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  • Davos Hotel

    Davos Hotel

    Pedro Sanchez toma o pequeno almoço enquanto passa a vista pelo seu El País. Depara com um par de fotografias da sua cara bastante animadoras, certamente dadas pelos seus spins, que têm excelentes relações com o jornal castelhano. Este Presidente de Governo tem muito know-how, dizem os experts. Prepara-se para ir de Falcon até à Suíça, onde será um dos participantes. Entretanto, compõe a gravata com a qual se apresentará no Fórum, embora tenha durante o Verão pedido de urgência aos Espanhóis para não a usarem por causa do clima cambiático (alterações climáticas na boca da dissidência espanhola).

    Há uns dias, aconteceu o Fórum Económico Mundial de 2024, em que se reúniu a flora e a nata da política e economia mundial, uma «coisa» fundada em 1971 por Klaus Schwab (KS), ainda que tenha começado por se chamar Fórum Europeu de Gestão, mas desde 1973 que tem o seu actual nome. Ainda é o mesmo presidente 53 anos depois. Klaus Schwab é também membro da importante família Rothschild. Como sempre, e mais uma vez, além de outros assuntos fulcrais para o nosso tempo de bem-estar e insegurança, falou-se da pegada de carbono, a grande obsessão de Davos e de Schwab, embora seja já comum, nomeadamente através de activistas da Net ligados muitas vezes às extremas-direitas, (pelo menos, assim denominados pelas extremas-esquerdas), a crítica à quantidade de aviões privados dos actores principais e secundários que aterram na zona. Neste departamento, e muito estranhamente (ou não), as «esquerdas» (ou sinistras) não se metem. Não querem voar nesses aeroportos cheios de algoritmos humanos desinformativos que são a maioria dos canais de YouTube com visibilidade. Escrevo isto, mas posso assegurar que não sou de nenhum extremo político. Aliás, digo já que nem sou de direita, nem de esquerda, sou normal.

    Queres ver os últimos e impressionantes modelos de aviões do mercado? Dá uma volta até ao aeroporto, leva os teus óculos escuros cheios de style e echa un vistazo, como dizem os Espanhóis e mesmo os Catalães. Vais ficar surpreendido com os últimos modelos ultra, mega, espectacularmente sónicos desses ecomultimilionários, enquanto descansam as asas nesses não-lugares cheios de estilo pós-moderno. Esses jactos têm, no mínimo, só para abrir o apetite, serviços de mensagens de texto e telefone NetJets Connects, tecnologia Wi-Fi e Bluetooth à discrição, sistemas de entretenimento em voo on-demand, tablets iPadCozinha completa, com assistente de bordo, chega? Ou os Falcon 50, por exemplo, cujo modelo PW307A tem, só para começar, a Honeywell a trabalhar para a arquitectura de avionics, tem Auxiliary Power Unit (APU), e sistema de gestão do ar, brincamos? Parker Hannifin para o sistema gerador de energia e freios, e a TRW Aeronautical Systems para os sistemas de Flap hidromecânico… Não é preciso dizer mais nada, pois não?

    O Fórum, neste ano, ofereceu-nos sinais de mão beijada acerca da direcção das políticas no imediato. Se o mundo fosse ainda mais redondo e justo, saberíamos, pelos canais mainstream oficiais, mais sobre esses encontros de contornos duvidosos, não ignorando de antemão, que muitas coisas são sempre negociadas por baixo da mesa, o que não é nenhuma ilegalidade em si, e se for, também quem é que está acima daquela gente?… Só Deus… mas como vi num programa da National Geographic, Ele não existe, por isso, não se pode fazer nada. Não estou a ver também a bófia a entrar por ali, muito menos a bófia suíça, que deve andar preocupada com canivetes o tempo inteiro.

    A maior parte das pessoas que conheço, quando muito, acha que Davos é uma estância na Suíça em que se podem partir umas pernas em cima de um ski e pouco mais. Quanto a partir umas pernas, talvez estejam certos, economicamente falando, para ser bonzinho, já que não estou a falar da Cosa Nostra nem de Francis Ford Copolla. Nem tão-pouco, a realidade atingiu o glamour do cinema. Se há gente sem glamour é aquela, basta tirar uma foto ao KS e ficar à espera da revelação para percebermos que, quando muito, estamos perante um daqueles vilões dos anos 70 com passado duvidoso, que fumam o cigarro entre os dedos anelar e o médio (nunca percebi se os nazis fumavam mesmo assim ou se é uma criação do cinema).

    O sotaque kissingeriano de KS é, por si só, assustador. Também é verdade que a maior parte das pessoas não sabe quem é o KS. Para alguns mais velhos a quem perguntei, foi um jogador do Fortuna Düsseldorf, dos anos 80 do século passado. Errado, metam-lhe uma bola nos pés e vislumbrará logo um planeta verde (negro) cheio de futuro, em que não terás nada e serás feliz, expressão inventada pelo menino, que entretanto fez parte de um vídeo com os dez novos mandamentos da Agenda 2030, mas já retirado de circulação. Os conspiradores e fascistas da Net devoraram e partilharam até à medula esse vídeo(game), a ponto de termos até tido pena do pobre KS, que para alguns, muito se esforça para que tenhamos um futuro verde sustentável, assegurado. Ele certamente quer morrer com a consciência tranquila de que fez tudo para nos proteger. Como não sou romântico, fico-me só pela parte do fez tudo. Uma vez, tentei melhorar a imagem do KS no Photoshop, e ainda veio pior. Talvez só a Inteligência Artificial lhe consiga melhorar a imagem. Ele agora também nos quer salvar da má imagem da IA, quando usada e ensinada pelos desinformadores.

    Estará mesmo o mundo a precisar de tanta salvação?. O António Guterres não fala de outra coisa. O planeta é um pântano.

    Web 2.0 já não nos dá a hipótese de ver sempre o sol sem quadradinhos quando nos apetecer. E esperem pela Web 3.0, ela virá como um asteróide a alta velocidade contra o planeta, que por acaso, para uns nem redondo é.

    Às vezes, pergunto-me, se esta gente não se achará uma espécie de anjos na terra, ou anjos caídos, ou se não serão mesmo um bando de psicopatas que perdeu o norte e agora está com medo de perder a Antárctida.

    A verdade é que estas elites estão a entrar a pés juntos à boa maneira do Paulinho Santos, é tudo muito rápido. Agora vem aí o vírus X, outro tema de passadeira vermelha, mas ainda não sabem bem o que é, ainda que nos garantam que é vinte vezes pior do que o coronavírus, e pelo que imagino, já terão na manga, medidas vinte vezes mais radicais do que as «choninhas» do covid, que até deixavam as pessoas sair, se fosse para ir comprar Sonasol ao Pingo Doce.

    Klaus e companhia, neste ano, estão a passar mensagens e ideias, de forma que se perceba efectivamente que têm um projecto bem definido.

    O pior é que não é nada bom para as pessoas a curto prazo, vejamos: combate ruidoso à desinformação, que já se sabe que é tudo aquilo que não coincide com as ideias deles; alterações climáticas, que vão trazer mais restrições às pessoas em grosso modo e à classe média particularmente; vírus que agora será o X, um vírus virtual hipotético, mas que infunde vinte vezes mais medo; combate às guerras, embora a guerra à desinformação seja considerada a principal; imigração; mundo árabe; Irão… Enfim, urge combater os maus, sendo eles naturalmente os bons. Tudo isto até soa a cómico, uma vez que vivo finalmente em Gotham City, e posso desfrutar do filme por dentro sem o incómodo dos óculos RV, que ainda não acertaram no alvo, já que desfocam demasiadamente e causam muitas tonturas, para não falar da porcaria do joystick. Não sei é se há outra realidade à minha espera.

    Mas acho que as pessoas estão a perceber aos poucos que nesta saga, infonarrativa, aos «bons» também se vira, de vez em quando, o feitiço contra o feiticeiro. Sim, a IA faz ricochete e tem efeitos boomerang.

    Andam preocupados com o GPT, e por isso o seu CEO estará lá neste ano. Outro actor importante desta saga é Yuval Harari, um filósofo israelita que pinta uma realidade bastante virtual com hackeamentos radicais à mistura e deuses na Terra, que até imaginamos que seja a velha guarda do costume mais os outros invisíveis que ninguém há-de conhecer, o que é bom para a especulação matrix da nossa era, e para os conspiranóicos do QAnnon, de origem duvidosa. Há quem jure a pés juntos que esta espécie de organização se trata de dissidência controlada, mas também quem o jura pertence à esfera da conspiração. O mundo já é a sua própria conspiração e, às vezes, respirar ar puro digital torna-se difícil, se não tiveres um dogma prêt-à-porter a dar-te guarida… digital. Esqueçamos o puro.

    Será tudo isto uma questão de entretenimento? De quando em quando, pergunto ao espelho negro que tenho em casa, à imagem da série de televisão (que também tenho em casa com o mesmo nome), e não percebo bem se ainda estamos na sociedade do espectáculo debordiano, que as esquerdas sociais tanto citavam, ou se já não somos mesmo a carne para o canhão do cinema moribundo com guiões de série B pouco recomendáveis.

    É que eu não preciso de mais entretenimento. Não fui daqueles que se agarraram à Netflix nos confinamentos, nem muito menos dos que fizeram o pão que o Diabo amassou, enquanto os padeiros faziam as carcaças e as vianinhas do costume, sem câmaras a bombardear as redes exibicionistas. Tanto entretenimento também farta. Agora, queria um bocadinho de descanso. E já agora paz como pediria o Mister Universo.

    Sem dúvida, o globalismo é isto. Eu até gosto da palavra, mas quando percebi que o globalismo é a tentativa de controlar a globalização, ou seja, de controlar o livre intercâmbio de recursos, ideias, pessoas e produtos, fiquei a achar que estes voadores hipersónicos, na verdade, nunca o quiseram, ao contrário do que se pensa, porque isso implicaria diversidade, e não hegemonia das multinacionais às quais pertencem, tendo assim os pobres dos Estados na mão, com a conivência dos políticos e das políticas, em que se inclui a comunicação social, claro. Isto tudo baseado num sistema económico fraudulento na sua essência, que está alicerçado na ideia de dinheiro fácil criado do nada, sujeito a crises recorrentes controláveis e até antecipáveis como o vírus X. Mas que se mantém, porque permite os agarrados à liquidez (e estamos a vê-lo com Wall Street), a manutenção de modelos de negócio obsoletos que só podem funcionar com a manipulação dos juros.

