Etiqueta: Destaque Opinião

  • Portugal: um país corrupto?

    Portugal: um país corrupto?


    Portugal é um país de corruptos?

    A maioria dos portugueses dirá que sim.

    Segundo o Índice de Percepção de Corrupção, elaborado pela Transparência Internacional, Portugal ocupava, no ano de 2018, a 33.ª posição na lista dos países menos corruptos em escala mundial, num conjunto de 176 países e obteve 61 (sessenta e um) pontos (0-100).

    Sabermos que só há, no mundo inteiro, 32 países menos corruptos que o nosso pode ser uma boa notícia se tivermos em conta que 143 conseguem ser piores.

    a person holding a stack of cash

    O problema, se tivermos atenção às últimas notícias, é que os números podem ser hoje, seis anos passados desde este último estudo, muito diferentes.

    Todos os dias os jornais, rádios e televisões relatam buscas, apreensões, detenções mais ou menos prolongadas, embora muitas vezes com libertações de putativos corruptos e corruptores.

    Se o caso já era grave em 2018, quando o custo estimado para a corrupção atingia, anualmente, cerca de 18,2 mil milhões de euros, como será hoje?

    Em primeiro lugar, para se perceber a enormidade do número acima, bastará dizer que o dinheiro perdido para a corrupção permitiria que nenhum português tivesse de pagar IRS.

    Este valor é dez vezes superior ao orçamento para o apoio aos desempregados (cerca de 1,8 mil milhões de euros), é mais do que todo o orçamento anual da saúde do país (16.1 mil milhões de euros) e é 314 vezes superiores ao orçamento do Governo para a habitação (58 milhões de euros).

    Desde a data deste estudo até Maio de 2023 houve, segundo um texto da CNN, que recorreu “a fontes abertas, notícias publicadas e dados obtidos pela defesa de vários dos investigados” pelo menos 191 políticos acusados de corrupção:

    “A saber, um primeiro-ministro, 11 ministros, 13 secretário de Estado, 33 deputados e 133 autarcas.

    Foram todos constituídos arguidos nesses seis anos e a sua maioria por crimes de corrupção, peculato e recebimento indevido de vantagem.

    É entre o PS e PSD, partidos que têm alternado no poder nos últimos anos, que há mais casos. Especialistas garantem que na política há uma teia de relações e “uma cultura de favores ” que os afasta “da própria ideia de escrutínio e de serviço público”.

    a person holding a piece of money in their hand

    O outro grande problema é que, por absoluta incompetência na investigação e acusação, ou dos juízes que, em primeira Instância, analisam os factos apresentados, muitas desses processos terminam sem condenações.

    A absoluta descrença na Justiça, por parte dos portugueses, uns porque criticam a detenção de cidadãos, alguns com lugares importantes na sociedade, e até escolhidos pelos seus conterrâneos, em eleições livres, para os representarem, para depois serem libertados com a sua honestidade posta em causa, outros porque acreditam que houve corrupção, isso sim, da parte de quem os libertou.

    Quando casos da gravidade da prisão de um Primeiro-Ministro, que depois fica mais de dez anos a aguardar que o seu julgamento se inicie, ou de ministros acusados e absolvidos em tribunal depois de terem sido obrigados a deixarem o cargo, acontecem sem que se vislumbre um único investigador, ou magistrado, responsabilizado por esses erros gravíssimos, antes continuem calmamente a sua profissão com promoções na carreira, o que poderá pensar o Povo?

    Operações como a última na Madeira, com centena e meia de inspectores da Polícia Judiciária e uma dezena de magistrados, a voarem num avião da Força Aérea para o Funchal, para fazerem buscas e recolherem provas, acabando por deter o presidente da Câmara e os dois maiores empresários da região, que ficaram presos vinte e um dias para interrogatórios (a Lei fala num prazo, que seria justo, de 48 horas) e, no fim serem libertados pelo Juiz, que alegou não ver, na Acusação, “qualquer indício de crime, muito menos indícios fortes”, a verdade é que temos de pôr em causa a competência de Investigadores e Procuradores ou do Juiz.

    O resultado é ficarmos em pânico.

    white and blue boats on sea during daytime

    Falamos de gente que tem o poder de tirar, a qualquer um de nós, aquilo que há de mais sagrado: a Liberdade.

    A dúvida final é esta:

    Somos o 33º país menos corrupto porque os Juízes os libertam, o que permite não baixarmos na classificação, ou porque se condenam inocentes e podíamos estar melhor?

    De qualquer modo o número envergonha.

    Será que alguém pode pagar, por baixo da mesa, a quem faz estes estudos?

    Vítor Ilharco é assessor


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • Mixórdia de temáticas

    Mixórdia de temáticas


    1 – Acho sempre uma péssima ideia começar um debate com o argumento que do outro lado está alguém ignorante. Assim sendo, vou partir do princípio que Inês Pedrosa, quando disse que preferia Navalny, “o mártir heróico”, a Che Guevara, sabia quem eram as duas personagens que estava a comparar. Todos temos direito à nossa opinião e, por isso, respeito a de Inês Pedrosa. A minha é que ela disse um disparate em horário nobre da RTP3. No caso dela, um entre muitos que habitualmente vem dizendo desde os tempos da pandemia. Antes disso, não sei porque não lhe prestava atenção.

    Navalny veio para a ribalta por ser um opositor à ditadura de Putin, usando a guerra da Ucrânia como arma de arremesso para a sua posição de “defensor da democracia”. Nós, e por nós quero dizer o eterno moralmente superior Ocidente, corremos a abraçar a causa de Navalny seguindo aquela lógica do “inimigo do meu inimigo, meu amigo será”.

    Alexey Navalny

    Ora, não é propriamente o caso aqui. Os próprios ucranianos, de quem Navalny seria, em teoria, um amigo, referem-se a ele como um adepto do imperialismo russo, da anexação de partes da Ucrânia, da não-entrada na NATO e, ainda, com uma longa história de nacionalismo, xenofobia e pureza da raça, como disse à Time a professora da Universidade McGill Maria Popova. Em resumo, Navalny é apenas outro Putin que queria fazer o mesmo que o original, mas com uma ambição tal que, de facto, aceitou correr risco de vida para tomar o poder.  A figura de quem, como Inês Pedrosa, tenta transformar este homem num democrata, é semelhante à de Ursula Von der Leyen quando trocou o gás da ditadura russa pela ‘democracia’ azeri. 

    Temos um ditador no poder que mandou matar outro ditador em potência. Faz parte, infelizmente, da História Russa há 100 anos. É uma chatice, mas é o que é. Meter o Che Guevara no meio disto até me fez soltar um ou outro vocábulo mais rudimentar.

    2 – Em 2022 escrevi que este modelo de debate ‘express’ entre todos os líderes não beneficiava o estilo de Ventura. Quer dizer, não beneficiava ao fim de um certo tempo, que, na minha opinião, já passou. Interromper todo e qualquer raciocínio e apostar tudo em ataque pessoais, serve para um partido de protesto, mas é pouco para quem quer ser levado a sério e chegar ao poder. Três ou quatro anos depois, já todos conhecem os truques, e sobra a Ventura, se quiser passar da falange clássica de apoio ao Chega, começar a apresentar as ideias que não tem. Em todos os debates tentou a mesma estratégia de usar e abusar do ataque pessoal. Entre mentiras, populismo e factos com pouquíssimo interesse para as eleições, saiu dos debates a mendigar por uma aliança governativa que, aparentemente, ninguém quer aceitar. O Chega subirá, e muito, mas parece estar preso a uma cerca sanitária imposta pelo resto da direita, à qual estratégia de Ventura não parece ter conseguido dar a volta. Aliás, entre esquerda e direita, o único ponto comum ao fim de duas semanas de debates parece ter sido que o Chega é o parceiro com quem ninguém conta. Até Luís Montenegro, algo que honestamente me surpreendeu.

    O exemplo mais clássico, na minha opinião, de uma estratégia falhada, apareceu no debate com Rui Tavares onde, em vez de se discutirem soluções para a Educação, se passou o tempo a falar da escola privada dos filhos do líder do Livre.

