É, para mim, um dos sinais de que estou a ficar mais velha: falo sem filtro, digo o que me apetece, sem o cérebro ter tempo para dar ordem à boca para que não saiam algumas frases. Isto tem-me acontecido, cada vez mais vezes. Se calhar, não tem nada a ver com a idade. Mas é a minha desculpa.
Isto vem a propósito das minhas gafes constantes. Atenção: sempre cometi imensas gafes. Tenho episódios da minha vida que servem para entreter os filhos e sobrinhos com boas gargalhadas, tais são as trapalhadas e embaraço que as minhas ‘falhas’ provocaram. (O já célebre episódio do garfo espetado num tomate, a meio de um almoço chique, continua a ser o preferido na família).
Isto vem a propósito da minha entrevista com a porta-voz do partido PAN-Pessoas Animais Natureza, Inês Sousa Real, e de uma grande gafe que cometi, depois de desligados os microfones e após as fotografias.
Estava eu a conversar amenamente com os três membros de topo, a cúpula do PAN, quando me sai a expressão “ando há muitos anos a virar frangos”. Ora… falar com vegans ou vegetarianos usando estas expressões não será a coisa mais inteligente. Mas saiu-me.
Rapidamente, me dei conta da falha. Estava ainda a minha boca a dizer a palavra “virar” e já eu me estava dar conta da trapalhada. (O emoji da mulher com a mão na cabeça veio-me à mente).
Rapidamente, expressei o meu sincero arrependimento pela expressão muito mal escolhida.
Valeu a boa disposição da cúpula do PAN que, rapidamente, sugeriu substituir a expressão “virar frangos” por “andar há muitos anos a virar tofu“. “Ou virar seitan” – acrescentei eu, na tentativa de salvar a ‘pele’ e a imagem.
Mais tarde, fiquei feliz por não ter usado também a expressão “puxar a brasa à minha sardinha”. Mas foi por mera sorte, acredite.
Eu, que até fui vegetariana durante mais de 15 anos, sei perfeitamente quais são as regras de ‘etiqueta’ nestas matérias. Respeito muito e admiro – e escrevo a sério – todos os que promovem a causa animal.
Valeu a capacidade de ‘encaixe’ e compreensão da direcção do PAN. É que os meus filhos e os meus sobrinhos já sabem das minhas gafes e trapalhadas. Mas o PAN não.
A entrevista sem gafes (espero) a Inês Sousa Real será publicada a 24 de fevereiro.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
No ano passado, nas minhas deambulações pela plataforma da contratação pública – o Portal Base – deparei-me com o ‘comportamento’ muito sui generis do Hospital de Braga, uma das mais importantes unidades de saúde do país, que somente em despesas correntes gasta, por ano, cerca de 260 milhões de euros. E fui investigar . E deu notícias.
A primeira notícia foi publicada em 12 de Junho e destacava sobretudo contratos de sete milhões de euros escondidos durante mais de dois anos. Meses mais tarde, em Setembro, já no âmbito do Boletim P1 da contratação pública – em que analisamos os contratos publicados no Portal Base – dei à estampa nova notícia em que destacava que só naquele mês o Hospital de Braga celebrara 393 ajustes directos, muitos dos quais usando este procedimento sem justificação plausível.
Num país decente, este tipo de investigação jornalística teria consequências para os administradores hospitalares. Ainda mais quando, na verdade, e como na investigação jornalística que o PÁGINA UM publica nesta terça-feira, o Hospital de Braga escondeu 1.354 ajustes directos de 47 milhões de euros por mais de dois anos, para além de outros detalhes de bradar aos céus.
E, portanto, deveria estar a decorrer uma auditoria no Tribunal de Contas, talvez na Inspecção-Geral das Finanças, e talvez mesmo uma investigação pelo Ministério Público.
Mas Portugal não é um país normal. E mais ainda para o jornalismo independente de investigação. Quer dizer, não estamos ao nível da Coreia do Norte, da China ou do Irão, ou mesmo da Rússia, da Palestina ou do Brasil, onde o risco de morte e prisão é uma realidade.
Consciente do (pouco) impacte público das notícias do PÁGINA UM em Junho e Setembro do ano passado sobre si e o (seu) Hospital de Braga, João Porfírio Oliveira, que foi ‘premiado’ recentemente com a presidência da Unidade Local de Saúde do Alto Minho, decidiu ‘contra-atacar’. E apresentou duas queixas: uma ao Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas – cujo presidente, por uma certa coincidência, é investigador da Universidade do Minho, em Braga – e outra à Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) – cuja presidente, por mais uma certa coincidência, é professora da Universidade do Minho… em Braga.
João Porfírio Oliveira: como reagir a uma investigação jornalística? Queixar-se a ‘reguladores’ amigos.
E, ó surpresa, tanto a CCPJ como a ERC, mesmo não descobrindo um único erro, um único lapso, e baseando-se todas as notícias numa base de dados oficial (Portal Base, gerida e validada por uma entidade pública, o IMPIC) e sendo os registos feitos pela própria entidade adjudicante (neste caso, o Hospital de Braga), acharam por bem, e sem vergonha na cara, censurar o meu trabalho.
No caso do CDSJ, os seus membros (que se rotulam de jornalistas) consideraram que existiam “nos artigos publicados ‘expressões, afirmações e conclusões’ suscetíveis de ‘qualificar de forma absurdamente desproporcional os membros do Conselho de Administração’ do Hospital”, e recomendaram que eu seguisse “escrupulosamente o Código Deontológico dos Jornalistas, ouvindo as partes com interesses atendíveis no caso, deixando bem clara aos olhos do público a distinção entre factos e opiniões (Ponto 1) e abstendo-se de fazer acusações (Ponto 2), sem o total apuramento dos factos”.
No caso da ERC, uma recente deliberação, chega a ser risível pelo absurdo, ao considerar que a simples análise de registos de contratos colocados pelo próprio Hospital de Braga exigia um contraditório. E considerava também que, cruzando as informações dos registos com o determinado pela lei, nunca poderia dizer que havia uma ilegalidade porque “não houve uma decisão nesse sentido de qualquer entidade habilitada para o efeito”.
Ou seja, para o regulador, o jornalista jamais pode denunciar uma ilegalidade enquanto não houver uma entidade oficial que assim o determine – no limite, uma sentença transitada em julgado. Daqui a nada só falta a ERC ‘decretar’ no alto da sua nescidade, que um jornal só poderá, interpretando dados meteorológicos, informar que choveu 5 milímetros em 24 horas depois de uma “entidade habilitada para o efeito” – neste caso, o Instituto Português do Mar e da Atmosfera – assim o determinar.
Bem sei, com ou sem articulação, qual foi o propósito do Hospital de Braga, da CDSJ e da ERC – que o PÁGINA UM parasse com as investigações. Não parou, nem vai parar. E até vai fazer algo que nem é função do jornalismo, mas que passa a ser uma necessidade de defesa do PÁGINA UM aos sistemáticos ataques à liberdade de imprensa perpetrados pelos dois ‘reguladores’ (ERC e CDSJ por motivos cavilosos): enviar todos os elementos desta investigação ao Tribunal de Contas, solicitando a sua intervenção.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
Se copiasse todos os exemplos, só do último mês, do jornalismo e dos habitantes do espaço público que usaram «empatia», «empático», «empatizar» para este jornal, esse acervo teria muito mais caracteres do que todos os artigos do PÁGINA UM. (Não, não é ironia. É matemática.)
Comecemos com exemplos respigados da linguagem publicada.
«Duas palavras: empatia e humildade», disse o então recém-empossado secretário-geral do Partido Socialista, em 13 de Janeiro de 2024, palavra que repetiria, assim como outros dirigentes políticos, na campanha eleitoral, designadamente nos debates das legislativas. Para muitos problemas de Portugal, não poucos políticos apresentam-nos a solução em sete letras: empatia. Muito recentemente, houve até quem apresentasse a solução para os protestos da polícia e demais sectores profissionais da seguinte forma: «É preciso empatia.»
Outro exemplo, desta vez do jornalismo: «A empatia, de uma forma geral, é enganosa, mas, na área artística, sofre do eterno défice: não chega a 1 %.»
Neste fim-de-semana, no programa televisivo A Grandiosa Enciclopédia do Ludopédio, falavam das grandes duplas futebolísticas e, em dada altura, disseram que dois futebolistas… jogavam com… grande… empatia. Zeus!
É impossível passar um só dia sem ser inundado dos vocábulos «empatia», «empático», «inclusão», «inclusivo» e seus familiares.
Quer insultar alguém? Diga que lhe falta empatia.
Como se resolvem todos os problemas do mundo? Com empatia.
