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  • Macaco: a incrível história de um beneficiário do RSI

    Macaco: a incrível história de um beneficiário do RSI


    Há dois dias que só ouvimos falar de Fernando Madureira, ou do Macaco, como ele prefere ser chamado – o líder de um gangue criminoso que, por acaso, também vai à bola.

    Vi Miguel Sousa Tavares (MST) indignado com o estado em que a polícia deixou a casa de Madureira, e até a filha do visado a queixar-se da violência e agressividade com que a polícia por ali entrou. Percebo MST, percebo mesmo. Ainda é do tempo em que os polícias telefonavam a avisar antes das rusgas, dando tempo aos visados de fugirem para Vigo. Bons tempos que parecem não querer voltar.

    Já o espanto da miúda, tenho alguma dificuldade em entender. A não ser que o casal Madureira tenha proibido a filha de ir ao Youtube, há por lá boa documentação, do pai e da mãe, bem como dos amigos de ambos, em preparos bem mais violentos e agressivos do que a PSP a entrar pela porta da frente sem tocar à campainha. Para ela, aquilo deveria ter sido uma simples terça-feira de trabalho.

    Aquilo que realmente acho interessante neste caso é, uma vez mais, o tempo em que tudo acontece.

    Há pelo menos 20 anos que toda a gente sabe quem é Fernando Madureira. Até porque, convenhamos, ele não gosta de fazer um grande segredo das suas actividades. Tal como boa parte dos seus compatriotas, Madureira vive, diz, com o salário mínimo. A dura realidade de um país pobre, segundo a declaração que, anualmente, entrega em sede de IRS. Contudo, ao contrário de boa parte dos sobreviventes do salário mínimo, Madureira consegue esticar os parcos recursos declarados e viver, digamos, confortavelmente. Construiu uma moradia de luxo com dois pisos e piscina numa zona nobre de Gaia. Conduz um Porsche e um BMW topo de gama. Viaja frequentemente para sítios paradisíacos, onde o bilhete de avião e a estadia custam vários salários mínimos.

    Dir-nos-ia a Iniciativa Liberal que estamos perante um empreendedor, um homem que não se resignou à sua condição de pobre e que procurou investir em si mesmo. Um homem que faz a multiplicação dos pães ou, neste caso, dos salários mínimos.

    Desconfia-se, há muitos anos, que Madureira e vários membros dos Super Dragões estão envolvidos em actos ilícitos e, dessa forma, conseguem suportar os custos de uma vida de luxo sem que se conheça, aparentemente, um emprego fora da claque.

    Pergunto-me: como é que as autoridades terão desconfiado disto?

    Durante duas décadas, vimos Madureira e membros dos Super Dragões a vender bilhetes para jogos (libertados pelo próprio clube), ficando provavelmente com os lucros e oferecendo, em troca, todo o tipo de serviços ao clube, dentro da gama de recursos que uma guarda pretoriana pode oferecer.

    Vimos Pinto da Costa escoltado pelo gangue a caminho do tribunal, vimos visitas filmadas a árbitros no seu centro de treinos, soubemos de passagens por estabelecimentos de árbitros ou seus familiares na véspera de jogos. Há relatos de jogadores ameaçados pela claque quando não quiseram renovar contrato. Agressões a jornalistas, adeptos, adversários. O clima de terror e coacção vem de trás e trouxe, para além de alegados proveitos desportivos, aparentes proveitos económicos.

    Fernando Madureira mexe-se bem na alta roda dos interesses. Tanto aparece aos abraços com Pedro Proença, o dirigente máximo da Liga Portuguesa de Futebol, antigo árbitro amigo; como é visto com o apoio da Federação Portuguesa de Futebol, a liderar uma claque patrocinada para a nossa Selecção. Isto apenas por ter revelado, em livro, uma série de assaltos feitos nessas mesmas deslocações com a claque.

    Deve ser um dos poucos casos em Portugal onde o autor confessa os seus crimes pela via escrita ou filmada e, mesmo assim, nada lhe acontece.

    Há 20 anos que sabemos desta promiscuidade e, obviamente, a passagem do tempo aumentou a sensação de impunidade. Madureira faz o que quer, como quer, e quando quer. Em Gaia, expulsa de um restaurante um antigo funcionário do Benfica. Filma-se em combates ilegais de rua. Vende bilhetes em directo, afirmando que tem todos os bandidos do Porto ali por perto. Relata, detalhadamente, como roubam pessoas ou estações de serviço a caminho dos jogos. A única coisa que falta colocar em livro são os pontos de recolha e entrega de droga, outro dos negócios alegadamente ligado ao gangue liderado por Madureira.

    Pelo meio desta vida atarefada de gestão do salário mínimo nacional, Madureira ainda teve tempo para gozar com o sistema de ensino português. Conseguiu entregar uma tese de mestrado numa universidade privada e obter o grau de mestre com 17 valores.

    A revista Visão, em 2017, num artigo de Miguel Carvalho, relatava o seguinte sobre este tese:

    “Quando leu o documento, Maria Alzira Seixo, professora catedrática da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, ia tendo um susto. Ou pior. A tese de Fernando Madureira é um insulto à Língua Portuguesa e ao desporto nacional. Manuel Sérgio [catedrático da Faculdade de Motricidade Humana] pode ter um ataque cardíaco se a ler!”, ironiza, sem se deter, citando um dos académicos mais prestigiados nesta área. “É escrita num Português iletrado, analfabeto e ridículo. Inacreditável que uma instituição do ensino superior aceite tal coisa”, reforça Maria Alzira Seixo.

    Porquê agora? Numa vida cheia de história mal contadas e com provas repetidas de crimes cometido, o que mudou? Porque acordou o mundo para a realidade de Fernando Madureira, Sandra Madureira e o gangue criminoso por eles liderado? Por causa de uma assembleia geral onde as ameaças e coacção, normalmente usadas para adversários, foram aplicadas à oposição interna com aquele vergonhoso condicionamento dos trabalhos? Não, não foi por isso.

    Pinto da Costa reina tranquilo há 40 anos sem que alguém tenha sequer coragem para o criticar. Durante muito tempo, a claque garantiu que ninguém se aproximava sequer do poder. Aliás, a vida que Madureira tem só será possível enquanto Pinto da Costa for o presidente do Futebol Clube do Porto. E o contrário também é verdade. Direccão e claque precisam um do outro para manter as rotinas das últimas duas décadas.

    brown bridge with light

    Não foram os desacatos da assembleia geral que deram o alerta nas forcas de segurança. Não há nada de novo na violência e métodos do gangue. A novidade é que, desta vez, a oposição parece ter alguma força e, aos poucos, começa a cheirar a fim de ciclo e à queda do poder vigente. Ora, em Portugal, todos sabemos, a impunidade dos mais poderosos acaba quando a cadeira do poder se parte.

    Pinto da Costa está de facto ameaçado por André Villas Boas e sabe que, se não sair da administração do Futebol Clube do Porto num caixão, será ele o próximo a ir responder à Judiciária ou à PSP. O mesmo para o gangue de Madureira. A vida de luxo à custa do clube e o constante olhar para o lado das autoridades mantém-se, enquanto o poder instituído for o mesmo. Quando o sistema se começar a desmoronar, Madureira será a sua primeira vítima.

    A história de Madureira não diz nada sobre ele que já não fosse público. Diz, e muito, de como funciona esta República das Bananas a que vamos chamando Portugal.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • Ironia do destino: os acríticos aprenderam a criticar os media

    Ironia do destino: os acríticos aprenderam a criticar os media

    Muitos jornalistas e activistas ‘antifascistas’ parecem ter sido subitamente assaltados por um aguçado espírito crítico em relação à imprensa mainstream. E quem é o responsável por este milagroso despertar do torpor em que estavam mergulhados? O Chega.

    Por estes dias, temos assistido a uma indignação galopante contra alguns canais de media, acusados de indirectamente ‘levar ao colo’ o partido de André Ventura já que lhe dedicaram uma desmesurada atenção e espaço. Mesmo que, confesso, não seja eu uma telespectadora suficientemente assídua para confirmar a justeza deste argumento, até dou de barato que haja razão. De qualquer modo, esse aspecto não me parece ser relevante para uma discussão séria.

    black video camera

    O ponto a salientar é outro, e bastante simples: aqueles que não disseram uma palavra sobre a vergonhosa cobertura mediática feita em torno da pandemia, agora já põem em causa os critérios daquilo que se revela ou não como uma notícia. De repente, parece que os críticos perceberam como o gatekeeping, a selecção das matérias tratadas pelos media, pode ser duvidosa e obscura.

    Por isso, é legítimo perguntar: em que mundo têm vivido estas pessoas para não se terem apercebido de que 70% ou 80% – estou a especular nos números, mas entendam a ordem de grandeza – daquilo que sai nos media serve para encher chouriços e esvaziar cabeças?

    Acordaram agora para a realidade do ‘soundbite’ e do fútil? E o que se segue para estes novos combatentes do populismo noticioso: vão aderir às tais “teorias da conspiração” propaladas pelos supostos “chalupas” de que, afinal, sempre é verdade que os media estão comprados, que é tudo propaganda? Há quem lhe chame ironia do destino.

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    A hipocrisia destes novos ‘questionadores’ é gritante. Recordemos, por exemplo, o período da pandemia. Muitos revoltados com a miserável e nada isenta cobertura jornalística, lançaram ataques ferozes sobre a imprensa – alguns até físicos, como aconteceu nos Estados Unidos e no Reino Unido, com protestos junto das instalações de canais como a CNN e a BBC. Os próprios media, nacionais e internacionais, claro, retribuíam os ‘mimos’, acusando estes grupos de atentarem contra a democracia e de serem de “extrema-direita” ou anti-sistema.

