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  • Antes de mais nada, R-E-S-P-E-C-T

    Antes de mais nada, R-E-S-P-E-C-T

    Deus dá-nos as nozes mas não é Ele quem as parte.

    Provérbio transmontano


    Homenagem a Maria Antónia Fiadeiro,

    Onde se contam as histórias

    Ocultas até hoje


    Convocámos este título inconfundível porque, já que aqui chegámos, aproveitamos a embalagem e, de caminho, homenageamos também a Grande Arietta Franklin. Pode não ter queimado um único sutiã, mas exigiu respeito a vida inteira. Tinha a voz perfeita para isso, e a legitimidade de um passado em que os avós eram escravos. Nunca militou por causas especificamente feministas, mas – ah. Que grande sobressalto causava a sua presença enorme em palco. Era o tipo de presença que nenhum homem poderia alguma vez vir a ter. Era o tipo de presença que ensinou à nossa geração umas lições muito sérias que nós, felizes e estouvadas, bem precisávamos de aprender. Porque era o tipo de presença que só podem ter aquelas que, como Arietta Franklin, ergueram o queixo e, muito naturalmente e muito assumidamente, foram m-u-l-h-e-res muito grandes. And hey, now you deal with it[1].


    Quem muda seja o que for no mundo racista, chauvinista, paternalista e sexista da música soul está evidentemente a mudar alguma coisa no mundo. Sendo assim, claro que o mundo foi mudado por esta mulher enorme que entra em palco de visom comprido, seguida por um coro de Gospel. Vai sentar-se ao piano, solta de lá aquela voz rouca de timbre assombroso que já tinha aos catorze anos, canta até chegar ao clímax final, começa a subir com o coro por trás e vamos lá, “you make me feel like a natural woman – a woman – a woman – a woman – a wo-o-o-o-man!” – e, na batida em crescendo da música, franze as sobrancelhas, salta do piano, agiganta-se de pé no palco, levanta os braços, e – ó momento! – despe e atira para o chão o seu casaco de vison, enquanto o coro explode em harmonias atrás da sua voz sempre firme. No camarote presidencial, Carole King[2] vai ter um AVC a qualquer momento. Michelle, nessa noite linda de morrer, levanta-se sobre o voo do casaco e desata a aplaudir como quem dança. O Primeiro Presidente Negro dos Estados Unidos encostou a cabeça ao espaldar do cadeirão e secou uma lágrima[3].

    Arietta foi aqui chamada como termo de comparação para a portuguesa Maria Antónia Fiadeiro, que eu ouvi cantar várias vezes quando ela se juntava ao meu bando nas nossas noitadas ocasionais de aventura pós-laboral conjunta[4]. A sua voz também era rouca, as suas harmonias também eram certas, as suas notas também eram firmes. Quando íamos aos fados vadios mandávamo-la para a frente nas desgarradas, e as suas quadras de improviso tinham sempre um duplo sentido latente, promissor e ardente[5]. Íamos sentar-nos no alto das colinas, a ver as luzes dos barcos no rio, e ela nessas noites punha sempre uma boina. Até que houve uma noite particular, numa esplanada enorme que existia nessa altura ao cimo do Bairro Alto, onde já chegámos todos completamente mocados e nas duas horas seguintes nos estivémos a deliciar com muita cerveja, muita conversa boa, e muitos peixinhos da horta inacreditáveis que se serviam ali naquela altura.

    Maria Antónia Fiadeiro (1942-2023) numa entrevista à RTP em 2003.

    Nessa noite, e apenas nessa noite, tinham aparecido mesmo no fim do espectáculo alguns Portugueses Muito Importantes. Os outros Portugueses estavam a bater-nos palmas quando se ouviu dizer que íamos fazer um encore para os recém-chegados. Ficou mais gente, entrou mais gente, nós não percebemos nada mas éramos miúdos – repetimos tudo. Fomos para os peixinhos da horta estafados e felizes, comemos e bebemos e falámos, a Fiadeiro presidiu com graça e sabedoria, e por fim toda a gente bazou.

    Estava a nascer uma linda madrugada.

     Foi quando ela me piscou o olho com um sorriso quase tramado mas quase infantil, e me falou quase ao ouvido.

    Gosto de ir ver o teu espectáculo de boina, sabes. O Fernando diz que vocês descarregam uma tal energia sexual para cima das pessoas que mais cedo ou mais tarde o bar inteiro vai acolher um verdadeiro bacanal. E eu não tenho vinte aninhos, como tu, nem uma carinha laroca, como a tua. Preciso de uma boina. Vais ver. Quando estou de boina, sou uma mulher muitíssimo mais atrevida.”

    Não tinha medo das palavras, a Maria Antónia. Pagou centenas de vezes o preço por isso, mas continuou a usá-las com bravura e beleza, de forma limpa e directa desprovida de rodeios, uma forma de falar das coisas que em grande medida eu aprendi com ela.

    É verdade, eu tinha na altura uns 25 ou 26 anos. Ela podia ser minha mãe, e além disso eu era uma miúda e ela era uma grande estrela do nosso firmamento cultural. Metemo-nos a trabalhar juntas num projecto para o Diário de Notícias que também incluía a Antónia de Souza, e quem me convidou para integrar a equipa foi “a Fiadeiro[6]”. Uma porreira, na minha linguagem.  

    Convidou-me porque gostou de mim, da minha maneira de falar[7], e das minhas ideias sobre o mundo e sobre as pessoas, numa entrevista que me fez para o Diário de Notícias em 1985, assinalando o momento em que acabei o curso de Biologia, fui dar aulas de Embriologia para a Faculdade de Medicina de Lisboa, comecei a fazer investigação de doutoramento no Instituto Gulbenkian de Ciência, e, para grande surpresa dos meus colegas, continuei a publicar livros e a escrever crónicas mas abandonei as salas de redacção dos jornais. Ora isto, já de si, é absolutamente notável. Só uma mente brilhante como a dela se lembraria de propôr um trabalho destes ao director do maior jornal diário da capital. A grande estrela entrevista o pequeno cometa que vai a passar? Não senhor, não é costume.

    Número 3 do Cadernos de Reportagem, editado pela Relógio d’Água no final de 1983, sob direcção de Fernando Dacosta-

    Como é evidente, foi a primeira grande entrevista que eu dei na vida.

    Que diabo, eu tinha 25 anos.

    E ela não era mesmo  de pestanejar nem hesitar.

    Às tantas eu estava a falar-lhe da festa do amor e do prazer[8], e da importância da felicidade em cada um dos nossos dias e cada uma das nossas tarefas.

    Consideras-te uma hedonista?

    O que é que eu havia de responder?

    Sim.”                   

    Logo a seguir, a grande estrela conseguiu, finalmente, convencer o director a deixá-la formar uma equipa feminina para produzir uma série de reportagens sobre “A CONDIÇÃO FEMININA – HOJE”. E nem sequer hesitou, convidou logo o pequeno cometa para essa equipa. Gostou da entrevista e basta.

    A sério:

    O pequeno cometa estava todo a tremer quando chegou a casa e contou tudo isto ao marido.

    O marido encolheu os ombros.

    Vocês reparem.

    Ao mesmo tempo que a Maria Antónia tinha estes gestos rasgados de generosidade para comigo, eu sabia perfeitamente que os outros jornalistas andavam antes muito ocupados a garantir uns aos outros que eu ia para a cama com toda a gente e mais alguém[9] para conseguir fazer tudo o que fazia. Era uma explicação sumária tão tentadora que o Meguinha, à época já meu marido, não resistia a usá-la ele próprio de vez em quando.

    Um dia apanhei-o em flagrante delito de cair exactamente nessa tentação mesmo à minha frente[10], e à noite cheguei derreada a casa da Antónia de Souza, em Campo d’Ourique, onde estava marcada a nossa sessão de trabalho para essa semana. Bem, nessa altura já me sentia tão segura com elas duas que desabafei logo na entrada. É que se fosse só o Meguinha, não é? – pronto, seria arrevezado, mas poderíamos imaginar que tínhamos entrado por engano dentro de um romance do Choderlos de Laclos. Elas riam. Mas é que não era só o Meguinha, eram todos os jornalistas, homens e mulheres, oh!, que horror. Elas olharam uma para a outra, e depois recomeçaram a rir. Eu já estava a esticar o beicinho, e foi quando a Fiadeiro me empurrou o braço com o cotovelo, me piscou outra vez o olho, e falou comigo em verdadeiros words of wisdom.

    Clara, essa gente toda que te imagina na cama com outra tanta gente para chegares onde eles não sabem mas tu sabes que queres porque és pérfida e manipuladora sem ter ar disso[11] – por favor, tem pena deles.” São uns desgraçados.”

    Biografia de Maria Lamas, escrita por Maria Antónia Fiadeiro.

    Sorriu para mim.

    Podia ser minha mãe.

    Só que a minha mãe nunca seria capaz de me dizer aquilo.

    Já imaginaste bem a quantidade de pessoas com quem essa gente toda já foi para a cama a tentar chegar onde quer – e nunca conseguiu chegar a lado nenhum? Coitadinhos, queres que não digam mal de ti?

    E então, de repente, vi uma data de gajas todas produzidas a tentarem engatar uns magnatas da televisão que nem olhavam para elas, pelo que acabavam por tirar a roupa para um qualquer técnico de som bexigoso que estava a mastigar pastilha elástica. Vi uns comentadores desportivos já meio carecas, esquecidos da questão de tirar as meias, num esforço patético para dar prazer a umas mulheres desagradáveis com todo o ar de quem não ia dar-lhes nem um quarto de hora nas cenas a cores de domingo[12]. Até vi uns jovens escritores a apanharem em cima com o peso de um editor obsceno que lhes bradava obscenidades e eles só queriam chorar. Vi isto tudo muito depressa, mas não suficientemente depressa, porque, entre a sugestão e o sorriso que a Fiadeiro me oferecera, já estava mas era a rir, a rir, a rir.

    Ela sabia cortar a direito, sabia separar as águas, e tinha este dom.

    Sabia consolar meninas de vinte anos.

    Desse projecto A CONDIÇÃO FEMININA – HOJE[13], devo-lhe ainda mais uma dádiva rara por demais.

    Na nossa primeira reunião de projecto, com o território ainda todo virgem à nossa frente, tínhamos que começar por escolher um formato para a série. E eu, por acaso, na noite anterior já tivera uma ideia. Sabia que era uma ideia um bocado extemporânea, mas que se lixe. De certeza que a Fiadeiro não me escolhera para que tudo ficasse na mesma.

    Bom, minhas senhoras, eu tenho uma proposta. Posso?

    Elas olharam para mim de sobrancelhas levantadas e expressão curiosa.