    Também percebo que é difícil parar o tsunâmi, sobretudo quando ele vem cheio de ideias de paz e de amendoeiras em flor, em que um pássaro vale mais do que uma pessoa, e até do que mil palavras. O pior e mais estranho é que são pessoas que votam, e não pássaros. Este sistema, quanto a mim, já deu sinais de ser problemático em 2001 e causou crises como a de 2008, que trouxe consequências graves para Portugal, deixando os Portugueses sem frangos no congelador, trocando-os pelos ordenados. O mundo ficou em respiração assistida, como os doentes covid anos mais tarde. O problema, como sempre, são os efeitos secundários do uso e abuso de tubos a entrar-nos pelos pulmões. Começámos finalmente a acelerar com uma scooter numa auto-estrada, mas em segunda. Já para não falar da inflação e da corrupção institucional. E agora usam como argumento a religião climática que até vem pôr Picassos em apuros, não fossem os vidros hiper-sofisticados a proteger as obras dos climáticos do lítio. É bom ter inimigos externos contra os quais não podemos lutar.

    Pessoalmente, tento lutar contra as alterações climáticas e até contra o clima, embora tudo me pareça cada vez mais gelado na aproximação (aludindo a um antigo jogo da minha infância), mas não sei muito bem como, se isto está sempre em mudança. Ainda pensei em comprar um carro a lítio, sabendo também que o lítio é a substância usada para as crises disfuncionais da bipolaridade. Ainda faria um dois em um, antecipando a crise nervosa que virá inevitavelmente, depois de perceber definitivamente que estes carros poluem sete vezes mais do que os Vauxhall Deluxe dos anos 70 do século passado. Ao menos, nesses, simulávamos assaltos a bancos como nos filmes, e a brincar, uma vez lá dentro, pensávamos que éramos gangsters, longe de imaginarmos fóruns de Davos. Eram cá umas banheiras… que hoje só me fazem lembrar, por livre associação, água ou a falta dela. Mas abro a torneira e saem-me imediatamente inúmeros Vauxhalls em catadupa. Ou melhor, segundo os conspiradores, água cheia de metais pesados.

    É tudo muito confuso. É tudo associação, é tudo psicanálise, é tudo fado. É tudo infância.

    Acho que as alterações climáticas são uma inevitabilidade. A esquerda caviar acha que não, acha que podemos ficar sempre com sol à vista sem que produza queimaduras. Basta… não consumir. Problema do capitalismo. Então mas Davos é o quê? Não me parece que os actores cheguem de trenó nem lanchem uma tostinha de alface com queijo Philadelphia.

    É frequente pensar, que esta esquerda sensível é composta por uma espécie de neoliberais… de esquerda… como Davos. Mas também há quem tivesse previsto este romance. O que ninguém previu, que eu saiba, é que o Bill Gates e o Bill Clinton, dois frequentadores assíduos do Fórum, não parassem de entrar no Lolita Express como quem entra nas Amoreiras, e se viesse a descobrir. Mas não sei se as Amoreiras são uma boa metáfora. São grandes, altas e estão um bocado envelhecidas. Há coisas que convém não dizer nesta democracia totalitária. A verdade é que ambos os Bills têm muito que dizer sobre o Fórum Económico Mundial. Uma vez que falei neles, também devo dizer que este ano, os organizadores garantiram que não haveria prostituição de luxo, à semelhança do ano anterior. O Fórum é assumidamente feminista.

    Mas a ementa deste Fórum, foi o ataque às redes de desinformação, ainda por cima em ano de eleições trumpistas.

    A ideia, no fundo, é que a opinião pública seja igual à opinião publicada. Se não for assim, seremos dissidentes e agentes da desinformação. Tenho a certeza de que este texto, mais tarde ou mais cedo, caso seja lido por um algoritmo, será varrido do mapa. Rock and roll hoje, só com camisolas da Zara. Tenho uma dos Clash comprada lá. Mas também tenho uma da NASA. Na pós-modernidade, é tudo uma festa, desde que não digas mal da Pfizer e da Apple. Tens de concordar com o Great Reset, caso contrário és um conservas de primeira apanha. Great Reset é um livro escrito por KS, e publicado três meses depois do início da pandemia. Só um génio para escrever em três meses um livro daquela envergadura e importância, que explica abertamente que o grande cancro da nossa era somos nós, os humanos. Até parece que ele não é!…

    Um dos temas preferidos destas elites foi precisamente o da desinformação. Discutiu-se a ideia de dares os teus dados primeiro para acederes à Net, tipo, dispara primeiro e pergunta depois à boa maneira do Dirty Harry, que por sinal, também lutava contra os maus. O próprio Bush dizia que se não aceitasses a invasão ao Iraque, estavas contra os Estados Unidos, e se dissesses que o país do Saddam podia não ter armas nucleares, eras persona non grata. Ou estás connosco ou és contra nós, e se fores contra, o teu avatar vai direitinho para a prisão do silêncio. O que vale é que eu sou o meu próprio avatar e raramente discutimos em público.

    De vez em quando, penso se não terão mesmo administrado clorofórmio à grande maioria da população, uma vez que parecem tão absurdos certos paradoxos vindos destes encontros. Não digo que dormir não seja bom, mas por vezes, convém acordar para desentorpecer as pernas, isto para não falar do cérebro. Por outro lado, se a grande maioria, pelo menos em Portugal, não se revela crítica destes paradoxos, pode querer dizer que até está tudo bem.

    E os académicos, onde andam os académicos? Se calhar, estão todos a jogar na Académica, que anda a arrastar-se por ligas menores há muito tempo, sem nenhum fulgor. Efectivamente, não estou na cabeça de milhões de pessoas para o saber, mas também não quero que esses milhões invadam a minha. Para isso, basta não ver televisão e não ler jornais. Quanto às redes sociais, também não sou grande adepto. Não gosto de discutir penáltis nem foras-de-jogo, prefiro meter uns golos de quando em vez, nem que seja na própria baliza.

    O mundo está a precisar de um checkup. Parece que estamos como no Titanic: enquanto o barco se afundava, ainda havia passageiros a fazer planos para o futuro. Estamos na era do complexo Titanic. O mundo é uma selfie meio desfocada. Mas eu não. Eu vejo o guião como literatura. Sempre é mais libertador. Hoje é tudo uma questão de dados. Estás sempre a enviá-los, são a tua corrente sanguínea. Os dados são o poker, os truques és tu. Se quiseres, ou não, és o próprio produto. A diferença é que ninguém tem trinta dias para a reclamação. Os dados, para mim não são o lixo, são os camiões do lixo todos a trabalhar ao mesmo tempo. Os dados são as discotecas em que os cavalos nunca se abatem. Estás sempre ligado à corrente. Se a corrente vai para um lado, embora para esse lado. Só um estúpido é que rema contra a maré. Já não há bem marés. Hoje há mais marinheiros e bots. Há mesmo mais bots do que marinheiros. A táctica é seres mais dados do que os próprios dados. Ser mais banqueiro do que os banqueiros. Seres um único e grandioso dado.

    Um BOT-PLUS.

    Enfim, ser o próprio Banco e ficar lá sentado à espera de que tudo se desmorone. Por isso, eu até posso compreender esta passagem para o mundo twilight definido pelo Fórum, e até de o desejar, é certamente uma forma de ser o actor e espectador ao mesmo tempo, ainda para mais com a possibilidade de viver para sempre. Mas assim não dá.

    Claro que quero um robot escravo a trabalhar para mim movido a hidrogénio. Claro que quero uma torradeira high tech com design do Philippe Starck a dizer piadas sobre a liga de carbono. E se, no meio disto, puder comer hambúrgueres de oxigénio com sabor a carne de vaca, melhor ainda. Se puder viajar no tempo, ui!… Ia de imediato até ao paraíso Viking, chamava-lhes nomes, gozava com os capacetes e pisgava-me logo, accionando a mente e nunca um botão anacrónico, como se vê nos filmes, antes que eles me dessem uma espadeirada. Mas assim não dá. A vossa táctica parece a do treinador do Fafe.

    Por muito estúpidas e incultas que as pessoas sejam, vocês estão a exagerar. Eh pá, aviões supersónicos e converseta do carbono? Vírus inexistentes vinte vezes piores do que o monstro de Lochness? Eh pá, não terás nada e serás feliz? Fogo… crises recorrentes? Ameaças? Blackrocks, Vanguards? Os juros da dívida dos países a subir em flecha… Eh pá… qualquer dia, a maralha percebe, e lá se vai o nosso futuro quântico e cyborg 4.0, cheio de novas possibilidades narrativas para o galheiro.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações da autoria de Ruy Otero com a colaboração de Nuno Bettencourt.


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  • Inimigos infiltrados

    Inimigos infiltrados

    Eram as condições de vida na capital e não a destruição pela tuberculose que o haviam aniquilado. Tinha a coragem e o bom-humor dos derrotados.

    Graham Greene

    OS COMEDIANTES (1966)


    As legendas matam-me. Não aguento o seu espectáculo alarve e satisfeito de ignorância total, e cheia de pressa de ganhar uns cobres por um trabalho feito com os pés. Chego ao ponto de estar na ópera e de deixar momentaneamente de voar nas asas das músicas imortais mais poderosas da civilização ocidental porque apareceram no écran do texto traduções apressadas em que “va pensiero” quer dizer “vá pensar[1],” que nos oferecem uma nova versão de “l’amour est enfant de bohéme” segundo a qual “o amor é… beber Sagres Boémia[2]”, ou mesmo que nos juram que “ich bin eine Walkure[3]” significa “eu sou a música de abertura do APOCALYPSE NOW[4].” Perco o fio à meada de grandes filmes porque quando o Don Corleone mostra ao advogado o seu filho Sonny passado a ferro por dezenas de rajada de metralhadora numa portagem envenenada[5] e diz “now you just look what they did to my Sonny”, o tradutor, consciente de que este filme foi feito nos anos 70, decide escrever para a legenda, textualmente “agora você veja só o que eles fizeram ao meu leitor de cassettes[6]”. E, quando nos entram todos os dias em casa através da televisão, há casos ainda piores do que estes. Muito piores.


    Vamos voltar à última tradução apressada, que estaria profundamente incorrecta mesmo que o Sonny não tivesse passado a ser um leitor de cassetes. A construção “now you just look what they did to my Sonny” está perfeita em inglês quando prevista para ser posta ao serviço de um sotaque italiano. Mas, e em grande medida até por isso mesmo, torna-se imensamente imperfeita quando traduzida à letra para português. “Agora você veja só o que eles fizeram ao meu Sonny” é português, sem dúvida – é excelente português do Brasil, pronto para ser grasnado por alguém ao serviço do Tio Patinhas. E, se assim fosse, estaria tudo bem.

