Etiqueta: Destaque Opinião

  • Gil Vicente 3.0

    Gil Vicente 3.0


    Já sabia, pela ‘meteorologista’ Filomena Martins, directora-adjunta do Observador, que hoje não teríamos o danado “rio atmosférico” a pairar pela Luz – só chega pela quinta-feira –, mas vi-me obrigado a consultar o ‘boletim da saúde policial’ para confirmar se alguma indisposição colectiva impedia o jogo, acrescido de uma pesquisa pelas ‘má-afamadas’ redes sociais, de sorte a perceber a probabilidade de ocorrência de uma saraivada de cadeiras e pedras pelos ares.

    Tudo bem. Segui seguro, qual Leonor pela verdura, para a Luz, ainda a tempo de um cafézinho, no Columbia, paredes-meias com o Alto dos Moinhos, que por estas horas vende mais cerveja que cafés.

    E cá estou a tempo ainda de recepcionar o farnel do Benfica (embora hoje esteja um bocado cheio, por causa de um almoço tardio), e de subir as cada vez mais íngremes escadas para esta Varanda da Luz antes do apito inicial, por via de um tempo extra por se fazer um minuto de silêncio não sei pela alma de quem… vou daqui a nada ver…

    (golooooooo… isto hoje nem me deram tempo de descansar um pouco, ligar o computador e escrever uns parágrafos iniciais… Arthur Cabral, a tornar-se um ‘matador’ num canto ‘teleguiado’ do Di Maria; e na verdade, podia ser o segundo golo de cabeça, porque o brasileiro já mandara uma bola ao poste logo aos 5 minutos)

    Entretanto, já fui ver: o minuto de silêncio foi uma homenagem a Palmeiro Antunes, um antigo jogador do Benfica da segunda metade dos anos 50, que conquistou um campeonato e duas Taças de Portugal. Tinha 87 anos.

    E por falar em glórias de outros tempos, e estas ainda maiores do que os futebolistas, deu-me finalmente para, após tantos anos de ‘primeira divisão’, ver o motivo pelo qual o Gil Vicente, sendo Barcelos tão famosa pelo milagre de Santiago que fez cantar o galo assado para salvar o(s) inocente(s) peregrino(s) – não se sabe se foi um ou dois; e nem é certo ter havido milagre algum –, se chama Gil Vicente e não Santiago, e os gilistas não são afinal conhecidos por ‘galistas’.    

    (entretanto, com o jogo ‘morninho’, ligam-se no estádio uma série de ecrans com o nome do malogrado Miklos Feher, acompanhada da mensagem “20 anos de saudade”. Hoje estamos ‘numa’ de homenagens)

    Até porque, continuando, que eu soubesse nada na vida do verdadeiro Gil Vicente, do dramaturgo, esteve associado a Barcelos, descontando um tal Frei Pedro de Poiares que para ali lhe atribui o berço, mas nestas ‘coisas’ até o Padre Rei, o pároco da terra da minha adolescência (Moita, no concelho de Anadia), garantia que o Camões estava enterrado na ‘sua igreja.

    (goloooooo… oportuníssimo, o miúdo João Neves, sagaz na insistência, embora com alguma sorte… isto hoje, desconfio, tornar-se uma Barca do Inferno para este Gil Vicente)

    Enfim, há quem diga que foi em Guimarães o berço de Gil Vicente, outros asseguram que afinal foi em Lisboa, mas muitos estudiosos garantem ainda que ele terá sido nado e criado nas Beiras, não se sabe se no interior ou litoral, por causa de alguns personagens dos seus autos. Mas também pouco importa. Não estou aqui para compor uma crónica biográfica, que na Varanda da Luz estou, nem me apetece andar em conjecturas que me levariam a pendengas como aquela entre Camilo Castelo Branco e Teófilo de Braga sobre se o Gil Vicente dramaturgo era ou não o Gil Vicente ourives que compôs a Custódia de Belém.

    (entretanto, nisto se meteu o intervalo, e o início da segunda parte)

    Passaram, portanto, 45 minutos e eu ainda não revelei aos leitores – e presumo que, dos muitos que não sabem, haja poucos que estejam interessados – a causa de o Gil Vicente, que acabaria os seus dias na cidade de Évora, dar o nome ao Gil Vicente. Ao clube, claro, porque o outro, o verdadeiro, se chamou assim por escolha dos pais e apelido do pai.

    (golooooo… 3-0, o habitual golito do Rafa. Acho que o Gil Vicente vai sair daqui de Lisboa como a Maria Parda, em pranto, vergado por uma goleada)

    Bom, despachemos isto, vista está a garantia da vitória – o Gil, o de Barcelos, mostra-se inofensivo –, e o topo da Liga está já alcançado, mesmo se de forma virtual, por obra e graça da PSP e de uns arruaceiros. O Gil Vicente chama-se Gil Vicente porque, enfim, lá pelos anos 20 do século passado uns barcelenses jogavam à bola em frente do teatro começado a construir umas décadas pela Empresa Teatral Gil Vicente.

    (depois do terceiro golo do Benfica, tudo muito lento, quebrado por uma série de substituições; nada a anotar excepto as palmas dos adeptos e uma boa estirada do Trubin para manter ‘invioladas as suas redes’… estes jargões futebolísticos são mesmo engraçados)

    Chegado aqui, perguntem-me: então, e qual a razão para a Empresa Teatral Gil Vicente se chamar Empresa Teatral Gil Vicente? E aqui não respondo porque não sei, mas se soubesse receio que entrássemos numa espiral de descobertas e inquirições que nos levariam ao início dos tempos. Em todo o caso, presumo que no final do século XIX, o tempo áureo do teatro português, não haveria ainda muitos dramaturgos clássicos, daí que Gil Vicente fosse o mais óbvio, talvez apenas seguido pelo Almeida Garrett, que faleceu em 1854. Talvez por um triz o Varzim, que já militou em tempos na primeira divisão, não se chama Almeida Garrett, visto que tem um cineteatro em sua homenagem.

    (e o jogo, neste rame rame, lá acabou, e ainda bem, que eu tenho de despachar a crónica; uma vitória simples, sem sobressaltos desta vez, tudo limpinho limpinho)

    E desvendado que fica a razão para se ter dado o nome do Gil Vicente ao Gil Vicente, apenas um último apontamento, tendo em conta a raridade de um clube usar personalidades da Cultura: que raio deu aos dirigentes do histórico Desportivo Francisco de Holanda – fundado na cidade de Guimarães, em 1943, por alunos da escola secundária com o nome deste humanista do século XVI (e que me ‘serviu’ de narrador para o meu romance Nove Mil Passos) – para cederem os direitos desportivos a um clube com a obtusa denominação Clube Desportivo Xico Andebol? O Francisco de Holanda agora é o Xico Andebol?! Ensandeceram?! Incultos!

    Daqui a nada ainda vamos ver o Gil Vicente transformar-se em Gigi Futebol Clube, é?

    Aliás, a propósito de incultura, e como não consegui encaixar com aisance, aproveito para contar algo sobre Almada Negreiros, artista multifacetado e que até teatro compôs, que deixo ao critério do Polígrafo averiguar da veracidade.

    Certa vez, num inquérito para auscultar os conhecimentos culturais do povo, e numa altura em que era muito popular o programa televisivo de apostas desportivas “Vamos Jogar no Totobola”, perguntaram a alguém: “Então, o que acha do Almada Negreiros?”. Resposta: “Bom, Almada Negreiros… Almada Negreiros… acho que vou pelo X”.

    Até à próxima. Por uns dias, mesmo se na ‘secretaria’, o Benfica vê finalmente o Sporting pelo espelho retrovisor. Alegremo-nos, benfiquistas!


