Em tempos escrevi que não acreditava que Luís Montenegro alguma vez chegasse a primeiro-ministro. Disse-o pelas mesmas razões que ainda hoje acredito, ao fim de dois anos de pré-campanha por todos os concelhos do país – como ele gosta de repetir em cada oportunidade. Vejo, ainda, um homem com o carisma de uma alface, sem outra ideia para o país que não seja a de desviar dinheiro dos impostos para o sector privado. Disfarça ligeiramente melhor do que Rui Rocha, da Iniciativa Liberal (IL) mas, no essencial, o programa é o mesmo. Daí que nem seja estranho a aliança assumida com a IL e as 10 medidas que terão que acatar para conseguir uma maioria de direita sem o Chega.
As minhas dúvidas sobre Montenegro desapareceram com o frete que escolheu fazer à Vinci, na escolha do novo aeroporto de Lisboa. Depois de ter acordado uma última investigação com António Costa que daria uma decisão final, voltou a recuar na palavra, criando nova comissão para estudar a decisão da comissão independente (cujo resultado não agradou os patrocinadores do PSD). Luís Montenegro, para beneficiar alguns privados, resolveu adicionar mais um capítulo à eterna novela do aeroporto de Lisboa. A palavra do líder político ficou aqui apresentada.
Ainda assim, reconheço, a campanha não lhe estava a correr mal para os objectivos da Aliança Democrática (AD). Partindo de uma base fraquíssima e sem chama, a começar pela risível tentativa de recuperar uma AD com Nuno Melo e Gonçalo da Câmara Pereira, Montenegro sobreviveu aos debates, apesar de um amasso aqui e outro ali. Foi mais ou menos perceptível que as ideias estavam alinhadas e o discurso ensaiado para captar um eleitorado de centro moderado e alguns descontentes. Por esta altura, estabeleceu a ‘cerca sanitária’ ao Chega – bem, na minha opinião –, e ficou preso ao seu próprio compromisso. Lançou alguma confusão na própria direita, que, ao contrário da esquerda, não se conseguiu organizar.
A saída de cena de António Costa beneficiou a AD, e Montenegro em particular, porque deixou Pedro Nuno Santos a ter de criar, rapidamente, uma personagem ao mesmo tempo que defendia oito anos de governação.
É incrível, na minha opinião, ver a sucessão de erros de Montenegro no debate contra Pedro Nuno Santos, e perceber como é que um homem, que anda há dois longos anos a preparar-se para isto, não consegue arrasar um antigo ministro de um Governo que passou por uma pandemia, uma guerra, inflação, aumentos de impostos, degradação da escola pública, do Serviço Nacional de Saúde e perda do poder de compra dos portugueses. Pedro Nuno Santos, em cima do joelho e em poucos meses, soube (sem encantar) criar uma defesa que praticamente anula a oposição do PSD. Por aqui também se vê a capacidade do líder da AD.
Pedro Nuno Santos não consegue, comprovadamente, encher os sapatos de António Costa, mas nem isso parece ajudar a AD. Aliás, nota-se alguma queda em ambos (AD e PS), com subidas dos partidos mais pequenos à esquerda e à direita. O que também me parece positivo, para ser sincero.
Mas foi na estrada que verdadeiramente se percebeu como a AD tinha este discurso colado com cuspo e as convicções mais escondidas. Miguel Relvas, outro artista dos bastidores, dizia esta semana na CNN, a propósito do disparate de Paulo Núncio, que em campanha deve-se seguir disciplina militar: saber-se exactamente o que se pode dizer e o que não se pode dizer. Ou seja, mentir, em português mais corrente.
Recorde-se que Paulo Núncio, vice-presidente do CDS-PP e candidato pela AD, apareceu a representar a coligação num encontro que deveria ter sido discreto, e onde se discutiu a revogação do direito ao aborto (lembram-se do referendo que nos tirou do tempo das cavernas?).
Paulo Núncio, nesse encontro, ainda disse com orgulho que o governo PSD/CDS tinha sido dos primeiros do Mundo a dificultar o acesso ao aborto. Corre agora um vídeo de arquivo da RTP onde, em 2004, Núncio defende o direito das crianças a terem uma “família normal”, com casais formados por homens e mulheres.
Montenegro veio a correr distanciar-se desta posição, tal como já tinha feito com Gonçalo da Câmara Pereira a propósito da violência contra mulheres.
Se, do lado do CDS e do PPM, ninguém espera grandes disfarces, já no caso do Dom Sebastião – Passos Coelho, para os amigos – a ideia era outra. A entrada do antigo líder na campanha, com aquele infeliz discurso sobre “sensações de segurança”, a propósito dos imigrantes, foi uma tentativa deslavada de apanhar eleitores do Chega e mais uma punhalada em Montenegro. Por um lado, voltou-se a abrir a discussão, que estava fechada, da ‘cerca sanitária’ ao Chega. Por outro lado, todos vimos Passos Coelho, o criador de Ventura, a tentar normalizar ideias mais radicais dos extremistas.