    Como se uma pessoa precisasse de ter os filhos na escola pública para a defender. Ou nunca ir a uma clínica privada para defender o Serviço Nacional de Saúde. Ou não andar de avião para defender a ferrovia. Este tipo de discurso, e até de devassa da vida privada, é exactamente uma das razões para os melhores não quererem ir para a política. São salários baixos e uma exposição doentia, ao ponto de chegar à humilhação pública que, bem feitas as contas, se tornam absolutamente desnecessárias para quem tem carreiras sólidas nas respectivas áreas profissionais.

    Sobram-nos por isso artistas como o Ventura. É seguir, cantando e rindo.

    3 – Na Ucrânia chegámos ao ponto clássico das guerras alimentadas pelos Estados Unidos. Há sempre aquele momento em que desaparecem do radar como se nunca lá estivessem estado, deixando os locais entregues à sua sorte. O exército russo já teve milhares de baixas e o seu enfraquecimento é real, portanto, um dos objectivos de Washington está conseguido. As sanções produzidas pela União Europeia, por outro lado, pouco fizeram pela Economia russa que cresceu 3,2%. Agora, nesta fase de desespero, em que a Europa não tem armas para dar a Kiev, os russos vão fazendo o que querem, e alguns países, como a Alemanha, começam a tratar do seu próprio arsenal, antevendo o que aí virá.

    Há quase dois anos que repito isto, e volto a dizê-lo: acabaremos por negociar de qualquer forma os terrenos que passarão da Ucrânia para a esfera russa, mas, fá-lo-emos em muito piores condições e com muito mais mortes. Não sei se se lembram mas quem dizia há dois anos o que está a acontecer agora e o que a Europa será forcada, com maiores custos, a fazer, era apelidado de putinista. Desde o primeiro dia que sabemos que a invasão russa só se resolveria de duas formas: na mesa das negociações ou numa Terceira Guerra Mundial.

    Uma última nota sobre o formato da crónica desta semana: espero, até imploro, que Ricardo Araújo Pereira não me processe por usar um título que lhe pertence. Ainda pensei em usar uma frase como, por exemplo, “dizer o que não foi dito” para título deste pout porri” de temas, mas tive algum receio. Uma coisa é brincar com um humorista que tem o dom da palavra, outra é meter-me com um cantor que não canta. Ainda me mandava, olhem, Talvez Foder, que também deverá ter sido por ele patenteado.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • Muitos anos a virar tofu

    Muitos anos a virar tofu


    É, para mim, um dos sinais de que estou a ficar mais velha: falo sem filtro, digo o que me apetece, sem o cérebro ter tempo para dar ordem à boca para que não saiam algumas frases. Isto tem-me acontecido, cada vez mais vezes. Se calhar, não tem nada a ver com a idade. Mas é a minha desculpa.

    Isto vem a propósito das minhas gafes constantes. Atenção: sempre cometi imensas gafes. Tenho episódios da minha vida que servem para entreter os filhos e sobrinhos com boas gargalhadas, tais são as trapalhadas e embaraço que as minhas ‘falhas’ provocaram. (O já célebre episódio do garfo espetado num tomate, a meio de um almoço chique, continua a ser o preferido na família).

    xi'an, gourmet, tofu

    Isto vem a propósito da minha entrevista com a porta-voz do partido PAN-Pessoas Animais Natureza, Inês Sousa Real, e de uma grande gafe que cometi, depois de desligados os microfones e após as fotografias.

    Estava eu a conversar amenamente com os três membros de topo, a cúpula do PAN, quando me sai a expressão “ando há muitos anos a virar frangos”. Ora… falar com vegans ou vegetarianos usando estas expressões não será a coisa mais inteligente. Mas saiu-me. 

    Rapidamente, me dei conta da falha. Estava ainda a minha boca a dizer a palavra “virar” e já eu me estava dar conta da trapalhada. (O emoji da mulher com a mão na cabeça veio-me à mente).

    Rapidamente, expressei o meu sincero arrependimento pela expressão muito mal escolhida. 

    Valeu a boa disposição da cúpula do PAN que, rapidamente, sugeriu substituir a expressão “virar frangos” por “andar há muitos anos a virar tofu“. “Ou virar seitan” – acrescentei eu, na tentativa de salvar a ‘pele’ e a imagem. 

    Mais tarde, fiquei feliz por não ter usado também a expressão “puxar a brasa à minha sardinha”. Mas foi por mera sorte, acredite. 

    Eu, que até fui vegetariana durante mais de 15 anos, sei perfeitamente quais são as regras de ‘etiqueta’ nestas matérias. Respeito muito e admiro – e escrevo a sério – todos os que promovem a causa animal.

    Valeu a capacidade de ‘encaixe’ e compreensão da direcção do PAN. É que os meus filhos e os meus sobrinhos já sabem das minhas gafes e trapalhadas. Mas o PAN não.

    A entrevista sem gafes (espero) a Inês Sousa Real será publicada a 24 de fevereiro.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • Como se mata o jornalismo de investigação? Em Portugal, através dos ‘reguladores’

    Como se mata o jornalismo de investigação? Em Portugal, através dos ‘reguladores’


    No ano passado, nas minhas deambulações pela plataforma da contratação pública – o Portal Base – deparei-me com o ‘comportamento’ muito sui generis do Hospital de Braga, uma das mais importantes unidades de saúde do país, que somente em despesas correntes gasta, por ano, cerca de 260 milhões de euros. E fui investigar . E deu notícias.

    A primeira notícia foi publicada em 12 de Junho e destacava sobretudo contratos de sete milhões de euros escondidos durante mais de dois anos. Meses mais tarde, em Setembro, já no âmbito do Boletim P1 da contratação pública – em que analisamos os contratos publicados no Portal Base – dei à estampa nova notícia em que destacava que só naquele mês o Hospital de Braga celebrara 393 ajustes directos, muitos dos quais usando este procedimento sem justificação plausível.

    question mark neon signage

    Num país decente, este tipo de investigação jornalística teria consequências para os administradores hospitalares. Ainda mais quando, na verdade, e como na investigação jornalística que o PÁGINA UM publica nesta terça-feira, o Hospital de Braga escondeu 1.354 ajustes directos de 47 milhões de euros por mais de dois anos, para além de outros detalhes de bradar aos céus.

    E, portanto, deveria estar a decorrer uma auditoria no Tribunal de Contas, talvez na Inspecção-Geral das Finanças, e talvez mesmo uma investigação pelo Ministério Público.

    Mas Portugal não é um país normal. E mais ainda para o jornalismo independente de investigação. Quer dizer, não estamos ao nível da Coreia do Norte, da China ou do Irão, ou mesmo da Rússia, da Palestina ou do Brasil, onde o risco de morte e prisão é uma realidade.

    Consciente do (pouco) impacte público das notícias do PÁGINA UM em Junho e Setembro do ano passado sobre si e o (seu) Hospital de Braga, João Porfírio Oliveira, que foi ‘premiado’ recentemente com a presidência da Unidade Local de Saúde do Alto Minho, decidiu ‘contra-atacar’. E apresentou duas queixas: uma ao Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas – cujo presidente, por uma certa coincidência, é investigador da Universidade do Minho, em Braga – e outra à Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) – cuja presidente, por mais uma certa coincidência, é professora da Universidade do Minho… em Braga.

    João Porfírio Oliveira: como reagir a uma investigação jornalística? Queixar-se a ‘reguladores’ amigos.

    E, ó surpresa, tanto a CCPJ como a ERC, mesmo não descobrindo um único erro, um único lapso, e baseando-se todas as notícias numa base de dados oficial (Portal Base, gerida e validada por uma entidade pública, o IMPIC) e sendo os registos feitos pela própria entidade adjudicante (neste caso, o Hospital de Braga), acharam por bem, e sem vergonha na cara, censurar o meu trabalho.