    Em Portugal, o conhecido cantor de hip-hop ‘Estraca’ lançou, em Dezembro de 2021, “Jornalixo”, que denunciava a podridão e corrupção dos órgãos de comunicação social. Tornou-se ‘viral’ nas redes sociais, mas o rapper foi ridicularizado por muitos daqueles que agora vociferam contra os media.

    Há ainda um exemplo paradigmático e particularmente revelador da duplicidade de critérios de quem hoje culpa a comunicação social pelo crescimento (mediático) do Chega. Donald Trump, inegavelmente detestado por muitos jornalistas, foi sempre alvo de um escrutínio feroz e desigual em comparação com os candidatos do Partido Democrata. O tratamento que recebia era, sem qualquer dúvida, tendencioso e negativo.

    red and white plastic toy

    Nesse contexto, o ex-presidente norte-americano chegou a dizer que “os media são o inimigo do povo”. Esta entrada a pé juntos fez os supostos defensores da democracia rasgar as vestes. Os ‘antipopulistas’, contudo, pouco se importavam que se deitasse para o lixo a isenção e o rigor jornalísticos quando o protagonista das notícias era Trump. Valia tudo, até mentir ou distorcer os factos para denegrir a sua imagem. Na altura, essa cobertura mediática afagava o seu viés ideológico.

    Agora, dá-se um plot twist. Os acríticos foram picados pelo bichinho do espírito crítico e já aprenderam a desconfiar dos media. Estamos perto de ver essas pessoas, que aplaudem a comunicação social quando se ‘porta bem’ – e promove os actores políticos que lhes agradam – e a condenam quando, aos seus olhos, se ‘porta mal’, dizerem que os media são o inimigo do povo. Só agora, porque o Chega continua a subir nas sondagens. Santa hipocrisia. Santa paciência.

    Maria Afonso Peixoto é jornalista


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  • Iniciativa Liberal: cartazes para dar que falar

    Iniciativa Liberal: cartazes para dar que falar

    Nos meios políticos portugueses, a campanha exterior da Iniciativa Liberal (IL) têm sido alvo de considerável atenção pública. Num contexto em que o entretenimento e a política se encontram num ponto de convergência, as fronteiras entre ambos tornam-se cada vez mais difusas. Essa convergência tem resultado numa abordagem centrada na espectacularização da realidade, conforme destacado pelos investigadores em ciência política, Farnsworth & Lichter, e sintetizado nas palavras do filósofo e teórico marxista Guy Debord: “O espectáculo, como tendência a fazer ver (por diferentes mediações especializadas) o mundo que já não se pode tocar directamente, serve-se da visão como sentido privilegiado da pessoa humana.”

    A ascensão da Iniciativa Liberal, como partido político em Portugal reconhecido pelo Tribunal Constitucional a 13 de Dezembro de 2017, marcou uma mudança no panorama político nacional. O seu programa “Menos Estado, Mais Liberdade” revelou as linhas mestres da abordagem política deste novo partido, liberal em toda a linha. Logo nas eleições legislativas antecipadas de 2022, o partido conseguiu captar simpatizantes e consolidar-se como a quarta maior força política, obtendo uns surpreendentes oito assentos na Assembleia da República. Um estudo realizado por João Cancela e Pedro Magalhães revelou que, grande parte do seu eleitorado foi composto por jovens adultos, especialmente aqueles com menos de 25 anos, e é predominantemente do sexo masculino (58%) e com formação superior (61%).

    Cartaz 8x3m, situado na rotunda do Saldanha em Lisboa em montagem ©DR

    Além da presença assídua nas redes sociais, a Iniciativa Liberal investiu numa campanha publicitária marcada pela ironia, encomendada a Manuel Soares de Oliveira, fundador da agência de publicidade Mosca. Essa abordagem estratégica, rara na política portuguesa, destacou-se pela sua originalidade e eficácia, utilizando uma diversidade de mensagens críticas e humorísticas. E assumiu-se como partido de oposição, posicionando-se como alternativa governativa, que propõe uma profunda transformação política e social. Talvez a maior de todos os partidos que se apresentam a eleições. Segundo este criativo licenciado em Ciência Política, “o marketing político em Portugal é quase inexistente. Normalmente, são as empresas de comunicação que trabalham com os políticos e não há um trabalho de longo prazo.”

    Com uma abordagem disruptiva, os cartazes da IL conquistaram desde cedo a atenção do público em geral, mas também dos meios de comunicação e conseguiram desencadear efeitos multiplicadores noutros canais de divulgação. Representantes políticos proeminentes da nossa praça são caricaturados de maneira satírica, acompanhando a actualidade. Com design cuidado, esta táctica confere uma pertinência que convoca naturalmente à discussão pública, em família ou entre amigos. Resultado de um trabalho conjunto entre um publicitário, o responsável de comunicação do partido e o então líder Carlos Guimarães Pinto, a estratégia alicerça-se num conceito forte, facilmente declinável ao longo do tempo, o que lhe confere consistência. Atrevida e irreverente, é facilmente reconhecida por composição estável que conjuga dois tons de azul, um intermédio que lembra o antigo pássaro do twitter e o azul escuro onde recai o logo IL com uma boa dimensão para garantir a sua leitura, e por conseguinte identificação. A mensagem é escrita em maiúsculas de cor amarela em caixa de com vermelha para bem se evidenciar.

    Na 2ª Circular em Lisboa (embora já tenha estado noutros paradeiros desde 2020) um outdoor onde António Costa é representado como piloto da TAP com uma miniatura de Rui Rio no bolso, que clama “Senhores contribuintes, apertem mais o cinto” em letras bem legíveis. Noutro motivo, colocado em várias localidades designadamente em Maia, vemos a caricatura de Pedro Nuno Santos como criança, vestido de calções com um avião no bolso e uma t-shirt com o revolucionário Che Guevara estampado e com um livro de Marx ao peito, a gritar: “Esses liberais são uns fanáticos na defesa do contribuinte.” Estas mensagens são complementadas por uma segunda frase, igualmente provocativa: “Socialistas: a fazer voar o dinheiro do contribuinte desde sempre.”

    Cartaz 8x3m com ilustração da Caldeirada, Praça do Saldanha, em Lisboa.

    Na Praça do Saldanha, em Lisboa, o cartaz actual retrata a icónica lata de sopa de tomate (Campbell’s Soup), imortalizada pelo artista norte-americano Andy Warhol. Esta nova versão da lata “Caldeirada”, com líderes partidários, sugere que sob tais lideranças, podemos apenas esperar soluções padronizadas e uma governança moldada pela luta pelo poder. A frase “A lata socialista está fora de prazo” é emblemática, conjuntamente com a assinatura “Prefere as ideias frescas”, insinuam que as políticas do PS são insípidas e que esta caldeirada industrial é intragável. É curioso observar que este cartaz se inspira na figura de um artista que liderou o movimento da pop art, conhecido por seus valores ultraliberais e comportamentos controversos. Outro tema retratado nos cartazes da Iniciativa Liberal é a celebração do 25 de Novembro, como alusão ao dia em que a democracia liberal triunfou sobre a ditadura totalitária de Esquerda em Portugal. Carregada de simbolismo, a mensagem simples pretende motivar e credibilizar a mudança, apelando ao voto à direita.

    Introduzindo a espectacularização na política, a comunicação da IL critica os modelos antiquados e questiona a lógica da subsidiodependência. Usando composições criativas e formatos originais, esta irreverência é eficaz, ao responder aos anseios dos jovens adultos, enquanto o seu principal eleitorado. Embora a produção de outdoors recortados seja mais dispendiosa, o investimento compensa na medida em que consegue interpelar os transeuntes, ampliar o seu impacto e garantir o retorno de visibilidade.

    A campanha de outdoors alia também o formato convencional (sem recortes ou avançados que ultrapassam a moldura) para poder chegar a outras localidades, não ficando assim limitada aos grandes centros urbanos. É exemplo disso a versão de menor formato que replica um sinal de nomes da rua criado em azulejos com a inscrição: Largo dos 75.800 € em pleno largo do Rato, onde mora a sede do PS em Lisboa.

    Cartaz afixado no tapume do Largo do Rato, em Lisboa, onde se localiza a sede do Partido Socialista.

    Surpreendente é verificar que a sua execução varia no tom das caixas de texto, que tanto estão vermelhas como rosa choque. Conforme defendido pelo publicitário Manuel Soares de Oliveira, “No mundo do zapping em que vivemos, os cartazes são das poucas coisas que temos mesmo de ver, e com poucos outdoors consegue-se um efeito óptimo”, apesar do crescente poder do marketing digital, principalmente entre o público abaixo dos 50 anos.

    O logótipo da Iniciativa Liberal é bem desenhado e de fácil identificação. O branco, simbolizando paz e limpeza, é a cor principal, enquanto o lettering escolhido é contemporâneo escrito em minúsculas o que contrasta com as imponentes maiúsculas dos headlines. Destaca a letra I em maiúscula, sobressaindo um ponto vermelho que sublinha a forma fálica deste símbolo.

    Diferenciando-se dos partidos do arco governativo que optam por integrar grandes retratos de seus líderes, os cartazes da IL não seguem essa fórmula clássica. Será por Rui Rocha, formado em Direito pela Católica, ser um líder novo demais para o gosto do eleitorado português ou simplesmente por alguma falta de carisma? Ou talvez hajam razões bem mais prosaicas como o facto da sua imagem estar em transformação (no X vemo-lo agora sem óculos)? Não poderia concordar mais com o seu coach nesta mudança, de facto, os óculos de massa davam-lhe um ar de programador websites ou de informático.