O uso descomedido do vocábulo «empático» e da expressão «com empatia» redundou no inevitável: qualquer palavra que seja utilizada imoderadamente acaba por perder precisão semântica. Hodiernamente, em muitas situações, encontramo-las («empático», «com empatia», «empatizar») para exprimir conceitos distintos (e alguns distantes dos dicionarizados), como «compassivo», «compreensivo», «carismático», «simpático», «com inteligência interpessoal (acima da média)» (diferente de «inteligência intrapessoal»). Quando alguém adjectivar outro como sendo «empático», pergunte-se-lhe a definição.
Temos de ser «empáticos», temos de ser «inclusivos», temos de cultivar e promover a «empatia» e a «inclusão» (a «diversidade» — ora explícita, ora implicitamente — é parceira da «inclusão»). Por paradoxal que possa parecer, a toda a hora, dizem-nos concomitantemente que devemos evitar pessoas «tóxicas» e relações «tóxicas». E temos, claro está, a crescentemente falada e escrutinada «masculinidade tóxica» (não deixa de ser curioso que se empreguem tantas vezes os vocábulos «misoginia»/«misógino», sem nunca se nomear sequer a misandria — certamente, a primeira superabunda, enquanto a segunda é inexistente), temos os «activos tóxicos», temos ambientes de trabalho «tóxicos», entre uma pletora de exemplos.
Ficamos, por conseguinte, sem saber se quem é «tóxico» será digno de «empatia», e se a tão proclamada «inclusão» deverá abranger as pessoas «tóxicas».
O historiador dos primeiros decénios da linguagem publicada do nosso século há-de interrogar-se atónito sobre dois paradoxos: aqueles que mais clamavam pela criminalização do discurso de ódio atiravam, do alto da torre da superlativa moralidade, frases prenhes de ódio, enquanto esbracejavam com as fácies carregadas de ressentimento e ódio, e inúmeras criaturas que tinham a empatia e a inclusão na boca a toda a hora estavam constantemente a sinalizar os outros como entes tóxicos de quem nos deveríamos afastar e, se possível, ostracizar e linchar.
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
No ‘Arranhadelas’, a rubrica do Serafim, o Mascot aqui no PÁGINA UM, glosava-se hoje, gozando, com o facto de o Público, tal como a generalidade dos media, ignorar os pequenos partidos (ainda) sem assento parlamentar. E esse desprezo assume-se em pleno, quando se mostra pacífico, nas televisões, que apenas os partidos com deputados (numa Assembleia da República) já dissolvida merecem participar em debates do tipo duelo, concedendo ainda por cima um duelo especial para os dois partidos de um ‘Bloco Central’ que se perpetua.
Compreendo as razões deste modelo – seria quase impraticável a realização de 153 debates, se se incluíssem duelos com os 18 partidos e coligações (contabilizando os participantes no círculo de Lisboa) –, mas não menos relevante é apontar a responsabilidade da comunicação social em manter um espírito democrático numa… democracia.
Na democracia, não se aplica somente o princípio ‘uma pessoa, um voto’; isso é pouco, ou quase nada, para consolidar esse regime. A imprensa não pode, em Portugal, em período eleitoral, fazer de conta que, na hora da cobertura, nem sequer tem de fazer os trabalhos mínimos.
Tem sido, na minha opinião, as enormes dificuldades ‘impostas’ pela imprensa em ‘ouvir’ novas propostas, que tem mantido no poder, quase ininterruptamente dois partidos que, ao fim de 50 anos, deixam mais do que um amargo de boca a uma geração que nasceu ou cresceu em Liberdade. Os Governos PS e PSD (com umas coligações à mistura), com ou sem maioria, conduziram-nos a um país de compadrios, de partidocracia, de esquemas, de obscurantismo, de impunidade política e criminal.
Não se ter contrariado ao longo de décadas este bipartidarismo – pelo contrário, a media mainstream promoveu-o –, com as dificuldades de crescimento de novos partidos e movimentos políticos (com novas ideias), descambou no “estado a que chegámos”, parafraseando Salgueiro Maia. E, por triste ironia, abriu portas a um crescente descontentamento colectivo, que primeiro se foi ‘escoando’ para a abstenção, mas que agora se vira para o voto, um voto no populismo que, começando por uma linha de xenofobia, se foi amenizando para recolher todos os descontentes. E são muitos.
Talvez após o dia 10 de Março, mesmo que não se confirme a ascensão de um populismo – e que, se surgir, não perigará os alicerces do sistema democrático, se a Justiça (Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas, tribunais administrativos e judiciais, e Procuradoria Geral da República) estiver atenta, activa e preventiva –, a imprensa faça uma reflexão.
Uma reflexão sobre a sua (perdida) acção de ‘fiscalização’ da acção governativa, que perdeu.
Uma reflexão sobre o seu (perdido) papel de denunciador das falhas governativas ou das injustiças sociais, tornando-se um agente promotor do ‘agenda setting’, e não um mero comunicador das mensagens e narrativas governamentais e empresariais.
Uma reflexão sobre o seu (perdido) papel de estimulador das actividades cívicas e até políticas dos diversos agentes sociais.
E, por fim, uma reflexão sobre a forma como nunca concedeu as mesmas oportunidades ao surgimento de partidos alternativos aos ‘mesmos do costume’, mesmo que seja no curto período das campanhas eleitorais.
Nesse último aspecto, com os parcos meios ao seu alcance, o PÁGINA UM mostra, com um singelo mas simbólico contributo, como é uma democracia plena: ouvir todos em pé de igualdade. A oitava entrevista da HORA POLÍTICA, que hoje publicamos, iniciativa que inclui partidos com assento parlamentar (Iniciativa Liberal e Chega) e sem assento parlamentar (Nova Direita, Volt Portugal, RIR, Aliança, PURP e Nós, Cidadãos), é um exemplo do papel sério que se ‘exige’ à comunicação social num sistema democrático.
A caminho da segunda semana da HORA POLÍTICA, apenas faço votos pessoais para que, até dia 4 de Março (com a derradeira entrevista ao mais antigo partido, o PCP), consigamos o pleno. Seria também um sinal de que todos os partidos (sobretudo aqueles com assento parlamentar) compreendem as regras leais do ‘jogo democrático’.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
É um rapaz de cinquenta anos, esguio, alto, moreno. Faltam alguns dentes, os que restam encavalitam-se em cima do cigarro.
Cabeça baixa a vencer a distância ao chão. Nunca o vi caminhar devagar, e caminhar é o que sempre faz, quase corre, não tem outro meio que não as pernas.
Acena-me sempre, se em mim tropeça na corrida, estende-me o punho para chocar metacarpos na distância de quem se acanha.
Ocasionalmente, pede trabalho para amigos. Ninguém tem condição para comer, não com as moedas que recebem por hora. Maioria das vezes ao negro. Não têm condição.
Para ele vai-se andando. Não se pode parar. Levanta-se sempre às seis da manhã, vai até ao concelho vizinho ver um irmão. Pelo caminho visita quem lhe estende o punho. Quem lhe dá sacas de laranjas, pão, massa, arroz. Frascos de salsichas e latas de atum.
Sempre dá, vai dando, enquanto não respondem da segurança social.
Trabalhou muitos anos numa confeitaria, tem orgulho no trabalho que fazia e diz que faz o que for preciso. Se é preciso varrer, varre-se. Se é preciso limpar, limpa-se.
Levanta o nariz enquanto recorda; a cabeça quase se ergue também.
Isto está, sabe, não sei… Não sei onde isto vai parar. Não conhece quem precise? Não é assim para trabalho fino de obras, mas para as massas, os baldes, o entulho, sabe?
Fica condicional, conjugação permanente, nem sabemos o quanto até que temos de contar só com as pernas e as sacas para comer. Num vaivem infinito que atravessa cidades, a empurrar os dias para as noites e as noites pela janela fria da casa de adobe com estuques embolorados.
Como se chega a esta condição e o quanto parece impossível sair de lá, por mais que se continue a caminhar.
Mariana Santos Martins é arquitecta
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
Faltam menos de 25 dias para as eleições legislativas antecipadas em Portugal, com as comemorações do 50º aniversário da Revolução dos Cravos como pano de fundo, um dos momentos mais marcantes da nossa história democrática. O mês de Abril e os seus princípios inspiram as propostas do Partido Comunista Português (PCP), enraizado na ideologia marxista-leninista. Desde a sua origem em Março de 1921, o PCP tem sido um pilar essencial na evolução dos movimentos operários portugueses, desempenhando um papel significativo na consciencialização e no desenvolvimento político das massas trabalhadoras.