    No caso do CDSJ, os seus membros (que se rotulam de jornalistas) consideraram que existiam “nos artigos publicados ‘expressões, afirmações e conclusões’ suscetíveis de ‘qualificar de forma absurdamente desproporcional os membros do Conselho de Administração’ do Hospital”, e recomendaram que eu seguisse “escrupulosamente o Código Deontológico dos Jornalistas, ouvindo as partes com interesses atendíveis no caso,  deixando bem clara aos olhos do público a distinção entre factos e opiniões (Ponto 1) e abstendo-se de fazer acusações (Ponto 2), sem o total apuramento dos factos”.

    No caso da ERC, uma recente deliberação, chega a ser risível pelo absurdo, ao considerar que a simples análise de registos de contratos colocados pelo próprio Hospital de Braga exigia um contraditório. E considerava também que, cruzando as informações dos registos com o determinado pela lei, nunca poderia dizer que havia uma ilegalidade porque “não houve uma decisão nesse sentido de qualquer entidade habilitada para o efeito”.

    man sitting on chair holding newspaper on fire

    Ou seja, para o regulador, o jornalista jamais pode denunciar uma ilegalidade enquanto não houver uma entidade oficial que assim o determine – no limite, uma sentença transitada em julgado. Daqui a nada só falta a ERC ‘decretar’ no alto da sua nescidade, que um jornal só poderá, interpretando dados meteorológicos, informar que choveu 5 milímetros em 24 horas depois de uma “entidade habilitada para o efeito” – neste caso, o Instituto Português do Mar e da Atmosfera – assim o determinar.

    Bem sei, com ou sem articulação, qual foi o propósito do Hospital de Braga, da CDSJ e da ERC – que o PÁGINA UM parasse com as investigações. Não parou, nem vai parar. E até vai fazer algo que nem é função do jornalismo, mas que passa a ser uma necessidade de defesa do PÁGINA UM aos sistemáticos ataques à liberdade de imprensa perpetrados pelos dois ‘reguladores’ (ERC e CDSJ por motivos cavilosos): enviar todos os elementos desta investigação ao Tribunal de Contas, solicitando a sua intervenção.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

    APOIOS PONTUAIS

    IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

    MBWAY: 961696930 ou 935600604

    FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

    BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

    Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt.

  • Raios partam a ‘empatia’

    Raios partam a ‘empatia’


    Se copiasse todos os exemplos, só do último mês, do jornalismo e dos habitantes do espaço público que usaram «empatia», «empático», «empatizar» para este jornal, esse acervo teria muito mais caracteres do que todos os artigos do PÁGINA UM. (Não, não é ironia. É matemática.)

    Comecemos com exemplos respigados da linguagem publicada.

    grayscale photography of kids walking on road

    «Duas palavras: empatia e humildade», disse o então recém-empossado secretário-geral do Partido Socialista, em 13 de Janeiro de 2024, palavra que repetiria, assim como outros dirigentes políticos, na campanha eleitoral, designadamente nos debates das legislativas. Para muitos problemas de Portugal, não poucos políticos apresentam-nos a solução em sete letras: empatia. Muito recentemente, houve até quem apresentasse a solução para os protestos da polícia e demais sectores profissionais da seguinte forma: «É preciso empatia.»

    Outro exemplo, desta vez do jornalismo: «A empatia, de uma forma geral, é enganosa, mas, na área artística, sofre do eterno défice: não chega a 1 %.»

    Neste fim-de-semana, no programa televisivo A Grandiosa Enciclopédia do Ludopédio, falavam das grandes duplas futebolísticas e, em dada altura, disseram que dois futebolistas… jogavam com… grande… empatia. Zeus!

    É impossível passar um só dia sem ser inundado dos vocábulos «empatia», «empático», «inclusão», «inclusivo» e seus familiares.

    Quer insultar alguém? Diga que lhe falta empatia.

    group of man gathering inside room

    Como se resolvem todos os problemas do mundo? Com empatia.

    O uso descomedido do vocábulo «empático» e da expressão «com empatia» redundou no inevitável: qualquer palavra que seja utilizada imoderadamente acaba por perder precisão semântica. Hodiernamente, em muitas situações, encontramo-las («empático», «com empatia», «empatizar») para exprimir conceitos distintos (e alguns distantes dos dicionarizados), como «compassivo», «compreensivo», «carismático», «simpático», «com inteligência interpessoal (acima da média)» (diferente de «inteligência intrapessoal»). Quando alguém adjectivar outro como sendo «empático», pergunte-se-lhe a definição.

    Temos de ser «empáticos», temos de ser «inclusivos», temos de cultivar e promover a «empatia» e a «inclusão» (a «diversidade» — ora explícita, ora implicitamente — é parceira da «inclusão»). Por paradoxal que possa parecer, a toda a hora, dizem-nos concomitantemente que devemos evitar pessoas «tóxicas» e relações «tóxicas». E temos, claro está, a crescentemente falada e escrutinada «masculinidade tóxica» (não deixa de ser curioso que se empreguem tantas vezes os vocábulos «misoginia»/«misógino», sem nunca se nomear sequer a misandria — certamente, a primeira superabunda, enquanto a segunda é inexistente), temos os «activos tóxicos», temos ambientes de trabalho «tóxicos», entre uma pletora de exemplos.

    white and black metal pipe

    Ficamos, por conseguinte, sem saber se quem é «tóxico» será digno de «empatia», e se a tão proclamada «inclusão» deverá abranger as pessoas «tóxicas».

    O historiador dos primeiros decénios da linguagem publicada do nosso século há-de interrogar-se atónito sobre dois paradoxos: aqueles que mais clamavam pela criminalização do discurso de ódio atiravam, do alto da torre da superlativa moralidade, frases prenhes de ódio, enquanto esbracejavam com as fácies carregadas de ressentimento e ódio, e inúmeras criaturas que tinham a empatia e a inclusão na boca a toda a hora estavam constantemente a sinalizar os outros como entes tóxicos de quem nos deveríamos afastar e, se possível, ostracizar e linchar.

    Manuel Matos Monteiro é escritor e director da Escola da Língua


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • É o ‘estado a que chegámos’ que abriu as portas ao populismo

    É o ‘estado a que chegámos’ que abriu as portas ao populismo


    No ‘Arranhadelas’, a rubrica do Serafim, o Mascot aqui no PÁGINA UM, glosava-se hoje, gozando, com o facto de o Público, tal como a generalidade dos media, ignorar os pequenos partidos (ainda) sem assento parlamentar. E esse desprezo assume-se em pleno, quando se mostra pacífico, nas televisões, que apenas os partidos com deputados (numa Assembleia da República) já dissolvida merecem participar em debates do tipo duelo, concedendo ainda por cima um duelo especial para os dois partidos de um ‘Bloco Central’ que se perpetua.

    Compreendo as razões deste modelo – seria quase impraticável a realização de 153 debates, se se incluíssem duelos com os 18 partidos e coligações (contabilizando os participantes no círculo de Lisboa) –, mas não menos relevante é apontar a responsabilidade da comunicação social em manter um espírito democrático numa… democracia.

    people walking on grey concrete floor during daytime

    Na democracia, não se aplica somente o princípio ‘uma pessoa, um voto’; isso é pouco, ou quase nada, para consolidar esse regime. A imprensa não pode, em Portugal, em período eleitoral, fazer de conta que, na hora da cobertura, nem sequer tem de fazer os trabalhos mínimos.

    Tem sido, na minha opinião, as enormes dificuldades ‘impostas’ pela imprensa em ‘ouvir’ novas propostas, que tem mantido no poder, quase ininterruptamente dois partidos que, ao fim de 50 anos, deixam mais do que um amargo de boca a uma geração que nasceu ou cresceu em Liberdade. Os Governos PS e PSD (com umas coligações à mistura), com ou sem maioria, conduziram-nos a um país de compadrios, de partidocracia, de esquemas, de obscurantismo, de impunidade política e criminal.