    O foco desta presença no espaço público está em problemas concretos para se posicionar como um partido convicto e com ideias precisas que respondem às necessidades reais da vida em Portugal. Adoptando um estilo despretensioso, usa a caricatura para estimular uma pré-disposição positiva no eleitorado. Cada motivo é único mas decorre de um conceito-base maleável que promove reacções e um efeito multiplicador escalável para cativar diferentes comunidades. Os cartazes de rua da Iniciativa Liberal representam assim mais do que simples propaganda política: são uma manifestação de coragem e criatividade que desafia as convenções estabelecidas como ainda promovem o reequacionar do rumo da política contemporânea em Portugal.

    Colagem de cartaz. Fotografia de Ruy Otero

    Em última análise, o conteúdo desta campanha é bastante suave em comparação com a proposta programática deste partido que propõe um corte radical, colocando uma gestão privada no serviço público da Educação à Saúde.
    Num país onde a pobreza ou exclusão social ameaçam agora 2,1 milhões de portugueses e onde a taxa de risco de pobreza, antes de qualquer transferência social, atinge 41,8%, conforme indicado pelo estudo do Observatório das Desigualdades divulgado em Novembro de 2023, os princípios da IL parecem ser bem mais disruptivos do que a sua campanha de comunicação.

    Sara Battesti é estratega e especialista em Comunicação


    Avaliação do cartaz

    Design: 4/5

    Impacto: 4/5

    Eficácia: 5/5

    Média: 4,33/5


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  • Caminha: crónica dos lugares

    Caminha: crónica dos lugares

    A cor não sobrevive ao tempo.

    Não é que tudo tivesse aquele tom empastelado de areia compactada (naquele tempo). Não é que penas de tinta sépia esbatessem as nuvens, e a chuva estivesse sempre próxima, a enublar as vidas, enquanto carvão gasto, e espalhasse cinza pelos caminhos (daquele tempo).

    É que os anos amarelecem as coisas, como o ar oxida a maçã mordida. Então, a cor, não sobrevive ao tempo. E no fundo, cá dentro, ficamos a cismar que as pessoas viviam assim, sem azuis, verdes, laranjas, rosas, vermelhos.

    Quando toquei as cartas do território desde Vila Praia de Âncora até Caminha, passei logo as mãos pelo corpo da Serra d’Arga. Como quem acaricia. Quando fatiei aquela mancha, curva a curva, para empilhar cada camada como quem constrói um mundo (sobre o mundo, dentro do mundo), ganhei-lhe carinho.

    Enamoro-me profundamente por tudo o que conheço. Até do feio. Sinto-lhe o suor, o esforço, o anseio, e não o respeitar é uma desonra. Minto: será desonra? Traição? Violência, talvez, pelo menos.

    Por isso não sei se vos digo a verdade, mas em tudo, pelo caminho a Caminha, encontro beleza. Com carinho. Surgem casas, pendendo a cabeça ou os braços, de forma torta, desengonçada (têm as casas um rosto? Têm as casas mãos?). No fundo, se vivas e habitadas, até me aquecem a alma. Ali há gente, aquela casa é lar de alguém.

    Passei curvas apertadas e cruzei aldeias. Por exemplo, Argas, onde um carneiro me olhou com ar inquisidor (avisando). Passei dias no Mosteiro, perdida entre ribeiros, um bosque implantado por força de vontade e escadarias transformadas em monte.

    Passei noites num canto da Mata do Camarido, a ver se assim sabia o que era ser de Caminha, a raia, a irmandade silenciosa com Galiza, a Ínsua, Camposancos na saída do ferryboat.

    Sabem, Camposancos foi muitas coisas. Um edifício, só que tanto foi colégio jesuíta, como armazém de cereais, como campo de concentração de Franco, ali, de olhos postos em Portugal. Casas que podem ser assim, cascas de vários espíritos. Manoel de Oliveira ainda estudou ali, há umas vidas atrás.

    Venci a barra na mudança de maré a bordo de uma Gamela timonada por um senhor alcunhado de Garrafão. Fiz-me de forte, não sabia nadar, naquela altura, mas seria certamente imortal e, mais a mais, o Minho ali é nosso e brandura lusa não me ia encurtar a sentença.

    Mas a cor não sobrevive ao tempo.

    Talvez assim as memórias fiquem todas a preto e branco. E sépia (depende de lentes, papéis, químicos?).

    De Caminha ficaram-me meses de ondulação nas vagas, matas auspiciosas, a energia de então, os pastéis de lá, o Mosteiro, a Arga de São João, a água, a neblina (a água, em névoa), Santa Tecla (a água, ainda), as pedras (com água), uma ruína a caminho de Vilar de Mouros, as azenhas (moendo água), os caminhos encharcados.

    Sempre água.

    A cada volta.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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  • Negrita: take 1

    Negrita: take 1

    Curto, cheio, em chávena larga, abatanado, pingado, duplo, garoto, com cheirinho, em chávena fria, em chávena escaldada, descafeinado, carioca, fraco, com canela, com adoçante, em chávena pequena, em chávena de plástico, com pingo de água fria, duplo pingado, duplo cheio, sem açúcar, sem começo, copo alto, italiana, bica, cimbalino, sem espuma…

    Cada um de nós tem uma forma muito pessoal de apreciar um café, e por cada forma de o apreciar, há uma expressão bem específica de o pedir. O meu pai gosta de café à Benfica (muito fraquinho), já eu por norma peço meia chávena.

    O meu grande amigo Ruy, que é um dos poucos portugueses que resistem a viver no centro de Lisboa, programou uma sessão de trabalho na sua casa, perto da Graça. Tendo eu vindo de Mafra já a sentir a falta de cafeína, sugeri que fôssemos tomar uma bica antes de nos embrulhar numa intensa sessão de não-trabalho. Como é habitual, antes de começarmos, gostamos de conversar e tentar compreender o mundo, uma tarefa que, por si só, é um trabalho a tempo inteiro. O Ruy propôs irmos à Pastelaria Tebas, na Rua Heliodoro Salgado, que faz esquina com a Angelina Vidal. E como me propus fazer um artigo sobre uma marca de café, imaginei logo que poderia começar por este. Montámos a Yamaha 125 SR  verde-garrafa dos anos 90, e, como tivemos de parar numa passadeira, demorámos 45 segundos a chegar. 


    Mesmo ao desmontar da mota, notei logo que se tratava claramente de um negócio familiar em que ainda se pode usufruir de um ambiente de bairro resistindo à lógica de pastelaria para camones. Com uma boa variedade de bolos e pães semi-industriais, este estabelecimento é despretensioso saltando à vista a higiene e o cuidado com que os itens são apresentados. A decoração é a convencional das antigas pastelarias, tornando-a quase numa raridade em Lisboa, onde florescem estabelecimentos de paredes negras e de balcões feitos em OSB. Quadros de pastelarias parisienses, autocolantes de pastilhas e Ice Tea vão dando alguma cor às paredes claras.

    O café que esta pastelaria oferece torna-a numa preciosidade, resistindo à padronização trazida pelo turismo maciço e pelas marcas que se apoderaram do mercado. O uso do lote Rubi da marca Negrita ao longo das décadas destaca-se como uma característica única e especial, uma verdadeira mais-valia para apreciadores de café como eu, traduzindo a oferta quase singular em Lisboa. Contudo, um aspecto a considerar é que a iluminação apresenta uma tonalidade excessivamente branca, tornando-se desconfortável passado alguns minutos. Os cafés «moderninhos» destacam-se nesse aspecto, dedicando uma atenção considerável ao design de luz. Além disso, como não oferecem o Correio da Manhã para leitura, não requerem uma intensidade luminosa tão elevada.

    Como recentemente deixei de fumar, dei-me ao luxo de me sentar e beber o café sem a pressa de o acabar para ir fumar o meu Davidoff Classic. Mas caramba, que saudades! Num mundo perfeito, o cigarro seria um medicamento para a hipertensão sem efeitos secundários. Pedi à Soraia dois cafés em meia chávena. Para garantir cafés perfeitos, solicitei-lhe que abrisse o vapor da máquina por dez segundos, de forma a obter os 9 bar de pressão e os 90º C. Surpreendida, mas ainda assim com um largo sorriso, foi ela própria prepará-los. Durante o processo, olhámos para a televisão que estava ligada, felizmente sem som. Não entendo por que raio as pastelarias e restaurantes em Portugal têm por hábito manter as televisões acesas. Já não aguento aqueles extraterrestres que invadem permanentemente as nossas vidas. Conhecemos melhor a cara do Zelensky do que a dos nossos próprios filhos. Num mundo equilibrado, teríamos uns óculos escuros para ler e ver todas as mensagens subliminares que nos são dadas pelos meios de comunicação, tal como no filme de 1988 de John Carpenter They live. Com ele veríamos seguramente o Elon Musk sem os artifícios humanos.

    Ilustração de Ruy Otero e Bruno Cecílio, a partir da identidade visual da marca de cafés Negrita.

    Comecei a sentir no ar a essência de L’Eau D’Issey combinada com o aroma dos cafés pedidos. Fomos salvos pela Soraia, que, ao entregar as bicas, nos fez desviar o olhar do secretário-geral da OTAN, cujo nome nem sei, que entretanto anexou o ecrã. O café vinha exemplarmente tirado. O creme com uns 3 milímetros de espessura, nem muito claro nem muito escuro, com uma óptima consistência e cor. No primeiro gole, senti de imediato uma acidez ligeiramente frutada lembrando melão, de amargor equilibrado num corpo elevado e denso. A mistura das variedades robusta com arábica é harmoniosa, sendo o sabor duradouro no paladar. Com o passar dos segundos, comecei a sentir um travo a calcário levemente desagradável. Talvez deva ser hora de depurar a máquina? Um café de qualidade que teria sido ainda mais louvado se fosse acompanhado por um croquete de carne (enquanto ainda for permitido).