Em 2022, Paulo Raimundo foi escolhido para assumir o papel de líder do PCP, sucedendo ao histórico Jerónimo de Sousa. Trabalhou em carpintaria, foi padeiro e animador cultural na Associação Cristã da Mocidade na Bela Vista. Desconhecido para a maioria dos portugueses, é no entanto reconhecido no partido pelas suas qualidades humanas e pela vasta e diversificada experiência política. Raimundo traz consigo uma trajectória marcada por múltiplas áreas de actuação, incluindo sindicatos e o acompanhamento de empresas e serviços públicos. Nas eleições antecipadas de 2024, Raimundo encabeça assim a lista da CDU — Coligação Democrática Unitária, em Lisboa.
O perfil do eleitorado da CDU revela uma distribuição diversificada com destaque para a faixa etária acima dos 54 anos, mas curiosamente com uma participação significativa de jovens adultos. E recebe grande apoio de pessoas com menor escolaridade, enquanto a diferença entre os votos de homens e mulheres é praticamente inexistente.
Desde Janeiro, na campanha que se vê nas ruas, especialmente em vários mupis, destacam-se promessas como a criação de uma rede pública de creches, aumento de salários e pensões, direito à saúde e melhorias nos transportes públicos. Numa recente sondagem da Católica apresentada no jornal Público, a Saúde e Educação são os assuntos que mais preocupam os inquiridos, com respectivamente 72% e 48% pelo que os temas da campanha do PCP são certeiros.
O slogan “Basta de injustiça!” é uma presença comum nesses materiais, reflectindo a tradição do PCP em denunciar problemas e mobilizar a população para construir um país mais justo. No entanto, “Basta de injustiça!” tornou-se um leitmotiv bastante desgastado, amplamente usado não só noutras ocasiões, como também por outros líderes, nomeadamente em 2007 por Jerónimo de Sousa.
Consistente na sua abordagem panfletária, diversifica o chamamento ao protesto bem como convoca a população à construção de um futuro para Portugal com base numa distribuição de riqueza mais justa. O facto de ter sido um dos partidos que apoiou o governo de António Costa por seis anos fez com que se acalmassem os sindicatos com a redução da intensidade da luta.
Durante a pandemia, o PCP nunca adoptou uma postura de confronto com as medidas restritivas que foram impostas, as quais prejudicaram severamente as classes mais desfavorecidas. Ora, desde os trabalhadores precários até aos operários fabris, as medidas tiveram como consequência o agravamento das disparidades de género e raciais. Se porventura o partido proclama a defesa dos desfavorecidos aos quatro ventos, quando chega a hora de agir, parece recuar, o que levou alguns eleitores a afastarem-se. Porém, ao ser um dos partidos responsáveis pela queda do governo, o PCP voltou a assumir a defesa da classe operária, embora deixando de ser uma proposta revolucionária para se tornar reaccionária. Há muito tempo que deixou de nos oferecer sonhos para apenas constatar doenças. Para muitos, esses seis anos são imperdoáveis e, sem dúvida, deixaram uma marca indelével no PCP.
Nesta primeira fase de campanha, as cores predominantes são o verde, roxo e azul com a mensagem grafada num lettering geralmente aberto a branco. Se porventura, a composição é reconhecível ao longe, a leitura da mensagem ao ser muito descritiva requer demasiado tempo, o que reduz o impacto desta campanha old fashion. Os motivos integram fotografias de pessoas com um filtro de cor verde, o que resulta bastante mal lembrando vultos extraterrestres. Muito embora a presença humana permita sublinhar a empatia com o povo, resulta num design definitivamente pouco atractivo.
Curiosamente, somente na versão de grande formato 8×3 metros é que está representado o líder, aqui também com um filtro azul que acompanha a cor de fundo como parte da identidade CDU. Uma opção que evidencia distância, com o Raimundo que não olha de frente como sugerem os preceitos do marketing político. O resultado é uma composição antiquada que denuncia um partido envelhecido que opta por modelos que pouco se adequam ao actual panorama social, político, e até mesmo comunicacional.
Em Fevereiro, surge uma nova fase de campanha que aposta numa composição refrescada com um impactante retrato de Paulo Raimundo em grande destaque. De visual mais contemporâneo, o cartaz dá ênfase a valores de esperança e a confiança, apelando à união do eleitorado. A fotografia foi extremamente bem produzida, tendo como fundo árvores frondosas de cores outonais que sugerem uma quinta ou um jardim. É nesta representação da natureza que reside o apelo emocional, para evocar emoções como esperança e confiança simbolizada à verticalidade das árvores.
Agora, não se percebe por que o PCP não apostou num secretário-geral com maior projecção pública, que transmita uma imagem de menor ortodoxia, como João Ferreira, e preferiu optar por uma figura sem qualquer reconhecimento público. Neste cartaz, denota-se uma clara intenção de tornar a imagem de Paulo Raimundo mais atractiva. Apresenta-se de forma bem cuidada e olha para a o meio da lente da câmara de modo a nutrir um elo de confiança e intimidade com o eleitorado (real e potencial).
Dispensa a gravata — outra coisa não seria de esperar—, usando um vestuário informal mas elegante, combinando o castanho de um blusão numa alusão à terra, e o azul eléctrico da camisola de lã que sobressai e atrai o olhar das pessoas. Esta renovação de imagem é crucial para poder gerar um vínculo positivo e formar a opinião do eleitorado. De composição simples, esta é uma fórmula clássica feita a partir de uma única fotografia retratando o líder em plano americano, com a expressão grifada “É hora. Mais força à CDU.” Enquanto apelo directo e claro, é uma mensagem curta e fácil de memorizar a que está subjacente o mote “a união faz a força”. Ao contrário de outros cartazes políticos destas eleições, Raimundo encontra-se no centro do cartaz e não num dos lados, inserindo-se mensagem do lado esquerdo, aliás como no caso do Bloco de Esquerda.
Aqui, o logótipo PCP-PEV é ajustado para encaixar a cruz do boletim de voto. O headline usa a fonte identitária da Coligação Democrática Unitária, permitindo à sigla do CDU estar somente escrita em prol da simplicidade e clareza. Uma acertada aposta nesta campanha que transmite uma postura de homem de estado, compensando o facto do secretário-geral do PCP ser estreante nos palcos televisivos e estar em franca desvantagem face aos adversários.
Surpreendente é verificar que nestas eleições legislativas de 2024, a CDU é a terceira força política que mais gasta com uma previsão de investimento de 785 mil euros, o que corresponde a um aumento de mais 90 mil euros comparativamente a 2022. Um dos motivos é ter uma campanha de cartazes com uma distribuição alargada pelo território nacional.
A força. Ilustração Ruy Otero a partir de fotografia de arquivo
A fotografia de Raimundo neste ambiente natural permite assim transmitir uma mensagem de proximidade e autenticidade. Contudo, a CDU enfrenta desafios nas últimos sondagens, com apenas 2% de intenções de voto, sendo ultrapassada pelo Livre que alcança 3%. Estas sondagens revelam que o surgimento de novos partidos que diversifica o cenário político nacional, tem também desafiado o protagonismo do PCP. Muito por culpa própria, ao ter-se afastado da sua raiz poética, dando claros sinais de que a sua noção de funcionamento do mundo ainda é do século XIX. Proletariado e capitalismo…onde é que isso já vai!
Como observou o político e filósofo polaco Schwartzenberg, a política moderna tende a focar mais em pessoas e personagens do que em ideias. Apesar disso, é essencial uma regeneração na classe política para manter a democracia resiliente. À medida que nos aproximamos da votação de 10 de Março, resta saber como o eleitorado responderá a um partido cuja base de apoio está em declínio. Não obstante a abstenção e o envelhecimento da base de apoio, cabe a nós não sucumbirmos a projectos pouco democráticos (e não estou a falar do Chega), mas que, por estarem tão distantes da essência humana, correm o risco de falhar, como aliás se faz sentir um pouco por todo o mundo ocidental. Como é referido nalguns meandros das redes sociais, o primeiro passo é não nos darmos ao luxo de permitir que pensem por nós.
Sara Battesti é especialista em Comunicação
Avaliação do cartaz
Design: 2/5
Impacto: 2/5
Eficácia: 2/5
Média: 2/5
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
Há dias, o autor do polémico livro As causas do atraso português, Nuno Palma, que recentemente deu uma entrevista ao PÁGINA UM, afirmava o seguinte acerca do facínora que tem uma estátua na principal avenida do país: “O Marquês de Pombal foi criminoso pelo impacto que as suas acções tiveram para o desenvolvimento do país, com efeitos até aos nossos dias. Ele é o político da História de Portugal que mais responsabilidade tem no actual atraso do país”.
A colossal estátua é uma homenagem ao crime, ao terror, à tirania, ao analfabetismo, à ignorância, ao retrocesso económico, à subserviência, ao culto do burocrata. Foi provavelmente o governante que mais atrasou Portugal em toda a sua história quase milenar. Ele abriu a porta para o que se seguiu. Alguns personagens da actual “democracia” fá-lo-iam orgulhoso!