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  • Justiça à portuguesa

    Justiça à portuguesa


    Marinho Pinto afirmava que alguns estudantes com vocação para o Direito se inscreviam, depois de licenciados, no CEJ – Centro de Estudos Judiciários, com a intenção de virem a ser Magistrados, mas saíam de lá “Majestades”.

    A frase foi criticada por muitos, outros censuravam-lhe a truculência, mas poucos eram os que não lhe davam alguma razão.

    Há que reconhecer que Procuradores e Juízes são detentores de um extraordinário Poder, que conseguem sem terem passado por qualquer tipo de eleição, e apenas julgados, em caso de qualquer erro, pelos seus pares.

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    O resultado só podia ser mau e os números demonstram isso à saciedade.

    O jornalista J. Plácido Júnior publicou, há uns anos, na revista “Visão”, um artigo onde escrevia:

    “As percentagens de absolvição por ‘carência de prova’, em processos-crime findos em julgamento de 1ª instância, em Portugal, oscilam entre 40,4% e 48% do total de arguidos não condenados – estes, na sua maioria, por desistência de queixas em crime semipúblicos ou particulares, segundo os últimos números oficiais disponíveis. Um “desastre” que, em sete anos, atingiu 154.569 cidadãos, universo superior ao da terceira cidade mais populosa do País, Braga, com 138.000 habitantes.”

    Houve casos em que o arguido chegou ao Tribunal “depois de dez juízes diferentes terem validado a sua prisão preventiva, até a tese da acusação desmoronar em Julgamento, como um castelo de cartas.”

    Vendo por outro prisma:

    Em média, em todos os dias desses sete anos, incluindo sábados, domingos e feriados, houve 65 cidadãos que foram acusados, e muitos deles presos preventivamente, para serem, passados anos, absolvidos.

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    Estas absolvições chegam a representar 48% do total de arguidos (praticamente metade dos acusados) quando o máximo admitido por peritos europeus é de 12%.

    A parceria existente entre alguns elementos do Ministério Público e alguma Comunicação Social – que muitos entendem como uma troca de informações em primeira mão por promoção em jornais e televisões de alguns magistrados – é, também ela, um problema que devia exigir toda a atenção dos Órgãos Superiores da Magistratura.

    As fugas de informação são indesmentíveis.

    Há inúmeras provas: jornalistas que chegam aos locais das buscas judiciais ao mesmo tempo que os agentes policiais e os magistrados (já houve casos em que chegaram antes), conseguirem documentação, que deveria ser confidencial, antes dos advogados dos arguidos, e terem acesso às gravações, por vezes com imagem e som, dos interrogatórios destes, na fase de instrução, que divulgam nos seus canais.

    Depois há toda uma encenação que é preparada, ao pormenor, para tornar os casos mais apetecíveis para a imprensa:

    Buscas aparatosas com dezenas de operacionais equipados como se fossem para uma guerra, incluindo com o rosto tapado, detenção de arguidos – que todos sabem “não perigosos” nem interessados em fugir à Justiça – para primeiro interrogatório, mantendo-os presos muito para lá das 48 horas que a Lei indica como o correcto.

    O autêntico circo montado para as buscas no Funchal, com dois aviões militares a levarem centena e meia de inspectores da Polícia Judiciária, mais Magistrados, até ao Arquipélago, é só mais um exemplo.

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    O mais grave de tudo, contudo, é percebermos que todo este aparato, que dá uma primeira impressão de grande eficiência na investigação e, logo, na Justiça, acaba inúmeras vezes em absolvições, ou num arrastar dos processos durante anos, com enorme prejuízo para os acusados e total descrédito para quem acusa.

    Todos nos lembramos de Ministros que tiveram de deixar os seus cargos da pior maneira, com a suspeita de serem criminosos, viverem largos meses, por vezes anos, com os dedos apontados pelos seus vizinhos, para depois serem absolvidos.

    Mas com a vida destruída.

    E também conhecemos cidadãos constituídos arguidos, com a informação de terem cometido delitos gravíssimos, principalmente na área económica, mas que nunca, jamais, em tempo algum, passarão um dia dentro de uma cadeia.

    O que não impede que, anualmente, se multipliquem os discursos do “combate à corrupção”.

    Na última década as intervenções na Cerimónia da Abertura do Ano Judicial são repetidas “ipsis verbis”.

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    Presidente da República, Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Ministro da Justiça, Procuradora-Geral da República leem, há anos, o mesmíssimo discurso onde prometem um combate feroz à corrupção.

    Já os sei de cor.

    O balanço é simples, dezenas e dezenas de cidadãos prejudicadíssimos por erros perfeitamente identificados, ou por atrasos inexplicáveis nos seus processos, sem haver um único Magistrado punido por tal.

    Pelo contrário, subindo calmamente nas carreiras.

    É a Justiça à portuguesa!

    Vítor Ilharco é assessor


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  • Macaco: a incrível história de um beneficiário do RSI

    Macaco: a incrível história de um beneficiário do RSI


    Há dois dias que só ouvimos falar de Fernando Madureira, ou do Macaco, como ele prefere ser chamado – o líder de um gangue criminoso que, por acaso, também vai à bola.

    Vi Miguel Sousa Tavares (MST) indignado com o estado em que a polícia deixou a casa de Madureira, e até a filha do visado a queixar-se da violência e agressividade com que a polícia por ali entrou. Percebo MST, percebo mesmo. Ainda é do tempo em que os polícias telefonavam a avisar antes das rusgas, dando tempo aos visados de fugirem para Vigo. Bons tempos que parecem não querer voltar.

    Já o espanto da miúda, tenho alguma dificuldade em entender. A não ser que o casal Madureira tenha proibido a filha de ir ao Youtube, há por lá boa documentação, do pai e da mãe, bem como dos amigos de ambos, em preparos bem mais violentos e agressivos do que a PSP a entrar pela porta da frente sem tocar à campainha. Para ela, aquilo deveria ter sido uma simples terça-feira de trabalho.

    Aquilo que realmente acho interessante neste caso é, uma vez mais, o tempo em que tudo acontece.

    Há pelo menos 20 anos que toda a gente sabe quem é Fernando Madureira. Até porque, convenhamos, ele não gosta de fazer um grande segredo das suas actividades. Tal como boa parte dos seus compatriotas, Madureira vive, diz, com o salário mínimo. A dura realidade de um país pobre, segundo a declaração que, anualmente, entrega em sede de IRS. Contudo, ao contrário de boa parte dos sobreviventes do salário mínimo, Madureira consegue esticar os parcos recursos declarados e viver, digamos, confortavelmente. Construiu uma moradia de luxo com dois pisos e piscina numa zona nobre de Gaia. Conduz um Porsche e um BMW topo de gama. Viaja frequentemente para sítios paradisíacos, onde o bilhete de avião e a estadia custam vários salários mínimos.

    Dir-nos-ia a Iniciativa Liberal que estamos perante um empreendedor, um homem que não se resignou à sua condição de pobre e que procurou investir em si mesmo. Um homem que faz a multiplicação dos pães ou, neste caso, dos salários mínimos.

    Desconfia-se, há muitos anos, que Madureira e vários membros dos Super Dragões estão envolvidos em actos ilícitos e, dessa forma, conseguem suportar os custos de uma vida de luxo sem que se conheça, aparentemente, um emprego fora da claque.

    Pergunto-me: como é que as autoridades terão desconfiado disto?

    Durante duas décadas, vimos Madureira e membros dos Super Dragões a vender bilhetes para jogos (libertados pelo próprio clube), ficando provavelmente com os lucros e oferecendo, em troca, todo o tipo de serviços ao clube, dentro da gama de recursos que uma guarda pretoriana pode oferecer.