    Podíamos pegar nisto pelo lado da ilusão: as mulheres pensam que as coisas mudaram, mas, na realidade, as putas das coisas nunca mudam. Nunca há mulheres presidentes nem mulheres primeiros-ministros, não é? Mas esse é o lugar-comum previsível. Nós vamos antes explorar o quotidiano das mulheres normais e mostrar como elas foram enganadas com a conversa da mudança. Ambos trabalham, mas em casa o homem vê televisão e a mulher cozinha, limpa, e trata dos filhos, estão a ver? Se eu vier a sair do bar no Bairro Alto depois de ter feito o BOA NOITE LUA NOVA e estiver a voltar para casa às quatro da manhã, e me sentir tão feliz que paro num banco da Praça das Flores para fumar um charrinho, o mais provável é que seja atacada por um tarado qualquer porque sou uma mulher que está sozinha à noite num banco de jardim e portanto sou uma puta, e só me resta resolver aquilo ao soco[14], o que já me aconteceu e aposto que não aconteceria a um gajo, e aliás é o mesmo que me acontece quando estou sozinha na estrada a pedir boleia, outra coisa que qualquer homem poderia fazer sem ter o mínimo problema. Se não temos quotidianos iguais, não temos paridade. A minha sugestão é cada uma de nós inventar uma mulher, com as suas características físicas e mundo pessoal próprios, que passa pelas situações em que estarão as nossas entrevistadas. Senão, se estas mulheres puderem ser identificadas com nome e apelido, vai ser terrível para elas.

    Hm,” disse uma.

    Hm,” disse a outra.

    Franziram as duas as sobrancelhas com uma expressão intensa.

    E fez-se um grande silêncio.

    Era evidente que elas não tinham gostado da minha ideia.

    Se calhar eu não me tinha explicado bem.

    Provavelmente tinham ficado ofendidas de morte quando eu disse que a nova liberdade das mulheres – essa nova liberdade pela qual elas haviam lutado a ferro e fogo durante quase toda uma vida – andava mais perto das miragens que dos oásis que íamos cruzando na nossa grande e conjunta travessia do deserto.

    Batia-me de repente o coração com mais força.

    Por fim, a Fiadeiro fez um sorriso tramado e deu uma cotovelada muito sabida à sua velha camarada de armas de Souza.

    A minha mulher,” declarou ela, “vai andar sempre a cavalo e chamar-se Madalena.

    Pausa dramática.

    E não está arrependida de coisa absolutamente nenhuma,” concluiu, mais poderosa do que nunca. “É um cavalo musculoso, de grandes crinas, que é todo negro e que se chama Trovão!

    Ah,” juntou-se-lhe a outra num tropel digno do Trovão. “Nesse caso a minha chama-se María Helena e veio de Madrid a fugir à Espanha de Franco e trabalha em publicidade mas como não consegue falar português sente-se ainda hoje um bocado inadaptada!”

    Desta vez a grande estrela estava a aceitar uma sugestão de formato avançada pelo pequeno cometa, o que era uma lição de modéstia de se lhe tirar o chapéu. E mais: estava a aceitar uma sugestão que implicava cruzar factos jornalísticos com personagens de ficção criados para proteger as fontes, uma técnica até então raramente utilizada[15], e ainda hoje extremamente polémica dentro da Comunicação Social. O género de técnica que ou se usa muito bem ou descamba no puro desastre. Ela estava a aceitar correr grandes riscos por sugestão minha.

    As outras pessoas falavam sobretudo da sua seriedade, e neste número podemos incluir até os seus filhos; mas, para lá de toda essa montanha, estava escondido um mar verde cheio de ondas redondas e de espuma branca: eu achava-a divertidíssima. E isto devia-se, sobretudo, à limpidez da sua sinceridade.

    Uma vez o trabalho era só entre nós as duas, os dias estavam a começar a ser cada vez mais compridos, pairava sobre Lisboa uma brisa balsâmica de Verão, e eu estava apaixonada já nem sei por quem. Não é isso que interessa, foi um caso brevíssimo, mas a verdade é que o amor nos faz flutuar uns bons centímetros acima da calçada dos passeios e nos faz cintilar a pele. Entrei no Bairro de São Miguel positivamente feliz, sorri para o murmúrio dos ramos das árvores, alonguei o passo pela sombra e respirei fundo. Cheguei a casa da Fiadeiro, toquei à campainha, e ela abriu-me a porta envolta pelas trevas do interior.

    Olhou-me imediatamente de alto abaixo, enquanto eu lhe acenava com toda aquela luz de Verão a iluminar-me. Tinha feito uma trança que já começava a desfazer-se em caracóis, trazia a franja por cima dos olhos, e tinha as pernas de fora e o umbigo à mostra dentro de um conjuntinho top-shorts arrancado em grande triunfo de uma pilha da Feira de Carcavelos[16], todo ele amarelo-canário e com uns grafitti pretos e vermelhos à frente numa caligrafia que supostamente era cirílico.

    Pois é, Clara.”

    Voltou a olhar-me de alto a baixo enquanto eu entrava e ia direita à cozinha, onde começávamos sempre por tomar café. Riu-se.

    A questão é que vocês, agora, já nascem assim. Já nascem todas elegantes. Podem andar para aí sem sutiã e de pernas de fora… tu, por exemplo, tu podes, tu assim ficas tão linda… A Lena d’Água… a Lena d’Água  também fica linda. Nós, na minha geração, nascíamos sempre de perna curta e anca parideira, como é que nós podíamos…”

    Deitou-me outra vez aquele olhar de medir tudo, ao mesmo tempo que começava a gesticular com grande veemência, como se estivesse a imaginar-se a si própria, e a todas as suas amigas feministas, dentro de um top-shorts amarelo-canário com dizeres em russo. Sem sutiã e de umbigo de fora.

    Oh, como é que nós alguma vez poderíamos!

    A gente deve estes corpinhos à Revolução,” disse-lhe eu. “Não houve nada em Portugal que não mudasse.

    E custou-nos bastante beber aquele café, porque estávamos constantemente a desatar a rir.

     O ano passado, a 30 de Março, os dois filhos da escritora publicaram na Edições Caixa Alta, que receberam o projecto de braços abertos, o livro ARTISTAS ARTESÃS PIONEIRAS: conversas singulares entre mulheres extraordinárias, com entrevistas da Fiadeiro a várias outras mulheres por vários pretextos. A ideia original foi dela, grafismo e sequência incluídos. Começou a preparar tudo muitos anos antes da data da publicação, e quando estava tudo pronto nenhuma editora teve o arrojo de pegar num livro que é também uma obra de arte: são 565 páginas grandes de capa dura, cheias de grandes histórias, onde  tive a honra de ver incluída esta entrevista que me pôs ao colo das feministas, e que ela intitulou A INTELIGÊNCIA É O RECONHECIMENTO DA COMPLEXIDADE DAS COISAS[17].

    O ano passado o livro assinalava a data da morte da Maria Antónia, que nos deixou a 30 de Março de 2023 com uma paragem cardio-respiratória que chegou às dezanove e cumpriu o seu curso às vinte. Nenhum dos dois filhos estava em casa, portanto nunca saberemos se ela descobriu ou não que estava a ir-se embora. Acontece que este seu último livro, uma belíssima oferta que ela deixava ao povo português, saiu em plena pandemia. Quase ninguém o viu. Portanto, este ano, celebrando o primeiro aniversário da sua morte, a Caixa Alta e os dois filhos da Maria Antónia organizaram uma verdadeira festa de lançamento para os quinhentos exemplares da segunda edição, muito apropriadamente no dia oito de Março, na Biblioteca Municipal de Belém, dentro da sala do Núcleo Feminista Ana Osório de Castro que tem o espólio todo dela. E desta vez cada entrevistada pôde, por fim, ler o trecho da sua entrevista que mais lhe falou ao coração.

    Ou à cueca, vá. No meu caso, entenda-se. A Fiadeiro não era piegas, e eu agora tenho a obrigação de ser hedonista.

    Ainda ao jeito de homenagem, este livro/ obra de arte estará nas montras das livrarias a partir de dia 30 deste mês, um ano depois da morte da sua autora.

    E segue-se um brinde muito pessoal aos construtores do livro, com toda a minha ternura.

    Se querem saber como é que eu, ainda hoje, vejo a Maria Antónia Fiadeiro, pois bem – tal como aos vinte anos, vejo-a igual à WonderWoman[18], a minha grande heroína dos comics. Tinha a sabedoria de Atena e o poder de Afrodite para inspirar amor. Era mais rápida do que Mercúrio e mais forte do que Hércules. Na sua república feminina  na Ilha do Paraíso, um refúgio criado pela cultura das Amazonas, protegido dos intrusos por um campo magnético de pensamentos que o mundo conhece como Triângulo das Bermudas, desenvolvera naturalmente os seus poderes assombrosos treinando-os desde a infância com as suas outras Irmãs Amazonas, em concursos de perfeição, força, e velocidade, modelados pelos combates da Grécia Clássica. Tudo isto nos passava a mensagem de que cada uma de nós pode ter em si poderes secretos, desde que acreditemos neles e os treinemos[19]. Eu, pelo menos, agradeço a Deus ter treinado tanto com ela.

    Sim, é verdade. Nem todos os detalhes colam. Não sou feminista. Mas teria que ser? Acima de tudo, sou mulher. Vivo sozinha no Alentejo[20]. Ia escrever “os homens podem viver sozinhos à vontade que ninguém os chateia,” mas isso não é verdade – os homens não aguentam viver sozinhos. Precisam sempre, sempre, sempre de uma mulher que lhes faça companhia e trate deles. Quando são mais novos e lhes estoira o casamento escrevem imediatamente um livro de       catarse e saltam de bar em bar até arranjarem namorada. Quando são mais velhos atrelam-se sem hesitações nem demoras ao Grupo Excursionista mais próximo. Em ambos os casos, o padrão não muda. Um homem sozinho considera prioritário arranjar uma mulher ao seu serviço.

    Mas eu, que sou uma mulher, há uns bons vinte anos que vivo sozinha.

    A Maria Antónia treinou-me maravilhosamente para este tipo de travessia.                                      

    Conheço muito bem o Inferno, e não faço juízos de valor.

    WonderWoman saves the day.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Nestas circunstâncias, a expressão pode traduzir-se livrement por “Hey, e agora aguentem-se à bronca.”

    [2] Co-autora, juntamente com o seu então-marido, da canção “(YOU MAKE ME FEEL LIKE) A NATURAL WOMAN”. Sempre considerei a canção, enfim – simpática para quem gosta do género. Mas isso foi só até ouvir a rendição de Ms. Franklin com o seu longo vison, o seu piano, e o seu coro de Gospel.