Uma biografia de Pedro Sena-Lino sobre o Marquês de Pombal, publicada em 2020, De quase nada a quase Rei, merecia ser de leitura obrigatória em todas escolas; certamente lograria eliminar a propaganda – manuais de história, programas de televisão, livros – a que todos fomos sujeitos em relação ao personagem mais sombrio da nossa história.
Neste sentido, através do presente artigo, destaco alguns episódios.
Curriculum vitae manchado
D. João V, o pai de D. José I, casou-se com uma austríaca, Maria Ana Josefa de Áustria, pertencente à Casa de Habsburgo. O nosso Marquês de Pombal também se casou com uma austríaca, Eleonora Ernestina von Daun. Conheceu-a quando foi enviado a Viena pela corte de D. João V a intermediar um conflito entre o Sacro Império Romano e o Vaticano.
Depois do seu casamento com Eleonor, e terminada a sua missão em Viena como mediador, o Marquês de Pombal regressou a Portugal, passando a estar necessitado de emprego. A sua esposa ajudou-o nessa tarefa. Como? Tentou meter uma cunha junto da rainha, no sentido de o nomear ministro – designado então por secretário de estado.
Quando a cunha chegou a João V, qual era a opinião deste em relação ao ilustre Marquês de Pombal. Este respondeu assim à mulher, quando esta “fortemente instava para que o fizesse secretário de estado”, que o ex-enviado tinha “irremediáveis defeitos”. Mais: porque o Rei sabia-o “dotado de boa capacidade, delicadeza de engenho, e agudeza de juízo, tinha espírito sanguinolento, génio vingativo: era mal afecto à sua religião, desprezador do estado, e jurisdição eclesiástica, e tudo isto eram do seu conceito, circunstâncias muito atendíveis, que o inabilitavam para aquele ministério.”
O ancião D. João V era um sábio: já pressentia o verdugo em que se tornaria o notável Marquês de Pombal. Depois da morte deste, a ocultação de tal opinião, faz-nos recordar aqueles que são propostos na Europa com resumos biográficos contrafeitos, em que as trapalhadas do passado são dissimuladas e o favor sem pudor é evidente.
O instigador da Bufaria
Em 1756, o prócere Marquês de Pombal ainda não era o senhor absoluto do país, mas para lá caminhava; nesse ano, já era membro do governo há cinco anos, desempenhando o cargo de Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros.
Nas outras duas secretarias, encontravam-se Pedro da Motta, o Secretário de Estado do Reino – o mais importante cargo, equivalente à de um primeiro-ministro na actualidade – , e Diogo de Mendonça Corte-Real, o Secretário de Estado da Marinha e dos Negócios Ultramarinos.
Este último supervisionava o trabalho do irmão do Marquês de Pombal, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, o então governador do Brasil – o nepotismo dos irmãos Carvalho e Melo parece-nos familiar!
Ora, no início da 1756, Pedro da Motta faleceu, deixando vago o posto mais importante da nação. De imediato, os opositores do Marquês de Pombal iniciaram uma conspiração contra este, tentando afastá-lo não só do cargo, mas também do governo. Entre os conspiradores encontravam-se o Duque de Aveiro – depois envolvido e executado no processo dos Távoras – e Francisco Teixeira de Mendonça. Este último foi o autor de uma carta anónima escrita a um grande de Espanha.
Naquele tempo, esta forma de denegrir alguém consistia em escrever uma missiva sem autor, com a aparência de correspondência privada; mas fazendo-a, claro está, chegar à opinião pública: conventos, casas de nobreza, casas do comércio.
A carta punha a nu os podres do Marquês de Pombal: um alpinista social, que tinha chegado ao poder sem um tostão, carregado de dívidas, e possuidor de um enorme complexo de inferioridade, dado pertencer à baixa nobreza. A carta obviamente chegou ao conhecimento do Rei.
Em paralelo, os jesuítas realizaram um relatório sobre a administração do irmão do Marquês de Pombal, tal como sobredito, o então governador do Brasil. Claro está, com imensas queixas em relação a este último. Não espanta que depois tivessem sido perseguidos sem quartel, causando um desastre sem paralelo na educação da população portuguesa – um rifenho, que não perdoava.
Em face destas duas “bombas”, D. José I não actuou de imediato; solicitou uma auditoria do relatório dos inacianos a Lucas de Seabra da Silva, um homem então muito considerado e mestre de leis.
Os conspiradores acertaram na estratégia, mas cantaram vitória cedo; o sentimento de confiança era tal, que começaram a tratar de assuntos da corte, assumindo postos que ainda não lhes tinham sido confiados, trocando correspondência eles. Estas relações por escrito não escaparam aos inúmeros espiões colocados na administração da corte pelo insigne Marquês de Pombal. Este último mostrou-as a D. José I, tendo este ficado impressionado com a violência dos vitupérios ao seu ilustre ministro. A primeira “bomba” perdia o detonador.
Em relação à segunda “bomba”, a averiguação de Lucas de Seabra da Silva teve resultados: “a favor dos jesuítas e muito contra o governador”. O Marquês de Pombal, como exímio manipulador, logrou abordar Lucas de Seabra da Silva e solicitar-lhe a leitura do texto; no final, aconteceu o esperado: convenceu-o a modificar a versão, alterando-a a favor do mano e contra os inacianos. Era o mestre da conspiração palaciana.
Quando Lucas de Seabra da Silva foi chamado por D. José I para entregar as suas indagações, teve que apresentar uma desculpa, dizendo que teria de recolher esses documentos a sua casa. No regresso a esta, faleceu, tal o remorso que sentiu, dada a sua fraqueza em face da loquacidade sedutora do Marquês de Pombal.
Como terminou tudo isto? O ilustre marquês terminou nomeado para o almejado posto: Secretário de Estado do Reino.
Seguidamente, obteve a prisão de todos os conspiradores, através de legislação decretada no início do reinado de D. José I – sempre se encontra algo na legislação para destruir quem se opõe ao poder -, que assim rezava: “o prestígio dos representantes do poder majestático e a interditar de uma vez costumes antigos… como a factura e a distribuição de textos satíricos e libelos famosos.” A liberdade de expressão já era muito ampla naqueles tempos, tudo servia para calar as vozes incómodas!
Em paralelo, eliminou o seu principal adversário político: Diogo de Mendonça Corte-Real, o Secretário de Estado da Marinha e dos Negócios Ultramarinos. Este último, apesar de não ter participado na conjura, teve a ousadia de criticar publicamente o Rei: este era o culpado pelos constantes benefícios a favor do Marquês de Pombal. Qual o seu fim? Foi preso e deportado para Mazagão (antiga possessão ultramarina portuguesa no actual Marrocos).
Para terminar de forma espectacular, nomeou o seu irmão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Secretário de Estado da Marinha e dos Negócios Ultramarinos! Este passou a ocupar o posto do pobre Diogo de Mendonça! O poder absoluto terminou entre os manos, pois o seu outro irmão, Paulo António de Carvalho e Mendonça, terminou como Presidente do Conselho do tribunal do Santo Ofício – o nepotismo não tinha limites! Isto faz-nos recordar algo, não?
O leitor pergunta, e então o instigador da bufaria? Ora, no final de tudo isto, para que nunca mais fosse possível outra conjura contra o sagrado Marquês de Pombal, decidiu emitir um “decreto específico que alargava os incitadores de ofensas contra ministros que despachassem com o monarca… e abrir e conservar uma devassa em segredo, e sem determinado número de testemunhas, onde pudesse qualquer pessoa ir delatar, sem receio de algum tempo, se poder revelar o segredo, toda a conspiração contra a vida dos ministros de Estado, nomeando para juiz dela um desembargador da sua confidência, e prometendo grandes prémios e perdão de culpas”.
Para os bufos, tudo! Parece que nada mudou desde então!
O enriquecimento pessoal por decreto
A Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro foi fundada por um alvará de 10 de Setembro de 1756. A razão da sua fundação? Existia, segundo os seus promotores, “uma anomalia de mercado” que urgia corrigir: o planeador central sempre aparece, que nunca investiu um cêntimo do seu bolso, a opinar e a impor a sua vontade sobre o malvado mercado.
Qual era essa anomalia de mercado? Dizia-se que tinha “crescido o número dos taverneiros da cidade do Porto a um excesso extraordinário”, acusados de “adulterar” e “arruinar” o vinho. Faz sempre enorme confusão que alguém esteja interessado em enganar perpetuamente os seus clientes, como se estes fossem absolutos ineptos para aquilatar a qualidade do que compram.
A companhia era um monopólio; previa preços fixos de compra aos produtores – isto de concorrência é sempre desagradável, nada como preços fixados administrativamente –; e detinha o monopólio da exportação.
