. O que estão sempre a dizer-vos não é verdade, e aliás nunca poderia ser verdade. Se calhar a rima é bonita[1], e se calhar o próprio conceito é aconchegante. Até pode ser que funcione como enzima desculpabilizante[2], sobretudo para as pequeninas minorias bem cuidadas que possuem a granel tudo aquilo que as colossais maiorias esfarrapadas nunca possuiram nem possuirão. A existência de uma única noite, ao longo de um total descontraído de 365 dias e seis horas, que é destinada à prática da solidariedade social[3] deve ser especialmente doce para estas pessoasmas com a ciência[4] não se brinca e não, desculpem mas não, o Natal não é quando um homem quiser. A data de celebração do Natal tem regras, pelo que, para fazer sentido, o Natal precisa obrigatoriamente de respeitá-las. E acontece que uma dessas regras, absorvida directamente do culto mitraico pelos legionários romanos acabados de chegar da Pérsia[5], é a regra de ouro da sua data, que sobrepõe o nascimento do Menino Jesus às festividades com que se celebra o Solstício de Dezembro. É nesta altura que os homens imploram aos deuses que a luz volte depressa.


    Creio que toda a gente sabe isto. Mas, na dúvida, vamos só rebobinar os pontos mais altos destes Himalaias improváveis.

    Até muito tarde no curso da História que se escreveu Depois de Cristo, o Natal celebrava-se na noite de 20 para 21 de Dezembro e não existiam cá mais mariquices. Existia, apenas, a calêndrica estóica herdada de Júlio César no grande esforço de criar uma contagem do tempo que servisse por igual todos os povos do mundo abrangido pelo Império Romano. Positivamente pejado de anos bisextos, dias pagãos feitos feriados, travessias religiosas e outras que tais, este Calendário Juliano usava essas alcavalas para manter o tempo sob controlo. Mesmo assim, quando entramos na primeira década do século XVI o calendário já transborda com abundância, porque já comporta doze dias a mais.

    Na primeira década do século XVI?

    Gaita que isto foi rápido.

    Na realidade, e tendo em linha conta que no século XVI ainda são os Papas quem toma as decisões finais por todo o mundo civilizado[6], isto apenas precisou de um Papa suficientemente empreendedor que conseguisse ver com clareza o que lhe trazia a curva do tempo – e depois, em vez de se dar por vencido e suspirar com tristeza à maneira do muito cristão Soren Kierkegaard “a maior ironia da vida é que a vivemos do princípio até ao fim mas só a entendemos do fim até ao princípio[7]”, contratar um punhado de estudiosos dedicados à calêndrica para que lhe apresentassem o projecto de um novo calendário.

    Esse Papa adoptara o nome Gregório III.

    Foi assim, para o melhor e para o pior, depois de imensa polémica e intensa gritaria, que nasceu o Calendário Gregoriano ainda hoje em uso.

    rock formations during daytime

    Agora, vão por mim e apreciem bem algumas histórias verdadeiras associadas às datas do Natal e da Páscoa. Se não aprendermos mais nada, no mínimo aprendemos, de uma vez por todas, que a calêndrica não é nenhuma brincadeira. Longe disso. É uma forma de estar na vida que ainda hoje separa os cristãos ortodoxos dos católicos, os católicos dos protestantes, e toda esta gente da grande heresia nestoriana que nos nossos tempos se abrigou em Turlock, California.

    Até à conversão do Império Romano, a celebração do Solstício de Inverno que faz concorrência directa com o cristianismo é a do culto indo-iraniano dedicado ao deus Mitra. Mitra, que apadrinha a amizade, o contrato, e a ordem, aparece na península italiana no final do século I, para depois se expandir a grande velocidade por todo o Império. O seu culto é secreto, pelo que cada um dos seus novos seguidores se vai sentindo especial perante todos os seus pares. Neste sentido, os templos de Mitra encontram-se muitas vezes dentro de cavernas, ou de grutas, ou em qualquer outra localização que os esconda dos olhos do mundo.

    Como é evidente, existe toda uma narrativa destinada a acompanhar os passos de Mitra entre os mortais. Um dos grandes pontos altos desta narrativa ocorre quando Mitra mata um touro. Simbolicamente, esta morte estabelece uma nova ordem cósmica, associada à Lua, que, por seu turno[8], está associada à fertilidade[9].

    Mas acontece que a vida não tem só um começo. Se formos verdadeiros mortais, a vida tem, sobretudo, um fim.

    Os primeiros cristãos acreditavam que o regresso de Cristo estava ali mesmo ao virar da esquina, e portanto celebravam a Páscoa todos os Domingos. Depois, com a passagem dos anos e dos séculos, já quase em contagem decrescente para o Milénio, tiveram que aceitar a sua ignorância total no respeitante ao Segundo Regresso[10] e encarar a necessidade de convocar uma data simbólica para funcionar no calendário enquanto Grande Metáfora de Luz.