    Vimos Pinto da Costa escoltado pelo gangue a caminho do tribunal, vimos visitas filmadas a árbitros no seu centro de treinos, soubemos de passagens por estabelecimentos de árbitros ou seus familiares na véspera de jogos. Há relatos de jogadores ameaçados pela claque quando não quiseram renovar contrato. Agressões a jornalistas, adeptos, adversários. O clima de terror e coacção vem de trás e trouxe, para além de alegados proveitos desportivos, aparentes proveitos económicos.

    Fernando Madureira mexe-se bem na alta roda dos interesses. Tanto aparece aos abraços com Pedro Proença, o dirigente máximo da Liga Portuguesa de Futebol, antigo árbitro amigo; como é visto com o apoio da Federação Portuguesa de Futebol, a liderar uma claque patrocinada para a nossa Selecção. Isto apenas por ter revelado, em livro, uma série de assaltos feitos nessas mesmas deslocações com a claque.

    Deve ser um dos poucos casos em Portugal onde o autor confessa os seus crimes pela via escrita ou filmada e, mesmo assim, nada lhe acontece.

    Há 20 anos que sabemos desta promiscuidade e, obviamente, a passagem do tempo aumentou a sensação de impunidade. Madureira faz o que quer, como quer, e quando quer. Em Gaia, expulsa de um restaurante um antigo funcionário do Benfica. Filma-se em combates ilegais de rua. Vende bilhetes em directo, afirmando que tem todos os bandidos do Porto ali por perto. Relata, detalhadamente, como roubam pessoas ou estações de serviço a caminho dos jogos. A única coisa que falta colocar em livro são os pontos de recolha e entrega de droga, outro dos negócios alegadamente ligado ao gangue liderado por Madureira.

    Pelo meio desta vida atarefada de gestão do salário mínimo nacional, Madureira ainda teve tempo para gozar com o sistema de ensino português. Conseguiu entregar uma tese de mestrado numa universidade privada e obter o grau de mestre com 17 valores.

    A revista Visão, em 2017, num artigo de Miguel Carvalho, relatava o seguinte sobre este tese:

    “Quando leu o documento, Maria Alzira Seixo, professora catedrática da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, ia tendo um susto. Ou pior. A tese de Fernando Madureira é um insulto à Língua Portuguesa e ao desporto nacional. Manuel Sérgio [catedrático da Faculdade de Motricidade Humana] pode ter um ataque cardíaco se a ler!”, ironiza, sem se deter, citando um dos académicos mais prestigiados nesta área. “É escrita num Português iletrado, analfabeto e ridículo. Inacreditável que uma instituição do ensino superior aceite tal coisa”, reforça Maria Alzira Seixo.

    Porquê agora? Numa vida cheia de história mal contadas e com provas repetidas de crimes cometido, o que mudou? Porque acordou o mundo para a realidade de Fernando Madureira, Sandra Madureira e o gangue criminoso por eles liderado? Por causa de uma assembleia geral onde as ameaças e coacção, normalmente usadas para adversários, foram aplicadas à oposição interna com aquele vergonhoso condicionamento dos trabalhos? Não, não foi por isso.

    Pinto da Costa reina tranquilo há 40 anos sem que alguém tenha sequer coragem para o criticar. Durante muito tempo, a claque garantiu que ninguém se aproximava sequer do poder. Aliás, a vida que Madureira tem só será possível enquanto Pinto da Costa for o presidente do Futebol Clube do Porto. E o contrário também é verdade. Direccão e claque precisam um do outro para manter as rotinas das últimas duas décadas.

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    Não foram os desacatos da assembleia geral que deram o alerta nas forcas de segurança. Não há nada de novo na violência e métodos do gangue. A novidade é que, desta vez, a oposição parece ter alguma força e, aos poucos, começa a cheirar a fim de ciclo e à queda do poder vigente. Ora, em Portugal, todos sabemos, a impunidade dos mais poderosos acaba quando a cadeira do poder se parte.

    Pinto da Costa está de facto ameaçado por André Villas Boas e sabe que, se não sair da administração do Futebol Clube do Porto num caixão, será ele o próximo a ir responder à Judiciária ou à PSP. O mesmo para o gangue de Madureira. A vida de luxo à custa do clube e o constante olhar para o lado das autoridades mantém-se, enquanto o poder instituído for o mesmo. Quando o sistema se começar a desmoronar, Madureira será a sua primeira vítima.

    A história de Madureira não diz nada sobre ele que já não fosse público. Diz, e muito, de como funciona esta República das Bananas a que vamos chamando Portugal.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


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  • Ironia do destino: os acríticos aprenderam a criticar os media

    Ironia do destino: os acríticos aprenderam a criticar os media

    Muitos jornalistas e activistas ‘antifascistas’ parecem ter sido subitamente assaltados por um aguçado espírito crítico em relação à imprensa mainstream. E quem é o responsável por este milagroso despertar do torpor em que estavam mergulhados? O Chega.

    Por estes dias, temos assistido a uma indignação galopante contra alguns canais de media, acusados de indirectamente ‘levar ao colo’ o partido de André Ventura já que lhe dedicaram uma desmesurada atenção e espaço. Mesmo que, confesso, não seja eu uma telespectadora suficientemente assídua para confirmar a justeza deste argumento, até dou de barato que haja razão. De qualquer modo, esse aspecto não me parece ser relevante para uma discussão séria.

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    O ponto a salientar é outro, e bastante simples: aqueles que não disseram uma palavra sobre a vergonhosa cobertura mediática feita em torno da pandemia, agora já põem em causa os critérios daquilo que se revela ou não como uma notícia. De repente, parece que os críticos perceberam como o gatekeeping, a selecção das matérias tratadas pelos media, pode ser duvidosa e obscura.

    Por isso, é legítimo perguntar: em que mundo têm vivido estas pessoas para não se terem apercebido de que 70% ou 80% – estou a especular nos números, mas entendam a ordem de grandeza – daquilo que sai nos media serve para encher chouriços e esvaziar cabeças?

    Acordaram agora para a realidade do ‘soundbite’ e do fútil? E o que se segue para estes novos combatentes do populismo noticioso: vão aderir às tais “teorias da conspiração” propaladas pelos supostos “chalupas” de que, afinal, sempre é verdade que os media estão comprados, que é tudo propaganda? Há quem lhe chame ironia do destino.

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    A hipocrisia destes novos ‘questionadores’ é gritante. Recordemos, por exemplo, o período da pandemia. Muitos revoltados com a miserável e nada isenta cobertura jornalística, lançaram ataques ferozes sobre a imprensa – alguns até físicos, como aconteceu nos Estados Unidos e no Reino Unido, com protestos junto das instalações de canais como a CNN e a BBC. Os próprios media, nacionais e internacionais, claro, retribuíam os ‘mimos’, acusando estes grupos de atentarem contra a democracia e de serem de “extrema-direita” ou anti-sistema.

    Em Portugal, o conhecido cantor de hip-hop ‘Estraca’ lançou, em Dezembro de 2021, “Jornalixo”, que denunciava a podridão e corrupção dos órgãos de comunicação social. Tornou-se ‘viral’ nas redes sociais, mas o rapper foi ridicularizado por muitos daqueles que agora vociferam contra os media.

    Há ainda um exemplo paradigmático e particularmente revelador da duplicidade de critérios de quem hoje culpa a comunicação social pelo crescimento (mediático) do Chega. Donald Trump, inegavelmente detestado por muitos jornalistas, foi sempre alvo de um escrutínio feroz e desigual em comparação com os candidatos do Partido Democrata. O tratamento que recebia era, sem qualquer dúvida, tendencioso e negativo.