Os artigos da Companhia fixavam um território para a produção dos vinhos do Porto; mas eis que surge um aspecto curioso. O único território fora desta área delimitada coincidia – surpresa! – com a do “principal fornecedor individual”: as vinhas que pertenciam ao conspícuo Marquês de Pombal; segundo as suas palavras, os seus vinhos, produzidos em Oeiras, melhoravam o corpo e o paladar dos vinhos do Douro e davam-lhes uma cor mais forte. O topete do nosso Marquês não tinha limites!
O homem não tinha qualquer rebuço para se enriquecer a si e aos seus acólitos. O seu amigo, o dominicano frei João de Mansilha, descendente de uma família de vinhateiros e que participou na elaboração dos artigos da Companhia, também tinha incluído na região demarcada quintas de parentes seus!
Em 1773, atravessando problemas de liquidez, o nosso amado Marquês de Pombal propôs a Francisco Mendanha a venda da sua Quinta do Porto de Vila Velha de Ródão, pois fazia todo o sentido: a propriedade era contígua à propriedade de Francisco Mendanha, tinha enorme rendimento, dado que se beneficiava do comércio portuário. Perante tal magnífico negócio, Francisco replicou que o preço pedido pelo Marquês de Pombal não fazia qualquer sentido, dado que a quinta não era mais que “umas casas de pedra, e barro…”. Mas eis que surge a nossa ilustre figura histórica: prometeu-lhe que a expensas do Governo, far-se-iam enormes melhorias na propriedade, permitindo que esta se beneficiasse ainda mais do comércio portuário.
O dinheiro público a olear um negócio privado, nada que pareça invulgar nos nossos dias! O homem acabou convencido; no entanto, mais tarde, solicitou a anulação do negócio. O que lhe aconteceu, em consequência de tal desfaçatez? Foi parar à cadeia, e teve sorte em não ter perdido a vida. O tratamento era sempre o mesmo para adversários e revoltosos – ninguém brincava com o todo-poderoso Marquês de Pombal.
No final da vida, o Marquês de Pombal era proprietário de um enorme império imobiliário. Segundo a sua versão, tal façanha apenas provinha dos seus salários de funcionário e heranças – na verdade, uma montanha de dívidas – que tinha recebido. Onde é que já vimos uma história igual?
Para construir e valorizar tal império imobiliário, muitas dúvidas surgiram sobre a sua origem e métodos. Desde obras no porto de Paço d’Arcos, por forma a facilitar o escoamento dos seus vinhos da sua propriedade em Oeiras, realizadas à custa do erário público; à estrada entre Lisboa e Oeiras, por ele mandada construir, obviamente paga com recursos públicos, que obrigou a trabalhos complicados no Alto da Boa Viagem, para facilitar as suas viagens entre Lisboa e Oeiras ao fim-de-semana; ao palacete nas Janelas Verdes, herdada do seu irmão Paulo e que tinha pertencido à família dos Távoras – aquela que foi acusada e executada sem provas pela tentativa de regicídio; às casas arrendadas a um preço elevadíssimo a estrangeiros que vinham a Portugal fazer negócios com investimento público, como foi o caso do seu amigo Ratton, que geriu a fábrica de chapéus na Rua Formosa, tornando-a depois sua casa particular – actual sede do Tribunal Constitucional.
Mas a cereja no topo do bolo do seu império imobiliário foi o chafariz da Rua Formosa, onde o Marquês possuía vários imóveis, muitos por si “adquiridos” – muitas dúvidas existem na utilização do erário público para tais aquisições – durante a reconstrução da cidade após o terramoto. Foi-lhe autorizado pelo Rei a sua utilização apenas para “sobras”, com o propósito de levar água canalizada ao seu palácio e a outras suas propriedades. Muitos dos beneficiamentos do dito palácio, como a entrada, foram realizados à custa do erário público. Apenas em 2008, vejam só, confirmou-se, depois da investigação subterrânea de Fernando Teigão e Pedro Costa, que afinal não tinham sido só as sobras, mas tinha ocorrido o efectivo desvio de águas públicas para as propriedades do nosso estimado marquês!
Após a morte do Marquês de Pombal, William Beckford, um aristocrata inglês, escritor de viagens e político inglês, contava a respeito do seu filho, Henrique José de Carvalho e Melo, o seguinte: “Embora ele – o filho de Pombal – seja uma das maiores fortunas portuguesas, cerca de cento e dez mil coroas de rendimento anual, quis-me fazer acreditar que o pai tinha morrido em péssimas circunstâncias, sobrecarregado de dívidas contraídas para manter a dignidade da sua posição e a honra do país”.
Há tempos atrás, um insigne ex-membro da oligarquia do nosso regime, explicava-nos a origem da sua fortuna: resultava de uma herança de um milhão de contos da sua mãe e que se encontrava num cofre. Ainda hoje, desconhecemos a forma como tal pecúlio foi transformado em Euros. Isto afinal não mudou muito desde então!
O mestre da propaganda
Já em Pombal, depois do seu reinado de terror durante quase 30 anos, e afastado de Lisboa e da Corte, D. Maria I ordenou uma investigação aos “negócios” do Marquês de Pombal, por essa razão, esse período denominou-se de “Viradeira”.
Para se defender, em 1777, publica umas cartas em inglês, denominadas Letters from Portugal. Estas cartas tornam-se conhecidas da opinião pública portuguesa apenas no ano seguinte. O ilustre Marquês de Pombal, o autor, afirmou que apenas teve conhecimento das mesmas em 1780. Além disso, teve de as mandar traduzir, pois não sabia inglês – um homem que esteve anos como embaixador de Portugal em Londres e que tinha de ler todos os dias a imprensa! As cartas, claro está, constituem um encómio à sua governação – pura propaganda.
E como sabemos que ele foi o autor desta propaganda? Na colecção Pombalina da Biblioteca Nacional de Portugal de Portugal, a mesma versão da carta, em português, foi encontrada, com anotações, correcções e cortes da pena do nosso louvável Marquês de Pombal.
Durante toda a sua vida usou da propaganda e de falsas acusações para atingir os seus propósitos – para eliminar, vingar, calar, intimidar – , como foi o caso da expulsão dos jesuítas e do processo dos Távoras.
Conclusão
Não espanta que aceitemos um regime que nos retira todas as liberdades individuais, sem qualquer assuada da nossa parte, em nome de medidas com resultados nulos.
Não espanta que não nos indignemos com o nepotismo dos nossos governantes. Não espanta que não nos suscite qualquer curiosidade a forma como alguns governantes apareçam com enormes fortunas, depois de terem estado no poder vários anos, sem qualquer explicação sobre a sua origem.
Não espanta que o país não se indigne que as crianças, em particular as mais pobres e desfavorecidas, sejam votadas ao analfabetismo e ao sedentarismo. Não espanta que surjam de todos os quadrantes apelos ao respeitinho pelo poder, que deverá ser sempre sagrado e intocável, em particular pelos jornalistas dos órgãos de propaganda.
Não espanta que os negócios entre amigos e correligionários nunca sejam objecto de investigação. Não espanta que tenhamos um enorme apreço por quem nos trata com o azorrague a toda a hora.
Não espanta que sejamos a todo o momento ludibriados pela propaganda em uníssono de toda a imprensa, paga pelo nosso dinheiro, em lugar de leitores e audiências.
No fundo, o maior facínora da história de Portugal é um símbolo perfeito da actual democracia. A colossal estátua é intocável para o actual regime!
Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
De vez em quando vou a Lisboa. Tenho o privilégio de não ter hora marcada para chegar, o que me faz desfrutar do percurso de 35 quilómetros que faço na minha Honda NC750 azul pérola. Entre a minha aldeia e a entrada da auto-estrada na Malveira, o caminho é sinuoso, com curvas e contracurvas junto à Tapada de Mafra. A neblina matinal impregna o ar com uma frescura revigorante, especialmente para quem não está habituado a acordar antes das 10 da manhã.
Como vou juntamente com a Sara, que para quem não sabe, é a Sara, conectamos nossos intercomunicadores de capacete, que, na minha opinião, são o melhor sistema de comunicação Bluetooth do mundo. Com conexão dupla via Freecom, esses intercomunicadores proporcionam uma comunicação em tempo real equipada com som da JBL e a mais recente tecnologia para re-conexão automática, garantindo, sobretudo, uma qualidade sonora primorosa. Com uma capacidade ultra de emissão/recepção, por vezes, no meio das nossas conversas sobre fertilizantes orgânicos ou activos tóxicos, surgem-nos sons codificados e complexos que, sem dúvida, são de origem extraterrestre ou então dos camionistas da A8.