    [3] Este concerto, com este momento inesquecível, está postado no YouTube. Sugestão obrigatória para quem ainda não viu e não conhece as mulheres.

    [4] SURPRESA!

    [5] Nunca me esqueci de uma quadra que ela cantou nos fados da Rua do Diário de Notícias e que fez o jovem muito bem parecido com quem ela foi a despique desistir logo: “Não cantava à desgarrada/ Desde  a minha mocidade/ Mas cada um de nós chora/ Por onde tem mais saudade.” Digam-me lá, quantos níveis de leitura poderia aquilo ter. Chora por onde tem saudade? Ah-ah-ah. Grande danada.

    [6] Na imprensa tratávamo-nos todos pelo apelido. Durante anos e anos, até desaparecer nas neves eternas de Buffalo, eu fui “a Pinto Correia”. Razão pela qual sempre tratei por Meguinha o António Mega Ferreira, a quem nunca chamei António: quando ainda não o conhecia mais intimamente, tratava-o por Mega, como toda a gente fazia. Depois do nosso casamento aquilo esteve quase a descambar porque o “Meguinha” ainda passou a “Guinha”, e o “Guinha” chegou a ser “Gui”. Depois caímos na real e emendámos rapidamente a mão. Ah, e ele nisto dos nomes foi um porreiro. Nunca me tratou por “Pinto-Correia”. Incapaz de pronunciar o terno “Clarinha” do comum dos mortais, informou-se quanto a antecedentes familiares e começou rapidamente a tratar-me por “Pretinha”. Que bom. Sempre foi a minha alcunha preferida.

    [7] A minha maneira de falar era um interesse sério para ela. Considerava-a importante para abrir novos caminhos à linguagem. Nesta entrevista, incluída neste seu livro, nota-se que faz um esforço considerável para deixar transparecer a minha autêntica voz – veja-se o uso de “porreiro”, “cenas”, “partir para outra”, “piroso”, “que nem uma besta”, tudo termos que de outra forma ela não usaria.

    [8] Parafraseando Jorge Palma, já que estamos nisto dos porreiros.

    [9] Visitantes estrangeiros de passagem incluídos. Vim a saber de alguns casos absolutamente fulminantes.

    [10]Vai acampar? Vai acampar no Inverno? Eles vão todos acampar no Inverno? Com chuva, lama, geada, e o frio que tem estado? Querem uma história mais mal contada? Reparem, eu acredito que ela vá para Águas de Moura. E basta. Deve haver lá uma pensão manhosa para brincadeiras com assistentes. Basta afundar o Carocha na lama antes de voltar para casa. Enfim, Matilde. Tenho um fim-de-semana sossegado para ler e ouvir ópera.” E a restante redacção do JL ria com as mímicas do Meguinha, mas é queria, ria, ria. Cabrões. Eu era tão jovenzinha que fiz uma cena canalha através da porta, gritei “Meguinha!”, e, quando toda a gente se calou, abri mais a porta e acrescentei: “Nunca mais escrevo para o JL!” Por acaso nem sei se estou arrependida. Imaginemos, por exemplo, que um dia a vida é um filme.

    [11] A Maria Antónia falava muitas vezes assim, como se estivesse a ler as suas próprias frases já impressas no seu novo livro. Era impressionante.

    [12] É verdade, malta. Se não quiserem acreditar não acreditem, mas eu já estava quase a fazer vinte anos quando apareceu a televisão a cores.

    [13] Trabalhámos imenso, e com muito gosto, mas ficou pelo caminho. Eu fui para Buffalo. Elas não quiseram continuar a trabalhar sem mim. De certeza que a culpa foi do formato.

    [14] História verdadeira.

    [15] A primeira vez que isto se usou em grande escala foi numa grande série de quinze reportagens sobre AS FAMÍLIAS PORTUGUESAS que eu, o Fernando Dacosta, e o António Duarte fizémos para O JORNAL. Protegidas por alter egos, as pessoas diziam mesmo tudo o que lhes ia na alma – e verificou-se então que tinham, de facto, muito para dizer. A série deu tanto brado que tive entrevistados refugiados durante meses em minha casa, entrevistados que ainda hoje não me falam (“mas queres mesmo dizer isso em público?” – “quero!” – “mas?” – escreve! escreve!” – “olha, saiu hoje.” – “cabra! por tua causa tive que ir a um psiquiatra pela primeira vez na vida!”), e, decerto, pessoas que ainda hoje cruzam a rua para virem falar-me de alguma coisa que então leram e lhes falou particularmente ao sentimento.

    [16] Eu sou do tempo eu que nasceu a Feira de Carcavelos, recheada de roupas fantásticas que Portugal nunca tinha visto antes e que não estavam à venda em mais lado nenhum. Tudo ao preço da chuva, e ainda passível de se regatear, uma arte que eu adoro. Nesses primeiros anos, eu e as minhas amigas levantávamo-nos às seis da manhã para reunir no meu carro, ir, comprar, mostrar umas às outras, tomar café, rir imenso, voltar, e estar às nove no trabalho com um ar todo impecável. Eu ia a guiar, por isso não podia trocar de roupa no carro durante o regresso. Mas havia até quem fizesse isso.

    [17] Isto foi uma frasezinha que eu soltei no meio de torrentes de palavras para ilustrar a complexidade do mundo vivo. A Maria Antónia fez logo um título bestial com ela. Um daqueles chauvinistas que pululavam nos jornais teria antes feito logo um título tipo “Parti para outra”.

    [18] Na minha geração ninguém lhe chamava “Mulher-Maravilha”. É bué foleiro.

    [19] Parafraseando Gloria Steinem, outra grande fã (e até estudiosa) da WonderWoman.

    [20] OK, OK, reconheço, vivi sozinha em vários outros sítios. Tive chatices, como as que tive quando andava à boleia. Mas isto aqui é um padrão. Estão a ver a diferença?


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  • Das primeiras impressões: 60 debates. Sim: 60

    Das primeiras impressões: 60 debates. Sim: 60


    Parece que os debates para as legislativas de Março estão a ter boas audiências; algo que, num país tipicamente desligado das decisões políticas, é um bom sinal. Há, pelo menos, interesse em ouvir o que os líderes partidários têm para dizer.

    Tenho algumas dúvidas que estes formatos sejam muito esclarecedores. Primeiro, porque o formato de “speed dating” não é o melhor para se explanar uma ideia. Parece que cada entrevistado tenta passar as suas ideias enquanto corre os 100 metros barreiras, sobrando pouquíssimo tempo para o confronto de visões. Depois, pelo que vou observando, o circo montado em redor dos debates, com as análises “pós-jogo”, tendem não só a transformar o que lá aconteceu, mas, principalmente, a levar a discussão para zonas que interessam muito pouco para o esclarecimento dos portugueses. É para isso que servem os debates: para o esclarecimento.

    Andar três ou quatro dias a discutir a avó da Mariana Mortágua serve apenas para desviar as atenções dos temas reais que, nesse debate em concreto eram, por exemplo, a contribuição do PSD para a especulação imobiliária ou a tentativa de desviar ainda mais fundos públicos para os hospitais privados.

    Ainda assim, devo dizer: este formato é obviamente melhor do que nenhum, e no meio do fogo de artifício, se estivermos atentos, conseguimos perceber as diferenças fundamentais entre os protagonistas.

    Eu trabalho, todos os dias, sentado em frente a um computador. Não era o sonho, mas deixemos isso para outra altura. Enquanto o faço, tenho normalmente um canal de noticias ligado para ir seguindo o que se passa e juntar algumas notas para aquilo que escrevo. Vi todos os debates até aqui. Todos. Ao fim de uma semana parece-me que, à esquerda, Rui Tavares foi quem mais se destacou, tal como Mariana Mortágua. Ambos me pareceram bem preparados, têm o dom da oratória que ajuda nestas coisas da exposição pública e conseguiram passar algumas das ideias-chave, encostando por vezes os adversários às contradições das suas próprias propostas. Mortágua meteu o pé em ramo verde com a história da avó; Tavares não cometeu erros.

    À direita, achei que um número maior de candidatos se destacou. Desde logo Bernardo Ferrão, Mafalda Anjos e Sebastião Bugalho. Mas também Rui Calafate, Inês Serra Lopes e Anselmo Crespo. Estiveram todos muito bem, ao longo da semana, falando aos espectadores sobre debates… que não existiram. Temo que, no início de Março, tenhamos chegado todos à conclusão que, em vez de 30, afinal vimos 60 debates. Aqueles que aconteceram em directo para todo o país e aqueles que o Anselmo & Cia nos quiseram contar.

    Rui Rocha foi, até ao momento, o candidato que demonstrou maiores fragilidades. Desde aquela irritante frase feita colada ao início da conversa até à imagem que permite ser colado pelos adversários. Saiu do debate com Pedro Nuno Santos, com a imagem colada à testa da pessoa que foi ali para conseguir financiamento público para o sector privado.

    E, em seguida, no debate com Ventura, conseguiu a proeza de ver o demagogo-mor fazer dele um vilão que não queria saber das pensões das velhinhas. Isto vindo de um antigo ministro que apresentou o Orçamento de Estado com a maior transferência de fundos para privados de sempre e, ainda, de um líder partidário que chegou às lides políticas, há seis anos, apresentando-se com o fim do Serviço Nacional de Saúde (SNS), da escola pública e do Estado Social em geral. É obra.

    Para piorar, ainda se conseguiu enrolar na área em que a Iniciativa Liberal costuma ser melhor: a de fabricar cartazes bonitos com países europeus onde qualquer coisa que lhes dá jeito funciona. Não havia um assessor que pudesse ir ao Google dar-lhe os escalões fiscais da Holanda, para evitar mais uma argolada? A sorte (quer dizer, não é bem sorte) de Rui Rocha foi a lavagem que os analistas fizeram na hora seguinte nas televisões. Quem os ouvisse ficava com a sensação de que a coisa tinha corrido bem.

    Luís Montenegro teve um arranque melhor do que Pedro Nuno Santos. Por uma simples razão: ninguém espera nada dele. Ainda assim, conseguiu manter-se em jogo com Mariana Mortágua até ao momento dos vistos GOLD e da invocação de “o que você quer é uma Venezuela”. Sabe-se que o argumento da direita termina quando, à falta de soluções, invocam Cuba ou Venezuela.

    A Montenegro, tal como Rocha, valeu também os analistas de serviço para recomporem as palavras e até apresentarem ideias que ele nem sequer mencionou. Há um esforço genuíno de alguma comunicação social para contribuir para a subida da direita ao poder. Desde sondagens repetidas diariamente que, invariavelmente, falham no dia das votações, a análises completamente contorcidas aos debates. Aliás, a título de curiosidade, está cada vez mais difícil ver alguém do centro-esquerda por lá, sentado numa cadeira de um estúdio de televisão.