    Quando eu era miúda[7] e lia um rompante da Magda Patalógika a dizer “que mau, Peninha, eu vou matar você!”, o que fazia o famoso repórter d’A PATADA encostar a ponta dos dedos à palma das mãos[8] e perguntar, com um cabelo para cada lado[9], “pô-pôxa, você acha mesmo, Magda?”, este linguajar não me incomodava absolutamente nada. Toda a gente sabia que aqueles bonecos falavam brasileiro, e parte da sua graça vinha-lhes exactamente disso. Mas, quando estamos a ver televisão portuguesa, nas nossas casas portuguesas, e nos entram por ali dentro legendas supostamente portuguesas que no entanto nos oferecem um português de Portugal de tal forma adulterado que bem podemos pôr-nos de joelhos e pedir perdão às divindades pela loucura dos impérios que construímos no passado – que estupidez, a nossa casa não é nem o lugar nem o contexto para catarses destas, os nossos filhos e netos nunca perceberão sequer que estava em causa uma catarse quando estiverem sozinhos, toda a gente fica confusa em relação às formas certas e erradas de dizer as coisas, e francamente, deixem-me que vos diga.

    As legendas na televisão nunca deveriam poder ter o fraco profissionalismo dos trabalhos que os alunos nos entregam, onde é fácil distinguir o que foi que eles escreveram do que foi que eles copiaram e colaram da Wikipedia porque uma parte está num português que tem bastantes erros mas que ao menos é, satisfatoriamente, português de Portugal, e a outra parte está num brasileiro académico que se mete de tal forma pelos olhos dentro que até dá vontade de chorar[10]. Adiante.

    Procure-se o pior de tudo, que se insinua mesmo por baixo da pele.

    Esta qualidade costuma pertencer aos predicados das frases.

    Há milhares de formas de escrever um verbo sem ele estar ortograficamente errado, embora a alteração da sua sintaxe possa roubar todo o sentido às frases. Imaginem, só para dar um exemplo, um sitcom americano qualquer com gargalhadas e palmas da audiência, em que um personagem mauzinho que guincha muito diz para os outros, só para os chatear, “então mas é impressão minha ou ontem os Yankees perderão o jogo?”. E toda a gente ri. Mas os telespectadores, se precisam de legendas e sabem conjugar verbos, não riem porque já se perderam. Os Yankees ontemperderão o jogo? Claro que não, foi balda da legenda. Ontem, os Yankees perderam o jogo. Mas depois não digam que a juventude portuguesa escreve cada vez pior.

    Há montes de galegadas destas que até nos cortam a respiração. Devo dizer que, quando estou especialmente bem disposta no sentido mais pérfido do termo, a minha galegada preferida é a confusão entre o imperfeito do conjuntivo e o presente do indicativo na conjugação pronominal reflexa. Ou seja, se eu fosse uma série de animação cerrava os olhos até só serem duas frinchas, e o meu sorriso ficava horrorosamente cheio de dentes inquietantes, de cada vez que as legendas rezassem “aqui comesse bem” quando o indivíduo do filme está a dizer “aqui come-se bem.” Querem que algum cérebro ainda em formação saia incólume destas aventuras? Por favor. A corda só estica até onde consegue esticar.

    Escrevo tudo isto porque ontem apanhei um destes meus ataques de fúria de estimação, que àquela hora da noite ficou reservado exclusivamente para as orelhas arrebitadas e atentas do meu Sebastiãozinho, sempre incrivelmente paciente nestes tratos de polé de ver a dona gesticular, largar brados de guerra, e bater com os pés no chão. Estava positivamente maravilhada, de olhos cravados na jovem Gong Li, que continuo a considerar uma das mulheres mais bonitas do planeta[11], no venerando ESPOSAS E CONCUBINAS. Da primeira vez que o vi, as legendas eram em inglês e honra lhes seja, os americanos pautam-se por muito mais rigor do que nós quando são obrigados a fazer subtitles para os filmes[12] – o que, para eles, é quase um exercício académico, e como tal levado muito a sério. Já perto do fim, quando ela bebe demais e pergunta ao Feipu[13]alguma vez acreditaste que estavas apaixonado?”, apareceu uma legenda que dizia:

    Alguma vez acreditas-te que estavas apaixonado?

    Sei que a partir dali é tudo a descer e que a história acaba pessimamente, portanto nem continuei a ver o filme.

    Acabem com isto, pelo amor de Deus.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Atenção, que a versão completa desta frase seria “vá pensar para o cantinho durante meia hora”: usa-se quando as crianças fazem alguma coisa particularmente estúpida.

    [2] Desculpem, não resisti.

    [3][3] A ópera A VALQUÍRIA está toda ela centrada no braço de ferro entre a valquíria Brunhilda e o seu pai Wotan, o rei dos deuses. É, portanto, bastante normal que ela lhe puxe várias vezes dos galões durante a disputa com o memorando Ich bien eine Walkure. Esta disputa só acaba quando Wotan põe a filha a dormir, rodeada de um círculo de fogo. E este feitiço só se quebra quando vier de lá um verdadeiro super-homem que a acorde e apague o fogo (só falta dar-lhe um beijo – quem é que não conhece o leit motif?). Esse super-homem só aparece na terceira ópera, que, aliás, tem o nome dele: chama-se SIEGFRIED. É grande, musculoso, loiro, um perfeito ariano. Século XIX. Os motores aquecem.

    [4] O infame filme de Francis Ford Coppola APOCALYPSE NOW abre com uma sequência horrorosa de helicópetros assassinos que aparecem a pavonear-se no céu ao som da CAVALGADA DAS VALQUÍRIAS. E esta cavalgada é o quê? É a passagem musical mais popular da óperaA VALQUÍRIA (DIE WALKÜRE, em alemão), que abre a primeira cena do terceiro acto. Esta ópera foi composta por Richard Wagner em 1870, e é a segunda parte das quatro que compõem a tetralogia DER RING DES NIBELUNGEN (O ANEL DO NIBELUNGO). Como as pessoas gostam de músicas que ficam no ouvido, não falta quem diga que A CAVALGADA DAS VALQUÍRIAS é a música mais famosa de Richard Wagner. É injusto.

    [5] Sonny era o filho mais velho do padrinho, predestinado a herdar o reino criminoso que Michael acaba por herdar. Era também, e consabidamente, um grande bruto e um carniceiro feroz, e é isto que o deita a perder. Mas ainda está vivo o tempo suficiente, tanto no livro como no filme, para descobrirmos que era também especialmente bem aviado, sendo que este detalhe anatómico está na base do seu envolvimento – hm – romântico? – com Lucy Mantini, também ela uma rapariga particularmente “larga”.

    [6] O “leitor de cassetes” aparece aqui a prestar homenagem aos objectos de uso doméstico que a marca SONY produzia com mais abundância nos anos 70. Claro que o nome da marca só tem um n enquanto que o nome do filho primogénito tem dois, mas o autor das legendas passa por esta discrepância como cão por vinha vindimada.

    [7]Quem é que eu estou a ver se engano? Ainda hoje me parto a rir com esta bonecada.

    [8] Magia dos quadradinhos, claro. Os patos não têm propriamente pontas dos dedos, porque todos os seus dedos estão unidos por uma membrana. Pela mesma ordem de razões, ainda menos têm palmas das mãos.

    [9] Idem. Toda a gente sabe que os patos não têm cabelos.

    [10] Sim, jogo de palavras. Até pareço um homem, hoje.

    [11] São milhares de anos de civilização. Uma beleza destas não se constrói em meia dúzia de séculos.

    [12] É raríssimo, se pensarmos duas vezes – na sua esmagadora maioria, os filmes são filmes americanos.

    [13] O filho do Senhor, de quem a Gong Li é a Quarta Esposa.


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  • Um país de generais

    Um país de generais


    Como a maioria dos portugueses, fiquei surpreendido ao saber do número de oficiais generais das nossas Forças Armadas.

    Nada mais, nada menos do que 253.

    Comecei por perguntar, a mim próprio, o que fariam todos estes militares no seu “dia de trabalho”.

    Imaginei essas duas centenas e meia de criaturas a levantarem-se cedo, como é exigido a qualquer militar, tomarem o seu banho, fazerem a barba ou maquilharem-se, consoante o sexo, e saírem de casa, depois do pequeno almoço, pelas 8,30 da manhã.

    Mas, com que destino?

    Há mais generais no nosso Exército do que quartéis, e outras instalações da Força, em todo o país.

    Há mais generais na Força Aérea do que aviões, helicópteros, avionetas e outros aparelhos voadores.

    Há mais almirantes do que navios, submarinos, corvetas e cacilheiros.

    E têm cerca de 20.000 militares sob as suas ordens.

    O que farão, então, estes cidadãos?

    Sei que alguns são colocados na Guarda Nacional Republicana, outros ocupam cargos de assessoria, outros fazem comentários nas televisões.

    No concreto, todavia, o que fará a maioria deles?

    Para se perceber o ridículo destes números podemos, e devemos, compará-los com os de outros países.

    Vejamos:

    As Forças Armadas dos Estados Unidos têm 1,3 milhão de soldados, 13.300 aeronaves, 303.553 veículos blindados de combate e 484 embarcações, com um orçamento anual de 760 bilhões de dólares e… 31 generais!

    A nossa vizinha Espanha tem 120 mil militares no activo, e 345.486 na reserva, e 28 generais.

    A França dispõe de 215.000 militares, entre os quais 55 generais.

    A Alemanha conta com 183.730 militares incluindo 189 generais.

    O Brasil tem 235.000 militares e 100 generais.

    Ou seja, Portugal tem mais generais do que Estados Unidos, Espanha, França e Brasil, juntos!

    Os 20.000 elementos das nossas Forças Armadas seriam, em qualquer daqueles países, comandados por um major. Ou um coronel.

    Neste nosso cantinho, onde há menos praças do que graduados, se contarmos com sargentos e todo o tipo de oficiais não generais, algo tem de ser feito para mudar esta situação.

    Em primeiro lugar há que saber quais os verdadeiros objectivos que os nossos governantes pretendem alcançar com as nossas Forças Armadas.

    Militares para “garantirem a defesa da nossa soberania” contra um qualquer eventual ataque de outro país?