    Sem termos combinado nada, apareceu o Tim, que vive ali perto e é frequentador assíduo do Tebas. Enquanto ele saboreava um pastel de nata, e a propósito da conversa que estávamos a ter sobre o poeticamente correcto, sugeriu que fôssemos visitar a fábrica da Negrita, ali ao virar da esquina, na Rua Maria Andrade. Ficou apenas cinco minutos, pois estava atrasado para o trabalho, como sempre, e escolheu tomar apenas o café funcional da manhã. A 80 cêntimos, ainda nos podemos dar ao luxo de satisfazer o vício. Fez-me lembrar a compilação das onze curtas metragens de Jim Jarmush que deram origem ao filme de 2003 Coffee and Cigarettes. Figuras como Tom Waits, Iggy Pop, Jack White e Roberto Benigni, entre outras, exploram uma ampla variedade de temas, enquanto desfrutam de cafés e cigarros.

    Pedi outro, desta vez pingado. Sem todas aquelas complicações do primeiro. A Soraia já tinha entendido que, em relação ao café, sou mais metódico e preciso do que o Froes em relação às infecções respiratórias. O que nos vale é que entretanto ficou tudo bem! Apesar de o ter apreciado com menos atenção, é o pingado que mais recomendo. O leite incorpora muito bem o sabor terroso do lote Rubi da Negrita. Após pagarmos e agradecermos o serviço, saímos pela esplanada em que o inglês era a língua mais falada por entre os clientes que a povoavam. Os computadores na mesa indicavam que provavelmente eram nómadas digitais. Para não variar, a mota só à quinta é que pegou. O fumo agora era outro. O piso estava escorregadio, e, os carris do eléctrico atrapalham sempre. Até lá chegarmos, tivemos de perguntar o caminho duas vezes.

    Ilustração de Ruy Otero e Bruno Cecílio a partir do filme Coffee and Cigarettes.

    Lá demos com o portão da fábrica da Negrita, que completa 100 anos no dia 24 de Março de 2024. Notavelmente, conseguiram manter-se em plena actividade, proporcionando emprego a uma dúzia de trabalhadores que, ao longo de décadas, têm infundido vida e o vigoroso aroma a café a toda a zona de Arroios. A riqueza visual e as fascinantes histórias que começamos a descobrir inspiraram-nos a tomar a decisão de produzir um pequeno documentário, o qual prometemos lançar nos próximos tempos.

    Apesar de o mundo estar virado de pernas para o ar (isto para quem acredita como eu que o mundo tem pernas), e o cancelamento ser a grande tónica desta nova profissão que é o activismo, a Eng. Helena Pina, com o seu manifesto entusiasmo e paixão pelo trabalho, vai continuando a liderar esta empresa familiar contra todas as expectativas, e contra toda a lógica metacapitalista que se apoderou da indústria alimentar. Ao que parece, nos dias de hoje, os vários -ismos favorecem os metaqualquercoisa, pensando que estão a ser anticapitalistas. Auto-Karate Kid!

    Assumindo o compromisso de desenvolver a minha perspectiva no formato de vídeo sobre os Cafés Negrita, por agora evito estender-me sobre estes assuntos. Dependendo eu da Direcção-Geral das Artes e de uma fundação que cresceu financiada por recursos petrolíferos mas que agora generosamente destina um milhão à Greta, opto por manter um perfil discreto e reservado. Não vá o Schwab tecê-las.

    Bruno Cecílio é artista


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


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  • ‘Mea culpa’, jornalista

    ‘Mea culpa’, jornalista

    Como qualquer jornalista, a actual situação dos media preocupa-me por tudo aquilo que representa para nós, profissionais. O esgotamento de um modelo de negócio e o claudicar das redacções enquanto agentes de intervenção e de mudança.

    Nesta, como em todas as crises, não há responsabilidades de um só lado. Não foi só o mercado que mudou, os empresários que se transformaram, o neoliberalismo que deixou de respeitar limites de decência. Fomos também nós que mudámos, aos poucos, sempre levados a reboque das novas formas de comunicação com as quais não podemos rivalizar.

    A nossa profissão está cada vez mais desacreditada junto de quem nos move: os nossos leitores, ouvintes e espectadores. Perdemos muita da credibilidade que nos garantia algum respeito por parte dos vários poderes instituídos e da população em geral. Não faltam estudos a comprovar a degradação da nossa imagem enquanto classe profissional.

    man in white t-shirt sitting beside woman in white t-shirt

    As redes sociais foram uma grande ajuda para essa perda de influência. No entanto, ao fazer delas a nossa própria fonte de noticias, de temas, opiniões e agitação informativa, contribuímos para lhes atribuir um estatuto que não tinham. Enchemos páginas, minutos e horas de emissão com milhares de casos plasmados das redes. Acríticos e fascinados, sucumbimos ao poder de fogo de uma realidade que nos ultrapassava e que não é permeável a critérios jornalísticos.

    A gradual degradação do mercado publicitário, o decréscimo de leitores e de investimentos, empurrou a nossa profissão para lá dos limites do suportável e jornalisticamente sustentável.

    Podemos e devemos criticar os gestores que fazem cortes cegos numa simples e anónima folha de Excel, porque afinal muitos deles nem sequer entendem que o negócio dos media é diferente de todos os outros. Porém, o que é mais difícil de aceitar é que camaradas aceitem, ou se sintam obrigados a aceitar, condições inviáveis para o exercício da profissão e as imponham às suas redacções, sabendo que tal terá efeitos na degradação do qualidade do trabalho produzido.

    Fomos tentando trabalhar com cada vez menos, para fazer cada vez mais. Aceitámos retóricas puramente financeiras, uma, outra e outra vez.

    A cada argumentação de que era preciso cortar, porque as receitas estavam a cair, pactuámos silenciosamente com lógicas de racional duvidoso.  Acredito que muitas das vezes o fizemos para tentar salvar postos de trabalho, camaradas e projectos. Mas nunca nos interrogámos se não estaríamos a comprometer a essência da nossa profissão, a independência e a credibilidade. Fomos aceitando tentar salvar uma árvore e depois outra, sem pensarmos nunca na floresta.

    people having rally in the middle of road

    Directores, coordenadores, editores, os cargos de chefia, fomos sempre cúmplices de uma lógica de despedir, não renovar e substituir o melhor pelo menos mau. Abdicámos de profissionais com carreira e saber para poder contratar mão de obra barata, sem nos interrogarmos se não estaríamos apenas a adiar um problema. Poucos são os grandes projectos de jornalismo que sobreviveram e recuperaram desta esta lógica suicida.

    Quando o “monstro” chamado Internet ajoelhou a imprensa mundial nos anos 90, o desespero foi grande nos Estados Unidos (EUA). A perspicaz fórmula “mais por menos” fez o seu caminho, com milhares de despedimentos. Nos últimos 20 anos, os EUA perderam um quarto dos seus jornais, 57% da sua mão de obra jornalística.

    No entanto, quando um jornal de referência mundial resolveu salvar-se do abismo por via inversa, muitos outros o seguiram, investindo no saber e na experiência que os podia prestigiar, não em mão de obra mais barata. Foi assim com o New York Times, depois o Washington Post.

    Portugal é um outro mundo, sabemos, mas de cedência em cedência, qual uma velha história popular,  tentámos ensinar o burro a viver sem água e, agora que ele está quase a aprender, corre o risco de morrer de sede.

    Não podemos ignorar que ao longos das últimas décadas fomos os únicos responsáveis por todos os atentados aos mais básicos princípios do jornalismo. Violámos todos os códigos éticos para ganhar vantagem, para conseguir mais um “exclusivo de primeira mão”.  Foram muitos os exemplos que minaram o nosso património de respeito e credibilidade, agora tão pouco valorizado. Fomos nós que o fizemos, não os gestores, não o mercado.

    Selective Focus Photography of Magazines

    Se de uma forma geral a oferta jornalística é cada vez mais superficial, espectacular, pouco sustentada, tecnicamente deficiente, acrítica, seguidista das agendas dos poderes políticos e das agências de comunicação, sem rasgos nem imaginação. Se os vários media se tornaram cada vez mais iguais, miméticos e cinzentos, só a nós se deve. Devíamos ter conseguido lutar por melhor jornalismo, melhores profissionais, melhores condições e real autonomia editorial.

    Quantas vezes não nos apercebemos de ingerências inaceitáveis na nossa cadeia produtiva de notícias e pouco fizemos para as contrariar, expor ou combater? Tais práticas sempre existiram, mas numa outra escala e noutras circunstâncias. Hoje, a fragilidade contratual das redacções é terreno fértil para atropelos, já tidos como aceitáveis. E assim fomos vivendo estes anos, mudando, encolhendo, em direcção a nada, em direcção a isto que vivemos hoje.

    O jornalismo tem vindo a ser encurralado e tem estado a ceder a incontáveis pressões, algumas delas novas, mais eficientes, mais discretas. Os anunciantes, os departamentos comerciais, os financiadores e os “parceiros” estratégicos, ganharam uma influência inusitada nas redacçōes dos media nacionais. Não a tinham a esta escala nos anos 90, porque havia dinheiro suficiente para garantir a independência de jornais, rádios e TV”s. Ao longo deste tempo não nos soubemos defender. Os nossos organismos de classe fecharam os olhos a claros atropelos da lei e dos códigos profissionais, legitimando a indiferença e irrelevância de conduta. O mesmo fizeram as instituições fiscalizadoras do sector.

    silhouette of woman holding rectangular board

    Aqui chegados, lutamos todos por um lugar ao sol, uma réstia de luz que nos permita fazer um pouco mais daquilo que sabemos e gostamos. Fazemo-lo com uma esperança decrescente no futuro da profissão. Não acredito em jornalismo livre sem liberdade financeira, sem estabilidade contratual, assim como não podemos acreditar num futuro sem uma profunda e séria autocrítica, sem redacções fortes, reivindicativas e com memória. Mas isso custa aquilo que dizem não haver, dinheiro.