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    Nesse contexto, o ex-presidente norte-americano chegou a dizer que “os media são o inimigo do povo”. Esta entrada a pé juntos fez os supostos defensores da democracia rasgar as vestes. Os ‘antipopulistas’, contudo, pouco se importavam que se deitasse para o lixo a isenção e o rigor jornalísticos quando o protagonista das notícias era Trump. Valia tudo, até mentir ou distorcer os factos para denegrir a sua imagem. Na altura, essa cobertura mediática afagava o seu viés ideológico.

    Agora, dá-se um plot twist. Os acríticos foram picados pelo bichinho do espírito crítico e já aprenderam a desconfiar dos media. Estamos perto de ver essas pessoas, que aplaudem a comunicação social quando se ‘porta bem’ – e promove os actores políticos que lhes agradam – e a condenam quando, aos seus olhos, se ‘porta mal’, dizerem que os media são o inimigo do povo. Só agora, porque o Chega continua a subir nas sondagens. Santa hipocrisia. Santa paciência.

    Maria Afonso Peixoto é jornalista


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  • Iniciativa Liberal: cartazes para dar que falar

    Iniciativa Liberal: cartazes para dar que falar

    Nos meios políticos portugueses, a campanha exterior da Iniciativa Liberal (IL) têm sido alvo de considerável atenção pública. Num contexto em que o entretenimento e a política se encontram num ponto de convergência, as fronteiras entre ambos tornam-se cada vez mais difusas. Essa convergência tem resultado numa abordagem centrada na espectacularização da realidade, conforme destacado pelos investigadores em ciência política, Farnsworth & Lichter, e sintetizado nas palavras do filósofo e teórico marxista Guy Debord: “O espectáculo, como tendência a fazer ver (por diferentes mediações especializadas) o mundo que já não se pode tocar directamente, serve-se da visão como sentido privilegiado da pessoa humana.”

    A ascensão da Iniciativa Liberal, como partido político em Portugal reconhecido pelo Tribunal Constitucional a 13 de Dezembro de 2017, marcou uma mudança no panorama político nacional. O seu programa “Menos Estado, Mais Liberdade” revelou as linhas mestres da abordagem política deste novo partido, liberal em toda a linha. Logo nas eleições legislativas antecipadas de 2022, o partido conseguiu captar simpatizantes e consolidar-se como a quarta maior força política, obtendo uns surpreendentes oito assentos na Assembleia da República. Um estudo realizado por João Cancela e Pedro Magalhães revelou que, grande parte do seu eleitorado foi composto por jovens adultos, especialmente aqueles com menos de 25 anos, e é predominantemente do sexo masculino (58%) e com formação superior (61%).

    Cartaz 8x3m, situado na rotunda do Saldanha em Lisboa em montagem ©DR

    Além da presença assídua nas redes sociais, a Iniciativa Liberal investiu numa campanha publicitária marcada pela ironia, encomendada a Manuel Soares de Oliveira, fundador da agência de publicidade Mosca. Essa abordagem estratégica, rara na política portuguesa, destacou-se pela sua originalidade e eficácia, utilizando uma diversidade de mensagens críticas e humorísticas. E assumiu-se como partido de oposição, posicionando-se como alternativa governativa, que propõe uma profunda transformação política e social. Talvez a maior de todos os partidos que se apresentam a eleições. Segundo este criativo licenciado em Ciência Política, “o marketing político em Portugal é quase inexistente. Normalmente, são as empresas de comunicação que trabalham com os políticos e não há um trabalho de longo prazo.”

    Com uma abordagem disruptiva, os cartazes da IL conquistaram desde cedo a atenção do público em geral, mas também dos meios de comunicação e conseguiram desencadear efeitos multiplicadores noutros canais de divulgação. Representantes políticos proeminentes da nossa praça são caricaturados de maneira satírica, acompanhando a actualidade. Com design cuidado, esta táctica confere uma pertinência que convoca naturalmente à discussão pública, em família ou entre amigos. Resultado de um trabalho conjunto entre um publicitário, o responsável de comunicação do partido e o então líder Carlos Guimarães Pinto, a estratégia alicerça-se num conceito forte, facilmente declinável ao longo do tempo, o que lhe confere consistência. Atrevida e irreverente, é facilmente reconhecida por composição estável que conjuga dois tons de azul, um intermédio que lembra o antigo pássaro do twitter e o azul escuro onde recai o logo IL com uma boa dimensão para garantir a sua leitura, e por conseguinte identificação. A mensagem é escrita em maiúsculas de cor amarela em caixa de com vermelha para bem se evidenciar.

    Na 2ª Circular em Lisboa (embora já tenha estado noutros paradeiros desde 2020) um outdoor onde António Costa é representado como piloto da TAP com uma miniatura de Rui Rio no bolso, que clama “Senhores contribuintes, apertem mais o cinto” em letras bem legíveis. Noutro motivo, colocado em várias localidades designadamente em Maia, vemos a caricatura de Pedro Nuno Santos como criança, vestido de calções com um avião no bolso e uma t-shirt com o revolucionário Che Guevara estampado e com um livro de Marx ao peito, a gritar: “Esses liberais são uns fanáticos na defesa do contribuinte.” Estas mensagens são complementadas por uma segunda frase, igualmente provocativa: “Socialistas: a fazer voar o dinheiro do contribuinte desde sempre.”

    Cartaz 8x3m com ilustração da Caldeirada, Praça do Saldanha, em Lisboa.

    Na Praça do Saldanha, em Lisboa, o cartaz actual retrata a icónica lata de sopa de tomate (Campbell’s Soup), imortalizada pelo artista norte-americano Andy Warhol. Esta nova versão da lata “Caldeirada”, com líderes partidários, sugere que sob tais lideranças, podemos apenas esperar soluções padronizadas e uma governança moldada pela luta pelo poder. A frase “A lata socialista está fora de prazo” é emblemática, conjuntamente com a assinatura “Prefere as ideias frescas”, insinuam que as políticas do PS são insípidas e que esta caldeirada industrial é intragável. É curioso observar que este cartaz se inspira na figura de um artista que liderou o movimento da pop art, conhecido por seus valores ultraliberais e comportamentos controversos. Outro tema retratado nos cartazes da Iniciativa Liberal é a celebração do 25 de Novembro, como alusão ao dia em que a democracia liberal triunfou sobre a ditadura totalitária de Esquerda em Portugal. Carregada de simbolismo, a mensagem simples pretende motivar e credibilizar a mudança, apelando ao voto à direita.

    Introduzindo a espectacularização na política, a comunicação da IL critica os modelos antiquados e questiona a lógica da subsidiodependência. Usando composições criativas e formatos originais, esta irreverência é eficaz, ao responder aos anseios dos jovens adultos, enquanto o seu principal eleitorado. Embora a produção de outdoors recortados seja mais dispendiosa, o investimento compensa na medida em que consegue interpelar os transeuntes, ampliar o seu impacto e garantir o retorno de visibilidade.

    A campanha de outdoors alia também o formato convencional (sem recortes ou avançados que ultrapassam a moldura) para poder chegar a outras localidades, não ficando assim limitada aos grandes centros urbanos. É exemplo disso a versão de menor formato que replica um sinal de nomes da rua criado em azulejos com a inscrição: Largo dos 75.800 € em pleno largo do Rato, onde mora a sede do PS em Lisboa.

    Cartaz afixado no tapume do Largo do Rato, em Lisboa, onde se localiza a sede do Partido Socialista.