    Pedro Nuno Santos teve sorte de começar a estrada dos debates pelo Rui Rocha e, como tal, conseguiu safar-se sem sair da personagem que o convenceram a encarnar. O homem moderado que não diz o que pensa mas aquilo que fica bem. Ora, não sendo eu um eleitor do Partido Socialista, a piada da eleição de Pedro Nuno Santos era exactamente a de não ter medo de defender ideias de esquerda. Fosse nas discussões sobre a CP, na defesa da TAP, na comissão de inquérito ou até no anúncio da localização do aeroporto de Lisboa. Farto estou eu, de políticos do centrão que dizem aquilo que acham que queremos ouvir.

    Prefiro a honestidade da palavra, mesmo que impulsiva, do que um homem que diz tudo e o seu contrário, sem qualquer respeito pela palavra dada. Montenegro já disse que se demitiria se não vencesse as eleições. Agora disse que ficaria. Já disse que o Chega não seria parceiro, mas está sempre a abrir-lhes a porta. Claro que não são temas explorados porque o espaço público está reservado para a avó da Mariana Mortágua mas, ainda assim, para quem tenha paciência para os ver, os sinais estão todos lá.

    Pedro Nuno Santos terá, a meu ver, que se libertar desse boneco onde lhe disseram que devia encaixar. Isto se quiser marcar alguma diferença e usar aquilo que é a sua mais valia. Caso contrário, corre mesmo o risco de deixar a decisão na mão de estarolas como Montenegro, Nuno Melo e Ventura.

    Ventura também não entrou muito bem nesta sequência de debates por uma razão essencial: a repetição da estratégia que já todos conhecem. Interromper cada frase do adversário, evitando o raciocínio do oponente, resultou em anos anteriores mas agora, já ninguém tem grande paciência para ouvir. Torna-se irritante para quem está em casa e já não provoca perturbações em quem se senta à frente de Ventura. Admito que ainda encante os eleitores do Chega, especialmente aquela ala mais desfavorecida no raciocínio mas é claramente um modelo esgotado.

    Inês Sousa Real, que não é uma oradora particularmente brilhante, passou por cima de todas as cascas de banana, sorrindo, e ainda teve tempo para humilhar André Ventura e o grupo parlamentar do Chega. 12 deputados durante uma legislatura, com produção de 169 propostas, tendo conseguido um total de ZERO aprovações.

    Como explicou a líder do PAN a qualquer eleitor do Chega, aquilo que isto significou, na prática, é que o voto no Chega não serve para nada porque, nenhum dos seus pares no hemiciclo os leva a sério. Isto para não dizer simplesmente que as propostas são, no seu essencial, absurdas e servem apenas para simular que se faz algo.

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    Em cima de uma estratégia que não pretende debater ou trocar ideias, Ventura continua a cair no erro de atirar factos aos calhas que, cinco minutos depois de terminado o debate, são desmentidos, como por exemplo, aquele número mágico do dinheiro da corrupção (90 milhões).

    Quando debate com a esquerda fala no despesismo, quando debate com a direita assume-se como defensor do estado social. Não há maior cata-vento na política portuguesa. Ainda assim, admito, Ventura é eficaz para o seu eleitor típico e até para outros que flutuam entre PSD e CDS. Neste momento, o Chega vive o seu momento Donald Trump (“posso matar alguém na 5a avenida que nada me aconteceria”).

    Pode Ventura dizer as maiores barbaridades, mentiras e contradizer-se 50 vezes em cada debate que, não me restam dúvidas, o Chega ganhará votos para as legislativas.

    Já que acabo a falar de populistas, e enquanto espero pela segunda semana de debates, deixo aqui uma nota final sobre Javiel Milei, o tal libertário que ia trazer vida nova, progresso, riqueza e liberdade para todos na Argentina. Lembram-se?

    O seu partido apresentou recentemente no Parlamento, uma proposta de revogação do direito da livre interrupção da gravidez, criminalizando o acto com penas que podem chegar a três anos. Já tinham feito o mesmo com o direito à manifestação. Há um traço clássico em todos os extremistas de direita que se apresentam ao público falando em liberdade: é que mal chegam ao poder, certo e sabido, a primeira coisa que fazem é tratar de a suprimir.

    Aprendam com os outros antes de irem às urnas, é o que vos digo.

    “Viva la libertad, carajo”, mas é o ca*****.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • Planeamento à portuguesa

    Planeamento à portuguesa


    Prestes a comemorarmos os cinquenta anos do 25 de Abril, recordemos o Portugal de então.

    A extraordinária diferença no desenvolvimento do território nacional, com praticamente toda a riqueza no litoral e um esquecimento absoluto do interior, onde se sobrevivia com o recurso a uma agricultura antiquada, era do conhecimento geral.

    E assim se manteve nos primeiros anos após a “Revolução dos Cravos”.

    Um dia, porém, alguns políticos mais atentos, traçaram uma linha vertical sobre o mapa de Portugal, dividindo o país ao meio, e descobrindo, espantados, que a metade do interior era, então, quase um deserto.

    woman in black sunglasses and white shirt

    Sem indústria, com uma agricultura ainda mais pobre, porque tinham recebido para deixar de produzir, e sem turismo digno desse nome por não terem mar.

    Concluíram, os governantes de então, que a principal dificuldade em atrair interessados na criação de empresas naquelas zonas era a impossibilidade de se chegar rápida e comodamente aqueles destinos por falta de vias de comunicação em condições.

    A prioridade para combater este problema foi a utilização de milhões provenientes da Europa para construir estradas.

    Aliás, como quaisquer novos-ricos: auto-estradas.

    A ideia era criar paraísos para investidores, principalmente estrangeiros, e isso só seria possível se eles ficassem a saber que era fácil chegar a Bragança, à Guarda, a Castelo Branco, a Elvas.

    Os empresários teriam de ser atraídos para zonas com mão-de-obra disponível e mais barata.

    Além disso, o país ficaria a ganhar se conseguisse reter as populações no interior e diminuir, ou mesmo terminar, com o êxodo para o litoral.

    Durante anos fizeram-se quilómetros e quilómetros de auto-estradas.

    Podiam, agora, os senhores empresários chegar aos locais mais recônditos do nosso país em poucas horas e sem solavancos.

    a bridge over a body of water

    Em complemento, os autarcas decidiram mandar construir dezenas de “parques industriais” com a esperança de, assim, conseguirem mais interessados.

    A estratégia parecia resultar quando dezenas de empresas começaram a apresentar projectos atrás de projectos nas autarquias que geriam cidades em vias de extinção.

    Os autarcas vibravam de emoção.

    Havia que criar zonas industriais para albergar todas as fábricas previstas e que iam desde a confecção à aeronáutica.

    Enquanto os processos que se iam amontoando nas secretarias dos Municípios, aguardando pareceres técnicos, ambientais, económicos e o raio a sete, aos Ministérios chegavam as facturas das auto-estradas.

    E os governantes descobriram que não havia dinheiro para as pagar.

    Única solução encontrada: cortar nalgumas despesas consideradas menos importantes.

    Como habitualmente os primeiros sacrificados foram as cidades do interior.

    a white building with yellow shutters and windows

    Dado o volume das dívidas, todavia, os cortes foram radicais.

    Fecharam-se escolas, hospitais, maternidades, tribunais, juntas de freguesia, postos de correio e esquadras de polícias.

    Como é lógico, a maioria dos empresários retirou os projectos.

    Que investidor aceitaria abrir uma empresa numa cidade sem as mais elementares estruturas?

    Que funcionário aceitaria ficar numa zona onde os filhos não pudessem estudar, sem ter garantias de cuidados médicos numa emergência, sem segurança, sem as mais elementares comodidades?

    Logo, esses destinos foram postos de lado.

    E, logicamente, as auto-estradas começaram a ficar desertas fazendo baixar a facturação das portagens.

    Só os familiares dos poucos habitantes as utilizavam para visitas de fins-de-semana.

    As receitas recolhidas, segundo os concessionários, eram insuficientes para dar lucro.

    A decisão foi aumentar as portagens.

    O resultado óbvio – menos para aqueles génios – foi que, até aqueles poucos utilizadores, passaram a servir-se de estradas secundárias por impossibilidade de pagarem os preços, mais que exorbitantes, criminosos.

    Sendo que a facturação continuou a descer.

    group of person on stairs

    Hoje temos essas cidades servidas por auto-estradas magníficas, mas sem trânsito, zonas industriais modernas, mas sem indústria, cidadãos com uma série de direitos consagrados na Constituição, como os da educação, saúde e habitação, mas sabendo que, para os conseguirem, terão de deixar as suas terras e partir para o litoral.

    A única vantagem é que agora, para fugirem do interior, em busca de uma vida melhor no litoral, têm estradas excelentes que permitem que aqui cheguem mais depressa. Nesse aspecto, o planeamento à portuguesa resultou plenamente.

    Vítor Ilharco é assessor


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  • Bloco de Esquerda: ‘Pela habitação, não lhes dês descanso’

    Bloco de Esquerda: ‘Pela habitação, não lhes dês descanso’

    Esta semana, proponho-me a analisar os cartazes que o Bloco de Esquerda (BE) colocou em circulação. Nas corridas eleitorais, a harmonia dos signos — tanto no plano da expressão enquanto significante, quanto no plano do conteúdo como significado — é um elemento crucial para o desenvolvimento da cultura política e cívica, além de ser fundamental para a própria decisão de voto. Um desses signos reside nas cores predominantes que servem como suporte para a expressão simbólica das ideologias partidárias. A força de toda a linguagem subliminar está relacionada com o acto de convencer e alcançar as metas.

    A propaganda do BE para as próximas eleições evidencia-se no espaço público pelo uso exuberante da cor vermelha, evocando o estilo chinês, e fazendo alusão aos símbolos da luta dos trabalhadores e dos movimentos revolucionários. O vermelho é uma cor poderosa, carregada de energia e significado. Visualmente impactante, simboliza a luta contra a desigualdade social, a busca pela igualdade económica e a defesa dos direitos dos cidadãos. A forte presença do vermelho indica que o Bloco sente a necessidade de focar nos princípios e revitalizar os valores fundamentais da esquerda. Apesar do marcante fundo vermelho se destacar na cidade, a integração do retrato da líder Mariana Mortágua fica aquém das expectativas devido à sua simplicidade visual. Uma opção por um fundo mais elaborado com profundidade e tridimensional poderia ser mais apelativo.