    A data simbólica que saiu do subsequente Grande Debate de Fogo é uma espécie de aventura druídica que não poderia, certamente, aparecer aos nossos olhos com um cunho mais pagão.

    green grass field during sunset

    A Páscoa é o primeiro Domingo depois da primeira Lua Cheia que se segue ao Equinócio de Março.

    É a grande festa móvel do calendário, calculada de raiz para cada ano e usada como fiel da balança para a validade de todas as outras datas de carácter religioso. Cientes do poder desta metáfora no tocante à conversão dos pagãos estabelecidos no domínio do Império Romano, os cristãos aproveitaram o Equinócio da Páscoa para inserirem também no calendário o nascimento de Jesus no Solstício do Natal.

    Praticamente todos aqueles que não observam a fé cristã observam à mesma a celebração do Natal, baseando-se em lendas, cânticos, ou imagens mitológicas, frequentemente muito anteriores ao nascimento de Jesus. Entre essas imagens salientam-se a Árvore de Natal, o Presépio, a Grande Refeição Especial, e a troca de prendas. Quanto ao Pai Natal, coitado – deu-se este homem ao trabalho de viver uma conversão magnífica[11], de semear milagres a toda a sua volta e de proteger toda a gente, de deixar ao mundo um corpo incorruptível capaz de curar tudo, de tomar conta das crianças, de aparecer em sonhos às pessoas importantes do seu meio, de começar a carreira como São Nicolau de Bari o que quase instantaneamente fez dele o famigerado Saint Nic das Lounge Songs americanas, para agora ser apenas mais um motivo decorativo dos centros comerciais. A Sociedade de Consumo tem literalmente feito dele o que quer, chegando este ano ao ponto de organizar voos charter à Finlândia para que os pais possam mostrar aos filhos onde fica “a aldeia do Pai Natal.”

    Ewh.

    Imaginem o olhar cáustico que alguns dos grandes sábios que mudaram os céus deitam sobre tudo isto. Vejamos o caso de Galileu e Kepler, por exemplo – um em Piza e o outro na Praga dourada do Imperador Rodolfo II, os dois em constante correspondência.

    É evidente que os dois astrónomos se entendiam mesmo muito bem. Na realidade, entendiam-se tão bem que, na capa do seu DIÁLOGO SOBRE OS DOIS GRANDES SISTEMAS DO MUNDO, Galileu fez gravar a imagem de Aristóteles, Ptolomeu, e Kepler[12], todos ricamente vestidos, e completamente tu-cá-tu-lá numa amena cavaqueira. Galileu trata carinhosamente o jovem luterano alemão por “meu Kepler”, e tem com ele desabafos deliciosos, como este, que vem a propósito dos catedráticos da Universidade de Pisa e das suas observações pomposas quanto aos roteiros dos céus:

    “As pessoas deste género pensam que a Filosofia[13] é um livro como a ENEIDA ou a ODISSEIA, e que assim sendo a verdade deve procurar-se não no Universo, não na Natureza, mas na comparação de textos![14]

    silhouette of people riding on camels

    Certificarmo-nos da validade da data do Natal é muito provavelmente um dos maiores desafios que o nosso calendário tem que enfrentar todos os anos, porque a Igreja Católica não estabeleceu para a Festa a data precisa do Solstício de Inverno, 21 de Dezembro. A Noite de Natal celebra-se antes de 24 para 25 em homenagem a outras tantas festas pagãs que cantam louvores a um qualquer Menino Eleito acabado de nascer, e estes quatro dias de atraso têm uma razão de ser precisa e universal: como em várias outras Grandes Festas celebradas com catadupas de luzes, sejam elas pagãs ou monoparentais, observa-se este ritual para implorar a Deus o aumento da luz diária[15]. No dia 21 de Dezembro, assinalando o Solstício, essa luz atingiu a sua duração mínima. Agora, passados quatro dias, a duração da Luz já se faz sentir. Não démos por nada, parece que ainda não aconteceu nada – mas, no dia 25, os dias já voltaram a recuperar cerca de dez minutos da Luz que tinham antes do Solstício.

    Que esta Luz caminhe agora convosco.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1]Natal é em Dezembro/ Mas em Maio pode ser/ Natal é em Setembro/ É quando um homem quiser”, uma vez que “Natal é sempre o fruto/ Que há no ventre da mulher”. Antes de se rirem do esforço que José Carlos Ary dos Santos investiu na criação destas candidatas a “rimas bonitas”, por favor, não esqueçam o óbvio: naquela altura ainda nem sequer existia a MTV, nem nenhum canal pop que nos presenteasse o dia inteiro com videos pedagógicos. Não existiam rap, nem hip-hop, nem outras formas de arte urbana em que rimar bem e de improviso fosse a grande pedra de toque. Portanto olhem, “Canta o sol/ Que tens na alma/ És a flor de ser feliz.” Que remédio.