    Surpreendente é verificar que a sua execução varia no tom das caixas de texto, que tanto estão vermelhas como rosa choque. Conforme defendido pelo publicitário Manuel Soares de Oliveira, “No mundo do zapping em que vivemos, os cartazes são das poucas coisas que temos mesmo de ver, e com poucos outdoors consegue-se um efeito óptimo”, apesar do crescente poder do marketing digital, principalmente entre o público abaixo dos 50 anos.

    O logótipo da Iniciativa Liberal é bem desenhado e de fácil identificação. O branco, simbolizando paz e limpeza, é a cor principal, enquanto o lettering escolhido é contemporâneo escrito em minúsculas o que contrasta com as imponentes maiúsculas dos headlines. Destaca a letra I em maiúscula, sobressaindo um ponto vermelho que sublinha a forma fálica deste símbolo.

    Diferenciando-se dos partidos do arco governativo que optam por integrar grandes retratos de seus líderes, os cartazes da IL não seguem essa fórmula clássica. Será por Rui Rocha, formado em Direito pela Católica, ser um líder novo demais para o gosto do eleitorado português ou simplesmente por alguma falta de carisma? Ou talvez hajam razões bem mais prosaicas como o facto da sua imagem estar em transformação (no X vemo-lo agora sem óculos)? Não poderia concordar mais com o seu coach nesta mudança, de facto, os óculos de massa davam-lhe um ar de programador websites ou de informático.

    O foco desta presença no espaço público está em problemas concretos para se posicionar como um partido convicto e com ideias precisas que respondem às necessidades reais da vida em Portugal. Adoptando um estilo despretensioso, usa a caricatura para estimular uma pré-disposição positiva no eleitorado. Cada motivo é único mas decorre de um conceito-base maleável que promove reacções e um efeito multiplicador escalável para cativar diferentes comunidades. Os cartazes de rua da Iniciativa Liberal representam assim mais do que simples propaganda política: são uma manifestação de coragem e criatividade que desafia as convenções estabelecidas como ainda promovem o reequacionar do rumo da política contemporânea em Portugal.

    Colagem de cartaz. Fotografia de Ruy Otero

    Em última análise, o conteúdo desta campanha é bastante suave em comparação com a proposta programática deste partido que propõe um corte radical, colocando uma gestão privada no serviço público da Educação à Saúde.
    Num país onde a pobreza ou exclusão social ameaçam agora 2,1 milhões de portugueses e onde a taxa de risco de pobreza, antes de qualquer transferência social, atinge 41,8%, conforme indicado pelo estudo do Observatório das Desigualdades divulgado em Novembro de 2023, os princípios da IL parecem ser bem mais disruptivos do que a sua campanha de comunicação.

    Sara Battesti é estratega e especialista em Comunicação


    Avaliação do cartaz

    Design: 4/5

    Impacto: 4/5

    Eficácia: 5/5

    Média: 4,33/5


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  • Caminha: crónica dos lugares

    Caminha: crónica dos lugares

    A cor não sobrevive ao tempo.

    Não é que tudo tivesse aquele tom empastelado de areia compactada (naquele tempo). Não é que penas de tinta sépia esbatessem as nuvens, e a chuva estivesse sempre próxima, a enublar as vidas, enquanto carvão gasto, e espalhasse cinza pelos caminhos (daquele tempo).

    É que os anos amarelecem as coisas, como o ar oxida a maçã mordida. Então, a cor, não sobrevive ao tempo. E no fundo, cá dentro, ficamos a cismar que as pessoas viviam assim, sem azuis, verdes, laranjas, rosas, vermelhos.

    Quando toquei as cartas do território desde Vila Praia de Âncora até Caminha, passei logo as mãos pelo corpo da Serra d’Arga. Como quem acaricia. Quando fatiei aquela mancha, curva a curva, para empilhar cada camada como quem constrói um mundo (sobre o mundo, dentro do mundo), ganhei-lhe carinho.

    Enamoro-me profundamente por tudo o que conheço. Até do feio. Sinto-lhe o suor, o esforço, o anseio, e não o respeitar é uma desonra. Minto: será desonra? Traição? Violência, talvez, pelo menos.

    Por isso não sei se vos digo a verdade, mas em tudo, pelo caminho a Caminha, encontro beleza. Com carinho. Surgem casas, pendendo a cabeça ou os braços, de forma torta, desengonçada (têm as casas um rosto? Têm as casas mãos?). No fundo, se vivas e habitadas, até me aquecem a alma. Ali há gente, aquela casa é lar de alguém.

    Passei curvas apertadas e cruzei aldeias. Por exemplo, Argas, onde um carneiro me olhou com ar inquisidor (avisando). Passei dias no Mosteiro, perdida entre ribeiros, um bosque implantado por força de vontade e escadarias transformadas em monte.

    Passei noites num canto da Mata do Camarido, a ver se assim sabia o que era ser de Caminha, a raia, a irmandade silenciosa com Galiza, a Ínsua, Camposancos na saída do ferryboat.

    Sabem, Camposancos foi muitas coisas. Um edifício, só que tanto foi colégio jesuíta, como armazém de cereais, como campo de concentração de Franco, ali, de olhos postos em Portugal. Casas que podem ser assim, cascas de vários espíritos. Manoel de Oliveira ainda estudou ali, há umas vidas atrás.

    Venci a barra na mudança de maré a bordo de uma Gamela timonada por um senhor alcunhado de Garrafão. Fiz-me de forte, não sabia nadar, naquela altura, mas seria certamente imortal e, mais a mais, o Minho ali é nosso e brandura lusa não me ia encurtar a sentença.

    Mas a cor não sobrevive ao tempo.

    Talvez assim as memórias fiquem todas a preto e branco. E sépia (depende de lentes, papéis, químicos?).

    De Caminha ficaram-me meses de ondulação nas vagas, matas auspiciosas, a energia de então, os pastéis de lá, o Mosteiro, a Arga de São João, a água, a neblina (a água, em névoa), Santa Tecla (a água, ainda), as pedras (com água), uma ruína a caminho de Vilar de Mouros, as azenhas (moendo água), os caminhos encharcados.

    Sempre água.

    A cada volta.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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  • Negrita: take 1

    Negrita: take 1

    Curto, cheio, em chávena larga, abatanado, pingado, duplo, garoto, com cheirinho, em chávena fria, em chávena escaldada, descafeinado, carioca, fraco, com canela, com adoçante, em chávena pequena, em chávena de plástico, com pingo de água fria, duplo pingado, duplo cheio, sem açúcar, sem começo, copo alto, italiana, bica, cimbalino, sem espuma…

    Cada um de nós tem uma forma muito pessoal de apreciar um café, e por cada forma de o apreciar, há uma expressão bem específica de o pedir. O meu pai gosta de café à Benfica (muito fraquinho), já eu por norma peço meia chávena.

    O meu grande amigo Ruy, que é um dos poucos portugueses que resistem a viver no centro de Lisboa, programou uma sessão de trabalho na sua casa, perto da Graça. Tendo eu vindo de Mafra já a sentir a falta de cafeína, sugeri que fôssemos tomar uma bica antes de nos embrulhar numa intensa sessão de não-trabalho. Como é habitual, antes de começarmos, gostamos de conversar e tentar compreender o mundo, uma tarefa que, por si só, é um trabalho a tempo inteiro. O Ruy propôs irmos à Pastelaria Tebas, na Rua Heliodoro Salgado, que faz esquina com a Angelina Vidal. E como me propus fazer um artigo sobre uma marca de café, imaginei logo que poderia começar por este. Montámos a Yamaha 125 SR  verde-garrafa dos anos 90, e, como tivemos de parar numa passadeira, demorámos 45 segundos a chegar. 