    Se for esse o caso, então podemos temer o pior.

    A Espanha, por exemplo, se pretendesse tal (e obviamente não quer, a não ser que os seus dirigentes enlouqueçam…) bastaria mandar um pelotão, comandado por um sargento, e em 24 horas teríamos de começar a falar castelhano.

    Papel preponderante que os nossos militares podiam ter seria, por exemplo, a defesa das nossas costas marítimas, quer no impedimento de pesca ilegal quer impossibilitando que, por essa via, entrem em Portugal produtos ilegais ou gente indesejável.

    Só que, para estas acções, precisamos de operacionais em forma física e bem treinados, não de generais idosos e bem nutridos, e aquele é o tipo de gente em falta nos quartéis.

    Desde logo porque a juventude, na sua imensa maioria, nem quer ouvir falar de “tropa”.

    Disciplina, regras apertadas, levantar cedo, obedecer cegamente, péssimos ordenados, não poder dispor da sua vida em nenhum dia do ano, já que ficam sujeitos a ver as regras alteradas a qualquer momento?

    Jamais! A não ser que tornem o Serviço Militar obrigatório e voltarem a fechar as fronteiras.

    O mais certo, portanto, é que o número de generais vá aumentando, com as promoções por antiguidade, e o de praças vá diminuindo pelo total desprezo dos jovens pela carreira militar.

    Perde-se muito com isto?

    Provavelmente alguma da nossa juventude ficaria mais bem preparada para o resto da sua vida se tivesse de cumprir um ou dois anos de serviço militar.

    Eventualmente, poderíamos pensar no cumprimento obrigatório desse serviço por parte daqueles que abandonassem os estudos sem o cumprimento de um determinado objectivo (licenciatura ou curso profissional, por exemplo).

    Difícil seria explicar, a estes, a estrutura onde seriam integrados, com mais chefes que funcionários.

    O que resta é dar razão à frase de Aldous Huxley: Há três qualidade de inteligência: a humana, a animal e a militar.

    Vítor Ilharco é assessor


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


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  • Portugal, o país das casas ‘norueguesas’ para salários ‘nepaleses’

    Portugal, o país das casas ‘norueguesas’ para salários ‘nepaleses’


    Há uns anos, ao fim de quase duas décadas de emigração, quando comecei a pensar regressar a Portugal ou passar por cá períodos maiores de tempo, decidi ir procurar casa em “casa”.

    Não sendo a minha cidade natal uma hipótese por causa dos preços (Lisboa), fiz como a maior parte de nós e fui averiguar na Margem Sul, onde vive boa parte da minha família. Lembro-me de ver umas maquetes de uns prédios em construção, ali perto do centro de estágio do Benfica (Seixal) e de comentar com o vendedor como achava tudo aquilo um absurdo e completamente fora do contexto real do país. Ele, obviamente feliz pela forma como corria a venda da maquete, dizia-me, a propósito do meu país de acolhimento, o seguinte: “olhe… ainda ontem saiu daqui um sueco velhote com a filha. Compraram um T4 por 800.000 euros. Onde amigo, onde, é que eu na minha vida alguma vez pensei vender um T4 no Seixal por 800.000 euros?”

    stack of books on table

    De facto, não pensou ele e, imagino, ninguém que tenha crescido e vivido por ali, como foi o meu caso. A “praia” para onde fugíamos tentando evitar as aulas, ali pelo final do século passado, baptizada com um nome pouco abonatório que incluía o recurso a adjectivos escatológicos, é hoje uma “vista desafogada para a baía”.

    Como imaginarão, fico contente com a reabilitação dos espaços urbanos, em especial nas zonas dos subúrbios que são, normalmente, pouco dadas a embelezamentos ou cuidados arquitectónicos. Mas há aqui toda uma matemática que, por mais que tentemos, não parece fazer qualquer sentido.

    Portugal tem um salario médio de 1.200 euros brutos (aproximadamente) e isto significa que a nossa classe média, a existir, é pequeníssima. A não ser que consideremos que a classe média recebe pouco mais do que o salário mínimo. Se for essa a bitola, então temos um país quase sem pobres.

    Se a maior parte dos portugueses vive com menos de 1.000 euros líquidos, como é que o preço médio de um apartamento com, por exemplo, 100 m2, vai de 445.700 euros em Lisboa a 285.700 euros no Porto? Ou até 230.600 euros em Faro e 193.300 euros em Setúbal?

    white and black concrete buildings

    Como é que isto é possível? Economistas defendem que há pouca construção e isso faz aumentar o preço dos imóveis disponíveis no mercado. É um facto que o nosso parque habitacional subiu pouco na última década (cerca de 1%), mas também não é menos verdade que a população é essencialmente a mesma. Entre entradas e saídas, mortes e nascimentos, continuamos a rondar os 10,5 milhões.

    Se os portugueses com poder de compra são cada vez menos, os imigrantes que tanto incomodam o Ventura recebem salários miseráveis… Quem é que compra estas casas em Lisboa entre 500.000 e um milhão de euros? São todos suecos como o amigo do Seixal? Ou franceses? Árabes? Russos?

    Segundo o Pordata, em Dezembro de 2023, Portugal tinha uma população estrangeira de 800.000 pessoas, das quais 30% seriam brasileiros. Admitindo que os brasileiros não são todos milionários, serão os restantes 70% compostos por golfistas ingleses e nómadas digitais australianos?

    Quando me falam no mercado para justificar tudo, é quando o fumo começa efectivamente a chegar à zona das orelhas. “Se alguém paga o valor, é porque vale. É assim o mercado”. Esta é uma versão redutora e que serve, na realidade, para justificar o injustificável. Para distribuir lucros pornográficos por uma minoria e prender boa parte da população a créditos eternos.

    white and red wooden cube

    Vi um prédio na Avenida do Brasil com apartamentos entre 300.000 e 1.200.000 euros. Dir-me-ão que tem melhores acabamentos, que os custos de produção aumentaram com a inflação, a guerra, e todo o novelo do costume. Mas, quando saímos de casa, do T3 que custa 1,2 milhões de euros, continuamos na Avenida do Brasil, não é? Com lixo a transbordar dos caixotes, merda de cão no passeio e marquises no prédio da frente. Não estamos na 5ª avenida ou nos Campos Elíseos. O preço surreal que o “mercado” atribui a uma casa em Portugal, seja esta no subúrbio ou no centro das cidades, é absolutamente incompreensível.

    Os custos de construção aumentaram? Por acaso têm visto pedreiros e carpinteiros em ferraris? O que aumentou verdadeiramente foram as margens de lucro de quem constrói e vende. Alguém acredita que o custo de produção de um T3 em Lisboa se aproxima sequer do milhão de euros? Não é mais ou menos óbvio que as margens subiram para valores que ninguém consegue perceber e muito menos, pagar?

    Nós, portugueses, chegámos a um ponto da nossa evolução em que não temos dinheiro para viver nas zonas onde somos forçados a trabalhar. Bem sei que devemos todos mudar para o interior onde tudo é mais barato e arranjar emprego na lavoura, mas eu ainda sou daqueles que defende que uma pessoa deve viver onde lhe apetecer, perto da família, do mar, da barragem, dos campos de girassóis ou na borda do rio. Um país não pode ter um parque habitacional onde o custo médio está muito, muitíssimo acima, daquilo que é o salário médio.

    burned 100 US dollar banknotes

    No outro dia, li algures que isto só lá vai com ocupações à força. Parece-me radical, até porque defendo o direito à propriedade privada (com regras). Ainda assim, não consigo aceitar que todos sejamos obrigados a viver em condições miseráveis para alimentar a especulação imobiliária ou então, em alternativa, sermos despejados para a porta da emigração.

    Há algo mais a fazer para resolver a crise da habitação. Desde logo, simplificar o processo de construção e deixar o mercado da concorrência funcionar. Depois, dar algum uso ao imenso parque habitacional público. E por fim, nos casos da mais pura e nojenta especulação, não me venham com conversas de investidores e segurança de mercado. Há que taxar sem complexos. Já se faz no primeiro mundo, não precisamos de inventar a roda.

    O que não podemos é continuar a viver em barracas enquanto pagamos palácios.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • As Forças ‘Machistas’ Portuguesas

    As Forças ‘Machistas’ Portuguesas

    Neste nosso cantinho da Europa Ocidental, com a profusão das democracias liberais e as garantias dos “direitos humanos”, habituámo-nos a uma ideia de paz permanente e cooperação. Essa será uma das razões que explica o progressivo desinvestimento nas Forças Armadas, sendo que também contribuirá certamente a crescente rejeição de quaisquer sentimentos ‘nacionalistas’ ou patrióticos.

    Muitos românticos acreditam até que não precisamos de Forças Armadas, que os conflitos bélicos são uma expressão de masculinidade tóxica, e o simples desejo de vivermos todos em paz e harmonia é suficiente para este cenário se concretizar. Idealistas, têm dificuldade em entender que, infelizmente, o conflito, por vezes beligerante, é um fact of life. Em suma: sem prejuízo de tudo ter de ser feito para evitar a tragédia da guerra, tudo deve ser feito também para, no caso de nos bater à porta, sermos capazes de nos defender.

    Sucede que a soberania nacional soçobrou, de várias formas. Portugal quase se tornou num país ‘satélite’ da União Europeia. Neste lugar tão pacato como irrelevante à escala internacional, as Forças Armadas foram sendo preteridas, deixadas para segundo plano. Mas sinais de alarme e gritos de socorro têm-se vindo a amontoar, embora sem efeito, caindo nos ouvidos moucos dos últimos Governos. O mais recente tomou a forma de uma carta de nove páginas enviada, esta quarta-feira ao Presidente da República, por oficiais-generais do Grupo de Reflexão Estratégia Independente (GREI), a denunciar a “insustentável situação dos militares das Forças Armadas”. Recorde-se que no último dia de 2022 o número de militares do Exército, Força Aérea e Marinha registou um mínimo histórico, com apenas 21.080 efectivos – um pouco abaixo do número de oficiais da Guarda Nacional Republicana.