    [2] As enzimas desencadeiam e potenciam as reacções inter e extra-celulares sem se gastarem nelas. Bom termo de comparação para as brincadeiras do Menino Jesus e para todos os Demónios escondidos

    [3] Isto era mais fácil de perceber quando, à semelhança do que fazem os americanos, o pessoal ainda lhe chamava caridade. Mas enfim, a desculpa é que os americanos são brutos. Vivem num mundo sem economia de mercado, porque ainda lhe chamam capitalismo e não têm medo de ninguém. E a verdade é que, com eles, a pessoa ao menos não se perde.

    [4] Os exercícios de Astronomia e de Matemática destinados a inserir ou excluir datas importantes do calendário formam mesmo uma ciência, tão antiga e de prática tão disseminada que não demorou muito a ganhar um nome próprio. Chamamos-lhes calêndrica.

    [5] Detalhe acrescentado a partir do culto monoteísta de Ahora-Mazda, criado pelo sacerdote persa Zarathustra, em que a data do Solstício de Inverno representa, metaforicamente, a data do nascimento anual do Deus-Sol (natalis invicti Solis, sendo que o nosso Natal vem directamente deste natalis, que, por seu turno, é derivado de nãscor, que significa nascer). Esta Força do Bem, toda ela feita de luz, vai depois passar o ano inteiro a lutar contra a Força do Mal, toda ela feita de escuridão, e por conseguinte criadora da sombra. Se só existisse luz, ficávamos completamente encandeados. É a sombra que nos permite ver.

    [6] Daí, certamente, pelo menos uma boa parte de tanto Papa assassinado enquanto durou esta hegemonia. Os efeitos colaterais de manter sobre o mundo um feroz poder absoluto são assaz previsíveis, além de que muito Papa houve que, em vez de tranquilizar todas as almas inquietas à sua volta, preferia agarrar em armas e andar à porrada num lado qualquer cheio de Inimigos da Fé. “Quem vai à guerra dá e leva,” como toda a gente sabe.

    [7] Bela citação, sem dúvida. Mas parece concebida de propósito para tornar impossível todo e qualquer arroubo de recomeçar do zero e presentear os povos inquietos com um novo calendário onde cabe tudo.

    [8] E uma vez mais.

    [9] E, uma vez mais, nãscor. Note-se aqui que Mitra tem alguns ajudantes na tarefa de tirar a fertilidade ao touro: a maioria dos seus baixo-relevos mostram um cão e uma cabra que bebem o seu sangue, um escorpião que pica o seu escroto, e um corvo que se se senta na sua cauda para mediar o diálogo entre Mitra e o deus do Sol Invictus.

    [10] O Segundo Regresso aparece referido por São João em Patmos no Livro do Apocalipse. É o período de mil anos em que Cristo, tendo regressado à Terra, derrota a Besta e as nações de Gog e Magog para trazer a felicidade ao mundo.

    [11] Ver  Clara Pinto Correia e João Francisco Vilhena, O LIVRO DAS CONVERSÕES, Relógio d’Água e Círculo de Leitores.

    [12] É importante termos conhecimento desta amizade, porque não falta, ainda hoje, quem acuse Kepler de ser “excessivamente piedoso”, coisa que Galileu obviamente não era. Mas Kepler soube distinguir muito bem a sua Ciência da sua Piedade. Sim, fez todo o seu trabalho na corte de Rudolfo II em Praga porque ganhava a vida a fazer o horóscopo diário do Imperador do Sacro Império, mas e depois? Quantas vezes teremos que repetir que praticamente todos os grandes cientistas deste período foram ou monásticos ou cortesãos? E foi na corte de Rudolfo que Kepler percebeu, finalmente, que as órbitas dos planetas eram elípticas, e não esféricas. Sim, odiou publicamente esta conclusão porque a esfera simboliza a perfeição e a elipse simboliza o caos, mas há azar? Publicou à mesma os seus resultados, não publicou? Ah pois é.

    [13] Palavra genericamente utilizada também para a Ciência até aos finais do século XVIII.

    [14] No que respeita à maioria dos nossos catedráticos, dá ideia que as coisas não mudaram muito até agora.

    [15] Veja-se, por exemplo, o caso do hanukkah judaico. A data da “festa das luzes” é móvel, mas sempre centrada perto do Solstício de Inverno. Em 2024 será exactamente a 25 de Dezembro.


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  • Uma ideia luminosa: multar (ou roubar) turistas!