    Mesmo ao desmontar da mota, notei logo que se tratava claramente de um negócio familiar em que ainda se pode usufruir de um ambiente de bairro resistindo à lógica de pastelaria para camones. Com uma boa variedade de bolos e pães semi-industriais, este estabelecimento é despretensioso saltando à vista a higiene e o cuidado com que os itens são apresentados. A decoração é a convencional das antigas pastelarias, tornando-a quase numa raridade em Lisboa, onde florescem estabelecimentos de paredes negras e de balcões feitos em OSB. Quadros de pastelarias parisienses, autocolantes de pastilhas e Ice Tea vão dando alguma cor às paredes claras.

    O café que esta pastelaria oferece torna-a numa preciosidade, resistindo à padronização trazida pelo turismo maciço e pelas marcas que se apoderaram do mercado. O uso do lote Rubi da marca Negrita ao longo das décadas destaca-se como uma característica única e especial, uma verdadeira mais-valia para apreciadores de café como eu, traduzindo a oferta quase singular em Lisboa. Contudo, um aspecto a considerar é que a iluminação apresenta uma tonalidade excessivamente branca, tornando-se desconfortável passado alguns minutos. Os cafés «moderninhos» destacam-se nesse aspecto, dedicando uma atenção considerável ao design de luz. Além disso, como não oferecem o Correio da Manhã para leitura, não requerem uma intensidade luminosa tão elevada.

    Como recentemente deixei de fumar, dei-me ao luxo de me sentar e beber o café sem a pressa de o acabar para ir fumar o meu Davidoff Classic. Mas caramba, que saudades! Num mundo perfeito, o cigarro seria um medicamento para a hipertensão sem efeitos secundários. Pedi à Soraia dois cafés em meia chávena. Para garantir cafés perfeitos, solicitei-lhe que abrisse o vapor da máquina por dez segundos, de forma a obter os 9 bar de pressão e os 90º C. Surpreendida, mas ainda assim com um largo sorriso, foi ela própria prepará-los. Durante o processo, olhámos para a televisão que estava ligada, felizmente sem som. Não entendo por que raio as pastelarias e restaurantes em Portugal têm por hábito manter as televisões acesas. Já não aguento aqueles extraterrestres que invadem permanentemente as nossas vidas. Conhecemos melhor a cara do Zelensky do que a dos nossos próprios filhos. Num mundo equilibrado, teríamos uns óculos escuros para ler e ver todas as mensagens subliminares que nos são dadas pelos meios de comunicação, tal como no filme de 1988 de John Carpenter They live. Com ele veríamos seguramente o Elon Musk sem os artifícios humanos.

    Ilustração de Ruy Otero e Bruno Cecílio, a partir da identidade visual da marca de cafés Negrita.

    Comecei a sentir no ar a essência de L’Eau D’Issey combinada com o aroma dos cafés pedidos. Fomos salvos pela Soraia, que, ao entregar as bicas, nos fez desviar o olhar do secretário-geral da OTAN, cujo nome nem sei, que entretanto anexou o ecrã. O café vinha exemplarmente tirado. O creme com uns 3 milímetros de espessura, nem muito claro nem muito escuro, com uma óptima consistência e cor. No primeiro gole, senti de imediato uma acidez ligeiramente frutada lembrando melão, de amargor equilibrado num corpo elevado e denso. A mistura das variedades robusta com arábica é harmoniosa, sendo o sabor duradouro no paladar. Com o passar dos segundos, comecei a sentir um travo a calcário levemente desagradável. Talvez deva ser hora de depurar a máquina? Um café de qualidade que teria sido ainda mais louvado se fosse acompanhado por um croquete de carne (enquanto ainda for permitido).

    Sem termos combinado nada, apareceu o Tim, que vive ali perto e é frequentador assíduo do Tebas. Enquanto ele saboreava um pastel de nata, e a propósito da conversa que estávamos a ter sobre o poeticamente correcto, sugeriu que fôssemos visitar a fábrica da Negrita, ali ao virar da esquina, na Rua Maria Andrade. Ficou apenas cinco minutos, pois estava atrasado para o trabalho, como sempre, e escolheu tomar apenas o café funcional da manhã. A 80 cêntimos, ainda nos podemos dar ao luxo de satisfazer o vício. Fez-me lembrar a compilação das onze curtas metragens de Jim Jarmush que deram origem ao filme de 2003 Coffee and Cigarettes. Figuras como Tom Waits, Iggy Pop, Jack White e Roberto Benigni, entre outras, exploram uma ampla variedade de temas, enquanto desfrutam de cafés e cigarros.

    Pedi outro, desta vez pingado. Sem todas aquelas complicações do primeiro. A Soraia já tinha entendido que, em relação ao café, sou mais metódico e preciso do que o Froes em relação às infecções respiratórias. O que nos vale é que entretanto ficou tudo bem! Apesar de o ter apreciado com menos atenção, é o pingado que mais recomendo. O leite incorpora muito bem o sabor terroso do lote Rubi da Negrita. Após pagarmos e agradecermos o serviço, saímos pela esplanada em que o inglês era a língua mais falada por entre os clientes que a povoavam. Os computadores na mesa indicavam que provavelmente eram nómadas digitais. Para não variar, a mota só à quinta é que pegou. O fumo agora era outro. O piso estava escorregadio, e, os carris do eléctrico atrapalham sempre. Até lá chegarmos, tivemos de perguntar o caminho duas vezes.

    Ilustração de Ruy Otero e Bruno Cecílio a partir do filme Coffee and Cigarettes.

    Lá demos com o portão da fábrica da Negrita, que completa 100 anos no dia 24 de Março de 2024. Notavelmente, conseguiram manter-se em plena actividade, proporcionando emprego a uma dúzia de trabalhadores que, ao longo de décadas, têm infundido vida e o vigoroso aroma a café a toda a zona de Arroios. A riqueza visual e as fascinantes histórias que começamos a descobrir inspiraram-nos a tomar a decisão de produzir um pequeno documentário, o qual prometemos lançar nos próximos tempos.

    Apesar de o mundo estar virado de pernas para o ar (isto para quem acredita como eu que o mundo tem pernas), e o cancelamento ser a grande tónica desta nova profissão que é o activismo, a Eng. Helena Pina, com o seu manifesto entusiasmo e paixão pelo trabalho, vai continuando a liderar esta empresa familiar contra todas as expectativas, e contra toda a lógica metacapitalista que se apoderou da indústria alimentar. Ao que parece, nos dias de hoje, os vários -ismos favorecem os metaqualquercoisa, pensando que estão a ser anticapitalistas. Auto-Karate Kid!

    Assumindo o compromisso de desenvolver a minha perspectiva no formato de vídeo sobre os Cafés Negrita, por agora evito estender-me sobre estes assuntos. Dependendo eu da Direcção-Geral das Artes e de uma fundação que cresceu financiada por recursos petrolíferos mas que agora generosamente destina um milhão à Greta, opto por manter um perfil discreto e reservado. Não vá o Schwab tecê-las.

    Bruno Cecílio é artista


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  • ‘Mea culpa’, jornalista

    ‘Mea culpa’, jornalista

    Como qualquer jornalista, a actual situação dos media preocupa-me por tudo aquilo que representa para nós, profissionais. O esgotamento de um modelo de negócio e o claudicar das redacções enquanto agentes de intervenção e de mudança.

    Nesta, como em todas as crises, não há responsabilidades de um só lado. Não foi só o mercado que mudou, os empresários que se transformaram, o neoliberalismo que deixou de respeitar limites de decência. Fomos também nós que mudámos, aos poucos, sempre levados a reboque das novas formas de comunicação com as quais não podemos rivalizar.