Aquilo que ficou claro ao fim desta primeira semana de arruadas e comícios é que, apesar de todo o esforço de Montenegro nos debates para fazer as pazes com os pensionistas, não restam mais dúvidas de que este PSD, presente a estas eleições, é, de facto, o de Passos Coelho. Não é o de Rui Rio. Não é de nenhum moderado. É a mesma coligação que juntou Passos, Relvas, Portas e outras figuras menores que cortaram o que lhes foi exigido e o que ninguém lhes pediu. Já agora, a mesma coligação que tinha Luís Montenegro como líder parlamentar, e que, por exemplo, em temas como o aborto, assinou processos disciplinares a quem, na bancada do PSD, votou contra o retrocesso civilizacional.
Ainda assim, mesmo para mim que aprendi nas ultimas eleições a não ligar muito a empates técnicos nas sondagens, acho que esta AD, colada com cuspo e tentando disfarçar as suas reais convicções, pode vencer as eleições. Por duas razões essenciais. Primeiro, porque o PS não está a ser competente e a esquerda, do Bloco de Esquerda à CDU, insistem em alguns erros de palmatória (fica para outro texto). Depois, porque, parece-me, a ‘cerca sanitária’ ao Chega desapareceu e julgo que Montenegro se entenderá com Ventura se assim tiver de ser.
Seguem-se cenas dos próximo capítulos e cada um votará em quem quiser. É essa a beleza da democracia e o alimento do debate. Mas, para a tomada de decisão consciente, é importante percebermos aquilo que cada partido traz para a mesa. No caso da AD, parece-me, depois desta semana, que ficou clarinho como água o século para onde nos querem enviar.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
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O que acontece quando um médico-empresário que factura milhares de euros anualmente com serviços prestados a farmacêuticas – nomeadamente através da sua empresa Terra & Froes -, se une a um regulador dos media, cuja liderança é de nomeação política?
O resultado só pode ser a censura e a tentativa de intimidar e desacreditar jornalistas de investigação que escrevem notícias com base em dados e fontes oficiais e artigos científicos de qualidade, as quais não são ‘aprovadas’ pelos ‘patrões’ nem pelos ‘clientes’ de lobbies poderosos.
O Editorial de Pedro Almeida Vieira, jornalista e do director do PÁGINA UM, dá os detalhes e anuncia o inevitável. “A contínua perseguição infame da ERC contra as investigações do PÁGINA UM não continuará: uma queixa judicial por injúrias e difamação seguirá em breve contra os cinco membros do seu Conselho Regulador da ERC. E, claro, contra o Doutor Filipe Froes.”
Esta não é a primeira vez que a ERC adopta deliberações ou promove iniciativas lesivas para o bom nome do PÁGINA UM, numa lógica de dois pesos e duas medidas, sendo algo que começa a ser recorrente.
Perante estes casos em concreto, enquanto a Justiça apoia a transparência e o Jornalismo e as boas práticas, a ERC faz exactamente o oposto: dá guarida e apoia a opacidade, o secretismo, as más práticas e a censura de jornalistas.
Percebe-se porque, hoje, em Portugal, tantos jornalistas praticam a autocensura, sobretudo no que toca a temas ‘tabu’ para grandes indústrias e partidos no poder. Pode ser em torno das vacinas contra a covid-19 ou outro tema que mexa com temas considerados ‘intocáveis’.
No Jornalismo, quando há temas intocáveis, é porque: ou não se vive em democracia; ou não existe liberdade de imprensa; existe censura; existe autoritarismo.
Não é novidade o poder político e económico pressionar e intimidar a imprensa. É uma táctica já ‘velha’. Uma denúncia surge aqui, alguém adopta uma deliberação ali, um outro faz um comunicado acolá. Os media e jornalistas promíscuos, comprometidos ou vendidos, fazem o resto: espalham a campanha para desacreditar. Com as redes sociais, fica ainda mais fácil condicionar quem faz jornalismo sério, de investigação. E há sempre aquele recurso de se difamar o jornalista, espalhando desinformação sobre ele.
O que é estranho, é ainda haver quem pense que se pode passar incólume com este tipo de más práticas.
Ir fiscalizar os directores de órgãos de comunicação social, em Portugal, que executam publicamente contratos comerciais, é algo que a Entidade Reguladora para a Comunicação Social não faz.
Acabar com as notícias e entrevistas pagas nos media ou com a cascata de podcasts patrocinados, feitos por jornalistas, que nascem que nem cogumelos nos media em Portugal, é algo que a ERC também não quer fazer.
Em alguns casos, a ERC só actuou na sequência de investigações do PÁGINA UM a más práticas, a práticas ilegais, na imprensa.
Já censurar jornalismo de investigação, que se baseia em fontes oficiais, credíveis, fidedignas, isso a ERC já está disposta a fazer.
Não é a primeira vez que o Conselho Regulador da ERC adopta deliberações que são autênticos avisos a todos os jornalistas que queiram prosseguir com investigação, sobretudo em torno de determinadas indústrias e temas.
Infelizmente, enquanto a liderança da ERC for nomeada por partidos – os maiores partidos, que vão rodando entre si o poder – duvido que alguma coisa vá mudar nesse tipo de censura.
Atenção: a ERC tem bons (mas poucos) técnicos ao seu serviço. O regulador faz, em determinados casos, uma fiscalização eficaz. Demora muito tempo? Demora.