    Uma ideia luminosa: multar (ou roubar) turistas!


    Os turistas que nos visitam sempre me despertaram uma grande curiosidade.

    Que razões os levam a escolher o nosso país?

    Consigo perceber os que viajam até Portugal para, por exemplo, visitar Fátima.

     O “turismo religioso” é um fenómeno a nível mundial e os estrangeiros não precisam mais do que ser crentes para considerarem “obrigatório” conhecer o “Altar do Mundo”.

    A maioria destes visitantes é gente simples, pouco exigente no que respeita à qualidade das instalações hoteleiras e da gastronomia.

    Não que não haja, nas imediações, hotéis e restaurantes excelentes, porque os há, mas a verdade é que, nas principais datas, do meio milhão de pessoas que enchem o Santuário só poucos, muito poucos, milhares são suficientes para os esgotar.

    people walking on street during daytime

    A imensa maioria é malta de chegar a pé, partir em autocarros e alimentar-se a pão com chouriço, sumos e cerveja.

    O “turismo de saúde” quase desapareceu, com o encerramento das termas, e também porque passou de moda.

    Ao contrário, o “ecoturismo” tem, agora, um grande número de adeptos dispostos a gastar bom dinheiro numas férias repousantes.

    Mas o “número de camas”, neste conceito, é reduzido embora a maioria dos pequenos empreendimentos sejam de grande qualidade.

    O turismo de massas, em Portugal, tem a ver com a época balnear.

    Temos um litoral espectacular, em especial o Algarve, mas idêntico, ou até inferior, a outros países geograficamente perto.

    white and blue concrete building

    Os preços, e a reconhecida simpatia das nossas gentes, têm levado centenas de milhares de turistas a optarem pelas nossas praias o que faz com que o turismo represente 19,1% da riqueza produzida em 2022, de acordo com o relatório do World Travel & Tourism Council (WTTC), que aponta Portugal como o 5º país onde é mais forte a contribuição do turismo para o PIB.

    Chegados aqui, o que fazer?

    Como habitualmente, arranjar maneira de estragar tudo.

    Deixámos de, praticamente, participar nas “Feiras de Turismo”, onde as empresas do ramo têm oportunidade de promoverem os seus produtos e serviços, com o fim de captar um número ainda maior de visitantes, e começámos a cobrar uma taxa aos turistas por… serem turistas.

    Os últimos iluminados foram os Autarcas da Câmara Municipal de Portimão que decidiram que fosse cobrada uma taxa diária de dois euros, na época de Março a Setembro, e um euro nos restantes dias do ano, como taxa turística.

    A Presidente do Município foi clara:

    “Aquilo que nós pretendemos é, primeiro, fazer a divulgação do destino turístico de Portimão como um destino turístico atrativo e atrair cada vez mais outros mercados turísticos para o nosso município e, depois, na melhoria daquilo que nós temos para dar aos nossos turistas, isto é, a melhoria dos espaços verdes, a melhoria dos arruamentos, tudo aquilo que implica termos um destino turístico de qualidade e é isso que pretendemos”.

    people on beach during daytime

    Numa frase onde a palavra turístico surge cinco vezes, fica claro que, não fosse pelos estrangeiros, os algarvios ficariam bem com “espaços verdes” repletos de silvas e arruamentos cheios de buracos.

    Havendo turistas nas nossas ruas há que arranjar estas ainda que, para tal, os obriguemos a pagar as obras.

    A ideia pode parecer estranha, mas nem sequer é original.

    Carlos Moedas, de Lisboa, já está a taxar os turistas que visitam a capital em viagem de cruzeiro e Eduardo Vítor Rodrigues, de Vila Nova de Gaia, decidiu que estes pagassem, também, dois euros por cada dia passado no seu concelho.

    Explicou o motivo:

    Vale a pena dizer que não somos os únicos: por essa Europa fora é cada vez mais usual, e bem, e não é com as taxas baixas que nós cobramos, é com taxas bem mais elevadas. Roma com seis euros, por exemplo.”

    white and black cruise ship on sea during daytime

    Segundo consta pretende continuar a copiar os italianos começando, desde logo, com a frase “Ir a Gaia e não ver o Rodrigues” em contraponto ao “ir a Roma e não ver o Papa”.

    O pior é se esta medida, que tem mais de multa que de taxa, não vai levar a que muitos dos que nos visitam optem por passar a ir a países onde não sejam vítimas de autênticos saques.

    Há uma lição, que se costuma dar a miúdos de quatro ou cinco anos, que mete galinhas e ovos de ouro.

    Talvez fosse útil estes autarcas pedirem a opinião a catraios, numa creche, antes de irem para as reuniões camarárias.

    Vítor Ilharco é assessor


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