    No documento, apontaram a “falta de pessoal” como o maior problema, entendendo ser um reflexo da perda dos direitos dos militares nos últimos Governos, a falta de progressão nas carreiras e as baixas remunerações. E fazem uma observação bastante sibilina: “até parece que o objetivo prosseguido é depauperar as FFAA [Forças Armadas] dos seus recursos humanos, deixá-las esgotarem-se e, assim, exauridas, chegarem à extinção”. Palavras certeiras. De facto, parece mesmo haver dolo e uma intenção clara no sentido de enfraquecer as Forças Armadas. Numa Europa que ‘comanda as operações’ a partir de um núcleo reduzido em Bruxelas, até já discutindo a criação de um exército europeu, e se Portugal já abdicou de grande parte da sua soberania, para que precisa de uma Defesa robusta e pujante?

    O escárnio recorrente e a aversão a demonstrações de força, que encontra o seu apogeu nos discursos de autoflagelação, penitência e culpabilização pelo nosso passado, têm como consequência natural a desvalorização das Forças Armadas. É certo que quase todos os sectores, em Portugal, estão na mó de baixo, e este dificilmente poderia fugir à regra. Mas, apesar disso, há uma evidente e concertada acção que visa a desmoralização dos nossos militares.

    Os exemplos são abundantes. Começo por um que me indignou sobremaneira, sendo eu filha de um militar da Força Aérea: a nomeação de uma “socióloga” como Ministra da Defesa Nacional, Helena Carreiras – a “primeira mulher” a ocupar o cargo. Quisesse alguém humilhar as Forças Armadas, teria dificuldade em fazer uma escolha que melhor manifestasse essa intenção. Sim: a nomeação de Helena Carreiras foi uma flagrante humilhação.

    Esta opinião pode ser impopular num ‘Ocidente’ – é apenas o Ocidente que o faz – que finge acreditar que homens e mulheres são “iguais”, e que partilham exactamente das mesmas apetências, capacidades e inclinações, mas a biologia importa-se pouco com a ideologia de cada um. A ideologia da “igualdade de género”, que pretende uma paridade absoluta, é não só contrária à natureza dos sexos; é incompatível com a criação de uma superpotência militar.

    E, claro, Helena Carreiras distingue-se pela sua preocupação com as “questões de género” nas instituições miliares e a “integração das mulheres”, áreas em que concentrou a sua investigação. Em Novembro passado, chegou a falar na existência de um “machismo estrutural” nas Forças Armadas – um discurso woke e absolutamente patético, que me envergonha e repugna como filha de um militar. A senhora ministra está mais preocupada em impregnar o seu activismo feminista nas entidades que tutela, do que em dignificar os profissionais que põem a sua vida ao dispor pelo país. Um circo pegado.

    E sem 2020 os generais-oficiais do GREI já tinham alertado para o estado de “pré-falência” das Forças Armadas, algumas das medidas entretanto apresentadas pelo Ministério da Defesa para remediar a situação, foram menos do que meros ‘paliativos’.

    A título de exemplo, as medidas apresentadas em Outubro de 2023, são cómicas, e quase trágicas. Com vista a aumentar o número de candidatos, desceu-se a exigência: os militares podem agora ser ‘minions’ de 1,54 metros, e algumas doenças crónicas já não bastam para excluir uma candidatura. Em cima da mesa, esteve também a abertura a estrangeiros, mas a ideia ficou, pelo menos por enquanto, em águas de bacalhau.

    Tudo isto seria desnecessário, se houvesse uma valorização efectiva das Forças Armadas e do seu papel. Respeite-se aqueles que se colocam na linha da frente pela defesa da nação, honrando a sua coragem e abnegação – e não espezinhando a masculinidade, qualificando-a como “tóxica” -, ao invés de lançar acusações de machismo e dissertar sobre a igualdade de género na Defesa, e talvez os portugueses voltem a querer servir o país como militares.

    Maria Afonso Peixoto é jornalista


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


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  • Chega: ‘Pagamos tantos impostos para sustentar a corrupção!’

    Chega: ‘Pagamos tantos impostos para sustentar a corrupção!’

    Na Europa tem-se observado um crescimento de novos partidos de direita, que em alguns casos já conquistaram o poder. Este fenómeno é atribuído à falência das esquerdas que direccionaram seu foco para questões intencionalmente divisivas e muitas vezes desconectadas da realidade. Crises e conflitos são fabricados por um status quo de directrizes globais. A narrativa simplificada ao estilo Matrix, com escolhas binárias entre comprimido azul e vermelho, impossibilita a consideração de alternativas mais abrangentes, como terceiras, quartas ou mesmo vigésimas segundas vias.

    Cada vez mais tomamos consciência do poder desmedido de organizações globalistas, como o Fórum Económico Mundial (FEM) ou o Clube de Bilderberg, do qual Francisco Pinto Balsemão foi membro permanente de 1988 a 2015, altura em que passou o cargo para Durão Barroso. Enquanto isso, a tolerância em relação às elites psicoqualquercoisa diminui, como bem observa Maria Afonso Peixoto no PÁGINA UM, ao abordar o último encontro de Davos do Fórum Económico Mundial: ” Embora os olhos do Mundo devessem estar postos nesta cimeira, e o escrutínio sobre aqueles que por lá passam devesse ser implacável – porque são eles que, assemelhando-se a Deuses no Olimpo, tomam as derradeiras decisões que afectam todos nós -, a maior parte das pessoas não sabe nem sonha a dimensão do poder concentrado nestes “escolhidos”. Escolhidos, é uma maneira de dizer, pois constituem literalmente apenas um “punhado” não eleito de pessoas: este ano, o encontro contará com 2.800 convidados. Um número reduzido comparando com os cerca de oito mil milhões de pessoas a habitar o planeta, e sobre os quais os 2.800 participantes exercem um poder desmesurado.”

    Cartaz do Chega exposto na Avenida da República, em Lisboa. Fotografia: ©Sara Battesti.

    Num contexto de manutenção e fortalecimento do poder, a origem da doença e a cura emergem dos mesmos lugares. É nesse cenário que surge no espectro político português André Ventura, antigo comentador do Benfica. Este destacado produto televisivo desenvolveu sua desenvoltura e agilidade discursiva defendendo fervorosamente Luís Filipe Vieira. Aliás, a televisão tem desempenhado um papel fundamental na criação de importantes actores políticos nacionais e internacionais, lavando as mãos quando as coisas dão errado, o que acontece quase sempre. Em 1998, Emídio Rangel, antigo director da SIC, afirmou no documentário “Esta Televisão é a Vossa” de Mariana Otero para o canal ARTE: “Uma estação que tem 50% de share vende tudo, até o Presidente da República! Vende aos pedaços: um pedaço de Presidente da República aqui, outro ali, outro acolá, vende tudo! Vende sabonetes!”

    Nesta terceira análise dos cartazes de rua da actual propaganda partidária, irei escrutinar os do Chega que tem conquistado um aumento significativo de tempo de antena. Após o sexto congresso, realizado entre 12 e 14 de Janeiro de 2024, onde André Ventura foi reeleito com uns impressionantes 98,9% de votos, observa-se uma intensificação de esforços dos comentadores políticos em desmontar as propostas apresentadas por este partido. Um fenómeno que tem prolongado a sua cobertura mediática, elevando-o ao estatuto de uma instância crucial na criação de espaços para a disputa ideológica e a construção da agenda pública. E assim, demonstra habilidade em marcar o compasso da agenda-setting dos meios de comunicação. Como sugerem os estudos de Malcolm McCombs e Donald Shaw, esta capacidade não apenas informa as audiências sobre assuntos de interesse público, mas também condiciona a percepção da importância de determinados temas com base na visibilidade que os media lhes conferem.

    A reeleição de André Ventura não evidencia apenas a consolidação do líder no interior do partido, como também preconiza uma base de apoio sólida. A atenção crescente que lhe é dedicada com análises mais profundas e críticas por parte de comentadores políticos, indica que as propostas do partido estão a ser submetidas a um escrutínio minucioso. Neste cenário, a cobertura mediática emerge como um terreno fértil para a competição ideológica, onde o Chega se destaca tanto pela sua presença, como pela sua capacidade de influenciar a agenda política e moldar a opinião pública. Esta dinâmica revela um contexto político intrigante, onde o partido consegue nortear o discurso público.

    Cartaz de pequeno formato da campanha do Chega, exposto na zona das Avenidas Novas, em Lisboa. Fotografia: ©Sara Battesti.

    Com diferentes formatos, que vão desde o outdoor 8×3 metros até ao cartaz A2, a palavra-chave desta campanha é “corrupção”. A estratégia adoptada segue uma lógica cumulativa, coleccionando motivos desde 2022. Optando pela polifonia, é orientada por uma estratégia expansionista que visa marcar presença em todos os concelhos do país, alcançando finalmente uma cobertura nacional em detrimento da anterior adstrita aos grandes centros urbanos. O estilo contestatário e o tom consistente são distintivos, evidenciados pelo uso sistemático do ponto de exclamação a vermelho, presente nos slogans e, até mesmo no logótipo desenhado pelo arquitecto Nuno Afonso, um dos fundadores do partido. Esta dupla consistência revela uma abordagem estratégica unificada, realçando a importância da mensagem anticorrupção com o #vergonha. A ampliação da distribuição geográfica reforça o compromisso em chegar a diversos públicos, ao mesmo tempo que a participação dos militantes no financiamento directo desta campanha reflecte o grau de mobilização e o envolvimento na projecção do partido.

    Esta campanha aposta numa fórmula clássica baseada num código de cores seguro e eficaz: azul, branco e vermelho. Esta escolha, frequentemente utilizada por marcas comerciais norte-americanas, atribui ao azul uma conotação de confiança, enquanto o vermelho simboliza poder e força. Apesar de apresentar um design desgrenhado, oferece uma leitura clara e compreensível.

    No formato mais compacto, o apelo “Vamos acabar com a corrupção e os tachos em Portugal” utiliza um tom coloquial e recorre ao calão para estabelecer uma conexão directa com o público. Já nos outdoors, a mensagem “Pagamos tantos impostos para sustentar a corrupção!” adopta uma formulação popular, semelhante ao que se poderia ouvir em conversas de café. Aqui o uso de quatro tamanhos de letra resulta numa disposição impositiva que lembra os oráculos e a identidade visual das Breaking News nos telejornais. Com uma composição a ser aparentemente desordenada, a campanha consegue transmitir eficazmente a sua mensagem de luta à corrupção, a partir de uma linguagem acessível e referências visuais familiares. Um estilo que lhe confere autenticidade e uma certa informalidade, o que potencia a proximidade, o envolvimento e o vínculo ao eleitorado.

    Outdoor do Chega com recorte de André Ventura, junto à Assembleia da República, em Lisboa. Fotografia: ©Ruy Otero.