Ainda estamos à espera, por exemplo, que a ERC se pronuncie sobre as queixas que chegaram ao regulador em meados de 2023 devido a uma escandalosa reportagem feita pela TVI, passada em horário nobre, em que foi promovido um negócio obscuro e uma entidade não autorizada a prestar serviços de investimento ou intermediação financeira em Portugal. O caso foi grave, ao ponto do Banco de Portugal ter feito um alerta sobre a entidade mencionada na reportagem.
Mas, quando o assunto é jornalismo de investigação, bem fundamentado, sobre temas ‘tabu’ ou assuntos que sejam vistos como uma ameaça a poderosos, o caso muda de figura. Pelo menos, é isso que temos observado em deliberações que envolvem o PÁGINA UM.
Não será por acaso. O PÁGINA UM, em particular o jornalista e director do jornal, Pedro Almeida Vieira, tem investigado interesses mais do que instalados no país e que envolvem fortes lobbies. E os lobbies não perdoam e pagam – e persuadem – para que as pedras no seu sapato sejam descartadas.
Também foi o PÁGINA UM que criou um Boletim diário de escrutínio às compras públicas, destacando os negócios obscuros ou opacos que são feitos com o dinheiro dos contribuintes.
E tem sido o PÁGINA UM a trazer alguma moralização à imprensa, sector onde se normalizou o sentar à mesa com o poder político e económico. Ao ponto de haver jornalistas que pensam que investigar temas importantes mas incómodos – como o dos efeitos adversos das vacinas contra a covid-19 – é uma heresia, um pecado capital.
O PÁGINA UM faz Jornalismo. Não há espaço para temas tabu no Jornalismo. Por isso, há muito que é visto por alguns lobbies – e por jornalistas que sentam à mesa com o poder – como um ‘alvo a desacreditar’, ou seja, um ‘alvo a abater’. Que a ERC se preste a ser usada para essa tentativa de desacreditar é lamentável.
Para os ´’Froes’, a ERC e todos os que têm sido alvo de investigações do PÁGINA UM, esta deliberação do regulador dos media é motivo de celebração. Para os jornalistas, para o Jornalismo, para a liberdade de imprensa, para a transparência e para a democracia, esta deliberação da ERC é um capítulo negro.
Há quem esteja a enfiar a cabeça na areia e a preferir não ver a ‘Idade das Trevas’ em que a liberdade de imprensa e a investigação jornalística estão a mergulhar em Portugal, mas também em outros países do mundo ocidental, com a crescente pressão persecutória dos profissionais que são independentes do grande poder económico e político.
Mas há quem esteja a ver. Claramente. E o público, os leitores, também.
Elisabete Tavares é jornalista
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Viajar a alta velocidade na vida deve deixar para trás a carne dos ossos, porquanto, de novo, aqui se apresentar este menino franzino, com as rugas da camisa a caírem nas esquinas dos cotovelos de forma leve – como se, em verdade, nem estivesse vestido, já assim andasse, nu, braços e pernas a soltarem-se no caminho.
Os cabelos firmes e grisalhos agarram-se com força, a ele. A sua barba rala e rija é que denuncia os hábitos matinais segurando-lhes os despertares da insónia, mas os círculos em volta dos olhos atestam a geometria que lhe navega as noites por galáxias distantes e nebulosas roxas, entidades de outras dimensões e sussurros a baralharem-se nos gritos internos do seu desespero.
Estacou frente a mim na paragem de autocarro do Bolhão, eram três da manhã. Mediu-me com atenção para decidir se depositaria em mim o que recolheu na última viagem, até se convencer a sentar-se ao meu lado para conversar sobre o estado, de então, do Conde de Ferreira – entenda-se, o hospital, não o sangue azul escorraçado pela populaça ao fim de umas noites de prevaricação de regras sagradas no burgo.
O mundo que ele me mostra é dos jogos dos impossíveis. Nada há de mais agonizante do que forçar alguém a ver o Preço Certo na televisão com companheiros que babam, alienados – e ele, ali, com tanta fúria que saiu para ir comprar uma televisão só para ele, porque quer ver muito os documentários. Aqueles, sabes, de Física, do Universo, da matéria negra, mares nunca dantes navegados que, esses sim, esses sim, ah! Se pudéssemos erguer caravela de chapas rebitadas a caminho de Saturno, só para ver aqueles anéis a girar de perto.
Mas sabes, comprei a televisão, que era boa, e a doutora que lá anda pegou e afiambrou-se a ela. Já viste isto? Quer-se dizer, fui falar com a auxiliar, queixei-me, e ela vira-se para mim a dizer que eu podia ficar com a pequena, a grande, fica para a doutora…
Ora já viste? Não é de os carbonizar? É ou não é? Diz-me. Que farias tu? Que eu vejo que tu sabes ouvir e que sabes do que falo. Que farias tu? Olha que eu vou carbonizá-los!
Porque, sabes, a maçã podre, não apodrece a boa, mas também não a torna melhor! É, ou não é? Ora ouve bem: a maçã boa, não apodrece a boa… Mas também não a torna mellhor! É que é mesmo assim, sabes?
Não sei. Nem sei. Já viste o estado de coisas? E depois… é sempre os mesmos.