Ilustração de Ruy Otero
Como houve um acidente em Frielas, reduzi a velocidade e fui passando no meio dos carros parados, enquanto comentávamos a postura de quem desesperava de tanto esperar. Senti-me superior a essas pessoas que coçavam o nariz ou iam vendo numa qualquer rede anti-social as notícias do dia. Um casal assistia atentamente a um vídeo do conhecido seguidor de Julian Assange, o youtuber Nicolás Moras, que discutia as redes obscuras do Papa Francisco na Argentina. Enquanto isso, uma rapariga, pintando os lábios ao espelho, ouvia o podcast de Joe Rogan sobre o Big Foot. Sem querer parecer conspiracionista chalupa, juro-vos que já o vi no Estádio do Dragão com megafone em punho!
Facilmente desembaracei-me do trânsito e cheguei a Sacavém, que é premiada com uma vista deslumbrante sobre o rio que confunde muitos turistas, pensando que é mar tal é a sua extensão. Até aqueles blocos uniformes dos prédios da Portela exercem em mim um encanto semelhante ao Tetris numa Arcade do salão de jogos Monumental da Avenida Álvares Cabral.
Como a Sara trabalha na zona de Santa Apolónia, passámos junto aos quarteirões flutuantes que por lá proliferam. Apesar da estação fluvial ser novinha em folha, os seus motores têm de ficar ligados para poderem ter a energia eléctrica necessária para os ares condicionados e frigoríficos. Pelo facto de usarem um combustível barato chamado Bunker Oil, os gases emitidos parecem equivaler a um milhão de carros, embora a precisão dessa estimativa permaneça incerta para mim. Mas é pouco sustentável, disso não tenho dúvidas. Ao passar de moto, acabo por rir daqueles/as/x/@/#/& atletas amadores/as/x/@/#/& que se pavoneiam como se estivessem na Promenade des Anglais na Côte d’Azur. Com a poluição produzida pelos cruzeiros com bandeira de Malta ou do Panamá, os seus pulmões devem estar mais negros que os meus com trinta anos de Davidoff Classic no bucho!
Ilustração de Ruy Otero e Nuno Bettencourt
Ao chegar ao Campo de Santa Clara, um vislumbre de Sérgio Godinho. É terça-feira e a feira da ladra quase transborda de abarrotada. Lá arranjei um cantinho ilegal para estacionar com a complacência do Polícia Municipal, que assobiou para o lado, tal como o Luís Godinho fingiu que não viu aquele penálti descarado a favor do Sporting. Senti-me o Bernard Tapie do Codeçal.
Desmontámos entre bonecas decapitadas e plumas roxas a cheirar a naftalina, e sou logo abordado por um mitra a cravar-me um cigarro. Com uma altivez meio ressabiada, digo: “Desculpa, mas não fumo.” A inveja que senti daquele mano. Agora, dou por mim a parar em frente aos restaurantes para levar com umas valentes baforadas de nicotina dos cigarros dos outros. Cada vez se torna mais difícil fumar desta forma, de graça e sem culpa. As geringonças electrónicas estão a substituir a fabulosa combustão de alcatrão. A dependência agora não é apenas da nicotina, mas também das pilhas MPV 18650 20A 3500mAh Master Pro Vape.
Apetecia-me um café. A escolha entre o lote de feijão queimado Delta do Panteão e o lote Marfim Negrita da Focaccia in Giro parecia-me óbvia. Apesar de agora me sentir um pouco saloio e turista na minha própria cidade, não vou pagar 1€ por cada café. Siga para o que tem o Correio da Manhã para eu ter mais pormenores do Macaco das Antas. A Sara recordou-me que devia aproveitar para escrever outro artigo sobre os cafés Negrita e lá me convenceu a ir àquele sítio moderninho com um simples “deixa estar, eu pago!” Meti as minhas garras de fora e preparei-me para destilar ódio.
Ilustração de Ruy Otero
Entro na esplanada com cadeiras de tecido vermelhas patrocinadas pela cerveja Estrella Damm e vejo-me cercado de clientes que se chamam Björn, Astrid ou Henrik. Pareceu-me evidente que aquele estabelecimento foi concebido para atrair turistas, não para satisfazer as necessidades de residentes locais. Quem sou eu para dar conselhos, mas é sempre perigoso tornar-se dependente de um tipo de clientes. Basta um abanão no turismo lisboeta e muitas canoas vão ao fundo.
Bem sei que é tentador ter o mobiliário dado gratuitamente por alguma marca, porém a estética da cidade fica fortemente comprometida com esta opção, e já agora a do próprio estabelecimento. Espreito para o interior e vejo o mobiliário reciclado e candeeiros vintage. Uma proposta estética meio nórdica, meio marroquina. Se o exterior é oportunisticamente “brandizado” sem qualquer sofisticação, apesar de ser uma esplanada generosa que beneficia do arvoredo do Jardim Botto Machado, o interior deste café-restaurante é singular, cuidadosamente decorado com serigrafias e cartazes de cinema, onde se destaca o “Vertigo” de Alfred Hitchcock dos anos 50, espelhos ovais que reflectem a luz. No aparador, vemos uma colecção de objectos diversos que vão desde uma ventoinha, candeeiros de bolbos coloridos, vasos em cerâmica com figuras humanas, criando um ambiente doméstico bem confortável, onde até encontramos uma foto de família com a avó do proprietário, cujo talento na cozinha é a inspiração das famosas focaccias.
O destaque é dado pela Piaggio laranja que deu origem ao projecto inicialmente móvel, rodeada de mesas de vários tamanhos, algumas feitas com portas de prédios centenários recicladas em tampos, cadeiras de todos os feitios.
Vou ficar uma hora a resmungar e a afirmar convictamente que tinha razão nos meus preconceitos. Poderia fazê-lo à vontade que ninguém me entenderia.
Sentámo-nos na esplanada mesmo junto à entrada do restaurante, enquanto os restantes clientes iam brunchando, nós apenas queríamos dois cafés em meia chávena. Tudo o que era servido tinha óptimo aspecto, todavia eu não queria vender um rim para o poder pagar. Ainda pedi o menu para saber o que propunham, mas não havia em papel. Durante doze minutos tentei visualizá-lo em vão através do QR code no meu Nokia 3310. Ainda estão nessa fase de propostas assépticas e desmaterializadas. Bom, pelo menos agora já me é permitido o consumo sem apresentar qualquer tipo de certificado digital.
Primeiro café: RAL 8014
Segundo café: RAL 8011
A Sara chamou o seu conhecido Enrico, co-proprietário para solicitar que fosse ver o que se passava, já que os cafés não estavam a sair bem. Felizmente, como não tínhamos pressa, fomos desfrutando de um lindo sol de Fevereiro e demos graças a Deus pelo aquecimento global. Se fosse eu a mandar, cristalizava a temperatura de Lisboa nos 21 graus. Por entre a algazarra da feira e o magnífico “Dirty Boots” dos Sonic Youth que entretanto um feirante tinha posto a tocar, o Enrico lá apareceu com um café na mão. Olhei para aquela espuma de quatro milímetros, cor avelã, fruto desta perfeita alquimia entre água, temperatura, pressão e café. Não há outra bebida no mundo que seja capaz de me proporcionar as mesmas sensações gustativas e olfactivas. Este sim é a Uma Thurman, que agarra em mim, atira-me para o chão, vaza-me um olho e no fim, beija-me a boca com um aroma intenso, poderoso, elegante, nobre e sensual. Grazie Enrico pela tua sabedoria em reconhecer e resolver um claro problema que estava a acontecer. Como o fizeste, nem me interessa. Esse não é o meu papel. Quero tão somente os sabores bem misturados, a sensação amarga, clara e as suas notas de chocolate, flores e frutas.
Ilustração de Ruy Otero a partir do cartaz do filme Vertigo de Alfred Hitchcock
Um apontamento importante: sentir algumas borras na boca foi desagradável.
Dei por mim com um pequeno poder que me incomodou sobremaneira. Entrei naquele restaurante preparado para arranhar qual gato aquele negócio familiar e saí, agradecendo a sua existência. Sim, sou humano e tenho preconceitos, e você? Tendo sido amplamente citada a frase de Lili Caneças: “Estar vivo é o contrário de estar morto”, é porque de facto ela caracteriza na perfeição o aroma necessário ao perfume da vida.
Bruno Cecílio é artista
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
A Breve História do Mundo deveria dizer: os humanos modificam o ambiente, transformam paisagens. Os humanos alteram os cursos dos rios e aplainam montanhas. A Breve História do Mundo deveria referir: os homens matam-se, mas não o suficiente pois reproduzem-se como poucos.
Então, os humanos são uma praga? Um infortúnio?
A Breve História do Mundo só podia ter sido escrita por pessoas. A História só existe porque há pessoas. A Humanidade canta a beleza da Terra, descreve-a em livros e pinta-a. O Mundo diria que os humanos o endeusam! Os humanos carregam características tremendas, sendo difíceis de amar.