    Isto é quase como afirmar que o jornalismo é um luxo. Em boa verdade já o foi, mas era assim que ainda o deveríamos entender dada a sua importância social. Caso contrário, estaremos a caminho do lixo, pois o preço da jorna já disso nos aproxima.

    Paulo Salvador é jornalista (CP 827), editor executivo e grande repórter da TVI


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM. Neste caso, o director do PÁGINA UM não apenas subscreve como aplaude este texto, considerando que constitui um bom ponto de partida para uma reflexão séria sobre a crise no jornalismo, que começa na própria classe, e sobre a qual há muito a mudar.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • Palavras de todos os dias

    Palavras de todos os dias


    Agora

    Experimente ouvir uma pessoa na televisão, na rádio, num contexto público ou privado, a falar durante quinze minutos. Quantas vezes disse «agora»? Com o sentido de quê? De «mas», de «por outro lado», de elemento de ligação de raciocínios quando tacteia em busca das palavras, de coisíssima nenhuma.

    Exemplos deste (ab)uso que devemos evitar:

    «Concordo consigo… Agora… em relação à crise, eu não penso que haja crise alguma.»

    «Nada tenho contra a Paula… Agora… não me casava com ela.»

    «Os extremismos têm crescido. Agora… a melhoria da qualidade das instituições e da percepção que os Portugueses têm delas é importantíssima neste combate aos extremismos e populismos.  

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    Amigo

    Por preguiça, por macaqueação, por jactância («oh!, eu tenho muitos amigos, eu sou encantador»), por pudor em usar «um conhecido meu» (como se isso escondesse atritos e má vontade), por contaminação do mundo digital, em que aqueles que até podemos nunca ter visto na vida são «amigos» (repare-se que há tantas pessoas que têm milhares de «amigos» nas redes sociais e repare-se ainda na quantidade de vezes que ouvimos: «é meu amigo [nas redes sociais]», «não tenho a certeza, mas acho que somos amigos [nas redes sociais]»); por tudo isso, a palavra perde peso e solenidade — perde importância.

    Se tudo é especial, nada é especial.

    Se amamos tudo, não amamos nada.

    Se tudo está sublinhado, nada está sublinhado, porque o efeito diferenciador se perdeu.

    Se Fulano tem 50 mil «amigos», muito provavelmente não terá nenhum.

    Porque é o diamante um bem tão valioso?

    Porque é raro.

    a black and white photo of a wall

    Arrasar

    É impressionante o número de ocorrências, na linguagem publicada, na oralidade (seja num contexto público ou privado), deste verbo. No jornalismo, no mundo digital (notadamente nos títulos dos vídeos), o verbo superabunda. Se a equipa ganhou confortavelmente a outra, a equipa arrasou. Se Fulano esteve melhor numa discussão do que Sicrano, Fulano arrasou. Se Fulano criticou outro ou alguma coisa, Fulano arrasou outro ou alguma coisa. Se uma pessoa publicou fotografias sensuais ou se escolheu uma boa indumentária, essa pessoa, claro está, arrasou.

    Evento

    Saberão os jornalistas que, antes do moderninho anglicismo «evento» (saco em que cabe tudo), não se sentia falta de vocábulos para descrever acontecimentos, iniciativas, certames, actividades, exposições, mostras, espectáculos? (Revisitem jornais «antigos».) Que a diversidade vocabular e a consequente precisão informativa eram outras?

    A lógica é esta:

    — Ó pá, não sei bem do que se trata…

    — Se não sabes bem o que é, põe aí que é um evento.

    Dá para jantares, encontros de antigos alunos, corridas, bailes, noites em discotecas, observação de aves, palestras, festivais da marmota, tertúlias, discussões, colóquios, simpósios, manifestações, acrobacias de golfinhos.

    Quando não sabemos bem o que dizer, como definir, vamos ao saco das palavras e expressões que dão para tudo.

    green ceramic statue of a man

    Parafraseando Miguel Esteves Cardoso a propósito de outra expressão, quando dizemos «dentro do género», encerramos o assunto e o nosso interlocutor fica na mesma. O filme é bom? Dentro do género. Gostaste do professor? Dentro do género. Come-se bem lá? Dentro do género. Ele é giro? Dentro do género.

    Pecado mortal das traduções: passar sempre event para evento. Sim, é só acrescentar uma letrinha.

    Que dizer quando já temos os Grandes Eventos da Antiguidade e da Idade Média (colecção de DVD)? Que dizer quando lemos «eventos traumáticos», em lugar de «experiências traumáticas»? Etc., etc., etc.

    Expectativas e seus parentes

    «Anseio», «vontade», «desejo», «esperança», «previsão», «era o esperado»… alto lá! Tudo isso para quê? Hoje, bastam as «expectativas», que ainda têm os familiares «expectante», «expectável» e «expectar» a acompanhá-las diariamente.

    «O que nós expectámos aconteceu. Era o expectável.»

    three small figurines sitting in a row

    O horror, o horror.

    Repare ainda no seguinte: ora se usam as palavras «expectativas» e «expectável» com o sentido de aquilo que se desejava, ora com o sentido de aquilo que se previa. Amalgama-se tudo, é mais fácil. O que se transmite não vai ao encontro do que se pensa? Oh, purismos e preciosismos da treta.

    Impacto

    É oficial: já não há efeitos, consequências ou repercussões. Já não há choques ou embates. Só há impactos. Impactos que impactam. Impactos que são impactantes.

    Experimente passar um dia sem ler e ouvir esta praga. Um dia? Uma hora.


    Manuel Matos Monteiro é escritor e director da Escola da Língua


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Reclusão: uma crónica em tom de divulgação

    Reclusão: uma crónica em tom de divulgação


    Pertenço à APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso. É uma associação de direitos humanos que luta na franja mais complexa da rejeição e da demagogia. Uns utilizam as penas de prisão como solução de inevitabilidades, como desincentivo ao crime, redução de maus comportamentos. Claro que inibitório é utilizar o medo como fazem os talibans. Queremos isso para nós? Claro que as ditaduras tendem a ter menos criminalidade e muito mais policiamento. Queremos ditadura?  

    É nessa linha que, em Abril de 2024, nos dias 6 e 7, lançamos um Congresso para debater o sistema prisional, bem como o sistema judiciário e as políticas para a saúde mental. É um conjunto de seis mesas de debate e apresentações onde estarão vinte pessoas de reconhecidos conhecimentos, idoneidade e inigualável coerência na luta pelos direitos humanos.

    Cintaremos com a presença do Professor José Manuel Silva actual presidente da Câmara Municipal de Coimbra, do Arquitecto Jorge Mealha, do Engenheiro Almeida Santos da OVAR, entre outros advogados, médicos, arquitectos, engenheiros, artistas, jornalistas e entidades envolvidas nesta temática. 

    man in black long sleeve shirt raising his right hand

    Vamos discutir a Saúde no contexto de ausência de liberdade. As crianças e as mães nas prisões. A estrutura e desenvolvimento do sistema prisional, desde a arquitectura das cadeias até à importância da reintegração. Se existem, onde se devem localizar os presídios? Aqui se inclui a sobrelotação dos estabelecimentos, a organização e gestão do sistema prisional, o regime de execução das medidas privativas da liberdade, a reinserção social, as religiões no seio prisional, a tecnologia no contexto das soluções para a verificação do cumprimento de penas.

    E tantas outras questões. Por exemplo, carecemos de tantas prisões? Podemos pensar a Inteligência Artificial num modo de suprimir os presídios? Até que limite podemos utilizar a tecnologia? Pulseiras com medicação? Controlo de distância com descargas punitivas de aviso? Devemos usar sempre a limitação de liberdade como castigo? Faz sentido Portugal ser o país com mais longas prisões preventivas e menor percentagem de acusações aos que estiveram em reclusão? Faz sentido manter a inimputabilidade das decisões dos juízes e do Ministério Público?

    Estaremos a discutir urbanismo e lugares adequados para este tipo de instituições. Estaremos a discutir o que é um sistema punitivo e os mecanismos de prevenção e antecipação da violência. Não pode estar de fora a inocência que vai para a cadeia, nem a permissividade de processos sem fim. Um inocente preso é uma barbaridade sem nome. Um doente num presídio é uma deformidade.  

    A APAR arrisca assim um congresso internacional onde deseja ouvir e dar a conhecer pessoas que pensam e discutem há décadas os sistemas prisionais. As prisões deverão servir como lugares de expiação de castigos, ou como lugares de reinserção, ou ainda como a montra mais dura da exclusão social? O que é que penalizamos e podíamos resolver com políticas adequadas, na toxicodependência, na violência de género, nas questões de trânsito? 

    man holding chain-link fence

    Sabemos hoje que o sistema judicial e as políticas de saúde mental estão diretamente ligados ao sistema penal, e por isso nunca poderiam ficar de fora desta reunião. Também a saúde terá, por isso, de estar neste debate. A Saúde nas prisões insere-se num conceito moderno de Saúde para todos, desde a componente psicológica, emocional e física, nunca esquecendo a alimentação e o trabalho e o desporto. Quem sabe se este assunto não seria uma excelente base de desenvolvimento de uma solução sem grades e sem guardas?

    Sou desta Associação e sou deste desafio incrível: o debate e a discussão na franja da exclusão, na zona de fronteira onde se perdem votos e se ganha demagogia.