    Nos maiores formatos, a imagem de André Ventura é capturada com um estilo fotográfico amador, remetendo quase à fotografia tipo-passe. Nalguns casos devido à falta de definição da imagem, as cores ficam deslavadas cujo fundo branco não consegue disfarçar a falta de nitidez. Na versão em 4×3 metros, o enquadramento da fotografia permite uma visão mais ampla do vestuário e revela uma gravata bege ligeiramente torta, indicando uma falta de cuidado.

    Esses detalhes, notavelmente visíveis nos 40 centímetros de tecido que compõem a gravata, desempenham um papel fulcral na consolidação da imagem de um representante político e, portanto, exigiriam uma atenção especial. Este descuido na escolha da imagem e na apresentação visual pode ser interpretado como um deslize na construção de vínculos com o eleitorado, uma vez que a aparência de um político influencia bastante a percepção do público. Afixada junto à Assembleia da República, em Lisboa, existe ainda uma versão original e marcante pelo recorte no topo superior de André Ventura materializado num avançado que extrapola os limites da moldura.

    Ao examinar o design do logótipo do partido, é notável a sua desconcertante falta de competência. O pictograma básico do território nacional parece ter sido retirado de um manual escolar do 1º ciclo, rodeado por linhas circulares dinâmicas que evocam um efeito de centrifugação de uma máquina de lavar roupa. Carimbada em caixa de texto, a designação do partido é sublinhada por um ponto de exclamação, além de quebrar a norma ao mencionar explicitamente ser um “partido político”. Resistindo a investir seriamente neste elemento identitário crucial, opta por manter um logótipo cuja imaturidade leva a crer que foi feito no PowerPoint com cliparts gratuitos. Esta falta de brio é ainda enfatizada pelo uso de diversas versões do recorte de Portugal, algumas delas sem as regiões autónomas. Não só é de mau tom representar Portugal sem ilhas, como esta opção dissolve claramente a credibilidade da sua assinatura, “Por Portugal e pelos portugueses”, que pretendem exaltar os princípios nacionalistas e securitários que regem o partido.

    Ilustração inspirada no teledisco dos Queen, I Want to Break Free. © Ruy Otero e Bruno Cecílio

    Ao concentrar esforços na angariação de votos junto de um eleitorado desiludido, o Chega continua a posicionar-se como um partido de protesto. Sob essa perspectiva, a comunicação de estilo Santos Silva revela-se altamente eficaz. No entanto, a estratégia retórico-argumentativa de André Ventura permanece no domínio da esperança, incapaz de alcançar e consolidar a legitimação do partido. Desde 2022, a campanha manteve uma simplicidade que relega André Ventura ao papel de animador ou entertainer.

    Neste contexto e contrariando a posição do seu próprio líder, não consegue fazer a transição para um partido de poder. Esta disparidade evidente poderia porém ser corrigida ao adoptar estratégias semelhantes às de líderes populistas como Geert Wilders, Marine Le Pen ou Giorgia Meloni, onde o discurso e a imagem de estadistas ocuparam o centro das propagandas. Ao transitar do protesto para a esperança, mensagens como o “Make America Great Again” de Trump ou o “Yes we can” de Obama foram particularmente eficazes no Ocidente nos últimos tempos. Independentemente do crescimento esperado do Chega nestas eleições, a falta de um salto significativo pode ser atribuída a uma estratégia de comunicação insuficiente para alcançar os objectivos.  

    André, ainda não é desta que vais à Champions League!

    Sara Battesti é estratega e especialista em Comunicação


    Avaliação do cartaz

    Design: 1/5

    Impacto: 4/5

    Eficácia: 3/5

    Média: 2,7/5


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  • Viseu, Covilhã, Sever do Vouga: crónica dos lugares

    Viseu, Covilhã, Sever do Vouga: crónica dos lugares

    Dei as quintas-feiras a Viseu e as sextas-feiras à Covilhã. Assim, contraída a preposição, que Covilhã é moça e Viseu é bonacheirão.

    A Sever do Vouga dei um sábado só e furou-se o pneu numa picada, que comeu o resto da tarde em lama e bombinhas de soprar ar viciado, a ver se ainda regressava ao asfalto. Fica a caminho, sabem?

    Os tempos e os dias são assim dedicados a lugares (o tempo, sempre o tempo), sabem?

    Os lugares são por vezes pessoas, uma ronda que fazemos pelos quilómetros que unem esta e aquela terra, onde está esta e aquela pessoa, que aproveitamos para apertar os ossos contra nós, numa era de distâncias sussurradas e silêncios que fazem muito barulho. (Sabem?)

    Lugares comuns.

    Então, nestes pontinhos do mapa lá fui eu lançada várias vezes, em movimento curvo, giratório, fisgado, catapultado. Nada suficiente para ouvir com detalhe a côr da pronúncia, só o suficiente para sentir a paisagem esboroar-se em volta e esbarrar-me com as pessoas (que por vezes são lugares).

    Mas sabem, (sabem a quê?) sabem umas vezes a açucar em pó, outras a folhado de manteiga bem fina, o doce da terra, entrar na padaria e pedir o que só eles têm. Outras a fumeiro, lenha, braseiro, gelo. O ar parado do país ignorado. O ar redondo dos lugares sem mar onde o Atlântico não chega a trazer o interesse de (bananas de) um certo borbulhar em Lisboa (mas já lá iremos a essa moça, hoje não).

    Depois de entontecida, rotunda após rotunda de Viseu, rochas empilhadas no caminho e que lindas que são, mais que pedras, já são como naturais ali, eternas, sigo o corte para a Covilhã, avisto a linha do comboio que pouco ou nada passa (nunca que chegue), montanhas que mudam de sítio hoje, pontes, viadutos que se apressam em unir nenhures, a força de Espanha a anunciar-se (anda cá, anda cá).

    Porque nascemos aqui e ali, não acolá, que coisa estranha esta, eu que poderia pensar com outra língua, sentir o sabor das coisas com outro nariz.

    E eis a Serra.

    Estrela.

    O topo parece tão pertinho, que estranho é deixar de ver (gelo).

    Dei as sextas-feiras à Covilhã. As voltas que a vida dá, se pensava eu que tal lugar existiria fora dos passeios de escola, e ei-la lá, digna, serrana, paciente.

    Coitadinho do motor que precisava de ar extra para vencer algumas ruas sem patinar muito, coitadinhas das minhas pernas que ficaram estendidas em músculo espalmado no dia seguinte (nem entendi porquê). O peito a esforçar-se e o ar que era pouco (puxa o ar, puxa! Mas não afogues o motor!)

    Oh Covilhã. Sabes que existe uma covilhã no sítio da minha terra? (Quantas Covilhãs existem em Portugal?)

    Saberás tu (ou Viseu, ou Sever, ou Aveiro, ou o Porto, ou a Régua, ou Moncorvo, ou todas as que ainda vou percorrer), que és um país tu só e ainda mais país tu com todas? Mais que certa moça solarenga com borbulhar (de bananas) que nem se lembra de onde veio?

    Terras que alimentam a capital do reino (das bananas). Lugares.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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  • Vamos ‘salvar’ grupos de media ou vamos sustentar vícios e luxos?

    Vamos ‘salvar’ grupos de media ou vamos sustentar vícios e luxos?


    De um lado temos o Jornalismo e a Democracia. Do outro temos os grandes grupos de media, as suas parcerias comerciais e a constante propaganda política.

    Hoje, fala-se muito em ‘ajudar’ os media e em usar dinheiro dos contribuintes para ‘apoiar’ o Jornalismo. E confunde-se Jornalismo com os actuais grandes grupos de media, como Global Media Group, Trust in News e Impresa.

    Mas, desengane-se quem pense que financiar grupos de media é o mesmo que ‘salvar’ o Jornalismo e a Democracia.

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    Desengane-se quem pense que os grandes grupos de media são sempre sinónimo de Jornalismo, liberdade de expressão, de informação livre, plural e independente. (Basta constatar o facto de que teve de ser um órgão de comunicação social independente – o PÁGINA UM – a colocar acções em tribunal para obrigar entidades públicas e o próprio Governo a divulgarem informação que têm vindo ilegalmente a esconder dos portugueses).

    A realidade nua e crua é que, em geral, nos grandes grupos de media as parcerias comerciais multiplicam-se e crescem, enquanto jornalistas são despedidos e as reportagens são cada vez mais uma ‘coisa’ rara. Não há dinheiro para investigar e viajar em reportagem, mas há para bons salários para directores e administradores, carros topo de gama, cartões de crédito, almoços gourmet, avenças para comentadores amigos e para jornalistas que não incomodam o poder.

    Muitos bons jornalistas – dos que incomodam – são colocados na prateleira ou ‘dispensados’. (Sei de alguns que, estando em funções, têm sido impedidos de publicar ‘cachas’ por serem temas que não agradam aos ‘patrocinadores’). Estagiários baratos ou grátis que não fazem perguntas e executam na perfeição a cópia de comunicados de imprensa são ‘promovidos’.

    Pouco jornalismo se faz, hoje, nas redacções cheias de jornalistas ocupados a fazer ‘corta e cola’ de ‘takes‘ da agência Lusa ou de comunicados do Governo ou de empresas. O churnalism é uma realidade que envenena as redacções. As parcerias comerciais são a erva daninha semeada com a ajuda de directores que é, hoje, impossível de arrancar.

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    A realidade nua e crua é que os grupos de media vivem para os seus ‘clientes’, que são as empresas, bancos e entidades públicas que lhes pagam para fazer conferências, summits, tertúlias, talks, entrevistas e podcasts. Promovem-se líderes empresariais, marcas, produtos, campanhas, tendências…

    Mas vemos jornalistas a dizer que a crise nos media é um problema do ‘modelo de negócio’ e a culpa é da Internet e das redes sociais. Além disso, dizem que a culpa também é … dos leitores. Como se os jornalistas e os vícios dos grandes grupos de media não tivessem nada a ver com a crise no sector.

    A antiga directora do Público, Bárbara Reis, afirmou que “a elite portuguesa, incluindo médicos, professores e pessoas com boas reformas, desvaloriza a informação livre e independente”, referindo-se aos grupos de media. Ora, esta afirmação espelha bem a ‘bolha’ em que vive a maioria dos jornalistas que trabalham para os grandes grupos.