Mas, se não fossem assim, não eram pessoas. Refilam, protestam, discordam, fogem dos carreiros, inventam e criam coisas novas. O legado dos homens é incomparavelmente mais importante para o Mundo do que o dos cães. Não haveria nenhum destes cães se não os inventassem os humanos.
A detalhada história da Humanidade diria que um caniche ou um chihuahua não sobreviveriam em selva alguma. Já dos gatos, a realidade é bem diferente. Predadores natos, eles se reproduziriam, matariam tudo o que mexe e tem menos de dez centímetros, e acabariam por se adaptar.
Aos homens se deve o toiro das corridas de toiros. Aos humanos temos de atribuir as galinhas brancas dos aviários. A espécie, para sobreviver sem fome, percebeu que tinha de evoluir num sentido de uma ferocidade inovadora. A História do Mundo falará das varas, manadas, cardumes, aviários que os humanos produziram para criar seus excessos alimentares.
Uma coisa feroz e violenta que permite a alimentação de quase oito mil milhões de criaturas, pensadores, e religiosos habitantes da terra. Porque se viram para Deus estas criaturas criadoras que cumprem uma missão divina?
Eles mudam a paisagem, constroem prédios até às nuvens, habitam desertos e gelos que deviam ser inóspitos. Eles voam, navegam, comunicam sem carecer de se ver ou tocar. Eles arquivam informação e escrevem sonhos e fantasias. São tenebrosos e apocalípticos, fizeram desaparecer centenas de outros habitantes da Terra, desmataram florestas, abriram canais e misturaram águas antes intocadas.
A detalhada História do Mundo falará das bombas e das guerras, dos morticínios e das chacinas. Haverá um capítulo que explicará como toda a inteligência era intolerante e como todas as ideologias eram evangélicas. Todos desejavam convencer os restantes das suas certezas.
Assim, um dia, a Breve História do Mundo dirá que os humanos que habitaram na época de um dos aquecimentos da Terra seriam extintos como os dinossauros. Eram inteligentes, criativos, intolerantes e mataram-se. A Terra recuperou nos milhares de anos seguintes.
Diogo Cabrita é médico
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Se há uma coisa que me fascina são as cores, outra são os insetos, mas desses invertebrados pouco amigáveis nada direi neste texto.
Fascinante também, é o mundo atual e as suas incongruências.,
Diz a ciência que cada um vê a sua cor. Cada um tem a cor que merece, acrescento, não querendo ser profundo. Saiu-me assim de rompante, da massa cinzenta, sem mais nem menos. Sei também que para uns, mais é menos, mas não quero entrar por essa porta fonética, cheia de pregos ferrugentos quando mal aberta, ou fechada, que para esta coluna, quer dizer o mesmo.
No mundo das cores só sei que, se aquilo para mim é verde-eucalipto, pode não ser para o outro(a). Se aquela jarra é violeta para o João, pode perfeitamente ser rosa para a Carla. Se aquele carro elétrico a lítio é azul céu para o E. Musk, não quer dizer que para o B. Clinton o seja, nem mesmo para a H. Clinton, já agora. Aliás, ‘adoro’ mesmo muito este casal muito democrático e muito colorido, se me é permitida a redundância… Poderia até ser vermelho, para eles, e serem um caso grave de daltonismo, mas isso será sempre especulativo (conspirativo) e também não interessa aqui para este espaço que pretende, apesar de tudo, ser pouco monocromático e não político.
Até neste tema das cores, haverá sempre argumentos para os seres humanos discordarem uns dos outros e arranjarem confusão.
Se até por causa de um verde alface podem pessoas andar à porrada e acabarem a enfiarem uma garrafa partida pela goela abaixo de um(a) desgraçado(a), que apenas proferiu uma banalidade, por exemplo, sobre o arco-íris. Imaginemos então, o que não poderia suceder, numa discussão sobre identidade de género, mais acalorada, ou numa em que se usassem terminologias políticas, tipo capitalismo ou liberalismo.
Mas ainda assim, eu quero falar de cores e de um recente episódio que me aconteceu, que até me quis fazer mudar aquilo que estão a ver aí em cima deste texto, bem redondinho que é… A minha cara.
Sim, hoje deveria constar uma bola preta, sem qualquer tipo de interesse para a maioria das pessoas. Para mim, continuaria a ter interesse, porque essa não-cor mesmo que seja discutível, ainda, é uma cor, ou não? E remete para a arte conceptual. Arte simplória e complexa, dependendo sempre de quem a faz e olha.
Mas não.
A programação do site não o permite, mudaria para sempre a minha face aí dentro da bolinha, Daí a necessidade deste texto.
Terei todo o cuidado na abordagem deste assunto, e peço que não abandonem já a leitura – primeiro porque não vou entrar, nem por questões polémicas e fracturantes, de raça ou de género, tipo se as cores são masculinas ou femininas, como já vi a matemática ser tratada. Aí não me apanham. Sou completamente normal e pela igualdade de tudo. Ponto final. E segundo… não há segundo.
Gostaria mesmo de referir-me a duas cores, o azul e o amarelo, duas cores que estão no meu top-colour.
Se estiverem atentos a pormenores, e fizerem zoom à minha cara, para verem o que quiserem nela, percebem certamente que o fundo é uma publicidade, cujo amarelo e o azul são predominantes.
Ou não…
Ilustração de Rita Belchior
Tenho um amigo que percebe bastante de fundos e também da mente humana. Depois do meu primeiro texto publicado aqui, ele ligou-me no dia seguinte à publicação.
Disse-me:
– Tu agora és daqueles que estão a favor da Ucrânia?
Entrou logo a matar.
– Não. Nem a favor nem contra. Não percebo nada desta guerra. Mas não gosto de invasões, é claro. Não estou a perceber! Não é preciso entrares assim a matar só porque estás a falar de guerras.
Disse eu, deveras intrigado, porque vindo dele era estranha a entrada à bruta e sem subtileza.
– Não estás?
– Não. Mas já agora, tu é que sempre foste deliberadamente a favor da Ucrânia e naturalmente contra a Rússia, embora até sejas do PCP.
– Não estás mesmo a perceber? E calma, já não sou do PCP. E era dos Verdes, já que estamos na atmosfera das cores.
Respondeu com aquele tom irónico que lhe é característico.
– Não. Até me estás a chatear. Diz lá.
– A tua fotografia que acompanha o texto anterior, vista assim e à primeira, parece que tem a bandeira da Ucrânia atrás.
– O quê? Aquilo é uma publicidade à Fidelidade, ou lá o que é.
Respondi de rajada. Jamais gostaria de estar conotado com bandeiras. A minha costela de esquerda nunca o permitiria. Para a esquerda não há pátrias, há a Internacional Socialista.
– Mas visto assim não parece e pode gerar equívocos.
– Quais equívocos?
– Não é bom para o teu tipo de textos, que te associem a movimentos e tendências e até a países. É um conselho que te dou, depois é contigo. Aposta na ambiguidade, é amiga do tempo.
– Então se eu tiver uma parede vermelha atrás, vão associar-me imediatamente ao Benfica?
– Não. Mas aqui trata-se de outra coisa. Muita gente vestiu a camisola da Ucrânia para protestar contra o que está a acontecer, inclusivamente eu, e essas cores tornaram-se icónicas de um tempo. Por isso… Está dito. Não imponho nada. Tu é que sabes… .
– Estou aqui a ver a foto no meu iPhone, e realmente tem as mesmas cores da Ucrânia, e até tem aqui uma risca que parece de uma bandeira.
Mas, e fazendo zoom, isto mesmo assim, só tem para aí uns 8mm de azul por exemplo, ou de amarelo. Não sei se é assim tão evidente. Pelo menos no telemóvel.
-Tu é que sabes.
Disse, peremptório e com algum enigma à mistura.
-Mas eu é que sei, o quê?
-Não digo mais nada. Tenho de ir à piscina nadar crawl.
E desligou.
Ilustração de Rita Belchior.
Fiquei a pensar. Normalmente, o Filipe fazia-me pensar nas coisas, encontrava sempre uns ângulos interessantes sob os quais olhar, mas desta vez surpreendeu-me deveras. Andaria a ver coisas novas na Net? A verdade é que já não falávamos há algum tempo.
A alternativa seria meter um fundo de uma só cor, mas também, no caso de alguém ter reparado no pormenor, também seria estranho agora alterar o fundo.
Ainda pensei em arranjar outra fotografia, tenho muitas, mas inequivocamente aquela era de longe a melhor.
O programa tiraria esta foto do texto anterior, e assim este texto perderia o sentido. E ainda para mais, naquela eu reconhecia-me totalmente. É raro encontrar uma fotografia justa em relação às pessoas. Ou fazem muitas poses, ou usam os programas de edição em demasia, ou não têm cuidado algum e vai a que for, mesmo que o efeito da grande angular lhes meta o nariz do tamanho de um porta aviões. Tenho um amigo que tem tão pouco cuidado com a sua imagem que já chegou a dar para o bilhete de identidade a fotografia de outro, por engano, ainda por cima, muito mais gordo e com cara de vilão da Disney.