    Diogo Cabrita é médico


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Davos Hotel

    Davos Hotel

    Pedro Sanchez toma o pequeno almoço enquanto passa a vista pelo seu El País. Depara com um par de fotografias da sua cara bastante animadoras, certamente dadas pelos seus spins, que têm excelentes relações com o jornal castelhano. Este Presidente de Governo tem muito know-how, dizem os experts. Prepara-se para ir de Falcon até à Suíça, onde será um dos participantes. Entretanto, compõe a gravata com a qual se apresentará no Fórum, embora tenha durante o Verão pedido de urgência aos Espanhóis para não a usarem por causa do clima cambiático (alterações climáticas na boca da dissidência espanhola).

    Há uns dias, aconteceu o Fórum Económico Mundial de 2024, em que se reúniu a flora e a nata da política e economia mundial, uma «coisa» fundada em 1971 por Klaus Schwab (KS), ainda que tenha começado por se chamar Fórum Europeu de Gestão, mas desde 1973 que tem o seu actual nome. Ainda é o mesmo presidente 53 anos depois. Klaus Schwab é também membro da importante família Rothschild. Como sempre, e mais uma vez, além de outros assuntos fulcrais para o nosso tempo de bem-estar e insegurança, falou-se da pegada de carbono, a grande obsessão de Davos e de Schwab, embora seja já comum, nomeadamente através de activistas da Net ligados muitas vezes às extremas-direitas, (pelo menos, assim denominados pelas extremas-esquerdas), a crítica à quantidade de aviões privados dos actores principais e secundários que aterram na zona. Neste departamento, e muito estranhamente (ou não), as «esquerdas» (ou sinistras) não se metem. Não querem voar nesses aeroportos cheios de algoritmos humanos desinformativos que são a maioria dos canais de YouTube com visibilidade. Escrevo isto, mas posso assegurar que não sou de nenhum extremo político. Aliás, digo já que nem sou de direita, nem de esquerda, sou normal.

    Queres ver os últimos e impressionantes modelos de aviões do mercado? Dá uma volta até ao aeroporto, leva os teus óculos escuros cheios de style e echa un vistazo, como dizem os Espanhóis e mesmo os Catalães. Vais ficar surpreendido com os últimos modelos ultra, mega, espectacularmente sónicos desses ecomultimilionários, enquanto descansam as asas nesses não-lugares cheios de estilo pós-moderno. Esses jactos têm, no mínimo, só para abrir o apetite, serviços de mensagens de texto e telefone NetJets Connects, tecnologia Wi-Fi e Bluetooth à discrição, sistemas de entretenimento em voo on-demand, tablets iPadCozinha completa, com assistente de bordo, chega? Ou os Falcon 50, por exemplo, cujo modelo PW307A tem, só para começar, a Honeywell a trabalhar para a arquitectura de avionics, tem Auxiliary Power Unit (APU), e sistema de gestão do ar, brincamos? Parker Hannifin para o sistema gerador de energia e freios, e a TRW Aeronautical Systems para os sistemas de Flap hidromecânico… Não é preciso dizer mais nada, pois não?

    O Fórum, neste ano, ofereceu-nos sinais de mão beijada acerca da direcção das políticas no imediato. Se o mundo fosse ainda mais redondo e justo, saberíamos, pelos canais mainstream oficiais, mais sobre esses encontros de contornos duvidosos, não ignorando de antemão, que muitas coisas são sempre negociadas por baixo da mesa, o que não é nenhuma ilegalidade em si, e se for, também quem é que está acima daquela gente?… Só Deus… mas como vi num programa da National Geographic, Ele não existe, por isso, não se pode fazer nada. Não estou a ver também a bófia a entrar por ali, muito menos a bófia suíça, que deve andar preocupada com canivetes o tempo inteiro.

    A maior parte das pessoas que conheço, quando muito, acha que Davos é uma estância na Suíça em que se podem partir umas pernas em cima de um ski e pouco mais. Quanto a partir umas pernas, talvez estejam certos, economicamente falando, para ser bonzinho, já que não estou a falar da Cosa Nostra nem de Francis Ford Copolla. Nem tão-pouco, a realidade atingiu o glamour do cinema. Se há gente sem glamour é aquela, basta tirar uma foto ao KS e ficar à espera da revelação para percebermos que, quando muito, estamos perante um daqueles vilões dos anos 70 com passado duvidoso, que fumam o cigarro entre os dedos anelar e o médio (nunca percebi se os nazis fumavam mesmo assim ou se é uma criação do cinema).

    O sotaque kissingeriano de KS é, por si só, assustador. Também é verdade que a maior parte das pessoas não sabe quem é o KS. Para alguns mais velhos a quem perguntei, foi um jogador do Fortuna Düsseldorf, dos anos 80 do século passado. Errado, metam-lhe uma bola nos pés e vislumbrará logo um planeta verde (negro) cheio de futuro, em que não terás nada e serás feliz, expressão inventada pelo menino, que entretanto fez parte de um vídeo com os dez novos mandamentos da Agenda 2030, mas já retirado de circulação. Os conspiradores e fascistas da Net devoraram e partilharam até à medula esse vídeo(game), a ponto de termos até tido pena do pobre KS, que para alguns, muito se esforça para que tenhamos um futuro verde sustentável, assegurado. Ele certamente quer morrer com a consciência tranquila de que fez tudo para nos proteger. Como não sou romântico, fico-me só pela parte do fez tudo. Uma vez, tentei melhorar a imagem do KS no Photoshop, e ainda veio pior. Talvez só a Inteligência Artificial lhe consiga melhorar a imagem. Ele agora também nos quer salvar da má imagem da IA, quando usada e ensinada pelos desinformadores.

    Estará mesmo o mundo a precisar de tanta salvação?. O António Guterres não fala de outra coisa. O planeta é um pântano.

    Web 2.0 já não nos dá a hipótese de ver sempre o sol sem quadradinhos quando nos apetecer. E esperem pela Web 3.0, ela virá como um asteróide a alta velocidade contra o planeta, que por acaso, para uns nem redondo é.

    Às vezes, pergunto-me, se esta gente não se achará uma espécie de anjos na terra, ou anjos caídos, ou se não serão mesmo um bando de psicopatas que perdeu o norte e agora está com medo de perder a Antárctida.

    A verdade é que estas elites estão a entrar a pés juntos à boa maneira do Paulinho Santos, é tudo muito rápido. Agora vem aí o vírus X, outro tema de passadeira vermelha, mas ainda não sabem bem o que é, ainda que nos garantam que é vinte vezes pior do que o coronavírus, e pelo que imagino, já terão na manga, medidas vinte vezes mais radicais do que as «choninhas» do covid, que até deixavam as pessoas sair, se fosse para ir comprar Sonasol ao Pingo Doce.

    Klaus e companhia, neste ano, estão a passar mensagens e ideias, de forma que se perceba efectivamente que têm um projecto bem definido.

    O pior é que não é nada bom para as pessoas a curto prazo, vejamos: combate ruidoso à desinformação, que já se sabe que é tudo aquilo que não coincide com as ideias deles; alterações climáticas, que vão trazer mais restrições às pessoas em grosso modo e à classe média particularmente; vírus que agora será o X, um vírus virtual hipotético, mas que infunde vinte vezes mais medo; combate às guerras, embora a guerra à desinformação seja considerada a principal; imigração; mundo árabe; Irão… Enfim, urge combater os maus, sendo eles naturalmente os bons. Tudo isto até soa a cómico, uma vez que vivo finalmente em Gotham City, e posso desfrutar do filme por dentro sem o incómodo dos óculos RV, que ainda não acertaram no alvo, já que desfocam demasiadamente e causam muitas tonturas, para não falar da porcaria do joystick. Não sei é se há outra realidade à minha espera.

    Mas acho que as pessoas estão a perceber aos poucos que nesta saga, infonarrativa, aos «bons» também se vira, de vez em quando, o feitiço contra o feiticeiro. Sim, a IA faz ricochete e tem efeitos boomerang.

    Andam preocupados com o GPT, e por isso o seu CEO estará lá neste ano. Outro actor importante desta saga é Yuval Harari, um filósofo israelita que pinta uma realidade bastante virtual com hackeamentos radicais à mistura e deuses na Terra, que até imaginamos que seja a velha guarda do costume mais os outros invisíveis que ninguém há-de conhecer, o que é bom para a especulação matrix da nossa era, e para os conspiranóicos do QAnnon, de origem duvidosa. Há quem jure a pés juntos que esta espécie de organização se trata de dissidência controlada, mas também quem o jura pertence à esfera da conspiração. O mundo já é a sua própria conspiração e, às vezes, respirar ar puro digital torna-se difícil, se não tiveres um dogma prêt-à-porter a dar-te guarida… digital. Esqueçamos o puro.

    Será tudo isto uma questão de entretenimento? De quando em quando, pergunto ao espelho negro que tenho em casa, à imagem da série de televisão (que também tenho em casa com o mesmo nome), e não percebo bem se ainda estamos na sociedade do espectáculo debordiano, que as esquerdas sociais tanto citavam, ou se já não somos mesmo a carne para o canhão do cinema moribundo com guiões de série B pouco recomendáveis.

    É que eu não preciso de mais entretenimento. Não fui daqueles que se agarraram à Netflix nos confinamentos, nem muito menos dos que fizeram o pão que o Diabo amassou, enquanto os padeiros faziam as carcaças e as vianinhas do costume, sem câmaras a bombardear as redes exibicionistas. Tanto entretenimento também farta. Agora, queria um bocadinho de descanso. E já agora paz como pediria o Mister Universo.