    Outdoor do Bloco de Esquerda, na Avenida da República, em Lisboa. Fotografia: ©Sara Battesti

    A aposta em três cores contrastantes – preto, branco e vermelho – é bastante característica da estética oriental o que se adequa bem à fisionomia de Mariana Mortágua. No entanto, por limitações de formato, não permite exibir a sua imagem de marca associada aos ténis All Stars, com uma conotação, digamos, capitalista e americana. Ainda assim, o conjunto demonstra a elegância da candidata.

    A mensagem “Pela habitação”, realçada por uma caixa negra, é articulada com a frase: “Não lhes dês descanso”. Este apelo pode ser interpretado de duas maneiras distintas. A primeira leitura sugere uma ordem directa aos eleitores, instando-os a não descansarem na busca por soluções habitacionais. Já a segunda interpretação é mais intricada, sugerindo que a ordem é dirigida à própria Mariana, invertendo os papéis entre representado e representante, entre quem promete e aquele que exige ou manifesta o desejo. Além da formulação ser pela negativa, o uso da segunda pessoa do singular é surpreendente, muito embora as conclusões do estudo da Pitagórica sobre as eleições de 2022, tenham revelado a preferência contínua do Bloco entre os mais jovens, até aos 25 anos. A questão que se levanta é, até que ponto essa informalidade na propaganda realmente fortalece o sentido de pertença do seu eleitorado? Essa opção sugere uma estratégia de fidelização em vez de uma campanha voltada para o crescimento ou expansão do seu eleitorado.

    “Pela habitação: Não lhes dês descanso” representa um protesto claro, escolhendo um tema que afecta toda a sociedade, em particular as gerações mais jovens. Embora seja um problema relevante que aflige toda a Europa, focar-se numa questão específica pode ser interpretado como uma fragilidade, especialmente considerando a gravidade das condições de vida em vários quadrantes. Não é coincidência que outros partidos adversários optem por abordar uma variedade de temas, procurando criar conexões e afinidades com as preocupações dos eleitores, seja real ou potencial.

    A campanha de rua bloquista utiliza dois formatos principais: o mupi, cartaz ao alto geralmente instalado em estruturas próprias fixadas no chão, e os outdoors de grande formato (8×3 metros). Ambos estão colocados em locais de elevada afluência, onde todos os partidos competem por visibilidade. De acordo com uma sondagem recente conduzida pela Universidade Católica, o partido prevê conquistar apenas 5% dos votos, mantendo-se atrás da Iniciativa Liberal e ocupando a 5ª posição no ranking eleitoral.

    Muito recentemente, surgiu um novo mupi onde Mortágua aparece lado-a-lado com candidatos pelos círculos eleitorais, aqui ilustrado pelo candidato por Lisboa. “Para fazer o que nunca foi feito” é o slogan, numa promessa governativa mais abrangente.

    Mupi do Bloco de Esquerda, na Praça Paiva Couceiro, em Lisboa. Fotografia: ©Sara Battesti

    Fundado em 1999, o Bloco de Esquerda tem um logótipo que simboliza uma estrela vermelha (símbolo icónico em política) com uma designação dividida onde se realça a palavra “Bloco” e, por baixo em tamanho menor, consta “de Esquerda”. Essa opção de design que perde em termos de equilíbrio visual. Inspirado no pentagrama, sem o pentágono no interior, muitas vezes interpretado como representação dos dedos das mãos dos trabalhadores, o logótipo originalmente possui uma estrela de cinco pontas, representando os cinco continentes.

    Neste caso, uma das pontas transforma-se numa cabeça, conferindo uma dimensão humana. Segundo os depoimentos do partido, o movimento da estrela (ainda que um tanto desajeitado) pretende reforçar o humanismo, sublinhando o princípio bloquista de defesa de uma cultura cívica participativa e a perspectiva do socialismo como expressão da luta emancipatória da Humanidade contra a exploração e opressão.

    No retrato presente nos cartazes, a ex-comentadora televisiva Mariana Mortágua olha directamente para nós com uma expressão facial amigável e um sorriso ténue, em contraste com os líderes masculinos que costumam sorrir mais abertamente. A fotografia é cuidadosamente elaborada e destaca a sofisticação de Mariana, realçada por uma camisola de gola alta preta, à semelhança das protagonistas do filme “Kill Bill” de Quentin Tarantino. Como filha de Camilo Mortágua, um histórico activista anti-salazarista e revolucionário, Mariana é uma figura reconhecida pela sua personalidade combativa. Entrou para a política em 2013 como deputada, ganhando especial visibilidade pelos seus desempenhos nos inquéritos parlamentares à gestão do BES e, mais recentemente, no caso da TAP.

    Ilustração de Ruy Otero sobre o Bloco de Esquerda.

    Em Novembro de 2023, durante a Mesa Nacional do Bloco de Esquerda, Mortágua enfatizou a “preocupação em encontrar soluções para o país” em áreas onde diversos problemas persistem, como saúde, educação, habitação e salários. Defensora dos estados de emergência, optou por concentrar a narrativa de sua campanha na crise habitacional, que descreve como uma “pandemia social” e uma prioridade imediata para a acção do partido.

    Esta estratégia mono-temática tem limitado a atenção dos meios de comunicação e, consequentemente, tem falhado em manter o apoio público de forma consistente, excepto talvez durante manifestações em prol da habitação, cuja adesão tem declinado em 2024. Os meios de comunicação, por meio de sua função de agenda-setting, determinam os temas que ocupam a mente das pessoas e a importância lhes é atribuída, o que reforça a importância de considerar a capacidade de atrair a atenção dos meios de comunicação ao definir a estratégia da campanha.

    Apesar de Paixão Martins observar que, fora dos períodos eleitorais, “os partidos mais moderados geralmente têm menos intenções de voto, por não representarem causas específicas”, de acordo com a pesquisa de Mughan (1978), os efeitos da campanha tendem a reforçar as predisposições de voto existentes, em vez de transformá-las significativamente.

    Há uma clara intenção do BE em voltar a posicionar-se como partido de protesto, tentando desviar a atenção de suas responsabilidades como um dos partidos que apoiou o governo anterior, liderado por António Costa, durante cerca de seis anos. O que começou como um partido com inclinações libertárias tem demonstrado ser, na verdade, bastante regulamentar, evidenciando um desejo de fiscalizar diversos aspectos da vida dos cidadãos. Alguns até brincam com essa inclinação, chamando-os de “Bloco de Chega”.

    Sara Battesti é estratega e especialista em Comunicação


    Avaliação do cartaz

    Design: 3/5

    Impacto: 3/5

    Eficácia: 2/5

    Média: 2,7/5


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  • Quem semeia ventos, talvez colha tempestades

    Quem semeia ventos, talvez colha tempestades

    O ainda ministro da Administração Interna, José Luís Carneiro, parecia ser uma das maçãs menos ‘podres’ deste Governo e deste Partido Socialista. Conciliador e diplomático, sempre aparentou, pelo menos, respeitar as classes profissionais sob sua tutela; contrastando, por exemplo, com as figuras do ministro da Educação, João Costa, e da ministra da Agricultura, Maria do Céu Antunes, que, se não ‘desprezam’ os ‘seus’ professores e os ‘seus’ agricultores, então disfarçam muito bem.

    Infelizmente, José Luís Carneiro manchou essa imagem, e é agora protagonista de uma guerra (aberta) entre as forças de segurança e o Governo. Depois das supostas baixas médicas ‘fraudulentas’ apresentadas por alguns polícias, que levaram ao cancelamento do jogo Sporting-Famalicão no sábado, o ministro da Administração Interna tornou-se mais papista que o Papa.

    Para além de lhes dar um valente ‘raspanete’, acusou as forças de segurança de “insubordinação” e anunciou a abertura de um inquérito pela Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI). Contudo, antes de o ministro se pronunciar publicamente no domingo, já o Governo havia qualificado a situação como uma “insubordinação gravíssima”.

    Esta resposta do Governo – uma óbvia demonstração de força e autoridade – foi aplaudida; sobretudo, depois de o presidente do Sindicato Nacional da Polícia (SINAPOL), Armando Ferreira, ter dito, na SIC Notícias, que as legislativas de 10 de Março poderiam estar em risco se as forças de segurança repetissem o feito. Vozes preocupadas se levantaram, com alguns a verem neste alerta uma ameaça de “golpe de estado” e uma insurreição.

    Toda esta tensão começou (e escalou bastante) em Novembro passado, sobretudo depois de o Governo ter aprovado um suplemento de missão às carreiras da Polícia Judiciária, discriminando a Polícia de Segurança Pública e a Guarda Nacional Republicana. Agora, embora se valide o descontentamento das polícias, diz-se que os seus protestos têm de manter-se dentro da legalidade. Ou, por outras palavras: ‘podem espernear à vontade, desde que não incomodem’. Ou seja, desde que as manifestações de descontentamento sejam inócuas e não sirvam para nada – tal como, de resto, têm sido quase todas, nesta encenação de democracia.  

    Temos o direito a descer à Avenida da Liberdade ao sábado à tarde, de cartaz em punho; tudo o resto é ‘extravasar’ os limites da legalidade.

    Sobre a possibilidade de um ‘boicote’ às eleições legislativas, António Costa, que nos lembra um daqueles companheiros tóxicos e manipuladores que nos acusa daquilo que faz, logo disse acreditar que “jamais as forças de segurança perpetrariam um ato tão grave de traição à nossa democracia”.

    Porventura, o mesmo não está garantido para o caso do nosso (ainda) primeiro-ministro. Depois destes últimos oito anos de governação, António Costa só poderá ficar para a História como um líder que deixou o país de joelhos e escorraçou a democracia.

    A revolta e a contestação que se inflamam e alastram a várias classes profissionais são prova de que os protestos das forças de segurança não são a ameaça à democracia que nos deveria preocupar. Se há alguém que tem faltado ao país, e que por isso poderia ser acusado de ‘insubordinação’, é este Governo socialista. Pois se é verdade que as forças de segurança devem estar ao serviço da Nação, não é menos verdade que o chefe de Governo foi eleito para servir e defender o povo. E, nesta tarefa, falhou reiteradamente.

    Concorde-se ou não com os protestos da polícia, há um crédito a ser-lhes dado: fizeram tremer o poder, ao contrário de outras formas de luta inúteis, que muitas vezes prejudicam mais os cidadãos do que os governantes. As polícias atingiram o poder onde dói, pondo seriamente em causa a autoridade do Governo. Mostraram, assim, que o seu poder é frágil e pode ruir como um castelo de cartas, num ápice e pela acção de apenas uma dúzia de pessoas.

    E esta é a razão para a resposta tão ‘musculada’ do Ministério da Administração Interna, com ameaças de processos disciplinares e até mesmo criminais.

    Entretanto, alguns agentes da Unidade Especial de Polícia que também apresentaram baixa médica no fim-de-semana (porém, sem o mesmo desfecho do jogo Sporting-Famalicão) já começaram a sofrer represálias, e correm agora o risco de não terem os seus contratos renovados.