    Não se ter contrariado ao longo de décadas este bipartidarismo – pelo contrário, a media mainstream promoveu-o –, com as dificuldades de crescimento de novos partidos e movimentos políticos (com novas ideias), descambou no “estado a que chegámos”, parafraseando Salgueiro Maia. E, por triste ironia, abriu portas a um crescente descontentamento colectivo, que primeiro se foi ‘escoando’ para a abstenção, mas que agora se vira para o voto, um voto no populismo que, começando por uma linha de xenofobia, se foi amenizando para recolher todos os descontentes. E são muitos.

    shallow focus photography of condenser microphone

    Talvez após o dia 10 de Março, mesmo que não se confirme a ascensão de um populismo – e que, se surgir, não perigará os alicerces do sistema democrático, se a Justiça (Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas, tribunais administrativos e judiciais, e Procuradoria Geral da República) estiver atenta, activa e preventiva –, a imprensa faça uma reflexão.

    Uma reflexão sobre a sua (perdida) acção de ‘fiscalização’ da acção governativa, que perdeu.

    Uma reflexão sobre o seu (perdido) papel de denunciador das falhas governativas ou das injustiças sociais, tornando-se um agente promotor do ‘agenda setting’, e não um mero comunicador das mensagens e narrativas governamentais e empresariais.

    Uma reflexão sobre o seu (perdido) papel de estimulador das actividades cívicas e até políticas dos diversos agentes sociais.

    E, por fim, uma reflexão sobre a forma como nunca concedeu as mesmas oportunidades ao surgimento de partidos alternativos aos ‘mesmos do costume’, mesmo que seja no curto período das campanhas eleitorais.

    Nesse último aspecto, com os parcos meios ao seu alcance, o PÁGINA UM mostra, com um singelo mas simbólico contributo, como é uma democracia plena: ouvir todos em pé de igualdade. A oitava entrevista da HORA POLÍTICA, que hoje publicamos, iniciativa que inclui partidos com assento parlamentar (Iniciativa Liberal e Chega) e sem assento parlamentar (Nova Direita, Volt Portugal, RIR, Aliança, PURP e Nós, Cidadãos), é um exemplo do papel sério que se ‘exige’ à comunicação social num sistema democrático.

    A caminho da segunda semana da HORA POLÍTICA, apenas faço votos pessoais para que, até dia 4 de Março (com a derradeira entrevista ao mais antigo partido, o PCP), consigamos o pleno. Seria também um sinal de que todos os partidos (sobretudo aqueles com assento parlamentar) compreendem as regras leais do ‘jogo democrático’.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

    APOIOS PONTUAIS

    IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

    MBWAY: 961696930 ou 935600604

    FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

    BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

    Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt.

  • Condição

    Condição

    É um rapaz de cinquenta anos, esguio, alto, moreno. Faltam alguns dentes, os que restam encavalitam-se em cima do cigarro.

    Cabeça baixa a vencer a distância ao chão. Nunca o vi caminhar devagar, e caminhar é o que sempre faz, quase corre, não tem outro meio que não as pernas.

    Acena-me sempre, se em mim tropeça na corrida, estende-me o punho para chocar metacarpos na distância de quem se acanha.

    silhouette photography of man

    Ocasionalmente, pede trabalho para amigos. Ninguém tem condição para comer, não com as moedas que recebem por hora. Maioria das vezes ao negro. Não têm condição.

    Para ele vai-se andando. Não se pode parar. Levanta-se sempre às seis da manhã, vai até ao concelho vizinho ver um irmão. Pelo caminho visita quem lhe estende o punho. Quem lhe dá sacas de laranjas, pão, massa, arroz. Frascos de salsichas e latas de atum.

    Sempre dá, vai dando, enquanto não respondem da segurança social.

    Trabalhou muitos anos numa confeitaria, tem orgulho no trabalho que fazia e diz que faz o que for preciso. Se é preciso varrer, varre-se. Se é preciso limpar, limpa-se.

    Levanta o nariz enquanto recorda; a cabeça quase se ergue também.

    Isto está, sabe, não sei… Não sei onde isto vai parar. Não conhece quem precise? Não é assim para trabalho fino de obras, mas para as massas, os baldes, o entulho, sabe?

    brown and green metal handrails

    Fica condicional, conjugação permanente, nem sabemos o quanto até que temos de contar só com as pernas e as sacas para comer. Num vaivem infinito que atravessa cidades, a empurrar os dias para as noites e as noites pela janela fria da casa de adobe com estuques embolorados.

    Como se chega a esta condição e o quanto parece impossível sair de lá, por mais que se continue a caminhar.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • CDU: ‘É hora. Mais força à CDU’

    CDU: ‘É hora. Mais força à CDU’

    Faltam menos de 25 dias para as eleições legislativas antecipadas em Portugal, com as comemorações do 50º aniversário da Revolução dos Cravos como pano de fundo, um dos momentos mais marcantes da nossa história democrática. O mês de Abril e os seus princípios inspiram as propostas do Partido Comunista Português (PCP), enraizado na ideologia marxista-leninista. Desde a sua origem em Março de 1921, o PCP tem sido um pilar essencial na evolução dos movimentos operários portugueses, desempenhando um papel significativo na consciencialização e no desenvolvimento político das massas trabalhadoras.

     Em 2022, Paulo Raimundo foi escolhido para assumir o papel de líder do PCP, sucedendo ao histórico Jerónimo de Sousa. Trabalhou em carpintaria, foi padeiro e animador cultural na Associação Cristã da Mocidade na Bela Vista. Desconhecido para a maioria dos portugueses, é no entanto reconhecido no partido pelas suas qualidades humanas e pela vasta e diversificada experiência política. Raimundo traz consigo uma trajectória marcada por múltiplas áreas de actuação, incluindo sindicatos e o acompanhamento de empresas e serviços públicos. Nas eleições antecipadas de 2024, Raimundo encabeça assim a lista da CDU — Coligação Democrática Unitária, em Lisboa.

    Mupi da CDU na Avenida da República, em Lisboa. Foto: ©Sara Battesti

    O perfil do eleitorado da CDU revela uma distribuição diversificada com  destaque para a faixa etária acima dos 54 anos, mas curiosamente com uma participação significativa de jovens adultos. E recebe grande apoio de pessoas com menor escolaridade, enquanto a diferença entre os votos de homens e mulheres é praticamente inexistente.

    Desde Janeiro, na campanha que se vê nas ruas, especialmente em vários mupis, destacam-se promessas como a criação de uma rede pública de creches, aumento de salários e pensões, direito à saúde e melhorias nos transportes públicos. Numa recente sondagem da Católica apresentada no jornal Público, a Saúde e Educação são os assuntos que mais preocupam os inquiridos, com respectivamente 72% e 48% pelo que os temas da campanha do PCP são certeiros.

    O slogan “Basta de injustiça!” é uma presença comum nesses materiais, reflectindo a tradição do PCP em denunciar problemas e mobilizar a população para construir um país mais justo. No entanto, “Basta de injustiça!” tornou-se um leitmotiv bastante desgastado, amplamente usado não só noutras ocasiões, como também por outros líderes, nomeadamente em 2007 por Jerónimo de Sousa.

    Mupi da CDU na zona do Beato, em Lisboa. Foto: ©Sara Battesti

    Consistente na sua abordagem panfletária, diversifica o chamamento ao protesto bem como convoca a população à construção de um futuro para Portugal com base numa distribuição de riqueza mais justa. O facto de ter sido um dos partidos que apoiou o governo de António Costa por seis anos fez com que se acalmassem os sindicatos com a redução da intensidade da luta.

    Durante a pandemia, o PCP nunca adoptou uma postura de confronto com as medidas restritivas que foram impostas, as quais prejudicaram severamente as classes mais desfavorecidas. Ora, desde os trabalhadores precários até aos operários fabris, as medidas tiveram como consequência o agravamento das disparidades de género e raciais. Se porventura o partido proclama a defesa dos desfavorecidos aos quatro ventos, quando chega a hora de agir, parece recuar, o que levou alguns eleitores a afastarem-se. Porém, ao ser um dos partidos responsáveis pela queda do governo, o PCP voltou a assumir a defesa da classe operária, embora deixando de ser uma proposta revolucionária para se tornar reaccionária. Há muito tempo que deixou de nos oferecer sonhos para apenas constatar doenças. Para muitos, esses seis anos são imperdoáveis e, sem dúvida, deixaram uma marca indelével no PCP.