    Sem dúvida, o globalismo é isto. Eu até gosto da palavra, mas quando percebi que o globalismo é a tentativa de controlar a globalização, ou seja, de controlar o livre intercâmbio de recursos, ideias, pessoas e produtos, fiquei a achar que estes voadores hipersónicos, na verdade, nunca o quiseram, ao contrário do que se pensa, porque isso implicaria diversidade, e não hegemonia das multinacionais às quais pertencem, tendo assim os pobres dos Estados na mão, com a conivência dos políticos e das políticas, em que se inclui a comunicação social, claro. Isto tudo baseado num sistema económico fraudulento na sua essência, que está alicerçado na ideia de dinheiro fácil criado do nada, sujeito a crises recorrentes controláveis e até antecipáveis como o vírus X. Mas que se mantém, porque permite os agarrados à liquidez (e estamos a vê-lo com Wall Street), a manutenção de modelos de negócio obsoletos que só podem funcionar com a manipulação dos juros.

    Também percebo que é difícil parar o tsunâmi, sobretudo quando ele vem cheio de ideias de paz e de amendoeiras em flor, em que um pássaro vale mais do que uma pessoa, e até do que mil palavras. O pior e mais estranho é que são pessoas que votam, e não pássaros. Este sistema, quanto a mim, já deu sinais de ser problemático em 2001 e causou crises como a de 2008, que trouxe consequências graves para Portugal, deixando os Portugueses sem frangos no congelador, trocando-os pelos ordenados. O mundo ficou em respiração assistida, como os doentes covid anos mais tarde. O problema, como sempre, são os efeitos secundários do uso e abuso de tubos a entrar-nos pelos pulmões. Começámos finalmente a acelerar com uma scooter numa auto-estrada, mas em segunda. Já para não falar da inflação e da corrupção institucional. E agora usam como argumento a religião climática que até vem pôr Picassos em apuros, não fossem os vidros hiper-sofisticados a proteger as obras dos climáticos do lítio. É bom ter inimigos externos contra os quais não podemos lutar.

    Pessoalmente, tento lutar contra as alterações climáticas e até contra o clima, embora tudo me pareça cada vez mais gelado na aproximação (aludindo a um antigo jogo da minha infância), mas não sei muito bem como, se isto está sempre em mudança. Ainda pensei em comprar um carro a lítio, sabendo também que o lítio é a substância usada para as crises disfuncionais da bipolaridade. Ainda faria um dois em um, antecipando a crise nervosa que virá inevitavelmente, depois de perceber definitivamente que estes carros poluem sete vezes mais do que os Vauxhall Deluxe dos anos 70 do século passado. Ao menos, nesses, simulávamos assaltos a bancos como nos filmes, e a brincar, uma vez lá dentro, pensávamos que éramos gangsters, longe de imaginarmos fóruns de Davos. Eram cá umas banheiras… que hoje só me fazem lembrar, por livre associação, água ou a falta dela. Mas abro a torneira e saem-me imediatamente inúmeros Vauxhalls em catadupa. Ou melhor, segundo os conspiradores, água cheia de metais pesados.

    É tudo muito confuso. É tudo associação, é tudo psicanálise, é tudo fado. É tudo infância.

    Acho que as alterações climáticas são uma inevitabilidade. A esquerda caviar acha que não, acha que podemos ficar sempre com sol à vista sem que produza queimaduras. Basta… não consumir. Problema do capitalismo. Então mas Davos é o quê? Não me parece que os actores cheguem de trenó nem lanchem uma tostinha de alface com queijo Philadelphia.

    É frequente pensar, que esta esquerda sensível é composta por uma espécie de neoliberais… de esquerda… como Davos. Mas também há quem tivesse previsto este romance. O que ninguém previu, que eu saiba, é que o Bill Gates e o Bill Clinton, dois frequentadores assíduos do Fórum, não parassem de entrar no Lolita Express como quem entra nas Amoreiras, e se viesse a descobrir. Mas não sei se as Amoreiras são uma boa metáfora. São grandes, altas e estão um bocado envelhecidas. Há coisas que convém não dizer nesta democracia totalitária. A verdade é que ambos os Bills têm muito que dizer sobre o Fórum Económico Mundial. Uma vez que falei neles, também devo dizer que este ano, os organizadores garantiram que não haveria prostituição de luxo, à semelhança do ano anterior. O Fórum é assumidamente feminista.

    Mas a ementa deste Fórum, foi o ataque às redes de desinformação, ainda por cima em ano de eleições trumpistas.

    A ideia, no fundo, é que a opinião pública seja igual à opinião publicada. Se não for assim, seremos dissidentes e agentes da desinformação. Tenho a certeza de que este texto, mais tarde ou mais cedo, caso seja lido por um algoritmo, será varrido do mapa. Rock and roll hoje, só com camisolas da Zara. Tenho uma dos Clash comprada lá. Mas também tenho uma da NASA. Na pós-modernidade, é tudo uma festa, desde que não digas mal da Pfizer e da Apple. Tens de concordar com o Great Reset, caso contrário és um conservas de primeira apanha. Great Reset é um livro escrito por KS, e publicado três meses depois do início da pandemia. Só um génio para escrever em três meses um livro daquela envergadura e importância, que explica abertamente que o grande cancro da nossa era somos nós, os humanos. Até parece que ele não é!…

    Um dos temas preferidos destas elites foi precisamente o da desinformação. Discutiu-se a ideia de dares os teus dados primeiro para acederes à Net, tipo, dispara primeiro e pergunta depois à boa maneira do Dirty Harry, que por sinal, também lutava contra os maus. O próprio Bush dizia que se não aceitasses a invasão ao Iraque, estavas contra os Estados Unidos, e se dissesses que o país do Saddam podia não ter armas nucleares, eras persona non grata. Ou estás connosco ou és contra nós, e se fores contra, o teu avatar vai direitinho para a prisão do silêncio. O que vale é que eu sou o meu próprio avatar e raramente discutimos em público.

    De vez em quando, penso se não terão mesmo administrado clorofórmio à grande maioria da população, uma vez que parecem tão absurdos certos paradoxos vindos destes encontros. Não digo que dormir não seja bom, mas por vezes, convém acordar para desentorpecer as pernas, isto para não falar do cérebro. Por outro lado, se a grande maioria, pelo menos em Portugal, não se revela crítica destes paradoxos, pode querer dizer que até está tudo bem.

    E os académicos, onde andam os académicos? Se calhar, estão todos a jogar na Académica, que anda a arrastar-se por ligas menores há muito tempo, sem nenhum fulgor. Efectivamente, não estou na cabeça de milhões de pessoas para o saber, mas também não quero que esses milhões invadam a minha. Para isso, basta não ver televisão e não ler jornais. Quanto às redes sociais, também não sou grande adepto. Não gosto de discutir penáltis nem foras-de-jogo, prefiro meter uns golos de quando em vez, nem que seja na própria baliza.

    O mundo está a precisar de um checkup. Parece que estamos como no Titanic: enquanto o barco se afundava, ainda havia passageiros a fazer planos para o futuro. Estamos na era do complexo Titanic. O mundo é uma selfie meio desfocada. Mas eu não. Eu vejo o guião como literatura. Sempre é mais libertador. Hoje é tudo uma questão de dados. Estás sempre a enviá-los, são a tua corrente sanguínea. Os dados são o poker, os truques és tu. Se quiseres, ou não, és o próprio produto. A diferença é que ninguém tem trinta dias para a reclamação. Os dados, para mim não são o lixo, são os camiões do lixo todos a trabalhar ao mesmo tempo. Os dados são as discotecas em que os cavalos nunca se abatem. Estás sempre ligado à corrente. Se a corrente vai para um lado, embora para esse lado. Só um estúpido é que rema contra a maré. Já não há bem marés. Hoje há mais marinheiros e bots. Há mesmo mais bots do que marinheiros. A táctica é seres mais dados do que os próprios dados. Ser mais banqueiro do que os banqueiros. Seres um único e grandioso dado.

    Um BOT-PLUS.

    Enfim, ser o próprio Banco e ficar lá sentado à espera de que tudo se desmorone. Por isso, eu até posso compreender esta passagem para o mundo twilight definido pelo Fórum, e até de o desejar, é certamente uma forma de ser o actor e espectador ao mesmo tempo, ainda para mais com a possibilidade de viver para sempre. Mas assim não dá.

    Claro que quero um robot escravo a trabalhar para mim movido a hidrogénio. Claro que quero uma torradeira high tech com design do Philippe Starck a dizer piadas sobre a liga de carbono. E se, no meio disto, puder comer hambúrgueres de oxigénio com sabor a carne de vaca, melhor ainda. Se puder viajar no tempo, ui!… Ia de imediato até ao paraíso Viking, chamava-lhes nomes, gozava com os capacetes e pisgava-me logo, accionando a mente e nunca um botão anacrónico, como se vê nos filmes, antes que eles me dessem uma espadeirada. Mas assim não dá. A vossa táctica parece a do treinador do Fafe.

    Por muito estúpidas e incultas que as pessoas sejam, vocês estão a exagerar. Eh pá, aviões supersónicos e converseta do carbono? Vírus inexistentes vinte vezes piores do que o monstro de Lochness? Eh pá, não terás nada e serás feliz? Fogo… crises recorrentes? Ameaças? Blackrocks, Vanguards? Os juros da dívida dos países a subir em flecha… Eh pá… qualquer dia, a maralha percebe, e lá se vai o nosso futuro quântico e cyborg 4.0, cheio de novas possibilidades narrativas para o galheiro.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações da autoria de Ruy Otero com a colaboração de Nuno Bettencourt.


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  • Inimigos infiltrados

    Inimigos infiltrados

    Eram as condições de vida na capital e não a destruição pela tuberculose que o haviam aniquilado. Tinha a coragem e o bom-humor dos derrotados.