    A reacção do primeiro-ministro e do ministro da Administração Interna não só expôs a sua prepotência, como evidenciou uma falha de julgamento e de entendimento da História. Indiferentes à revolta que se avoluma, optaram por ter mão firme, quando deviam ter-se redimido. Em vez disso, atiraram mais achas para a fogueira, esquecendo-se que quem semeia ventos, colhe tempestades.

    Maria Afonso Peixoto é jornalista


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  • “Fascismo nunca mais”. Será mesmo?

    “Fascismo nunca mais”. Será mesmo?


    Recentemente, o ministro da Administração Interna manifestou-se preocupado com os protestos que estão a ser organizados por agricultores em várias estradas do país, e apelou a que não se pusesse em causa o direito de mobilidade. Segundo as suas palavras: “Tomámos conhecimento de que há a intenção de bloqueios de algumas estradas e condições de mobilidade no país. O meu apelo é que todos procurem cumprir e garantir o cumprimento desse dever”. Afinal, o direito ao protesto deve submeter-se à primazia dos direitos fundamentais. Como as coisas mudam num espaço tão curto de tempo!

    Há dias, um cartaz de propaganda política de um partido de “extrema-direita” foi queimado por um grupo “anarquista”, autodenominado “Federação Anarquista”, que afirmou que “o fascismo continua vivo. Os partidos e a democracia parlamentar são cúmplices desse crescimento, validando-o e alimentando-o com cada medida que torna as nossas vidas cada vez mais precárias. Não é deles que esperamos qualquer tipo de solução”. Fica claro o recurso à violência para silenciar quem não está de acordo com a sua ideologia.

    Estes que agora gritam “fascismo nunca mais”, são os mesmos que nos impuseram ou aceitaram sem resistência um Estado totalitário que se iniciou em Março de 2020 e terminou em Junho de 2023, com o fim das máscaras obrigatórias em hospitais e lares. Talvez por isso, nenhum dos partidos políticos com assento parlamentar esteja hoje disponível para discutir este período de verdadeiro fascismo, onde os mortos se continuam a acumular com o silêncio conivente de todos.

    Na Roma Antiga, os fasces lictorii eram a arma transportada pelos lictores, que consistia num feixe de varas de bétula brancas, amarradas com tiras de couro em torno de um machado. Tornou-se o símbolo do fascismo de Benito Mussolini nos anos 20 e 30 do século transacto. Nesse mesmo espaço temporal, na Alemanha, tínhamos o movimento Nacional-Socialista, mais conhecido pelo partido Nazi, que adoptou como seu símbolo a suástica. O uso destes símbolos era uma forma de demonstrar conformidade com a ideologia oficial.

    O mesmo aconteceu com as máscaras durante a putativa pandemia: nada mais que um símbolo de conformidade à tirania, que visava unicamente despersonalizar o indivíduo, tornando-o mais um membro de uma massa de gente anónima e sem vontade própria, que apenas seguia ordens de um Estado Fascista.

    Para clarificarmos conceitos, o que é o Fascismo? É um sistema de governo que carteliza o sector privado, planeia centralmente a economia, tal como o comunismo, subsidia os seus empresários favoritos, exalta o estado policial como fonte de ordem, nega os direitos e liberdades fundamentais dos indivíduos e faz do Estado o senhor ilimitado da sociedade. Há cerca de quatro anos, foi precisamente o que tivemos, aparentemente invisível aos olhos dos que agora gritam “fascismo nunca mais”.

    Incentivar e promover o ódio a minorias que não acatam ordens e não aceitam a ideologia oficial, cancelando-as com insultos, como “negacionista” e “chalupa”, é fascismo. Quem não se recorda dos discursos de ódio nos órgãos de propaganda: “E agora, o que fazer com os chalupas?”. O que dizer do recente aviso proferido por um líder político que nesse período realizava missas dominicais enxameadas de propaganda e mentiras: “tomem cuidado” com os negacionistas!

    Segregar pessoas, através de decretos governamentais e subvertendo por completo a ordem constitucional, impedindo-as de entrar num café, num restaurante, num ginásio, num cinema e até, pasme-se, num supermercado, nada mais é que fascismo.

    Restringir a liberdade de circulação de pessoas, seja dentro do país, de ou com destino ao exterior de um país, é um atentado a um direito fundamental de qualquer ser humano, próprio de uma tirania fascista.

    Subsidiar os órgãos de propaganda com o “nosso dinheiro”, para que estes aterrorizem a população, espalhem mentiras, difundam propaganda, cancelem qualquer contraditório, é fascismo.

    Subsidiar o negócio das empresas de análises clínicas, das farmacêuticas e das farmácias com o “nosso dinheiro”, garantindo-lhes lucros fabulosos, é fascismo.

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    Adquirir milhares de milhões de Euros de vacinas experimentais com o “nosso dinheiro”, que hoje ninguém quer ou deseja, proporcionando lucros pornográficos a farmacêuticas, em total conluio com o poder, é fascismo.

    Funcionários estatais, em lugar de juízes, a decretar a prisão domiciliária de milhões de pessoas, em nome da “luta contra o “vírus”, é fascismo.

    Espalhar a mentira de que as inoculações experimentais impediam as pessoas de infectar ou serem infectadas pelo “vírus”, incutindo o medo e o pânico a empregadores, para que estes intimidassem os seus colaboradores a tomá-las, com a ameaça de despedimento, é fascismo.

    Encerrar negócios para deliberadamente arruinar os seus proprietários, levando-os ao completo desespero, desgraçando-lhes as relações familiares (divórcios, violência familiar, insucesso escolar…) e tornando-os mendigos de um Estado totalitário, é fascismo.

    Estimular a bufaria das populações, promovendo a denúncia do próximo às autoridades, por forma a intimidar, cancelar e penalizar economicamente dissidentes; ou quando nos solicitam para subirmos facturas no portal das finanças, uma chibaria em larga escala, por forma a sermos assaltados igualmente em larga escala por um Estado vampiro, isso é fascismo.

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    Vender dívida pública de forma massiva, fazendo-a subir aproximadamente 30 mil milhões de Euros, entre o final de 2019 e Junho de 2023, a um único comprador – precisamente aquele que pode imprimir dinheiro de forma infinita: o Banco Central Europeu –, provocando uma subida brutal dos preços e confiscando, desta forma, as populações, é fascismo.

    Espalhar o medo de morte provocado por algo contra o qual não se pode fazer nada – a doença provocada pelo “vírus” – é um excelente dispositivo de controlo. É preciso confiar nas autoridades médicas. O problema é que todos eles seguem ordens, pelo menos se quiserem manter as suas licenças do regime fascista.

    Proibir as pessoas de assistir aos funerais dos seus familiares; obrigá-las a abandonar os seus avós em lares transformados em prisões; forçar os seus filhos a usar uma fralda facial todos dias, durante mais de oito horas; retirar-lhe os direitos constitucionais; coagi-las a inocularem-se com uma substância experimental, tal como as experiências do nazi Josef Mengele, é simplesmente fascismo.

    Hoje, temos um Estado enorme, violento e pesado, que drena o nosso capital e a nossa produtividade como um parasita mortal num hospedeiro, subtraindo-nos anualmente 125 mil milhões de Euros – 12.500 Euros por português, incluindo idosos e crianças. É por isso que a economia de um Estado fascista denomina-se por vampira: suga a vida económica e provoca a morte lenta da prosperidade.

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    Os vampiros deste Estado fascista pedem-nos agora o envio de armas e dinheiro para uma guerra que não nos diz respeito, e que serviu para ocultar a impressão massiva de dinheiro e justificar os brutais impostos associados à “transição verde”. Um dia destes, em lugar dos ucranianos, enviarão os nossos jovens para lá para a defesa da “liberdade e democracia”! Quem se lhes opõe será insultado de “putinista”, ou usando o nome de algum líder iraniano.

    Recordemo-nos das palavras do nazi Hermann Göring:

    “É claro que as pessoas não querem a guerra. Por que razão haveria um pobre coitado de uma quinta de querer arriscar a vida numa guerra, quando o melhor que pode conseguir é regressar inteiro à sua quinta? É claro que o povo não quer a guerra, nem na Rússia, nem em Inglaterra, nem na Alemanha. Isso compreende-se. Mas, afinal de contas, são os dirigentes do país que determinam a política e é sempre fácil arrastar o povo, quer se trate de uma democracia, de uma ditadura fascista, de um regime parlamentar ou de uma ditadura comunista. Com voz ou sem voz, o povo pode sempre ser posto ao serviço dos governantes. Isso é fácil. Basta dizer-lhes que estão a ser atacados e denunciar os pacifistas por falta de patriotismo e por exporem o país ao perigo. Funciona da mesma forma em qualquer país”.

    “Fascismo nunca mais”, dizem agora os idiotas úteis que andam por aí a manifestar-se. Dá vontade de perguntar: por onde andou esta gente?

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


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  • A Velha Esquerda e a Nova Esquerda: de qual gosta mais?

    A Velha Esquerda e a Nova Esquerda: de qual gosta mais?


    A Velha Esquerda queria habitação e saúde para todos. A Nova Esquerda quer habitação e saúde para todes.

    A Velha Esquerda considerava a Disney um instrumento do imperialismo que promovia os valores do capitalismo e das classes dominantes. A Nova Esquerda acha a Disney fofinha e inclusiva, vendo nela uma aliada (ou aliade) dos grupos discriminados (ou grupes discriminades).

    A Velha Esquerda defendia as fábricas e quem nelas trabalhava. Para a Nova Esquerda, as fábricas são um grave problema quanto às alterações climáticas e constituem antros de repulsivos homens brancos heterossexuais cis que são racistas, misóginos, xenófobos, homofóbicos, transfóbicos, islamofóbicos e gordofóbicos.

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    A Velha Esquerda falava de operários e proletários. A Nova Esquerda fala em nome de conglomerados de minorias como se fossem monolíticas e como se lhe houvessem outorgado mandatos para as representar, excepto quando se trata da Palestina, porque nesse território não há mulheres nem homossexuais nem não-binários — há até os Queers for Palestine (não é piada), pelo que qualquer dia ainda veremos os Toureiros Veganos.

    Antes do apedrejamento: o autor destas linhas foi sempre favorável ao casamento homossexual e até é vegetariano.

    A Velha Esquerda queria que os trabalhadores tomassem conta dos meios de produção. A Nova Esquerda quer que haja diversidade de toda a espécie, mas apenas nos cargos mais remunerados, poderosos e mediáticos, porque os demais cargos estão cheios de «deploráveis», parafraseando a expressão («cesto de deploráveis») de Hillary Clinton.