    Aquilo que os “médicos, professores e pessoas com boas reformas” desvalorizam é a mistura de notícias com conteúdos pagos, a mistura de entrevistas com parcerias comerciais e os suplementos patrocinados até ao tutano para vender peixe alheio. Aquilo que desvalorizam é noticiários que dedicam os primeiros 30 minutos a políticos. Ou a promoção descarada de empresas e partidos. Ou o ‘bajular’ em directo de certas personalidades.

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    A classe perdeu a noção da realidade, ao ponto de achar normal um congresso de jornalistas com mais de uma dúzia de patrocinadores, e em que jornalistas se ‘babam’ frente ao Presidente da República, num espectáculo desprestigiante e triste.

    O pudor desapareceu por completo. A classe dá-se conta da gigantesca promiscuidade com o poder político e económico?

    Há muito que os maiores grupos de media se divorciaram do público. Mas vivem naquela relação tóxica de ter pedido o divórcio, mas de quererem manter o público por perto. Não entendem por que motivo o público está a seguir em frente. Não entendem que o público se sente traído e partiu, sem olhar para trás.

    “Não compro jornais há anos”. “Ver telejornais, para quê? É só políticos e propaganda”. As frases de desgosto e lamento sobre o estado dos media em Portugal multiplicam-se pelos fóruns e comentários na Internet e nas ruas. Falando com jovens, a realidade é similar: “Ver notícias? LOL”, é uma das respostas que recebo quando pergunto a um universitário se lê jornais.

    Não tenho visto muitos jornalistas publicamente a colocar a mão na consciência e a admitir que nas suas redacções se faz cada vez mais do que ‘não é jornalismo’ do que o que ‘é jornalismo’.

    Aquilo que tenho visto é a hipocrisia atroz e patológica de se culpar apenas a Internet, as redes sociais e os problemas financeiros dos grupos de media pela grave crise que atinge o sector.

    O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, no V Congresso dos Jornalistas. O evento, que foi patrocinado e ‘apoiado’ por mais de uma dúzia de entidades públicas e privadas, incluindo empresas e bancos, exigia o pagamento de entrada a jornalistas interessados apenas em cobrir o congresso,
    o qual teve ainda o ‘Alto Patrocínio’ da Presidência da República.
    (Foto divulgada pelo Congresso dos Jornalistas; D.R.)

    A verdade é que jornalistas têm ficado em silêncio sobre o que se passa nas redacções. Já perdi a conta de jornalistas que me dizem que apoiam o trabalho do PÁGINA UM e que tudo vai mal nos grupos de media, incluindo a propaganda que fazem. Mas, depois, esses jornalistas fazem algo para acabar com isso? Confrontam a direcção? Enfrentam os CEOs? Recusam executar parcerias comerciais (quando delas se apercebem)?

    A verdade é que o terrível corporativismo da classe ameaça ajudar a acabar com ela. Jornalistas infractores, que mantêm actividades incompatíveis com a profissão, seguem como se tudo fosse normal. Jornalistas a executar contratos comerciais – sobretudo directores – prosseguem como se fosse tudo normal. Nas barbas da Comissão da Carteira Profissional do Jornalista, da Entidade Reguladora para a Comunicação Social e do Sindicato dos Jornalistas.

    Em Portugal, esta é uma prática tóxica – todos se calam para não ‘parecer mal’. E assim, se ‘lixa’ toda uma classe e a credibilidade do sector.

    Agora, os media e os jornalistas pedem dinheiro ao Estado e ajudas.

    A surgirem ajudas dos contribuintes – seja através de um Carlos Moedas ou de um Ministério governamental – servirão para pagar baixos salários de estagiários e alguns jornalistas destacados para fazerem ‘copy-paste’ de ‘takes’ da Lusa e comunicados do Governo.

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    As ‘ajudas’ servirão também para pagar carros topo de gama de administradores e directores, além das senhas de gasolina, despesas extra diversas, almoços, cartões de crédito, prémios anuais e os seus razoáveis salários.

    As ‘ajudas’ servirão para pagar avenças de comentadores pagos a peso de ouro ‘porque sim’ – do amigo, ao amigo do político ‘amigo’ – enquanto o estagiário é ‘esfolado’.

    As ‘ajudas’ servirão para financiar ‘vícios’ e formas de estar nos media que têm prejudicado a Democracia, o Jornalismo e beneficiado o poder político e económico (e ajudado alguns jornalistas, directores e administradores a construir piscinas na casa de campo).

    As ‘ajudas’ servirão para manter tudo como está, quando os leitores pedem mudança urgente nos media. As ‘ajudas’ servirão para tapar o buraco criado por negócios opacos e negociatas que correram mal.

    Há jornalistas que sabem disto, que dizem isto à porta fechada. Está na altura de os jornalistas se deixarem de atirar culpas e olharem para o que se passa nas redacções e nos seus grupos.

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    Não é só na Global Media que há contas e negócios a escrutinar. E na Trust in News? E na Impresa? E os milhões devidos ao Estado, à Autoridade Tributária, à Segurança Social? Aos bancos?

    Este cenário beneficia muito quem andar a ‘dar apoios’ ao Jornalismo. Sobretudo porque os apoios ajudam a que se faça ‘jornalismo’ apenas em algumas áreas que se quer. Esse condicionamento será a morte do Jornalismo.

    Já hoje é visível a tendência de se fazer ‘jornalismo de investigação’ apenas em certos temas para os quais ‘se pode ir buscar dinheiro e bolsas’. Aliás, toda a indústria do chamado ‘fact-checking’ não passa disso mesmo, uma oportunidade para ‘ir buscar uns milhares ou milhões’. Depois, tem é de se escrever o que se sabe que se espera que seja escrito… ou seja, a ‘verdade’ é só a que sai de Governos, comunicados ‘oficiais’ e pouco mais… Como se isto tivesse qualquer semelhança com Jornalismo, cujo ADN consiste precisamente em questionar… as autoridades e os comunicados oficiais.

    Agora, querem que se dê ‘apoios’?

    Esta tese das ‘ajudas’ públicas aos grandes grupos de media, além de usar um argumento falso – ‘salvar o Jornalismo e a Democracia’ – só vai servir para alimentar o ‘monstro’ em que se tornou a interferência comercial e política no sector. Falso argumento porque existe muita imprensa para lá dos grandes grupos, incluindo imprensa regional e projectos de jornalismo independente, como o PÁGINA UM.

    Esta tese de se vir a ‘ajudar’ os grandes grupos de media, faz-me lembrar o filme ‘O Exterminador Implacável’. A tese é de que se nada se fizer, ‘O Exterminador Implacável’ chegará para eliminar o ‘Jornalismo’. Acontece que no filme de culto protagonizado por Linda Hamilton e Arnold Schwarzenegger é precisamente na tentativa de se travar o aparecimento do ‘exterminador’ que se acaba por activar a fatídica Skynet e libertar o poder da inteligência artificial, que lança uma guerra contra a Humanidade.

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    Na tentativa de se ‘salvar’ o ‘Jornalismo, ‘ajudando grandes grupos de media, arrisca-se a que seja activada uma outra ‘Skynet’, com os grupos de media, ainda mais dependentes de ajudas financeiras externas – públicas e privadas –, ainda mais vulneráveis e condicionados, unidos numa cruzada contra os ‘dissidentes’ que questionem o poder político e económico.

    A ‘máquina’ dos media, financiada pela ‘máquina’ política e económica, seria aperfeiçoada para ‘eliminar’ todos o que ‘desobedecessem’ ao poder instalado e verdades ‘oficiais’, e a liberdade de imprensa e de expressão seriam apenas uma lembrança – tal como a Democracia .

    Ajudar os grandes grupos de media, como eles são hoje – com toda a promiscuidade e dependência comercial de entidades públicas e privadas – é impedir a sua urgente limpeza, mudança e transformação.

    Dificilmente, mantendo a actual promiscuidade com o poder político e económico e os actuais ‘vícios’ e salários e avenças de luxo, os grupos irão mudar. Pelo contrário, vão saber que, se quiserem sobreviver, têm de se ‘rebaixar’ mais.

    Sem se fazer esta ‘limpeza’, não há ajudas que valham para os ‘salvar’. Mas, se calhar, é isso que se quer. Num mundo em que os media são controlados por políticos e grandes grupos económicos, tudo é mais fácil.

    Num admirável mundo novo dos grupos de media financiados por ‘ajudas’, uma nova era nasceria em que a censura e o pensamento único seriam, em definitivo, a norma.

    Tal como no filme ‘O Exterminador Implacável’, arriscamos caminhar a passos largos para esse mundo em que mais ‘jornalistas’ se ajoelham perante o poder, fazem vénias a entidades públicas e privadas – sejam de saúde, tecnológicas, financeiras ou militares -, beijam a mão do Presidente da República e agradecem as ‘ajudas’. As ‘ajudas’ que os ajudam a não mudar.

    Elisabete Tavares é jornalista


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Partido Socialista Dois: um fartote

    Partido Socialista Dois: um fartote


    Depois da convenção do partido de “extrema-direita”, este fim-de-semana tivemos o mesmo evento realizado pela Aliança Democrática (AD), que teve como convidado de honra o político que em tempos redefiniu a palavra “irrevogável” do dicionário português. Desde então, passou a ser conhecido pelo Irrevogável.

    O que nos disse? “Lembrem-se daqueles que durante a pandemia eram negacionistas. No Brasil, foram mais de 600 mil mortos. Tomem cuidado com os que desdizem, desprezam e insultam o trabalho da Ciência e dos cientistas”. Avisou-nos também que existe “muita desinformação e manipulação”- tudo isto perante palmas efusivas dos principais dirigentes da AD.

    É sempre bom saber que devemos seguir a “Ciência” de forma incondicional, como se se tratasse de um dogma religioso. Por exemplo, como explica o milhão de mortos por covid-19 nos Estados Unidos, cerca de 3.100 mortos por milhão de habitantes, tal como no Brasil, o país que seguiu a sua “Ciência”?

    Quem não se recorda das missas dominicais do Irrevogável, sem qualquer contraditório e cheias de “desinformação e manipulação”, a anunciar-nos a “pandemia dos não vacinados” ou de que “não aceitar ser vacinado, risco de contágio e hospitalização”. Para nossa “estupefacção”, há meses, a Agência Europeia do Medicamento (EMA) disse-nos que, afinal, as “vacinas contra a covid-19 não foram autorizadas para prevenir a transmissão de uma pessoa para outra”. É bem elucidativo da “Ciência” do Irrevogável, onde este nunca aborda os efeitos adversos das “miraculosas vacinas”.