    Graham Greene

    OS COMEDIANTES (1966)


    As legendas matam-me. Não aguento o seu espectáculo alarve e satisfeito de ignorância total, e cheia de pressa de ganhar uns cobres por um trabalho feito com os pés. Chego ao ponto de estar na ópera e de deixar momentaneamente de voar nas asas das músicas imortais mais poderosas da civilização ocidental porque apareceram no écran do texto traduções apressadas em que “va pensiero” quer dizer “vá pensar[1],” que nos oferecem uma nova versão de “l’amour est enfant de bohéme” segundo a qual “o amor é… beber Sagres Boémia[2]”, ou mesmo que nos juram que “ich bin eine Walkure[3]” significa “eu sou a música de abertura do APOCALYPSE NOW[4].” Perco o fio à meada de grandes filmes porque quando o Don Corleone mostra ao advogado o seu filho Sonny passado a ferro por dezenas de rajada de metralhadora numa portagem envenenada[5] e diz “now you just look what they did to my Sonny”, o tradutor, consciente de que este filme foi feito nos anos 70, decide escrever para a legenda, textualmente “agora você veja só o que eles fizeram ao meu leitor de cassettes[6]”. E, quando nos entram todos os dias em casa através da televisão, há casos ainda piores do que estes. Muito piores.


    Vamos voltar à última tradução apressada, que estaria profundamente incorrecta mesmo que o Sonny não tivesse passado a ser um leitor de cassetes. A construção “now you just look what they did to my Sonny” está perfeita em inglês quando prevista para ser posta ao serviço de um sotaque italiano. Mas, e em grande medida até por isso mesmo, torna-se imensamente imperfeita quando traduzida à letra para português. “Agora você veja só o que eles fizeram ao meu Sonny” é português, sem dúvida – é excelente português do Brasil, pronto para ser grasnado por alguém ao serviço do Tio Patinhas. E, se assim fosse, estaria tudo bem.

    Quando eu era miúda[7] e lia um rompante da Magda Patalógika a dizer “que mau, Peninha, eu vou matar você!”, o que fazia o famoso repórter d’A PATADA encostar a ponta dos dedos à palma das mãos[8] e perguntar, com um cabelo para cada lado[9], “pô-pôxa, você acha mesmo, Magda?”, este linguajar não me incomodava absolutamente nada. Toda a gente sabia que aqueles bonecos falavam brasileiro, e parte da sua graça vinha-lhes exactamente disso. Mas, quando estamos a ver televisão portuguesa, nas nossas casas portuguesas, e nos entram por ali dentro legendas supostamente portuguesas que no entanto nos oferecem um português de Portugal de tal forma adulterado que bem podemos pôr-nos de joelhos e pedir perdão às divindades pela loucura dos impérios que construímos no passado – que estupidez, a nossa casa não é nem o lugar nem o contexto para catarses destas, os nossos filhos e netos nunca perceberão sequer que estava em causa uma catarse quando estiverem sozinhos, toda a gente fica confusa em relação às formas certas e erradas de dizer as coisas, e francamente, deixem-me que vos diga.

    As legendas na televisão nunca deveriam poder ter o fraco profissionalismo dos trabalhos que os alunos nos entregam, onde é fácil distinguir o que foi que eles escreveram do que foi que eles copiaram e colaram da Wikipedia porque uma parte está num português que tem bastantes erros mas que ao menos é, satisfatoriamente, português de Portugal, e a outra parte está num brasileiro académico que se mete de tal forma pelos olhos dentro que até dá vontade de chorar[10]. Adiante.

    Procure-se o pior de tudo, que se insinua mesmo por baixo da pele.

    Esta qualidade costuma pertencer aos predicados das frases.

    Há milhares de formas de escrever um verbo sem ele estar ortograficamente errado, embora a alteração da sua sintaxe possa roubar todo o sentido às frases. Imaginem, só para dar um exemplo, um sitcom americano qualquer com gargalhadas e palmas da audiência, em que um personagem mauzinho que guincha muito diz para os outros, só para os chatear, “então mas é impressão minha ou ontem os Yankees perderão o jogo?”. E toda a gente ri. Mas os telespectadores, se precisam de legendas e sabem conjugar verbos, não riem porque já se perderam. Os Yankees ontemperderão o jogo? Claro que não, foi balda da legenda. Ontem, os Yankees perderam o jogo. Mas depois não digam que a juventude portuguesa escreve cada vez pior.

    Há montes de galegadas destas que até nos cortam a respiração. Devo dizer que, quando estou especialmente bem disposta no sentido mais pérfido do termo, a minha galegada preferida é a confusão entre o imperfeito do conjuntivo e o presente do indicativo na conjugação pronominal reflexa. Ou seja, se eu fosse uma série de animação cerrava os olhos até só serem duas frinchas, e o meu sorriso ficava horrorosamente cheio de dentes inquietantes, de cada vez que as legendas rezassem “aqui comesse bem” quando o indivíduo do filme está a dizer “aqui come-se bem.” Querem que algum cérebro ainda em formação saia incólume destas aventuras? Por favor. A corda só estica até onde consegue esticar.

    Escrevo tudo isto porque ontem apanhei um destes meus ataques de fúria de estimação, que àquela hora da noite ficou reservado exclusivamente para as orelhas arrebitadas e atentas do meu Sebastiãozinho, sempre incrivelmente paciente nestes tratos de polé de ver a dona gesticular, largar brados de guerra, e bater com os pés no chão. Estava positivamente maravilhada, de olhos cravados na jovem Gong Li, que continuo a considerar uma das mulheres mais bonitas do planeta[11], no venerando ESPOSAS E CONCUBINAS. Da primeira vez que o vi, as legendas eram em inglês e honra lhes seja, os americanos pautam-se por muito mais rigor do que nós quando são obrigados a fazer subtitles para os filmes[12] – o que, para eles, é quase um exercício académico, e como tal levado muito a sério. Já perto do fim, quando ela bebe demais e pergunta ao Feipu[13]alguma vez acreditaste que estavas apaixonado?”, apareceu uma legenda que dizia:

    Alguma vez acreditas-te que estavas apaixonado?

    Sei que a partir dali é tudo a descer e que a história acaba pessimamente, portanto nem continuei a ver o filme.

    Acabem com isto, pelo amor de Deus.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Atenção, que a versão completa desta frase seria “vá pensar para o cantinho durante meia hora”: usa-se quando as crianças fazem alguma coisa particularmente estúpida.

    [2] Desculpem, não resisti.

    [3][3] A ópera A VALQUÍRIA está toda ela centrada no braço de ferro entre a valquíria Brunhilda e o seu pai Wotan, o rei dos deuses. É, portanto, bastante normal que ela lhe puxe várias vezes dos galões durante a disputa com o memorando Ich bien eine Walkure. Esta disputa só acaba quando Wotan põe a filha a dormir, rodeada de um círculo de fogo. E este feitiço só se quebra quando vier de lá um verdadeiro super-homem que a acorde e apague o fogo (só falta dar-lhe um beijo – quem é que não conhece o leit motif?). Esse super-homem só aparece na terceira ópera, que, aliás, tem o nome dele: chama-se SIEGFRIED. É grande, musculoso, loiro, um perfeito ariano. Século XIX. Os motores aquecem.

    [4] O infame filme de Francis Ford Coppola APOCALYPSE NOW abre com uma sequência horrorosa de helicópetros assassinos que aparecem a pavonear-se no céu ao som da CAVALGADA DAS VALQUÍRIAS. E esta cavalgada é o quê? É a passagem musical mais popular da óperaA VALQUÍRIA (DIE WALKÜRE, em alemão), que abre a primeira cena do terceiro acto. Esta ópera foi composta por Richard Wagner em 1870, e é a segunda parte das quatro que compõem a tetralogia DER RING DES NIBELUNGEN (O ANEL DO NIBELUNGO). Como as pessoas gostam de músicas que ficam no ouvido, não falta quem diga que A CAVALGADA DAS VALQUÍRIAS é a música mais famosa de Richard Wagner. É injusto.

    [5] Sonny era o filho mais velho do padrinho, predestinado a herdar o reino criminoso que Michael acaba por herdar. Era também, e consabidamente, um grande bruto e um carniceiro feroz, e é isto que o deita a perder. Mas ainda está vivo o tempo suficiente, tanto no livro como no filme, para descobrirmos que era também especialmente bem aviado, sendo que este detalhe anatómico está na base do seu envolvimento – hm – romântico? – com Lucy Mantini, também ela uma rapariga particularmente “larga”.

    [6] O “leitor de cassetes” aparece aqui a prestar homenagem aos objectos de uso doméstico que a marca SONY produzia com mais abundância nos anos 70. Claro que o nome da marca só tem um n enquanto que o nome do filho primogénito tem dois, mas o autor das legendas passa por esta discrepância como cão por vinha vindimada.

    [7]Quem é que eu estou a ver se engano? Ainda hoje me parto a rir com esta bonecada.

    [8] Magia dos quadradinhos, claro. Os patos não têm propriamente pontas dos dedos, porque todos os seus dedos estão unidos por uma membrana. Pela mesma ordem de razões, ainda menos têm palmas das mãos.

    [9] Idem. Toda a gente sabe que os patos não têm cabelos.

    [10] Sim, jogo de palavras. Até pareço um homem, hoje.

    [11] São milhares de anos de civilização. Uma beleza destas não se constrói em meia dúzia de séculos.

    [12] É raríssimo, se pensarmos duas vezes – na sua esmagadora maioria, os filmes são filmes americanos.

    [13] O filho do Senhor, de quem a Gong Li é a Quarta Esposa.


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