    A Velha Esquerda era soberanista, antiglobalização e anti-EUA. A Nova Esquerda é anti-EUA, mas importa, sem traduzir para as realidades de cada país, todas as lutas e todos os conceitos do país que alegadamente detesta. Acresce que a Nova Esquerda é globalista.

    A Velha Esquerda lutava contra a existência de escravos no presente. A Nova Esquerda está mais preocupada com os escravos do passado, tendo até trocado o vocábulo «escravos» por «escravizados», e luta pela censura de palavras ofensivas em livros de autores mortos, por reparações históricas e pelo derrube de estátuas dos que pactuaram há séculos (na imaginação ou na realidade) com a escravatura, enquanto se aproveita dos escravizados dos TVDE para viagens de curta distância em que esses escravizados ganham cêntimos.

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    A Velha Esquerda falava de exploração. A Nova Esquerda fala de inclusão, empatia e discriminação.

    A Velha Esquerda chegou a ser acusada de homofobia em 2015 (concretamente: de agressões verbais e físicas por pura homofobia) na sua maior festa anual. A Velha Esquerda afirmou ser a homossexualidade uma «coisa mesmo muito triste» (aspas de citação, ouça-se a entrevista de Carlos Cruz, de 1991, ao então secretário-geral Álvaro Cunhal). A Nova Esquerda, felizmente! (zero ironia), não fala assim (fala até em «orgulho gay» e em «género atribuído à nascença», algo bem diferente da orientação sexual, e que muitos insistem em confundir) nem agride ninguém LGBTQIA+ — excepto quando estão em causa Israel e a Palestina, como se viu no Finalmente, em que houve conflitos entre membros LGBTQIA+ e activistas pró-Palestina.

    A Velha Esquerda via um homem de unhas pintadas e chamava-lhe depreciativamente «burguês» (entre outros impropérios hoje impronunciáveis num texto jornalístico), preferindo representar os homens de unhas sujas do trabalho. A Nova Esquerda não aprecia unhas sujas e, quando vê um homem de unhas pintadas, chama-lhe «minoria discriminada», «grupo oprimido». Algumas franjas da Nova Esquerda vêem até nisto o motor do progresso, como a Velha Esquerda via na luta de classes o progresso da humanidade.

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    Antes do linchamento: quem escreve estas linhas já foi, bastas vezes, com a cara e os lábios pintados a concertos dos The Cure, entre outros exemplos que poderia invocar (a vida privada não tem de ser transportada para os jornais), pelo que é inútil acusarem este escriba de perpetuar «papéis de género». Sim, os «papéis de género» podem ser castradores para muitos, designadamente para os homens, que foram mais limitados na sua socialização quanto à expressão de afectos e emoções (as mulheres são menos julgadas socialmente se se abraçarem, beijarem, chorarem na rua, se disserem que outra mulher é bonita, ainda que isto esteja a mudar), na indumentária, na maquilhagem, no que estupidamente se considera «roupa e coisas de mulher» (as mulheres usam calças e saias, pintam-se, e não são olhadas de lado por isso), no vasto rol de «profissões de mulher» (sim, também há quem entenda haver profissões de homem), etc., etc.

    É precisamente sobre a desconstrução de «comportamentos e emoções de mulher», ironicamente anunciada no título, que os supracitados The Cure se ocupam na música com que terminam muitos concertos: Boys don´t cry, canção que pretendia desmanchar a abstrusa ideia de que os homens a sério não deveriam chorar nem ter uma série de pensamentos e comportamentos considerados femininos.

    A Velha Esquerda queria agregar todos os que via como explorados. A Nova Esquerda quer segmentá-los e encontrar novas categorias identitárias até ao infinito, ou seja, até ao superlativo individualismo.

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    A Velha Esquerda falava de luta de classes, acidentes laborais e salários em atraso. A Nova Esquerda fala de escolher os espaços públicos em função do género com que cada um/e se identifica, de masculinidade tóxica, de descolonizar o pensamento (ela diz: «decolonizar», porque é colonizada pelo inglês, que suprema ironia) e da necessidade de novos pronomes para acomodar novos géneros.

    De quando em quando, a Nova Esquerda, tal como a Velha Esquerda, gosta de usar métodos fascistas para combater aqueles a quem chama «fascistas», seja queimar cartazes ou livros. Haja alguma similitude em tanta diferença.

    Manuel Matos Monteiro é escritor e director da Escola da Língua


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  • PS e as surpresas eleitorais

    PS e as surpresas eleitorais


    E se até a flor perfuma a mão que a esmaga, a estratégia que destrói ou reduz nem sempre vence. Fica o aroma das pétalas contorcidas, fica a potência da vítima caída aos pés do carcereiro. Nem sempre as estratégias contundentes, e que lançam medos, ofuscam. O executor que vai derramando seu poder nos incautos, ou nos atrevidos, se exagera, enaltece-os.

    Este é o mistério da política. Uma frase bem usada catapulta uma decisão. Uma vaidade, ou uma resposta confusa, despertam a dúvida que se insinua na eleição.

    Pode-se ganhar porque se colocou o oponente num pedestal: que vem ele para aqui fazer? Ele é bom onde está! Pode lançar-se uma farpa dura – esse não é daqui! Pode erguer-se a bandeira independentista para manchar uma boa intenção. Na Madeira está lançada a ideia do invasor que chegou de avião para vingar o PS.

    Eles, os colonialistas, chegaram aos molhos para cumprir a Justiça, apoucando os de lá. A Madeira prepara-se, com este jeitinho bem urdido, para uma vitória esmagadora do PSD. A pesporrência de um director da PJ, que todos sabem ser próximo do PS, levar 300 funcionários, e acabar na prisão inglória de apenas três pessoas, que imediatamente a seguir ficam sem ser ouvidas demasiado tempo, ajuda ao estribilho. A canção já se trauteia por lá. Presumo que teremos outro bailinho da Madeira.

    A PJ decidiu ser protagonista após a queda do Governo, e agora a PSP foi para o Porto destapar o que todos sabem, falar daquilo que se sabe à boca cheia. Faz-se bem em atacar o enriquecimento ilícito? Claro. Faz-se bem em intervir sobre a violência? Claro. O tempo destas acções sobre a reflexão e o protagonismo eleitoral é que parece estranho.

    Portugal vive um tempo de enorme importância, pois é a primeira vez na democracia que ficámos com todos os Governos demitidos e temos tantas eleições sequenciais. Tudo isto porque o PS não honrou com sabedoria e inteligência a sua maioria. Enquistou-se, lavrou as sentenças da vaidade e da arrogância, esqueceu que era necessário corrigir a Lei Eleitoral. Passar a ter um circulo de compensação, como sucede nos Açores, é o mínimo que já se exige. O PS colocou os seus acólitos em todos os púlpitos e esmoreceu os combates que careciam ser feitos. Há inúmeras imaturidades e indecências que conduziram à revolta das polícias, à revolução dos agricultores, à zanga da geração melhor preparada de sempre.

    A isto, o PS respondeu com ataques constantes, com ausência de humor, com falta de sensibilidade política e fez crescer a vítima das marradas! Como o marido cornudo que levanta a mão e perde a razão. Todos os canais insultando a voz contra. Todos os cronistas a despejarem insanidades e calunias sem perceber que a vítima estava a perfumar a mão que lhe batia.

    Foi assim na Suécia, na Holanda, na Argentina, e a cegueira ideológica não percebia que era mais importante corrigir a imagem do poder. Aquilo que está a conduzir ao mal-estar provém de quem governa, e não da sua oposição. Se há turismo a mais, fuga aos impostos em barda, desperdício financeiro a rodos, pobres e más figuras na governação, a culpa não é da oposição.

    Foi deste modo que chegámos ao crescimento para o dobro do Chega e à redução anacrónica da esquerda além do PS. Aqui estão também os resultados evidentes no dia a dia que são afinal o que importa ao cidadão. Não nos toca directamente o banqueiro anarquista e ladrão, mas afecta o quotidiano a rua coberta de pedintes e sem abrigo, o preço das rendas, a enormidade Lagarde de duplicar os encargos com as rendas.

    É mais importante para o voto de 10 de Março a mudança no apartamento do lado do que o banco que faliu. Dói mais a insensibilidade com as casas de banho onde irão os filhos, as certezas das minorias vitimizadas e exigentes e acusadoras do que a ineficácia em escolher um lugar para o aeroporto.

    A proximidade é o importante. O país zangado detesta que culpem quem nunca governou. Não esqueceu o caso do Impostos Único de Circulação (IUC), não esqueceu a nacionalização da TAP, e depois a sua venda em curso, não esqueceu milhares de prédios devolutos do estado, e uma lei que metia as mãos nos bolsos dos herdeiros, e nas posses de cada um. Individualmente, escandaliza mais o ruído, legitimado pelas Câmaras, de um bar frente à porta, que a morte do banqueiro na África do Sul.  

    E assim chegámos à surpresa eleitoral dos Açores – surpresa para os meus amigos do PS. Este é – e será – o novo normal!    

    Diogo Cabrita é médico


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  • Gil Vicente 3.0

    Gil Vicente 3.0


    Já sabia, pela ‘meteorologista’ Filomena Martins, directora-adjunta do Observador, que hoje não teríamos o danado “rio atmosférico” a pairar pela Luz – só chega pela quinta-feira –, mas vi-me obrigado a consultar o ‘boletim da saúde policial’ para confirmar se alguma indisposição colectiva impedia o jogo, acrescido de uma pesquisa pelas ‘má-afamadas’ redes sociais, de sorte a perceber a probabilidade de ocorrência de uma saraivada de cadeiras e pedras pelos ares.

    Tudo bem. Segui seguro, qual Leonor pela verdura, para a Luz, ainda a tempo de um cafézinho, no Columbia, paredes-meias com o Alto dos Moinhos, que por estas horas vende mais cerveja que cafés.

    E cá estou a tempo ainda de recepcionar o farnel do Benfica (embora hoje esteja um bocado cheio, por causa de um almoço tardio), e de subir as cada vez mais íngremes escadas para esta Varanda da Luz antes do apito inicial, por via de um tempo extra por se fazer um minuto de silêncio não sei pela alma de quem… vou daqui a nada ver…

    (golooooooo… isto hoje nem me deram tempo de descansar um pouco, ligar o computador e escrever uns parágrafos iniciais… Arthur Cabral, a tornar-se um ‘matador’ num canto ‘teleguiado’ do Di Maria; e na verdade, podia ser o segundo golo de cabeça, porque o brasileiro já mandara uma bola ao poste logo aos 5 minutos)

    Entretanto, já fui ver: o minuto de silêncio foi uma homenagem a Palmeiro Antunes, um antigo jogador do Benfica da segunda metade dos anos 50, que conquistou um campeonato e duas Taças de Portugal. Tinha 87 anos.