Mariana Santos Martins é arquitecta
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Seja qual for o resultado das eleições legislativas de 10 de Março, o fim deste período pré-eleitoral só poderá fazer-nos respirar de alívio. Depois do sufrágio, dificilmente poderemos cair num cenário mais deprimente do que aquele que temos vivido por estes dias.
Tem sido penoso ver como a desonestidade assaltou o ‘combate’ político e tomou a democracia como refém, sem pejo nem vergonha. Este jogo do “vale tudo” em que a política portuguesa se tornou só nos pode entristecer e fazer questionar sobre como chegámos a este ponto. Não há margem para dúvidas: batemos mesmo no fundo.
Desde logo, assistimos a um desfile de “debates” – já bastante criticados – entre os partidos com assento parlamentar, que de pouco servem, para além de ocas acusações mútuas e ‘soundbites’ com fartura. Depois, vimos, nos principais órgãos de comunicação, jornalistas e comentadores cativos a avaliar a ‘performance’ dos candidatos, dizendo de sua justiça sobre quem ganhou ou quem perdeu. Quem ganhou, será sempre discutível, mas quem perdeu, é claro: todos nós, eleitores.
Há quem argumente que mais vale ter debates de 25 minutos do que não ter qualquer debate, e mostram-se optimistas com o elevado número de espectadores, referindo que poderá indiciar um maior interesse e envolvimento dos cidadãos com a política. Discordo. Já nas últimas legislativas tivemos este modelo de “debates”, bastante bem-sucedido a nível de audiências, mas que nem por isso se reflectiu numa redução significativa da abstenção.
Muitos assistem a estes ‘duelos’ como se fosse uma espécie de concurso ou reality show. Tornou-se um espéctaculo e mero entretenimento, parecendo apenas interessar ver quem “arrasa” o adversário – e não necessariamente quem apresenta melhores argumentos ou ou mostra maior credibilidade nas propostas.
Para nós, espectadores, e não eleitores, só faltavam entregarem-nos pipocas para o deleite ser completo; não interessa já a política na sua essência pura e dura, mas sim a dopamina gerada por ver quem atiça mais o oponente, atira as maiores ‘larachas’ ou levanta mais a voz ou interrompe com mais frequência. Posto isto, tenho dúvidas de que a generalidade das pessoas fique mais esclarecida depois de um debate deste tipo.
Também é condenável que alguns candidatos tenham conseguido mais tempo de antena do que outros. Queimaram os já escassos minutos de que dispunham com acusações e gritaria, e assim, foi-lhes concedido pelos jornalistas tempo extra. O mínimo que se exige, neste modelo já de si absurdo, é que, pelo menos, as regras sejam iguais para todos. O candidato perdeu tempo com miudezas? Paciência; se ficar alguma coisa por dizer, a responsabilidade é sua.
No final de tudo isto, o balanço só pode ser negro. Decerto que a maioria dos portugueses sabe de cor que Rui Tavares tem os filhos numa escola privada, que a Mariana Mortágua tem uma avó que entrou em “sobressalto” com a Lei Cristas, e que Luís Montenegro, na ‘visão’ de Inês Sousa Real, é um ‘machista’ porque a interrompeu (os candidatos masculinos que interromperam os seus oponentes serão machistas também por isso?), mas quantos terão assimilado, pelo menos, uma mão cheia de medidas, para cada partido?
E se os líderes dos partidos com representação parlamentar merecem avaliações, seria também pertinente atribuir também notas aos jornalistas moderadores – alguns, puseram questões de pouco interesse público, e contribuem sobremaneira para que os debates, já mauzinhos, fossem ainda piores.
No meio disto, fomos ainda brindados com as presenças de líderes partidários nos programas da manhã e da tarde das televisões, mostrando uma empatia e simpatia que tresanda a artificial, numa tentativa de assacar mais uns votos ao eleitorado mais velho. Uma tristeza.
Igualmente tristes são os argumentos esgrimidos, da esquerda à direita, tanto nos debates como nos pós-debates, que quase se resumem, em muitos casos, a slogans vazios e chavões, ou ainda a uma disputa sobre quem é o mais extremista.
Pedro Costa, presidente da junta de freguesia de Ourique e filho de António Costa, ainda esta semana, acusou Luís Montenegro de um ter discurso de extrema-direita. E porquê? Porque o líder social-democrata disse – espantem-se – , que embora os imigrantes sejam necessários e bem-vindos, Portugal deve continuar a ser português. Acaso diria Pedro Costa o mesmo do presidente de Angola, se João Lourenço defendesse que Angola deve continuar a ser angolana? E de Xi Jinping, se dissesse o mesmo da China? É grave que se desça tão baixo, e que se passe, de forma tão flagrante, um atestado de estupidez a todos nós.
Já os nossos ‘entertainers’ de serviço, como Ricardo Araújo Pereira, ocupam-se com as declarações de Gonçalo da Câmara Pereira. O líder do Partido Popular Monárquico serviu de arma de arremesso da ‘esquerda’ para disparar contra à direita, que usou e abusou deste fait divers. Um líder partidário que não tomará sequer parte do Governo, não deveria encimar a nossa lista de preocupações. Mas muitos mordem o ‘isco’ e despendem tempo a cogitar sobre o presidente do PPM, em vez de dedicar atenção àquilo que fará, de facto, diferença nas suas vidas.