    Nesta primeira fase de campanha, as cores predominantes são o verde, roxo e azul com a mensagem grafada num lettering geralmente aberto a branco. Se porventura, a composição é reconhecível ao longe, a leitura da mensagem ao ser muito descritiva requer demasiado tempo, o que reduz o impacto desta campanha old fashion. Os motivos integram fotografias de pessoas com um filtro de cor verde, o que resulta bastante mal lembrando vultos extraterrestres. Muito embora a presença humana permita sublinhar a empatia com o povo, resulta num design definitivamente pouco atractivo.

    Cartaz 8×3 da CDU ©DR

    Curiosamente, somente na versão de grande formato 8×3 metros é que está representado o líder, aqui também com um filtro azul que acompanha a cor de fundo como parte da identidade CDU. Uma opção que evidencia distância, com o Raimundo que não olha de frente como sugerem os preceitos do marketing político. O resultado é uma composição antiquada que denuncia um partido envelhecido que opta por modelos que pouco se adequam ao actual panorama social, político, e até mesmo comunicacional.

    Em Fevereiro, surge uma nova fase de campanha que aposta numa composição refrescada com um impactante retrato de Paulo Raimundo em grande destaque. De visual mais contemporâneo, o cartaz dá ênfase a valores de esperança e a confiança, apelando à união do eleitorado. A fotografia foi extremamente bem produzida, tendo como fundo árvores frondosas de cores outonais que sugerem uma quinta ou um jardim. É nesta representação da natureza que reside o apelo emocional, para evocar emoções como esperança e confiança simbolizada à verticalidade das árvores.

    Agora, não se percebe por que o PCP não apostou num secretário-geral com maior projecção pública, que transmita uma imagem de menor ortodoxia, como João Ferreira, e preferiu optar por uma figura sem qualquer reconhecimento público. Neste cartaz, denota-se uma clara intenção de tornar a imagem de Paulo Raimundo mais atractiva. Apresenta-se de forma bem cuidada e olha para a o meio da lente da câmara de modo a nutrir um elo de confiança e intimidade com o eleitorado (real e potencial).

    Nova campanha de Outdoor do PCP © DR

    Dispensa a gravata — outra coisa não seria de esperar—, usando um vestuário informal mas elegante, combinando o castanho de um blusão numa alusão à terra, e o azul eléctrico da camisola de lã que sobressai e atrai o olhar das pessoas. Esta renovação de imagem é crucial para poder gerar um vínculo positivo e formar a opinião do eleitorado. De composição simples, esta é uma fórmula clássica feita a partir de uma única fotografia retratando o líder em plano americano, com a expressão grifada “É hora. Mais força à CDU.” Enquanto apelo directo e claro, é uma mensagem curta e fácil de memorizar a que está subjacente o mote “a união faz a força”. Ao contrário de outros cartazes políticos destas eleições, Raimundo encontra-se no centro do cartaz e não num dos lados, inserindo-se mensagem do lado esquerdo, aliás como no caso do Bloco de Esquerda.

    Aqui, o logótipo PCP-PEV é ajustado para encaixar a cruz do boletim de voto. O headline usa a fonte identitária da Coligação Democrática Unitária, permitindo à sigla do CDU estar somente escrita em prol da simplicidade e clareza. Uma acertada aposta nesta campanha que transmite uma postura de homem de estado, compensando o facto do secretário-geral do PCP ser estreante nos palcos televisivos e estar em franca desvantagem face aos adversários.

    Surpreendente é verificar que nestas eleições legislativas de 2024, a CDU é a terceira força política que mais gasta com uma previsão de investimento de 785 mil euros, o que corresponde a um aumento de mais 90 mil euros comparativamente a 2022. Um dos motivos é ter uma campanha de cartazes com uma distribuição alargada pelo território nacional.

    A força. Ilustração Ruy Otero a partir de fotografia de arquivo

    A fotografia de Raimundo neste ambiente natural permite assim transmitir uma mensagem de proximidade e autenticidade. Contudo, a CDU enfrenta desafios nas últimos sondagens, com apenas 2% de intenções de voto, sendo ultrapassada pelo Livre que alcança 3%. Estas sondagens revelam que o surgimento de novos partidos que diversifica o cenário político nacional, tem também desafiado o protagonismo do PCP.  Muito por culpa própria, ao ter-se afastado da sua raiz poética, dando claros sinais de que a sua noção de funcionamento do mundo ainda é do século XIX. Proletariado e capitalismo…onde é que isso já vai!

    Como observou o político e filósofo polaco Schwartzenberg, a política moderna tende a focar mais em pessoas e personagens do que em ideias. Apesar disso, é essencial uma regeneração na classe política para manter a democracia resiliente. À medida que nos aproximamos da votação de 10 de Março, resta saber como o eleitorado responderá a um partido cuja base de apoio está em declínio. Não obstante a abstenção e o envelhecimento da base de apoio, cabe a nós não sucumbirmos a projectos pouco democráticos (e não estou a falar do Chega), mas que, por estarem tão distantes da essência humana, correm o risco de falhar, como aliás se faz sentir um pouco por todo o mundo ocidental. Como é referido nalguns meandros das redes sociais, o primeiro passo é não nos darmos ao luxo de permitir que pensem por nós.

    Sara Battesti é especialista em Comunicação


    Avaliação do cartaz

    Design: 2/5

    Impacto: 2/5

    Eficácia: 2/5

    Média: 2/5


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • Marquês de Pombal: uma estátua a gozar com a democracia

    Marquês de Pombal: uma estátua a gozar com a democracia


    Há dias, o autor do polémico livro As causas do atraso português, Nuno Palma, que recentemente deu uma entrevista ao PÁGINA UM, afirmava o seguinte acerca do facínora que tem uma estátua na principal avenida do país: “O Marquês de Pombal foi criminoso pelo impacto que as suas acções tiveram para o desenvolvimento do país, com efeitos até aos nossos dias. Ele é o político da História de Portugal que mais responsabilidade tem no actual atraso do país”.

    A colossal estátua é uma homenagem ao crime, ao terror, à tirania, ao analfabetismo, à ignorância, ao retrocesso económico, à subserviência, ao culto do burocrata. Foi provavelmente o governante que mais atrasou Portugal em toda a sua história quase milenar. Ele abriu a porta para o que se seguiu. Alguns personagens da actual “democracia” fá-lo-iam orgulhoso!

    black sedan parked on parking space

    Uma biografia de Pedro Sena-Lino sobre o Marquês de Pombal, publicada em 2020, De quase nada a quase Rei, merecia ser de leitura obrigatória em todas escolas; certamente lograria eliminar a propaganda – manuais de história, programas de televisão, livros – a que todos fomos sujeitos em relação ao personagem mais sombrio da nossa história.

    Neste sentido, através do presente artigo, destaco alguns episódios.

    Curriculum vitae manchado

    D. João V, o pai de D. José I, casou-se com uma austríaca, Maria Ana Josefa de Áustria, pertencente à Casa de Habsburgo. O nosso Marquês de Pombal também se casou com uma austríaca, Eleonora Ernestina von Daun. Conheceu-a quando foi enviado a Viena pela corte de D. João V a intermediar um conflito entre o Sacro Império Romano e o Vaticano.

    Depois do seu casamento com Eleonor, e terminada a sua missão em Viena como mediador, o Marquês de Pombal regressou a Portugal, passando a estar necessitado de emprego. A sua esposa ajudou-o nessa tarefa. Como? Tentou meter uma cunha junto da rainha, no sentido de o nomear ministro – designado então por secretário de estado.

    Quando a cunha chegou a João V, qual era a opinião deste em relação ao ilustre Marquês de Pombal. Este respondeu assim à mulher, quando esta “fortemente instava para que o fizesse secretário de estado”, que o ex-enviado tinha “irremediáveis defeitos”. Mais: porque o Rei sabia-o “dotado de boa capacidade, delicadeza de engenho, e agudeza de juízo, tinha espírito sanguinolento, génio vingativo: era mal afecto à sua religião, desprezador do estado, e jurisdição eclesiástica, e tudo isto eram do seu conceito, circunstâncias muito atendíveis, que o inabilitavam para aquele ministério.”