    O Irrevogável e os seus correligionários de partido são muito respeitadores dos nossos direitos, em particular da nossa propriedade. Quem não se recorda do seu amigo e mui católico Bagão Félix, que em 2004 confiscou mil milhões de Euros do fundo de pensões da Caixa Geral de Depósitos a favor dessa organização parasitária chamada Estado português. Hoje, como bom católico, diz-se arrependido; valha-nos isso!

    Mas não é só o partido do Irrevogável que segue a máxima do Fórum Económico Mundial: “Não terás nada e serás feliz”. Também o Partido Socialista Dois (PS-Dois), o principal partido da AD, também zomba de todos nós. Há dias, a deputada do Parlamento Europeu, Lídia Pereira, num tom professoral, como se nos tratasse por estúpidos, veio “elucidar-nos” que a União Europeia não queria proibir-nos de reparar os nossos carros, mas apenas nos impossibilitar de os vender!, caso estes se encontrem em “fim de vida”.

    O parasitismo sobre o “nosso dinheiro” é uma das grandes virtudes do PS-Dois, em particular do seu actual líder. Quem não se recorda que entre 2014 e 2018, a sociedade de advogados Sousa Pinheiro & Montenegro, detida em 50% pelo “Grande Líder”, obteve 10 contratos por ajuste directo das câmaras municipais de Espinho e Vagos, ambas lideradas pelo PS2, perfazendo um valor total de 400 mil euros. Os amigos são para as ocasiões.

    E o líder da lista pelo Porto, também amigo íntimo e conterrâneo do “Grande Líder” e que esteve à frente da Ordem dos Médicos durante a putativa pandemia? Quem não se recorda do seu apoio à vacinação de crianças contra a Covid-19? Quem não se recorda da sua campanha de angariação de fundos para compra de fraldas faciais, em que os donativos das farmacêuticas foram canalizados para a sua conta pessoal, enquanto a Ordem dos Médicos, por si liderada, emitia facturas falsas?

    Quem esteve afastado desta “festa” foi o ex-líder do PS-Dois, Pedro Passos Coelho. Aparentemente, não tinha sido convidado. Enquanto decorria a convenção, os órgãos de propaganda situaram-no num almoço na Guarda, em convívio com actuais e ex-altos dirigentes do PS-Dois e o muito conhecido juiz Carlos Alexandre.

    O que estaria este último a fazer no meio de tão distinta companhia? Estaria a discutir os inocentes ou os acusados da Operação Furacão, Face Oculta, Remédio Santo, CTT, Operação Labirinto, Operação Marquês, caso EDP, Operação Lex, Tancos? Vergonha parece não abundar por aquelas bandas.

    Enquanto saboreavam a opípara refeição, os principais dirigentes da AD apresentavam-nos as suas propostas para o país. Uma deles é um plágio da proposta do partido de “extrema-direita”: “Aumentar o valor de referência do complemento solidário para idosos para “ser igual ao salário mínimo nacional numa segunda legislatura”. São autênticos batoteiros, pois deveriam ter referido o verdadeiro autor de tal medida.

    Por fim, a discussão de lota de peixe em que se transformou o salário mínimo. A AD promete um salário mínimo nos 1.100 euros! Fica sempre a pergunta: porque não 5.000 euros por mês, e ficava já a questão garantida. Esquecem-se sempre que o salário é de zero euros quando a produtividade do trabalhador é inferior a tal valor, prejudicando essencialmente os pobres e os portugueses do interior.

    Enfim, como podemos concluir, a AD é a verdadeira alternativa. Para já, juntou um grupo de “notáveis” que nos ama e protege; como não gostar deles!

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


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  • Do uso disparatado de quatro palavras muito em voga

    Do uso disparatado de quatro palavras muito em voga


    Tolerância

    Eis um dos valores mais enaltecidos.

    A tolerância enxameia o discurso dos habitantes do espaço público. Quase ninguém se insurge contra o conceito insidiosamente servido a toda a hora. Se perguntarem aos habitantes e frequentadores do espaço público se tolerar é algo inerentemente bom, ouvirão um enfático «SIM» de quase, quase, quase todos eles. Fora da esfera pública, também empregamos o substantivo/nome «tolerância» (e o verbo «tolerar») como algo que devemos, a todo o custo, promover.

    Que preferia ouvir sobre si: «respeito-o/a» ou «tolero-o/a»?

    Acaso gostaria de ser «respeitado/a», «aceite» ou «tolerado/a»?

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    Ninguém dirá: «Gosto dele, mas tolero-o.» Mas muitos dizem: «Não gosto de X, mas tolero-o.» O lugar da adversativa deveria dizer-nos tudo sobre o conceito insidioso.

    Ninguém terá garantido ouvido outrem dizer: «Ah, como gosto de ser tolerado!»

    Gostamos e precisamos de tolerar e ser tolerados, ou de amar e ser amados?

    Que será mais elogioso: dizer que amamos, respeitamos ou admiramos X, ou que toleramos X?

    Reflicta sobre os exemplos anteriores e convide outros a reflectir sobre eles: andaremos a difundir um desiderato que não desejamos?

    Etimologicamente, diz-nos o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa, de José Pedro Machado, «tolerar» vem do latim com os significados «levar, suportar um peso, um fardo; aguentar, suportar, sofrer; aguentar-se; ficar, persistir; suster, manter, sustentar; resistir a, combater».

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    Sucede que tolerar é mesmo suportar um peso ou fardo. Assim como há pessoas com graus de tolerância maiores ou menores, há também pesos e fardos maiores ou menores.

    Agostinho da Silva, no programa televisivo Conversas Vadias, com a entrevistadora Alice Cruz: «Tolerar é já marcar uma superioridade. […] Tolerar é dar licença, com desprezo, que o outro seja assim. Coitado, oxalá se modifique.»

    Vai, pensamento crítico sobre a tão elogiada e proclamada tolerância, faz o teu caminho.

    Filosofia

    Quanto mais vezes usamos expressões como «a filosofia da empresa», «a filosofia de jogo da equipa», «a filosofia de jogo do treinador», «a equipa soube interpretar a filosofia do contra-ataque e da contenção de bola», «a filosofia de vendas», «a filosofia de atendimento ao cliente», mais trivializamos e abandalhamos Sócrates, Platão, Aristóteles, Descartes, Kant, entre tantos outros, ou seja, a filosofia e os filósofos (pretéritos, actuais e futuros).

    Privilégio

    Como se abusa desta palavra!

    Uma coisa é saber que há pessoas sem emprego, sem tecto, que há quem morra à espera de cuidados médicos por falta de dinheiro, que há crianças que passam fome, que há quem não tire (nem possa tirar) férias, que há muitos escravos pelo mundo fora (sim, ainda há muitos, muitos, muitos, incluindo escravas sexuais), que há velhos que sofrem violência nos lares, que há pessoas que sofrem violência na sua própria casa.

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    Relativizarmos a nossa sorte, a nossa condição pode ser um refrigério para muitos e pode levar alguns a concluir que chega a ser indigno tanto sofrimento fútil, tanta amargura, quando há tanta gente com razões tão mais fundas para sofrer. Camões, num soneto, promete contar-nos a história dos seus longos males, porque, assevera, «grandes mágoas podem curar mágoas». Quatro séculos depois, Scott Fitzgerald, no confessional The Crack-Up, lembra a cura habitual para o desânimo e a melancolia: considerar aqueles que vivem em verdadeira pobreza material ou em sofrimento físico.

    Outra coisa, bem diferente do que explanei até aqui, são as moderníssimas e ubíquas proclamações de que se teve, por exemplo, o «privilégio» de passar férias, entre uma caterva de «privilégios» que o discurso bem-pensante vai acumulando. Direitos elementares, muitos deles conseguidos à custa de lutas de séculos, são hoje apresentados como «privilégios».

    As altas e obscuras hierarquias agradecem este nivelamento por baixo, consubstanciado na troca dos «direitos» pelos «privilégios». As pessoas adoram fustigar-se por fruírem dos direitos mais básicos, enxertando o inevitável «privilégio» na sua sinalização de virtude, com a sombra da expiação da culpa: privilégio de ter casa própria, privilégio de ter emprego, privilégio de ter contrato, privilégio de passar férias alhures, entre uma miríade de exemplos.

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    Esta autofustigação diz-nos que, no limite, ser homem é ter o privilégio de não ser violado. (Sim, também há homens violados, mas os números são incomparavelmente diferentes. Hoje, explicar tudo é sinal de prudência.)

    Olhe, tenho o privilégio de não ser espancado diariamente, tenho o privilégio de não ser escravizado, tenho o privilégio de não trabalhar quinze a dezassete horas por dia como motorista TVDE.[1]

    Combatamos a exploração sem chamar «privilegiados» a quem frui dos mais elementares direitos.

    Fascista

    De tão gasta e puída, a palavra deixou largamente de identificar aquele que perfilha determinada doutrina política. Hodiernamente, converteu-se no insulto fácil que, de tão utilizado e impreciso, já quase só significa: a expressão do Mal, com maiúscula inicial.

    Em bom rigor, o fascismo consiste, afinal, em quê?  Nem toda a «democracia musculada» (locução utilizada por muita comunicação social amalgamando regimes consideravelmente distintos) é fascista, nem todo o autoritarismo (que não é um sinónimo perfeito de «ditadura») é fascista, e nem sequer toda a ditadura é fascista.

    Se queremos que a palavra inquiete o leitor/ ouvinte, devemos usá-la com mais parcimónia — e, acima de tudo, com precisão semântica. Mas, para isso, é mister estudar (no caso, o que foi o fascismo, estudo que implica mergulhar no regime de Mussolini).

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    Uma palavra que transporta consigo supressão de liberdades, presos políticos, tortura (e conheçam-se, com pormenor, as torturas em causa) e sepulturas (e só estas quatro horrendas características não chegam para definir a especificidade do fascismo, até porque são encontráveis noutros regimes que não se enquadram historicamente no «fascismo») não pode perder capacidade de evocação, de representação mental da lista de horrores. Tal palavra deve ser usada, insista-se, com mais parcimónia — e, por conseguinte, com mais viço, força e acutilância.

    Conhece a história de Pedro e o Lobo? É isso mesmo.


    [1] Facto noticiado, entre outros órgãos de comunicação social, pela TSF em 17 de Março de 2021: https://www.tsf.pt/portugal/sociedade/ha-motoristas-tvde-a-trabalharem-15-a-17-horas-por-dia-13466711.html

    Manuel Matos Monteiro é escritor e director da Escola da Língua


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.