Nesta cacofonia nos media tradicionais salva-se, e surpreendentemente, a internet. Com todos os seus defeitos, é graças às plataformas digitais que podemos ter acesso a entrevistas mais demoradas, vídeos mais elucidativos, e aos próprios programas dos partidos políticos.
A este respeito, o PÁGINA UM, aliás, destaca-se por ter sido o único jornal a conceder espaço e voz iguais a todos. Ao contrário de todos os outros órgãos de comunicação social, não contribuímos para um simulacro de democracia que, qual jogo viciado, ao dar palco aos mesmos de sempre, faz com que nada mude. A imprensa tem, por isso, muitas culpas no cartório, quando à deterioração da democracia. Ainda assim, depois, cinicamente mostram-se apreensivos com a ascenção de forças extremistas e antidemocráticas.
Se tivéssemos apenas os media convencionais para nos esclarecer neste período eleitoral, estávamos desgraçados.
Maria Afonso Peixoto é jornalista
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
Antes de me aventurar por assuntos mais densos, começo com uma história ligeira.
Jantava com um amigo numa mesa de duas pessoas. Passado pouco tempo, uma vintena de indivíduos ocupou uma mesa próxima de nós. Não falavam, gritavam, enchendo o restaurante de ruído. Expeliam boçalidades de dois em dois grunhidos. Os seus rostos cintilavam de estupidez. O barulho era tanto, que mal conseguíamos ouvir‑nos. Até o som do seu riso era alarve e boçal, assim como as suas frases, piadas, penteados e roupa. Perguntei ao empregado se podíamos mudar de mesa, mas estavam todas ocupadas.
Quando saímos do restaurante, comentei irritado com o meu amigo:
— Mas que bimbos do caralho, porra!
— Eu vi um bimbo.
— Só um?!
— Sim. Aquele que, quando tocou o telemóvel, nem sabia o botão para tirar o som. Ganda bimbo!
Fiquei com a boca em ó. O meu amigo (décimo dan de tecnofilia) ainda me conseguia surpreender. De toda aquela selvajaria, o meu amigo só retivera que um não sabia tirar o som do telemóvel: eis o único critério na sua cabeça que permitia detectar um energúmeno.
Outro episódio: falava com um amigo num café, e, em dado momento, fiquei em silêncio. Acto contínuo, ele começou a dizer: «Ꞌtou? Ꞌtou? Ꞌtou?»
O meu amigo, de tanto falar ao telemóvel, pensou que eu, ali ao lado dele, me tinha transformado num telemóvel e ficado sem rede ou sem bateria…
Já passei o jornal a uma amiga para ler uma notícia e reparei que ela mexia com os dedos no papel para ampliar a letra, como faz no telemóvel. Contou-me outra, acredite quem quiser, que já deu por si a clicar no canto superior de uma página de papel, como se estivesse a fechar uma página da Internet.
Disse-me um amigo que, quando foi obrigado a usar uma singela esferográfica para preencher uns papéis, ficou assustado com a sua irreconhecível caligrafia, dado que não escrevia fora do computador e do telemóvel fazia decénios.
Já vi uma pessoa a tentar entrar no meu prédio carregando no comando que abre a garagem. Cruzámos olhares, e o indivíduo deu um pequeno salto quando teve o clarão.
Jacques Ellul, um visionário que deve ser lido, avisou-nos: o caminho da sociedade tecnológica é o caminho de uma sociedade que privilegia crescentemente o reflexo em detrimento da reflexão. Ellul dava o exemplo do homem que conduzia a alta velocidade na auto-estrada. Só lhe era exigido que tivesse reflexos, pois uma reflexão a cento e cinquenta quilómetros por hora poderia ser fatal.
Mas tudo isto é nada quando lemos notícias atrás de notícias de jovens que se suicidaram por não conseguirem a selfie («autofoto» em português) perfeita, que morreram ao tirar uma selfie com armas ou em cima de rochas, de influenciadores que morreram durante ou depois de vídeos ao vivo no TikTok a fazer proezas como ver quem bebe mais, de criaturas que mataram e tiraram selfies com os assassinados. É possível fazer uma enciclopédia com estas notícias.
Por que razão quase toda a gente tem cara de parva quando tira uma autofoto? (Perdão, uma selfie.)
A propósito: chegará o dia em que os portugueses que não têm uma selfie com o Presidente Marcelo serão uma minoria?
«Três em cada quatro jovens afirma [afirmam] já ter pensado em mudar a sua aparência por causa das redes sociais», revela-nos Teresa Amaro Ribeiro, em 9 de Junho de 2023, no Expresso.
A tecnologia é uma força poderosíssima e avança sem referendos ou eleições. Invadindo todos os cantos e recantos, não poderia deixar de fora o modo como comunicamos. Sem sequer dissecar a substituição das palavras pelos emojis e outros quejandos, deixo uma observação sobre os efeitos da tecnofilia na linguagem, pública e privada, algo comprovável e comprovado dia após dia após dia após dia: há um uso constante de conceitos da informática e da tecnologia para tudo e mais alguma coisa — o programa do partido XYZ precisa de um upgrade; esta é a altura de fazer um reset ao metabolismo, de fazer um reset ao sedentarismo e aos maus hábitos, o Governo precisa de fazer um reset; o seu discurso, Senhor Deputado, é, em matéria de imigração, um copy-paste do discurso de Le Pen; lemos até que Liz Truss é uma versão 2.0 de Margaret Thatcher. Há, diga-se, versões 2.0 de tudo. E, claro, aconselhamos os outros a mudar o chip, lemos que a equipa ou o dirigente político mudaram o chip, que Fulano mudou o chip no discurso ou num dado comportamento.