    O ancião D. João V era um sábio: já pressentia o verdugo em que se tornaria o notável Marquês de Pombal. Depois da morte deste, a ocultação de tal opinião, faz-nos recordar aqueles que são propostos na Europa com resumos biográficos contrafeitos, em que as trapalhadas do passado são dissimuladas e o favor sem pudor é evidente.

    O instigador da Bufaria

    Em 1756, o prócere Marquês de Pombal ainda não era o senhor absoluto do país, mas para lá caminhava; nesse ano, já era membro do governo há cinco anos, desempenhando o cargo de Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros.

    Nas outras duas secretarias, encontravam-se Pedro da Motta, o Secretário de Estado do Reino – o mais importante cargo, equivalente à de um primeiro-ministro na actualidade – , e Diogo de Mendonça Corte-Real, o Secretário de Estado da Marinha e dos Negócios Ultramarinos.

    Este último supervisionava o trabalho do irmão do Marquês de Pombal, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, o então governador do Brasil – o nepotismo dos irmãos Carvalho e Melo parece-nos familiar!

    Ora, no início da 1756, Pedro da Motta faleceu, deixando vago o posto mais importante da nação. De imediato, os opositores do Marquês de Pombal iniciaram uma conspiração contra este, tentando afastá-lo não só do cargo, mas também do governo. Entre os conspiradores encontravam-se o Duque de Aveiro – depois envolvido e executado no processo dos Távoras – e Francisco Teixeira de Mendonça. Este último foi o autor de uma carta anónima escrita a um grande de Espanha.

    Naquele tempo, esta forma de denegrir alguém consistia em escrever uma missiva sem autor, com a aparência de correspondência privada; mas fazendo-a, claro está, chegar à opinião pública: conventos, casas de nobreza, casas do comércio.

    A carta punha a nu os podres do Marquês de Pombal: um alpinista social, que tinha chegado ao poder sem um tostão, carregado de dívidas, e possuidor de um enorme complexo de inferioridade, dado pertencer à baixa nobreza. A carta obviamente chegou ao conhecimento do Rei.

    Em paralelo, os jesuítas realizaram um relatório sobre a administração do irmão do Marquês de Pombal, tal como sobredito, o então governador do Brasil. Claro está, com imensas queixas em relação a este último. Não espanta que depois tivessem sido perseguidos sem quartel, causando um desastre sem paralelo na educação da população portuguesa – um rifenho, que não perdoava.

    Em face destas duas “bombas”, D. José I não actuou de imediato; solicitou uma auditoria do relatório dos inacianos a Lucas de Seabra da Silva, um homem então muito considerado e mestre de leis.

    Os conspiradores acertaram na estratégia, mas cantaram vitória cedo; o sentimento de confiança era tal, que começaram a tratar de assuntos da corte, assumindo postos que ainda não lhes tinham sido confiados, trocando correspondência eles. Estas relações por escrito não escaparam aos inúmeros espiões colocados na administração da corte pelo insigne Marquês de Pombal. Este último mostrou-as a D. José I, tendo este ficado impressionado com a violência dos vitupérios ao seu ilustre ministro. A primeira “bomba” perdia o detonador.

    Em relação à segunda “bomba”, a averiguação de Lucas de Seabra da Silva teve resultados: “a favor dos jesuítas e muito contra o governador”. O Marquês de Pombal, como exímio manipulador, logrou abordar Lucas de Seabra da Silva e solicitar-lhe a leitura do texto; no final, aconteceu o esperado: convenceu-o a modificar a versão, alterando-a a favor do mano e contra os inacianos. Era o mestre da conspiração palaciana.

    Quando Lucas de Seabra da Silva foi chamado por D. José I para entregar as suas indagações, teve que apresentar uma desculpa, dizendo que teria de recolher esses documentos a sua casa. No regresso a esta, faleceu, tal o remorso que sentiu, dada a sua fraqueza em face da loquacidade sedutora do Marquês de Pombal.

    Como terminou tudo isto? O ilustre marquês terminou nomeado para o almejado posto: Secretário de Estado do Reino.

    Seguidamente, obteve a prisão de todos os conspiradores, através de legislação decretada no início do reinado de D. José I – sempre se encontra algo na legislação para destruir quem se opõe ao poder -, que assim rezava: “o prestígio dos representantes do poder majestático e a interditar de uma vez costumes antigos… como a factura e a distribuição de textos satíricos e libelos famosos.” A liberdade de expressão já era muito ampla naqueles tempos, tudo servia para calar as vozes incómodas!

    Em paralelo, eliminou o seu principal adversário político: Diogo de Mendonça Corte-Real, o Secretário de Estado da Marinha e dos Negócios Ultramarinos. Este último, apesar de não ter participado na conjura, teve a ousadia de criticar publicamente o Rei: este era o culpado pelos constantes benefícios a favor do Marquês de Pombal. Qual o seu fim? Foi preso e deportado para Mazagão (antiga possessão ultramarina portuguesa no actual Marrocos).

    aerial view of city buildings during daytime

    Para terminar de forma espectacular, nomeou o seu irmão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Secretário de Estado da Marinha e dos Negócios Ultramarinos! Este passou a ocupar o posto do pobre Diogo de Mendonça! O poder absoluto terminou entre os manos, pois o seu outro irmão, Paulo António de Carvalho e Mendonça, terminou como Presidente do Conselho do tribunal do Santo Ofício – o nepotismo não tinha limites! Isto faz-nos recordar algo, não?

    O leitor pergunta, e então o instigador da bufaria? Ora, no final de tudo isto, para que nunca mais fosse possível outra conjura contra o sagrado Marquês de Pombal, decidiu emitir um “decreto específico que alargava os incitadores de ofensas contra ministros que despachassem com o monarca… e abrir e conservar uma devassa em segredo, e sem determinado número de testemunhas, onde pudesse qualquer pessoa ir delatar, sem receio de algum tempo, se poder revelar o segredo, toda a conspiração contra a vida dos ministros de Estado, nomeando para juiz dela um desembargador da sua confidência, e prometendo grandes prémios e perdão de culpas”.

    Para os bufos, tudo! Parece que nada mudou desde então!

    O enriquecimento pessoal por decreto

    A Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro foi fundada por um alvará de 10 de Setembro de 1756. A razão da sua fundação? Existia, segundo os seus promotores, “uma anomalia de mercado” que urgia corrigir: o planeador central sempre aparece, que nunca investiu um cêntimo do seu bolso, a opinar e a impor a sua vontade sobre o malvado mercado.

    Qual era essa anomalia de mercado? Dizia-se que tinha “crescido o número dos taverneiros da cidade do Porto a um excesso extraordinário”, acusados de “adulterar” e “arruinar” o vinho. Faz sempre enorme confusão que alguém esteja interessado em enganar perpetuamente os seus clientes, como se estes fossem absolutos ineptos para aquilatar a qualidade do que compram.

    a bunch of grapes that are growing on a vine

    A companhia era um monopólio; previa preços fixos de compra aos produtores – isto de concorrência é sempre desagradável, nada como preços fixados administrativamente –; e detinha o monopólio da exportação.

    Os artigos da Companhia fixavam um território para a produção dos vinhos do Porto; mas eis que surge um aspecto curioso. O único território fora desta área delimitada coincidia – surpresa! – com a do “principal fornecedor individual”: as vinhas que pertenciam ao conspícuo Marquês de Pombal; segundo as suas palavras, os seus vinhos, produzidos em Oeiras, melhoravam o corpo e o paladar dos vinhos do Douro e davam-lhes uma cor mais forte. O topete do nosso Marquês não tinha limites!

    O homem não tinha qualquer rebuço para se enriquecer a si e aos seus acólitos. O seu amigo, o dominicano frei João de Mansilha, descendente de uma família de vinhateiros e que participou na elaboração dos artigos da Companhia, também tinha incluído na região demarcada quintas de parentes seus!