Odeio quando conheço ao vivo uma pessoa e já vi a fotografia dela, normalmente é uma desilusão, embora já me tenha habituado ao fenómeno.
Encontrar a fotografia justa, não é óbvio nem comum. A luz, o ângulo, as olheiras anormais desse dia, a expressão tensa, enfim, imensas variáveis em que não é fácil ajustarem-se todas à mesma hora para uma boa “flashada”. Mas aquela fotografia era perfeita. Quem me visse ao vivo, iria automaticamente reconhecer-me. E isso é reconfortante. Não haveria cá tangas… Mesmo que ao vivo tenha olheiras, ou a barba feita, ou o cabelo mais curto, ou mesmo um olho negro por ter tido uma discussão sobre… Cores.
Será bem assim? Às vezes claro que tenho dúvidas. Quando uma pessoa se olha ao espelho, ou se vê numa foto, tende a deformar-se, tende a não gostar.
Quando uns olhos olham outros, que são os mesmos, não vêm nada. Este é um dos dramas do mundo. O outro é a raiva que me mete aquelas pessoas que no Inverno, mal aparece um bocadinho de sol e calor, calçam logo os chinelos e põem manga curta.
Como é que um pouco de azul ou de amarelo, tem a capacidade de quase me estragar o dia.
Estarei a exagerar?
Aquilo é tão pequeno, e duvido que as pessoas façam zoom para ver caras. Por dia já vêm, sem querer, um milhão. Quem é que procura caras?.. Os do tinder ainda percebo. Será que aí faria mal, ou bem, ter a bandeira da Ucrânia por trás da carantonha? Nunca se sabe.
Mas também quem está no tinder não está bem à procura de grandes debates sobre geopolítica. Digo eu. Bem, mas também há todo o tipo de fantasias…
Tentei fazer uma foto novamente da minha cara, da qual me orgulhasse, e que não fosse mais uma corriqueira. A primeira selfie saiu logo mal, demasiada pose, a segunda desfocou demais, a terceira queimou, na quarta, eu por estar tão irritado com o falhanço das anteriores, tinha uma cara de chateado. Não estava a resultar de forma nenhuma. A única vantagem em relação à “ucraniana” era o fundo que realmente escolhi bem. Era branco e neutro. Sei que há apps no telemóvel que já põem o fundo que quisermos, mas não gosto de usar apps, a minha costela de direita conservadora está sempre a fazer soar o alarme.
Ilustração de Nuno Bettencourt
À quinta, fiz uma cara nojenta que, de certeza não é a minha, e se for, mete nojo.
Delete.
Espero que tenha sido da lente, estes iPhones às vezes…
Não é a minha cara que está deformada, é a lente. Reconforta-me este tipo de pensamentos. À vigésima desisti, e pensei ir a um programa de IA para dar uns retoques na original, e manter a alma. Mas pensei melhor, e arrependi-me. O algoritmo de alma não percebe um caracol.
Também, qual é o problema se uma parte dos leitores me associarem eventualmente à defesa desse país, ostracizado pelos russos?
Até podia ser justo. Claro que seria sempre sem querer, dessa guerra não tenho grande conhecimento. Uma vez até, tentei ver aquele programa com o José Milhazes e o Nuno Rogeiro, para adquirir alguma informação relevante, mas não consegui. Parecia que estava a ver um sketch dos Malucos do Riso.
Nunca gostei do Putin, que já anda aí ao tempo, do Zelensky nada sabia, até ter estoirado a guerra, mas, e tenho esse direito, odeio as t-shirts que ele usa, e soa-me a falso demais. Fez umas fotos para a Vogue que não me caíram lá muito bem, e a voz irrita-me, mas daí a saber se tem razão ou não…
Ainda para mais, não sei nada desse país que uns dizem que tem imensos Neonazis lá metidos ao barulho. Dizem, não sei. Nunca gastei o dedo a pesquisar.
Claro que os ucranianos não têm culpa disso, e poderia perfeitamente estar a dar o meu contributo desta forma imagetica à causa, sem que venha daí mal ao mundo. Não será por oportunismo, tratou-se de um acaso, já está, mas não, por outro lado… Ficaria mal, sem dúvida. Poderia efetivamente ser visto como oportunismo digital, um oportunismo bastante na moda.
Sei, no entanto, que até cairia bem a muita gente, hoje as guerrilhas são feitas assim no sofá, mas os leitores do PÁGINA UM, parecem diferentes.
No entanto, sei lá eu quem são.
O mundo é hoje muito pequeno, mas o desconhecimento geral é muito grande, como o meu por exemplo, em relação a esta guerra da qual não sei nada. Uma vez um amigo perguntou-me por quem estava, e respondi aquilo que me pareceu evidente – pelos mais fracos. Mas pensando hoje sobre o assunto, será que é uma questão de fortes e fracos, tipo, Benfica contra o Arouca!.. . Não será tudo mais complexo?
É confuso.
Ilustração de Rita Belchior
Seria até simplista demais da minha parte, depois do meu texto sobre Davos, ver a coisa sem o mínimo de complexidade, mas a verdade é que me parece difícil saber realmente o que está a acontecer naquela zona. É deplorável um país invadir outro, disso estou seguro.
Até depois de uma pesquisa rápida na Net, percebi que até agora, morreram várias centenas de milhares de soldados russos, o que também é estranho, uma vez que são pintados como uma potência militar. Sei que na Rússia, quem não estiver com o presidente acaba invariavelmente na prisão. E eu cá não quero ter nada a ver com isso. Mas, e se estiver, ainda que sem querer, do lado dos ucranianos, será que não estou a ser injusto com outros ucranianos que até se sentem russos? Mas porque é que uma pessoa tem de estar sempre do lado de alguma coisa? Já me chegam as dificuldades que por vezes acarreta ter de apoiar os amigos.
Perguntei a uma amiga se a fotografia lhe remetia para a Ucrânia. Disse que não, que isso já era coisa do passado, que agora devia era dar apoio à Palestina. Mas desse assunto também sei pouco, senti-me até culpado depois. Já tenho tanta coisa em que pensar, e mesmo julgando ter informação sobre outros acontecimentos do mundo político, não me é fácil relacionar as coisas. Ela insinuou até, que eu, agora, era sionista. Vi logo onde é que o prolongamento daquela conversa iria dar e fui nadar crawl.
Umas horas depois, perguntei à minha mãe se a fotografia de facto me conotava com a Ucrânia, e ela disse que sim. Acontece, que ela é uma fervorosa apoiante do Putin. Ficou chateada e não me deu a mais pequena chance de contrariá-la. Disse-me ainda, quando saía, que eu era facilmente manipulável pela televisão. Já nem respondi.
Se virem bem, a coisa está negra, ou será só um exagero da minha parte?
Há uns anos, esta questão não se teria posto. Era amarelo e azul, e então?
A maior parte das pessoas que reparasse nisso, iria achar que eu era apoiante e adepto do Estoril Praia, quando muito, e seria motivo de gozo. Mas hoje as coisas não se passam bem assim.
Hoje, por um lado, até é melhor, se virmos bem e pelo ângulo certo. Hoje podemos escrever um texto sobre essa ficção em que a realidade não só se confunde, como facilmente a penetra, ao ponto de sermos nós próprios a linguagem.
E isso, lamento, mas é bom.
Não sei nada sobre a Ucrânia, ok, qual é o problema!
Ilustração de Rita Belchior
A maior parte das pessoas também tenho dúvidas que saibam, mesmo os que andaram a carregar com as cores da bandeira às costas. Então, mas a guerra continua e já não se vê grandes apoios nas janelas e nos computadores, que são outras janelas, mas onde é que andam hoje as bandeiras?
Não sou contra, evidentemente, que se apoie seja o que for, sobretudo se parecer justo, mas convém saber do que se fala. Eu, nesse caso, estarei sempre à vontade, porque em todo o tempo, fui contra todas as guerras. Nem a tropa fiz.
Já saber as regras do trânsito é um problema, ou escrever sem erros ortográficos, quanto mais ter de reconhecer Dombass no mapa político, ou ter de saber se o Shaktar Donetsk ainda joga à bola. A vida não pode ser a metáfora da entrada num supermercado.
Não. Deixo ficar a foto e pronto, não se fala mais nisso. Se calhar também ninguém repara, nem mesmo depois da leitura do texto.
Acho que o mundo precisa mais de cor, anda tudo muito a preto e branco. Estamos quase dentro de um filme mudo, em que todos gritam ao mesmo tempo mas ninguém consegue ouvir o realizador.
Ruy Otero é artista media
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.