O transumanismo em curso reflecte-se na linguagem.
Já reparou como, hoje em dia, as pessoas são tal qual os computadores: a toda a hora, elas dizem que estão a «processar»? «Espera, ainda estou a processar», ouço, no mínimo dos mínimos, uma vez por semana.
O próprio conceito de lar é transferido para a tecnologia: entramos em salas de conversação, em que temos inúmeros amigos, com cem aspas de cada lado, abrimos janelas. No período dos confinamentos, tivemos a aplicação (perdão, a app) designada Confession: A Roman Catholic App para os católicos confessarem os seus pecados.
Alguém nas obscuras hierarquias nos pergunta como nos sentimos, de modo que, partilhando publicamente um átomo da nossa interioridade, atenuemos a solidão, afaguemos a vaidade, aliviemos a tralha que acumulamos e alimentemos a bisbilhotice. Já tive um telemóvel que me perguntava assim que o ligava: «Como está hoje?»
Parafraseando George Orwell, o que está diante do nosso nariz é precisamente aquilo em que é mais difícil reparar. As ressonâncias religiosas na linguagem tecnológica não são poucas — estamos «ligados», estamos na «Rede», «salvamos» e «convertemos» documentos. Uma conhecidíssima marca tecnológica tem até o símbolo que associamos ao pecado original.
Se, noutro século, Hegel entendeu ser a leitura do jornal a oração matinal do homem moderno, hoje, especialmente para as novas gerações, as «novidades» das redes sociais, o acto de consulta das inúmeras mensagens e notificações de toda a espécie são a nova oração matinal, ou… a prece de todas as horas. Por que razão toda a gente se sobressalta quando verifica o tempo que passou na Internet ou nas redes sociais? Porque o vício mascara o tempo cronológico. Khrónos, ensinaram-nos os Gregos, étimo em que assentam a «cronometragem», o «cronómetro», a «cronologia», a «cronobiografia», o «cronograma» (entre outros), é a ditadura da medição do tempo pelo relógio, conceito diferente de kairós, outra forma de tempo.
No mundo laboral, sublinhe-se, o direito a desligar deveria ser um direito constitucionalmente consagrado.
E a vida eterna, perguntarão alguns?
Um excerto da imprensa (entre outros de semelhante jaez): «Elon Musk, por exemplo, está a trabalhar num projecto para ligar o cérebro humano a um computador. A ideia é “libertar” o cérebro do corpo, quando este estiver envelhecido, e abrir a porta para uma vida digital… eterna.»
Mais um paradoxo hodierno: nunca houve tantos canais de comunicação, enquanto os dados da saúde mental (cá e lá fora) são crescentemente tenebrosos, mormente entre os mais jovens, assim como dificilmente encontramos um período em que as pessoas se digam sentir tão sozinhas, pese embora a pletora de canais de comunicação que habitam. No Expresso, em 30 de Maio de 2023, lemos: «Estudo revela que 86% dos jovens portugueses estão viciados nas redes sociais […] 80% dos jovens prefere[m] comunicar pelas redes sociais, em vez de pessoalmente. Dois em cada cinco jovens reconhecem que as redes sociais têm impacto negativo na sua saúde mental.» Em 12 de Junho de 2023, o mesmo jornal revela-nos os dados de um estudo da OMS: «Segundo um estudo da Organização Mundial da Saúde, divulgado no ano passado, 28% dos adolescentes portugueses sentem-se infelizes e 9% dizem-se “tão tristes que não aguentam mais”.»
Uma notícia do The Guardian merece a nossa máxima atenção. Conseguimos estar sozinhos com os nossos pensamentos? Parece que não. A experiência relatada pelo The Guardian consistia em estar sentado, sozinho, numa cadeira, sem distracções sensoriais. A única possibilidade de distracção era um botão que dava um choque eléctrico.
Dois terços dos homens carregaram no botão que dava um choque eléctrico, descrito como doloroso, durante os quinze minutos em que permaneciam sentados consigo mesmos.
Um deles deu o choque eléctrico a si mesmo cento e noventa vezes.
Fala-se muito da necessidade de conviver (ou de socializar, como se diz hoje, ainda que este último conceito no sentido de «conviver» seja uma total invenção recente) e de saber interagir com os outros. Fala-se menos da sobredosagem de estímulos, da velocidade e instantaneidade como inimigas da memória (e temos hoje estudos que demonstram que o consumo de redes sociais e da Internet deterioram a memória e a qualidade do sono, enquanto diminuem drasticamente a capacidade e o tempo de atenção a um assunto), da reflexão e da decisão acertada, e sobretudo da incapacidade hodierna de sabermos estar sozinhos. Tinha razão Pascal ao entender que os problemas do Homem nasciam da incapacidade de estar sozinho num quarto.
O Inferno nem sempre são os outros. O Inferno também somos nós.