    E por falar em glórias de outros tempos, e estas ainda maiores do que os futebolistas, deu-me finalmente para, após tantos anos de ‘primeira divisão’, ver o motivo pelo qual o Gil Vicente, sendo Barcelos tão famosa pelo milagre de Santiago que fez cantar o galo assado para salvar o(s) inocente(s) peregrino(s) – não se sabe se foi um ou dois; e nem é certo ter havido milagre algum –, se chama Gil Vicente e não Santiago, e os gilistas não são afinal conhecidos por ‘galistas’.    

    (entretanto, com o jogo ‘morninho’, ligam-se no estádio uma série de ecrans com o nome do malogrado Miklos Feher, acompanhada da mensagem “20 anos de saudade”. Hoje estamos ‘numa’ de homenagens)

    Até porque, continuando, que eu soubesse nada na vida do verdadeiro Gil Vicente, do dramaturgo, esteve associado a Barcelos, descontando um tal Frei Pedro de Poiares que para ali lhe atribui o berço, mas nestas ‘coisas’ até o Padre Rei, o pároco da terra da minha adolescência (Moita, no concelho de Anadia), garantia que o Camões estava enterrado na ‘sua igreja.

    (goloooooo… oportuníssimo, o miúdo João Neves, sagaz na insistência, embora com alguma sorte… isto hoje, desconfio, tornar-se uma Barca do Inferno para este Gil Vicente)

    Enfim, há quem diga que foi em Guimarães o berço de Gil Vicente, outros asseguram que afinal foi em Lisboa, mas muitos estudiosos garantem ainda que ele terá sido nado e criado nas Beiras, não se sabe se no interior ou litoral, por causa de alguns personagens dos seus autos. Mas também pouco importa. Não estou aqui para compor uma crónica biográfica, que na Varanda da Luz estou, nem me apetece andar em conjecturas que me levariam a pendengas como aquela entre Camilo Castelo Branco e Teófilo de Braga sobre se o Gil Vicente dramaturgo era ou não o Gil Vicente ourives que compôs a Custódia de Belém.

    (entretanto, nisto se meteu o intervalo, e o início da segunda parte)

    Passaram, portanto, 45 minutos e eu ainda não revelei aos leitores – e presumo que, dos muitos que não sabem, haja poucos que estejam interessados – a causa de o Gil Vicente, que acabaria os seus dias na cidade de Évora, dar o nome ao Gil Vicente. Ao clube, claro, porque o outro, o verdadeiro, se chamou assim por escolha dos pais e apelido do pai.

    (golooooo… 3-0, o habitual golito do Rafa. Acho que o Gil Vicente vai sair daqui de Lisboa como a Maria Parda, em pranto, vergado por uma goleada)

    Bom, despachemos isto, vista está a garantia da vitória – o Gil, o de Barcelos, mostra-se inofensivo –, e o topo da Liga está já alcançado, mesmo se de forma virtual, por obra e graça da PSP e de uns arruaceiros. O Gil Vicente chama-se Gil Vicente porque, enfim, lá pelos anos 20 do século passado uns barcelenses jogavam à bola em frente do teatro começado a construir umas décadas pela Empresa Teatral Gil Vicente.

    (depois do terceiro golo do Benfica, tudo muito lento, quebrado por uma série de substituições; nada a anotar excepto as palmas dos adeptos e uma boa estirada do Trubin para manter ‘invioladas as suas redes’… estes jargões futebolísticos são mesmo engraçados)

    Chegado aqui, perguntem-me: então, e qual a razão para a Empresa Teatral Gil Vicente se chamar Empresa Teatral Gil Vicente? E aqui não respondo porque não sei, mas se soubesse receio que entrássemos numa espiral de descobertas e inquirições que nos levariam ao início dos tempos. Em todo o caso, presumo que no final do século XIX, o tempo áureo do teatro português, não haveria ainda muitos dramaturgos clássicos, daí que Gil Vicente fosse o mais óbvio, talvez apenas seguido pelo Almeida Garrett, que faleceu em 1854. Talvez por um triz o Varzim, que já militou em tempos na primeira divisão, não se chama Almeida Garrett, visto que tem um cineteatro em sua homenagem.

    (e o jogo, neste rame rame, lá acabou, e ainda bem, que eu tenho de despachar a crónica; uma vitória simples, sem sobressaltos desta vez, tudo limpinho limpinho)

    E desvendado que fica a razão para se ter dado o nome do Gil Vicente ao Gil Vicente, apenas um último apontamento, tendo em conta a raridade de um clube usar personalidades da Cultura: que raio deu aos dirigentes do histórico Desportivo Francisco de Holanda – fundado na cidade de Guimarães, em 1943, por alunos da escola secundária com o nome deste humanista do século XVI (e que me ‘serviu’ de narrador para o meu romance Nove Mil Passos) – para cederem os direitos desportivos a um clube com a obtusa denominação Clube Desportivo Xico Andebol? O Francisco de Holanda agora é o Xico Andebol?! Ensandeceram?! Incultos!

    Daqui a nada ainda vamos ver o Gil Vicente transformar-se em Gigi Futebol Clube, é?

    Aliás, a propósito de incultura, e como não consegui encaixar com aisance, aproveito para contar algo sobre Almada Negreiros, artista multifacetado e que até teatro compôs, que deixo ao critério do Polígrafo averiguar da veracidade.

    Certa vez, num inquérito para auscultar os conhecimentos culturais do povo, e numa altura em que era muito popular o programa televisivo de apostas desportivas “Vamos Jogar no Totobola”, perguntaram a alguém: “Então, o que acha do Almada Negreiros?”. Resposta: “Bom, Almada Negreiros… Almada Negreiros… acho que vou pelo X”.

    Até à próxima. Por uns dias, mesmo se na ‘secretaria’, o Benfica vê finalmente o Sporting pelo espelho retrovisor. Alegremo-nos, benfiquistas!


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  • Justiça à portuguesa

    Justiça à portuguesa


    Marinho Pinto afirmava que alguns estudantes com vocação para o Direito se inscreviam, depois de licenciados, no CEJ – Centro de Estudos Judiciários, com a intenção de virem a ser Magistrados, mas saíam de lá “Majestades”.

    A frase foi criticada por muitos, outros censuravam-lhe a truculência, mas poucos eram os que não lhe davam alguma razão.

    Há que reconhecer que Procuradores e Juízes são detentores de um extraordinário Poder, que conseguem sem terem passado por qualquer tipo de eleição, e apenas julgados, em caso de qualquer erro, pelos seus pares.

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    O resultado só podia ser mau e os números demonstram isso à saciedade.

    O jornalista J. Plácido Júnior publicou, há uns anos, na revista “Visão”, um artigo onde escrevia:

    “As percentagens de absolvição por ‘carência de prova’, em processos-crime findos em julgamento de 1ª instância, em Portugal, oscilam entre 40,4% e 48% do total de arguidos não condenados – estes, na sua maioria, por desistência de queixas em crime semipúblicos ou particulares, segundo os últimos números oficiais disponíveis. Um “desastre” que, em sete anos, atingiu 154.569 cidadãos, universo superior ao da terceira cidade mais populosa do País, Braga, com 138.000 habitantes.”

    Houve casos em que o arguido chegou ao Tribunal “depois de dez juízes diferentes terem validado a sua prisão preventiva, até a tese da acusação desmoronar em Julgamento, como um castelo de cartas.”

    Vendo por outro prisma:

    Em média, em todos os dias desses sete anos, incluindo sábados, domingos e feriados, houve 65 cidadãos que foram acusados, e muitos deles presos preventivamente, para serem, passados anos, absolvidos.

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    Estas absolvições chegam a representar 48% do total de arguidos (praticamente metade dos acusados) quando o máximo admitido por peritos europeus é de 12%.

    A parceria existente entre alguns elementos do Ministério Público e alguma Comunicação Social – que muitos entendem como uma troca de informações em primeira mão por promoção em jornais e televisões de alguns magistrados – é, também ela, um problema que devia exigir toda a atenção dos Órgãos Superiores da Magistratura.

    As fugas de informação são indesmentíveis.

    Há inúmeras provas: jornalistas que chegam aos locais das buscas judiciais ao mesmo tempo que os agentes policiais e os magistrados (já houve casos em que chegaram antes), conseguirem documentação, que deveria ser confidencial, antes dos advogados dos arguidos, e terem acesso às gravações, por vezes com imagem e som, dos interrogatórios destes, na fase de instrução, que divulgam nos seus canais.

    Depois há toda uma encenação que é preparada, ao pormenor, para tornar os casos mais apetecíveis para a imprensa:

    Buscas aparatosas com dezenas de operacionais equipados como se fossem para uma guerra, incluindo com o rosto tapado, detenção de arguidos – que todos sabem “não perigosos” nem interessados em fugir à Justiça – para primeiro interrogatório, mantendo-os presos muito para lá das 48 horas que a Lei indica como o correcto.

    O autêntico circo montado para as buscas no Funchal, com dois aviões militares a levarem centena e meia de inspectores da Polícia Judiciária, mais Magistrados, até ao Arquipélago, é só mais um exemplo.

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    O mais grave de tudo, contudo, é percebermos que todo este aparato, que dá uma primeira impressão de grande eficiência na investigação e, logo, na Justiça, acaba inúmeras vezes em absolvições, ou num arrastar dos processos durante anos, com enorme prejuízo para os acusados e total descrédito para quem acusa.

    Todos nos lembramos de Ministros que tiveram de deixar os seus cargos da pior maneira, com a suspeita de serem criminosos, viverem largos meses, por vezes anos, com os dedos apontados pelos seus vizinhos, para depois serem absolvidos.

    Mas com a vida destruída.

    E também conhecemos cidadãos constituídos arguidos, com a informação de terem cometido delitos gravíssimos, principalmente na área económica, mas que nunca, jamais, em tempo algum, passarão um dia dentro de uma cadeia.

    O que não impede que, anualmente, se multipliquem os discursos do “combate à corrupção”.

    Na última década as intervenções na Cerimónia da Abertura do Ano Judicial são repetidas “ipsis verbis”.

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    Presidente da República, Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Ministro da Justiça, Procuradora-Geral da República leem, há anos, o mesmíssimo discurso onde prometem um combate feroz à corrupção.

    Já os sei de cor.

    O balanço é simples, dezenas e dezenas de cidadãos prejudicadíssimos por erros perfeitamente identificados, ou por atrasos inexplicáveis nos seus processos, sem haver um único Magistrado punido por tal.

    Pelo contrário, subindo calmamente nas carreiras.

    É a Justiça à portuguesa!

    Vítor Ilharco é assessor


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