    Em 1773, atravessando problemas de liquidez, o nosso amado Marquês de Pombal propôs a Francisco Mendanha a venda da sua Quinta do Porto de Vila Velha de Ródão, pois fazia todo o sentido: a propriedade era contígua à propriedade de Francisco Mendanha, tinha enorme rendimento, dado que se beneficiava do comércio portuário. Perante tal magnífico negócio, Francisco replicou que o preço pedido pelo Marquês de Pombal não fazia qualquer sentido, dado que a quinta não era mais que “umas casas de pedra, e barro…”. Mas eis que surge a nossa ilustre figura histórica: prometeu-lhe que a expensas do Governo, far-se-iam enormes melhorias na propriedade, permitindo que esta se beneficiasse ainda mais do comércio portuário.

    O dinheiro público a olear um negócio privado, nada que pareça invulgar nos nossos dias! O homem acabou convencido; no entanto, mais tarde, solicitou a anulação do negócio. O que lhe aconteceu, em consequência de tal desfaçatez? Foi parar à cadeia, e teve sorte em não ter perdido a vida. O tratamento era sempre o mesmo para adversários e revoltosos – ninguém brincava com o todo-poderoso Marquês de Pombal.

    No final da vida, o Marquês de Pombal era proprietário de um enorme império imobiliário. Segundo a sua versão, tal façanha apenas provinha dos seus salários de funcionário e heranças – na verdade, uma montanha de dívidas – que tinha recebido. Onde é que já vimos uma história igual?

    Para construir e valorizar tal império imobiliário, muitas dúvidas surgiram sobre a sua origem e métodos. Desde obras no porto de Paço d’Arcos, por forma a facilitar o escoamento dos seus vinhos da sua propriedade em Oeiras, realizadas à custa do erário público; à estrada entre Lisboa e Oeiras, por ele mandada construir, obviamente paga com recursos públicos, que obrigou a trabalhos complicados no Alto da Boa Viagem, para facilitar as suas viagens entre Lisboa e Oeiras ao fim-de-semana; ao palacete nas Janelas Verdes, herdada do seu irmão Paulo e que tinha pertencido à família dos Távoras – aquela que foi acusada e executada sem provas pela tentativa de regicídio; às casas arrendadas a um preço elevadíssimo a estrangeiros que vinham a Portugal fazer negócios com investimento público, como foi o caso do seu amigo Ratton, que geriu a fábrica de chapéus na Rua Formosa, tornando-a depois sua casa particular – actual sede do Tribunal Constitucional.

    Mas a cereja no topo do bolo do seu império imobiliário foi o chafariz da Rua Formosa, onde o Marquês possuía vários imóveis, muitos por si “adquiridos” – muitas dúvidas existem na utilização do erário público para tais aquisições – durante a reconstrução da cidade após o terramoto. Foi-lhe autorizado pelo Rei a sua utilização apenas para “sobras”, com o propósito de levar água canalizada ao seu palácio e a outras suas propriedades. Muitos dos beneficiamentos do dito palácio, como a entrada, foram realizados à custa do erário público. Apenas em 2008, vejam só, confirmou-se, depois da investigação subterrânea de Fernando Teigão e Pedro Costa, que afinal não tinham sido só as sobras, mas tinha ocorrido o efectivo desvio de águas públicas para as propriedades do nosso estimado marquês!

    Após a morte do Marquês de Pombal, William Beckford, um aristocrata inglês, escritor de viagens e político inglês, contava a respeito do seu filho, Henrique José de Carvalho e Melo, o seguinte: “Embora ele – o filho de Pombal – seja uma das maiores fortunas portuguesas, cerca de cento e dez mil coroas de rendimento anual, quis-me fazer acreditar que o pai tinha morrido em péssimas circunstâncias, sobrecarregado de dívidas contraídas para manter a dignidade da sua posição e a honra do país”.

    Há tempos atrás, um insigne ex-membro da oligarquia do nosso regime, explicava-nos a origem da sua fortuna: resultava de uma herança de um milhão de contos da sua mãe e que se encontrava num cofre. Ainda hoje, desconhecemos a forma como tal pecúlio foi transformado em Euros. Isto afinal não mudou muito desde então!

    O mestre da propaganda

    Já em Pombal, depois do seu reinado de terror durante quase 30 anos, e afastado de Lisboa e da Corte, D. Maria I ordenou uma investigação aos “negócios” do Marquês de Pombal, por essa razão, esse período denominou-se de “Viradeira”.

    Para se defender, em 1777, publica umas cartas em inglês, denominadas Letters from Portugal. Estas cartas tornam-se conhecidas da opinião pública portuguesa apenas no ano seguinte. O ilustre Marquês de Pombal, o autor, afirmou que apenas teve conhecimento das mesmas em 1780. Além disso, teve de as mandar traduzir, pois não sabia inglês – um homem que esteve anos como embaixador de Portugal em Londres e que tinha de ler todos os dias a imprensa! As cartas, claro está, constituem um encómio à sua governação – pura propaganda.

    E como sabemos que ele foi o autor desta propaganda? Na colecção Pombalina da Biblioteca Nacional de Portugal de Portugal, a mesma versão da carta, em português, foi encontrada, com anotações, correcções e cortes da pena do nosso louvável Marquês de Pombal.

    Durante toda a sua vida usou da propaganda e de falsas acusações para atingir os seus propósitos – para eliminar, vingar, calar, intimidar – , como foi o caso da expulsão dos jesuítas e do processo dos Távoras.

    Conclusão

    Não espanta que aceitemos um regime que nos retira todas as liberdades individuais, sem qualquer assuada da nossa parte, em nome de medidas com resultados nulos.

    Não espanta que não nos indignemos com o nepotismo dos nossos governantes. Não espanta que não nos suscite qualquer curiosidade a forma como alguns governantes apareçam com enormes fortunas, depois de terem estado no poder vários anos, sem qualquer explicação sobre a sua origem.

    Não espanta que o país não se indigne que as crianças, em particular as mais pobres e desfavorecidas, sejam votadas ao analfabetismo e ao sedentarismo. Não espanta que surjam de todos os quadrantes apelos ao respeitinho pelo poder, que deverá ser sempre sagrado e intocável, em particular pelos jornalistas dos órgãos de propaganda.

    Não espanta que os negócios entre amigos e correligionários nunca sejam objecto de investigação. Não espanta que tenhamos um enorme apreço por quem nos trata com o azorrague a toda a hora.

    Não espanta que sejamos a todo o momento ludibriados pela propaganda em uníssono de toda a imprensa, paga pelo nosso dinheiro, em lugar de leitores e audiências.

    No fundo, o maior facínora da história de Portugal é um símbolo perfeito da actual democracia. A colossal estátua é intocável para o actual regime!

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • Negrita: take 2

    Negrita: take 2

    De vez em quando vou a Lisboa. Tenho o privilégio de não ter hora marcada para chegar, o que me faz desfrutar do percurso de 35 quilómetros que faço na minha Honda NC750 azul pérola. Entre a minha aldeia e a entrada da auto-estrada na Malveira, o caminho é sinuoso, com curvas e contracurvas junto à Tapada de Mafra. A neblina matinal impregna o ar com uma frescura revigorante, especialmente para quem não está habituado a acordar antes das 10 da manhã.

    Como vou juntamente com a Sara, que para quem não sabe, é a Sara, conectamos nossos intercomunicadores de capacete, que, na minha opinião, são o melhor sistema de comunicação Bluetooth do mundo. Com conexão dupla via Freecom, esses intercomunicadores proporcionam uma comunicação em tempo real equipada com som da JBL e a mais recente tecnologia para re-conexão automática, garantindo, sobretudo, uma qualidade sonora primorosa. Com uma capacidade ultra de emissão/recepção, por vezes, no meio das nossas conversas sobre fertilizantes orgânicos ou activos tóxicos, surgem-nos sons codificados e complexos que, sem dúvida, são de origem extraterrestre ou então dos camionistas da A8.

    Ilustração de Ruy Otero

    Como houve um acidente em Frielas, reduzi a velocidade e fui passando no meio dos carros parados, enquanto comentávamos a postura de quem desesperava de tanto esperar. Senti-me superior a essas pessoas que coçavam o nariz ou iam vendo numa qualquer rede anti-social as notícias do dia.
    Um casal assistia atentamente a um vídeo do conhecido seguidor de Julian Assange, o youtuber Nicolás Moras, que discutia as redes obscuras do Papa Francisco na Argentina. Enquanto isso, uma rapariga, pintando os lábios ao espelho, ouvia o podcast de Joe Rogan sobre o Big Foot. Sem querer parecer conspiracionista chalupa, juro-vos que já o vi no Estádio do Dragão com megafone em punho!