Pós-escrito: propus ao Instituto de Lexicologia e Lexicografia da Língua Portuguesa (ILLLP) a inclusão dos verbetes «tecnofilia», «tecnófilo» e «tecnodeslumbrado» (esta última da minha alta recreação) no Dicionário da Língua Portuguesa (DLP).
Citações do Unabomber por mim traduzidas
«Quando uma nova tecnologia é introduzida como uma opção que um indivíduo pode ou não aceitar, isso não quer dizer necessariamente que PERMANEÇA [maiúsculas do autor] opcional. Em muitos casos, a nova tecnologia muda a sociedade de tal maneira, que as pessoas acabam por se ver forçadas a usá-la.»
Theodore Kaczynski à saída do tribunal/ 4 de Abril de 1997. (Foto: D.R.)
Technological Slavery: The Collected Writings of Theodore J. Kaczynski, a.k.a. “The Unabomber” (Feral House, 2010)
«A sociedade de hoje tenta socializar-nos num grau maior do que qualquer sociedade anterior. Os especialistas dizem-nos até como devemos comer, fazer exercício físico, fazer amor, criar os nossos filhos e assim por diante.»
Idem, ibidem
«Quando se introduz uma inovação técnica, as pessoas normalmente tornam-se dependentes, de modo que deixam de conseguir passar sem ela, a não ser que seja substituída por alguma inovação ainda mais avançada. Não se trata apenas de os indivíduos se tornarem dependentes de um novo produto tecnológico, trata-se também, e em maior grau, de o sistema, no seu conjunto, se tornar dependente dele. (Imaginem o que ocorreria ao sistema actual se os computadores, por exemplo, fossem eliminados).»
Idem, ibidem
«Imaginem uma sociedade que sujeita as pessoas a condições que as fazem sentir-se terrivelmente infelizes, e que depois lhes dá as drogas para remover a infelicidade. Ficção científica? Já acontece de certo modo na nossa sociedade. [O autor instiga-nos longamente a pensar quantas pessoas conseguiriam aguentar a vida numa sociedade tecnológica hodierna sem recurso, por exemplo, à indústria do entretenimento ou a antidepressivos, e como uma sociedade tecnológica hodierna conseguiria domar o comportamento humano, garantindo a coesão social, sem recurso a antidepressivos, técnicas de videovigilância, propaganda de larga escala, indústria do entretenimento, etc.]»
Kaczynski estudou em Harvard.
Idem, ibidem
«A selecção natural favorece sistemas de autopropagação que procuram a sua vantagem de curto prazo, com pouca ou nenhuma consideração pelas consequências de longo prazo.»
Anti-Tech Revolution: Why and How (Soregra Editores, 2016)
«Estudantes de acidentes industriais sabem que o sistema tem maior probabilidade de sofrer uma desagregação catastrófica quando (i) o sistema é altamente complexo (pequenas disrupções podem produzir consequências imprevisíveis) e (ii) inextricavelmente ligado (o desmoronamento de uma parte do sistema propaga-se rapidamente a outras partes). O sistema mundial tem sido altamente complexo por um longo tempo. O novo elemento introduzido é o sistema mundial ser agora inextricavelmente ligado. Isto é o corolário da existência de rápidas e mundializadas redes de transporte e comunicação, que tornam possível que o desmoronamento de uma parte do sistema mundial se propague rapidamente a outras partes. À medida que a tecnologia avança e a globalização galopa dominante, o sistema mundial torna-se ainda mais complexo e inextricavelmente ligado, de modo que uma desagregação catastrófica do mesmo deve ser esperada mais tarde ou mais cedo.»
Idem, ibidem
«Na minha vida nos bosques, encontrei certas satisfações que esperava, como liberdade individual, independência, um certo ingrediente de aventura e uma vida de baixo stresse. Também obtive algumas satisfações que não tinha compreendido profundamente ou previsto, ou até que chegaram a mim como surpresas completas. Quanto mais íntimo te tornas com a Natureza, mais aprecias a sua beleza. É uma beleza que não consiste apenas em imagens e sons, mas na apreciação do todo. Significativo é que, quando vives nos bosques, em vez de apenas os visitares, a beleza se torna parte da tua vida, em lugar de algo que apenas observas de fora. Relacionado com isto, parte da intimidade com a Natureza que adquires é a nitidez dos teus sentidos. Na vida da cidade, tendes, de certa forma, a virar-te para o interior. O ambiente que te circunda está inundado de imagens e sons irrelevantes, e ficas condicionado a bloquear a maior parte deles. Nos bosques, a tua percepção das coisas vira-se para o exterior, para o ambiente circundante, já que ficas muito mais consciente do que se passa em teu redor. Por exemplo, repararás em coisas inconspícuas no terreno, como plantas comestíveis e rastos de animais. Se um ser humano passou e deixou apenas uma pequena parte de uma pegada, provavelmente darás conta. Sabes os sons que chegam aos teus ouvidos: isto é o canto de pássaro, isto é o zumbido de moscardo, isto é o início da corrida de veado, isto é uma pinha arrancada por um esquilo e que aterrou num tronco. Se ouves um som que não consegues identificar, isso prende imediatamente a tua atenção, mesmo sendo tão débil, que seja dificilmente audível. Este alerta, esta abertura dos sentidos é dos maiores luxos de viver próximo da Natureza. Não