    A nossa profissão está cada vez mais desacreditada junto de quem nos move: os nossos leitores, ouvintes e espectadores. Perdemos muita da credibilidade que nos garantia algum respeito por parte dos vários poderes instituídos e da população em geral. Não faltam estudos a comprovar a degradação da nossa imagem enquanto classe profissional.

    man in white t-shirt sitting beside woman in white t-shirt

    As redes sociais foram uma grande ajuda para essa perda de influência. No entanto, ao fazer delas a nossa própria fonte de noticias, de temas, opiniões e agitação informativa, contribuímos para lhes atribuir um estatuto que não tinham. Enchemos páginas, minutos e horas de emissão com milhares de casos plasmados das redes. Acríticos e fascinados, sucumbimos ao poder de fogo de uma realidade que nos ultrapassava e que não é permeável a critérios jornalísticos.

    A gradual degradação do mercado publicitário, o decréscimo de leitores e de investimentos, empurrou a nossa profissão para lá dos limites do suportável e jornalisticamente sustentável.

    Podemos e devemos criticar os gestores que fazem cortes cegos numa simples e anónima folha de Excel, porque afinal muitos deles nem sequer entendem que o negócio dos media é diferente de todos os outros. Porém, o que é mais difícil de aceitar é que camaradas aceitem, ou se sintam obrigados a aceitar, condições inviáveis para o exercício da profissão e as imponham às suas redacções, sabendo que tal terá efeitos na degradação do qualidade do trabalho produzido.

    Fomos tentando trabalhar com cada vez menos, para fazer cada vez mais. Aceitámos retóricas puramente financeiras, uma, outra e outra vez.

    A cada argumentação de que era preciso cortar, porque as receitas estavam a cair, pactuámos silenciosamente com lógicas de racional duvidoso.  Acredito que muitas das vezes o fizemos para tentar salvar postos de trabalho, camaradas e projectos. Mas nunca nos interrogámos se não estaríamos a comprometer a essência da nossa profissão, a independência e a credibilidade. Fomos aceitando tentar salvar uma árvore e depois outra, sem pensarmos nunca na floresta.

    people having rally in the middle of road

    Directores, coordenadores, editores, os cargos de chefia, fomos sempre cúmplices de uma lógica de despedir, não renovar e substituir o melhor pelo menos mau. Abdicámos de profissionais com carreira e saber para poder contratar mão de obra barata, sem nos interrogarmos se não estaríamos apenas a adiar um problema. Poucos são os grandes projectos de jornalismo que sobreviveram e recuperaram desta esta lógica suicida.

    Quando o “monstro” chamado Internet ajoelhou a imprensa mundial nos anos 90, o desespero foi grande nos Estados Unidos (EUA). A perspicaz fórmula “mais por menos” fez o seu caminho, com milhares de despedimentos. Nos últimos 20 anos, os EUA perderam um quarto dos seus jornais, 57% da sua mão de obra jornalística.

    No entanto, quando um jornal de referência mundial resolveu salvar-se do abismo por via inversa, muitos outros o seguiram, investindo no saber e na experiência que os podia prestigiar, não em mão de obra mais barata. Foi assim com o New York Times, depois o Washington Post.

    Portugal é um outro mundo, sabemos, mas de cedência em cedência, qual uma velha história popular,  tentámos ensinar o burro a viver sem água e, agora que ele está quase a aprender, corre o risco de morrer de sede.

    Não podemos ignorar que ao longos das últimas décadas fomos os únicos responsáveis por todos os atentados aos mais básicos princípios do jornalismo. Violámos todos os códigos éticos para ganhar vantagem, para conseguir mais um “exclusivo de primeira mão”.  Foram muitos os exemplos que minaram o nosso património de respeito e credibilidade, agora tão pouco valorizado. Fomos nós que o fizemos, não os gestores, não o mercado.

    Selective Focus Photography of Magazines

    Se de uma forma geral a oferta jornalística é cada vez mais superficial, espectacular, pouco sustentada, tecnicamente deficiente, acrítica, seguidista das agendas dos poderes políticos e das agências de comunicação, sem rasgos nem imaginação. Se os vários media se tornaram cada vez mais iguais, miméticos e cinzentos, só a nós se deve. Devíamos ter conseguido lutar por melhor jornalismo, melhores profissionais, melhores condições e real autonomia editorial.

    Quantas vezes não nos apercebemos de ingerências inaceitáveis na nossa cadeia produtiva de notícias e pouco fizemos para as contrariar, expor ou combater? Tais práticas sempre existiram, mas numa outra escala e noutras circunstâncias. Hoje, a fragilidade contratual das redacções é terreno fértil para atropelos, já tidos como aceitáveis. E assim fomos vivendo estes anos, mudando, encolhendo, em direcção a nada, em direcção a isto que vivemos hoje.

    O jornalismo tem vindo a ser encurralado e tem estado a ceder a incontáveis pressões, algumas delas novas, mais eficientes, mais discretas. Os anunciantes, os departamentos comerciais, os financiadores e os “parceiros” estratégicos, ganharam uma influência inusitada nas redacçōes dos media nacionais. Não a tinham a esta escala nos anos 90, porque havia dinheiro suficiente para garantir a independência de jornais, rádios e TV”s. Ao longo deste tempo não nos soubemos defender. Os nossos organismos de classe fecharam os olhos a claros atropelos da lei e dos códigos profissionais, legitimando a indiferença e irrelevância de conduta. O mesmo fizeram as instituições fiscalizadoras do sector.

    silhouette of woman holding rectangular board

    Aqui chegados, lutamos todos por um lugar ao sol, uma réstia de luz que nos permita fazer um pouco mais daquilo que sabemos e gostamos. Fazemo-lo com uma esperança decrescente no futuro da profissão. Não acredito em jornalismo livre sem liberdade financeira, sem estabilidade contratual, assim como não podemos acreditar num futuro sem uma profunda e séria autocrítica, sem redacções fortes, reivindicativas e com memória. Mas isso custa aquilo que dizem não haver, dinheiro.

    Isto é quase como afirmar que o jornalismo é um luxo. Em boa verdade já o foi, mas era assim que ainda o deveríamos entender dada a sua importância social. Caso contrário, estaremos a caminho do lixo, pois o preço da jorna já disso nos aproxima.

    Paulo Salvador é jornalista (CP 827), editor executivo e grande repórter da TVI


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM. Neste caso, o director do PÁGINA UM não apenas subscreve como aplaude este texto, considerando que constitui um bom ponto de partida para uma reflexão séria sobre a crise no jornalismo, que começa na própria classe, e sobre a qual há muito a mudar.


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  • Palavras de todos os dias

    Palavras de todos os dias


    Agora

    Experimente ouvir uma pessoa na televisão, na rádio, num contexto público ou privado, a falar durante quinze minutos. Quantas vezes disse «agora»? Com o sentido de quê? De «mas», de «por outro lado», de elemento de ligação de raciocínios quando tacteia em busca das palavras, de coisíssima nenhuma.

    Exemplos deste (ab)uso que devemos evitar:

    «Concordo consigo… Agora… em relação à crise, eu não penso que haja crise alguma.»

    «Nada tenho contra a Paula… Agora… não me casava com ela.»

    «Os extremismos têm crescido. Agora… a melhoria da qualidade das instituições e da percepção que os Portugueses têm delas é importantíssima neste combate aos extremismos e populismos.  

    closeup photo of cutout decors

    Amigo

    Por preguiça, por macaqueação, por jactância («oh!, eu tenho muitos amigos, eu sou encantador»), por pudor em usar «um conhecido meu» (como se isso escondesse atritos e má vontade), por contaminação do mundo digital, em que aqueles que até podemos nunca ter visto na vida são «amigos» (repare-se que há tantas pessoas que têm milhares de «amigos» nas redes sociais e repare-se ainda na quantidade de vezes que ouvimos: «é meu amigo [nas redes sociais]», «não tenho a certeza, mas acho que somos amigos [nas redes sociais]»); por tudo isso, a palavra perde peso e solenidade — perde importância.