     Facilmente desembaracei-me do trânsito e cheguei a Sacavém, que é premiada com uma vista deslumbrante sobre o rio que confunde muitos turistas, pensando que é mar tal é a sua extensão. Até aqueles blocos uniformes dos prédios da Portela exercem em mim um encanto semelhante ao Tetris numa Arcade do salão de jogos Monumental da Avenida Álvares Cabral.

    Como a Sara trabalha na zona de Santa Apolónia, passámos junto aos quarteirões flutuantes que por lá proliferam. Apesar da estação fluvial ser novinha em folha, os seus motores têm de ficar ligados para poderem ter a energia eléctrica necessária para os ares condicionados e frigoríficos. Pelo facto de usarem um combustível barato chamado Bunker Oil, os gases emitidos parecem equivaler a um milhão de carros, embora a precisão dessa estimativa permaneça incerta para mim. Mas é pouco sustentável, disso não tenho dúvidas. Ao passar de moto, acabo por rir daqueles/as/x/@/#/& atletas amadores/as/x/@/#/& que se pavoneiam como se estivessem na Promenade des Anglais na Côte d’Azur. Com a poluição produzida pelos cruzeiros com bandeira de Malta ou do Panamá, os seus pulmões devem estar mais negros que os meus com trinta anos de Davidoff Classic no bucho!

    Ilustração de Ruy Otero e Nuno Bettencourt

    Ao chegar ao Campo de Santa Clara, um vislumbre de Sérgio Godinho. É terça-feira e a feira da ladra quase transborda de abarrotada. Lá arranjei um cantinho ilegal para estacionar com a complacência do Polícia Municipal, que assobiou para o lado, tal como o Luís Godinho fingiu que não viu aquele penálti descarado a favor do Sporting. Senti-me o Bernard Tapie do Codeçal.

    Desmontámos entre bonecas decapitadas e plumas roxas a cheirar a naftalina, e sou logo abordado por um mitra a cravar-me um cigarro. Com uma altivez meio ressabiada, digo: “Desculpa, mas não fumo.” A inveja que senti daquele mano. Agora, dou por mim a parar em frente aos restaurantes para levar com umas valentes baforadas de nicotina dos cigarros dos outros. Cada vez se torna mais difícil fumar desta forma, de graça e sem culpa. As geringonças electrónicas estão a substituir a fabulosa combustão de alcatrão. A dependência agora não é apenas da nicotina, mas também das pilhas MPV 18650 20A 3500mAh Master Pro Vape.

    Apetecia-me um café. A escolha entre o lote de feijão queimado Delta do Panteão e o lote Marfim Negrita da Focaccia in Giro parecia-me óbvia. Apesar de agora me sentir um pouco saloio e turista na minha própria cidade, não vou pagar 1€ por cada café. Siga para o que tem o Correio da Manhã para eu ter mais pormenores do Macaco das Antas. A Sara recordou-me que devia aproveitar para escrever outro artigo sobre os cafés Negrita e lá me convenceu a ir àquele sítio moderninho com um simples “deixa estar, eu pago!” Meti as minhas garras de fora e preparei-me para destilar ódio.

    Ilustração de Ruy Otero

    Entro na esplanada com cadeiras de tecido vermelhas patrocinadas pela cerveja Estrella Damm e vejo-me cercado de clientes que se chamam Björn, Astrid ou Henrik. Pareceu-me evidente que aquele estabelecimento foi concebido para atrair turistas, não para satisfazer as necessidades de residentes locais. Quem sou eu para dar conselhos, mas é sempre perigoso tornar-se dependente de um tipo de clientes. Basta um abanão no turismo lisboeta e muitas canoas vão ao fundo.

    Bem sei que é tentador ter o mobiliário dado gratuitamente por alguma marca, porém a estética da cidade fica fortemente comprometida com esta opção, e já agora a do próprio estabelecimento. Espreito para o interior e vejo o mobiliário reciclado e candeeiros vintage. Uma proposta estética meio nórdica, meio marroquina. Se o exterior é oportunisticamente “brandizado” sem qualquer sofisticação, apesar de ser uma esplanada generosa que beneficia do arvoredo do Jardim Botto Machado, o interior deste café-restaurante é singular, cuidadosamente decorado com serigrafias e cartazes de cinema, onde se destaca o “Vertigo” de Alfred Hitchcock dos anos 50, espelhos ovais que reflectem a luz. No aparador, vemos uma colecção de objectos diversos que vão desde uma ventoinha, candeeiros de bolbos coloridos, vasos em cerâmica com figuras humanas, criando um ambiente doméstico bem confortável, onde até encontramos uma foto de família com a avó do proprietário, cujo talento na cozinha é a inspiração das famosas focaccias.

    O destaque é dado pela Piaggio laranja que deu origem ao projecto inicialmente móvel, rodeada de mesas de vários tamanhos, algumas feitas com portas de prédios centenários recicladas em tampos, cadeiras de todos os feitios.

    Vou ficar uma hora a resmungar e a afirmar convictamente que tinha razão nos meus preconceitos. Poderia fazê-lo à vontade que ninguém me entenderia.

    Esplanada Foccacia in Giro, Campo Santa Clara, Lisboa. Foto: ©Bruno Cecílio

    Sentámo-nos na esplanada mesmo junto à entrada do restaurante, enquanto os restantes clientes iam brunchando, nós apenas queríamos dois cafés em meia chávena. Tudo o que era servido tinha óptimo aspecto, todavia eu não queria vender um rim para o poder pagar. Ainda pedi o menu para saber o que propunham, mas não havia em papel. Durante doze minutos tentei visualizá-lo em vão através do QR code no meu Nokia 3310. Ainda estão nessa fase de propostas assépticas e desmaterializadas. Bom, pelo menos agora já me é permitido o consumo sem apresentar qualquer tipo de certificado digital.

    Primeiro café: RAL 8014

    Segundo café: RAL 8011

    A Sara chamou o seu conhecido Enrico, co-proprietário para solicitar que fosse ver o que se passava, já que os cafés não estavam a sair bem. Felizmente, como não tínhamos pressa, fomos desfrutando de um lindo sol de Fevereiro e demos graças a Deus pelo aquecimento global. Se fosse eu a mandar, cristalizava a temperatura de Lisboa nos 21 graus. Por entre a algazarra da feira e o magnífico “Dirty Boots” dos Sonic Youth que entretanto um feirante tinha posto a tocar, o Enrico lá apareceu com um café na mão. Olhei para aquela espuma de quatro milímetros, cor avelã, fruto desta perfeita alquimia entre água, temperatura, pressão e café. Não há outra bebida no mundo que seja capaz de me proporcionar as mesmas sensações gustativas e olfactivas. Este sim é a Uma Thurman, que agarra em mim, atira-me para o chão, vaza-me um olho e no fim, beija-me a boca com um aroma intenso, poderoso, elegante, nobre e sensual. Grazie Enrico pela tua sabedoria em reconhecer e resolver um claro problema que estava a acontecer. Como o fizeste, nem me interessa. Esse não é o meu papel. Quero tão somente os sabores bem misturados, a sensação amarga, clara e as suas notas de chocolate, flores e frutas.

    Ilustração de Ruy Otero a partir do cartaz do filme Vertigo de Alfred Hitchcock

    Um apontamento importante: sentir algumas borras na boca foi desagradável.

    Dei por mim com um pequeno poder que me incomodou sobremaneira. Entrei naquele restaurante preparado para arranhar qual gato aquele negócio familiar e saí, agradecendo a sua existência. Sim, sou humano e tenho preconceitos, e você? Tendo sido amplamente citada a frase de Lili Caneças: “Estar vivo é o contrário de estar morto”, é porque de facto ela caracteriza na perfeição o aroma necessário ao perfume da vida.

    Bruno Cecílio é artista


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.