    Se tudo é especial, nada é especial.

    Se amamos tudo, não amamos nada.

    Se tudo está sublinhado, nada está sublinhado, porque o efeito diferenciador se perdeu.

    Se Fulano tem 50 mil «amigos», muito provavelmente não terá nenhum.

    Porque é o diamante um bem tão valioso?

    Porque é raro.

    a black and white photo of a wall

    Arrasar

    É impressionante o número de ocorrências, na linguagem publicada, na oralidade (seja num contexto público ou privado), deste verbo. No jornalismo, no mundo digital (notadamente nos títulos dos vídeos), o verbo superabunda. Se a equipa ganhou confortavelmente a outra, a equipa arrasou. Se Fulano esteve melhor numa discussão do que Sicrano, Fulano arrasou. Se Fulano criticou outro ou alguma coisa, Fulano arrasou outro ou alguma coisa. Se uma pessoa publicou fotografias sensuais ou se escolheu uma boa indumentária, essa pessoa, claro está, arrasou.

    Evento

    Saberão os jornalistas que, antes do moderninho anglicismo «evento» (saco em que cabe tudo), não se sentia falta de vocábulos para descrever acontecimentos, iniciativas, certames, actividades, exposições, mostras, espectáculos? (Revisitem jornais «antigos».) Que a diversidade vocabular e a consequente precisão informativa eram outras?

    A lógica é esta:

    — Ó pá, não sei bem do que se trata…

    — Se não sabes bem o que é, põe aí que é um evento.

    Dá para jantares, encontros de antigos alunos, corridas, bailes, noites em discotecas, observação de aves, palestras, festivais da marmota, tertúlias, discussões, colóquios, simpósios, manifestações, acrobacias de golfinhos.

    Quando não sabemos bem o que dizer, como definir, vamos ao saco das palavras e expressões que dão para tudo.

    green ceramic statue of a man

    Parafraseando Miguel Esteves Cardoso a propósito de outra expressão, quando dizemos «dentro do género», encerramos o assunto e o nosso interlocutor fica na mesma. O filme é bom? Dentro do género. Gostaste do professor? Dentro do género. Come-se bem lá? Dentro do género. Ele é giro? Dentro do género.

    Pecado mortal das traduções: passar sempre event para evento. Sim, é só acrescentar uma letrinha.

    Que dizer quando já temos os Grandes Eventos da Antiguidade e da Idade Média (colecção de DVD)? Que dizer quando lemos «eventos traumáticos», em lugar de «experiências traumáticas»? Etc., etc., etc.

    Expectativas e seus parentes

    «Anseio», «vontade», «desejo», «esperança», «previsão», «era o esperado»… alto lá! Tudo isso para quê? Hoje, bastam as «expectativas», que ainda têm os familiares «expectante», «expectável» e «expectar» a acompanhá-las diariamente.

    «O que nós expectámos aconteceu. Era o expectável.»

    three small figurines sitting in a row

    O horror, o horror.

    Repare ainda no seguinte: ora se usam as palavras «expectativas» e «expectável» com o sentido de aquilo que se desejava, ora com o sentido de aquilo que se previa. Amalgama-se tudo, é mais fácil. O que se transmite não vai ao encontro do que se pensa? Oh, purismos e preciosismos da treta.

    Impacto

    É oficial: já não há efeitos, consequências ou repercussões. Já não há choques ou embates. Só há impactos. Impactos que impactam. Impactos que são impactantes.

    Experimente passar um dia sem ler e ouvir esta praga. Um dia? Uma hora.


    Manuel Matos Monteiro é escritor e director da Escola da Língua


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Reclusão: uma crónica em tom de divulgação

    Reclusão: uma crónica em tom de divulgação


    Pertenço à APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso. É uma associação de direitos humanos que luta na franja mais complexa da rejeição e da demagogia. Uns utilizam as penas de prisão como solução de inevitabilidades, como desincentivo ao crime, redução de maus comportamentos. Claro que inibitório é utilizar o medo como fazem os talibans. Queremos isso para nós? Claro que as ditaduras tendem a ter menos criminalidade e muito mais policiamento. Queremos ditadura?  

    É nessa linha que, em Abril de 2024, nos dias 6 e 7, lançamos um Congresso para debater o sistema prisional, bem como o sistema judiciário e as políticas para a saúde mental. É um conjunto de seis mesas de debate e apresentações onde estarão vinte pessoas de reconhecidos conhecimentos, idoneidade e inigualável coerência na luta pelos direitos humanos.

    Cintaremos com a presença do Professor José Manuel Silva actual presidente da Câmara Municipal de Coimbra, do Arquitecto Jorge Mealha, do Engenheiro Almeida Santos da OVAR, entre outros advogados, médicos, arquitectos, engenheiros, artistas, jornalistas e entidades envolvidas nesta temática. 

    man in black long sleeve shirt raising his right hand

    Vamos discutir a Saúde no contexto de ausência de liberdade. As crianças e as mães nas prisões. A estrutura e desenvolvimento do sistema prisional, desde a arquitectura das cadeias até à importância da reintegração. Se existem, onde se devem localizar os presídios? Aqui se inclui a sobrelotação dos estabelecimentos, a organização e gestão do sistema prisional, o regime de execução das medidas privativas da liberdade, a reinserção social, as religiões no seio prisional, a tecnologia no contexto das soluções para a verificação do cumprimento de penas.

    E tantas outras questões. Por exemplo, carecemos de tantas prisões? Podemos pensar a Inteligência Artificial num modo de suprimir os presídios? Até que limite podemos utilizar a tecnologia? Pulseiras com medicação? Controlo de distância com descargas punitivas de aviso? Devemos usar sempre a limitação de liberdade como castigo? Faz sentido Portugal ser o país com mais longas prisões preventivas e menor percentagem de acusações aos que estiveram em reclusão? Faz sentido manter a inimputabilidade das decisões dos juízes e do Ministério Público?

    Estaremos a discutir urbanismo e lugares adequados para este tipo de instituições. Estaremos a discutir o que é um sistema punitivo e os mecanismos de prevenção e antecipação da violência. Não pode estar de fora a inocência que vai para a cadeia, nem a permissividade de processos sem fim. Um inocente preso é uma barbaridade sem nome. Um doente num presídio é uma deformidade.  

    A APAR arrisca assim um congresso internacional onde deseja ouvir e dar a conhecer pessoas que pensam e discutem há décadas os sistemas prisionais. As prisões deverão servir como lugares de expiação de castigos, ou como lugares de reinserção, ou ainda como a montra mais dura da exclusão social? O que é que penalizamos e podíamos resolver com políticas adequadas, na toxicodependência, na violência de género, nas questões de trânsito? 

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    Sabemos hoje que o sistema judicial e as políticas de saúde mental estão diretamente ligados ao sistema penal, e por isso nunca poderiam ficar de fora desta reunião. Também a saúde terá, por isso, de estar neste debate. A Saúde nas prisões insere-se num conceito moderno de Saúde para todos, desde a componente psicológica, emocional e física, nunca esquecendo a alimentação e o trabalho e o desporto. Quem sabe se este assunto não seria uma excelente base de desenvolvimento de uma solução sem grades e sem guardas?

    Sou desta Associação e sou deste desafio incrível: o debate e a discussão na franja da exclusão, na zona de fronteira onde se perdem votos e se ganha demagogia.

    Diogo Cabrita é médico


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