consegues entender isto, a não ser que o tenhas experimentado. Outra coisa que aprendi é a importância de ter trabalho com propósito relevante. Ou seja, trabalho com propósito realmente importante – assuntos de vida e de morte. Não descobri verdadeiramente o que era a vida nos bosques até que a minha situação económica era tal, que tinha de caçar, colher plantas e cultivar um jardim para comer. Durante parte do tempo em Lincoln, especialmente entre 1975 e 1978, se não tivesse êxito a caçar, não tinha carne para comer. Do mesmo modo, não tinha vegetais se não os tivesse colhido ou cultivado. Não há nada mais prazeroso do que o preenchimento e a autoconfiança que esta auto-suficiência traz. Vivendo próximo da Natureza, descobre-se que a felicidade não é maximizar o prazer. É tranquilidade. Quando desfrutaste longamente da tranquilidade, adquires aversão à ideia de um prazer muito forte – um prazer excessivo cria uma disrupção na tua tranquilidade. Aprende-se ainda que o tédio é uma doença da civilização. Penso ser fundamentalmente tédio as pessoas terem constantemente de estar entretidas ou ocupadas, porque se não o estão, algumas ansiedades, frustrações, descontentamentos e outros quejandos começam a vir à superfície, e isso fá-las sentir-se desconfortáveis. O tédio é quase inexistente quando te adaptas à vida nos bosques. Se não tens trabalho que precisa de ser feito, podes sentar-te por horas não fazendo nada, apenas ouvindo os pássaros ou o som do vento ou o silêncio, observando as sombras a mover-se enquanto o Sol viaja, ou simplesmente observando objectos familiares. E não te aborreces, estás simplesmente em paz. Uma coisa que descobri quando vivia nos bosques é que ficas de tal modo, que não te preocupas quanto ao futuro, não te ralas com a morte, se as coisas estão bem agora, tu pensas “bem, se eu morrer na próxima semana, que importa?, as coisas estão bem agora”. Julgo ter sido Jane Austen quem escreveu num dos seus romances que a felicidade é sempre algo por que esperas, não algo que possuas em determinado momento. Isto não é sempre verdade. Talvez seja verdade na civilização, mas quando saltas fora do sistema e te readaptas a uma diferente forma de viver, a felicidade é algo que tens aqui e agora.»
Entrevistas do autor às publicações periódicas Blackfoot Valley Dispatch e Earth First!
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
De vez em quando ainda faço umas viagens sem sair do sofá, pelas canais generalistas, e em certo domingo passei pela TVI, que comemorava os seus 31 anos com uma gala. Este tipo de eventos, só consigo ver em directo, e sem fazer rewind com o comando, talvez para me recordar de quando apenas havia canais generalistas, e de desfrutar dessa memória encantada do tempo real, em que tínhamos de mamar com a publicidade toda, acabando por sabê-la de cor, isto se não quiséssemos perder pitada daquilo que estivéssemos a ver.
Apanhei a gala quase no início. Fui ler a sinopse que dizia:
“O Casino Estoril é o palco escolhido para a grande Gala do trigésimo primeiro Aniversário da TVI, que será conduzida por Cristina Ferreira e Manuel Luís Goucha. Muitos dos rostos do canal subirão ao palco para momentos que prometem marcar para sempre a história da estação.”
Marcaram, mas não pela razão esperada.
Nesse directo, víamos uma espécie de espectáculo auto elogioso, (como é comum a todos os canais nestes eventos), que ia sustentando a ideia de glamour, palavra proferida muitas vezes pelos actores e jornalistas que desfilavam efectivamente pelo palco do Casino Estoril, sendo pagos para isso, suponho. Há mais glamour na secção de roupas do Continente, embora a Maya me desminta, certamente.
Sim, é um exagero.
A transmissão, que paulatinamente, começava a ter laivos de barbárie para quem tivesse de enfrentar o palco e consequentemente, a audiência ao vivo feita de si própria, começou a deixar-me interessado, mas é evidente que também se começou a apoderar de mim um certo ardor.
Há um efeito adverso sadomasoquista, do qual sou acometido por vezes, e que creio, todos temos, dependendo do objecto em questão e que mudará efetivamente de pessoa para pessoa.
No meu caso é a televisão a fonte de singela perversidade.
Há um estudo que diz que existem mais telespectadores a ver as novelas pelo ódio, que pela adoração. Vivemos uma época em que há estudos para tudo. Não sei se será verdade, mas naquele caso ajustava-se o princípio.
Também não sei muito bem explicar estes fenómenos (e há anos que faço auto-psicanálise), mas tenho uma noção clara do problema, admitindo-o (regra primordial para iniciar tratamento), embora seja verdade que só mergulhando no lodo, e dando por lá umas braçadas, é que ganhamos alguma autoridade para falar do pântano, e dos organismos que pululam nessa zona húmida.
Enfim, naquele espectáculo pouco entretido havia biodiversidade do melhor, como se esses organismos estivessem aos encontrões uns aos outros, nuns carrinhos de choque meio gastos, cuja viagem não parecia ter fim à vista, embora hoje, já se vislumbre melhor o destino e o fim anunciado da euforia perpétua (permitam-me a contradição), à qual estivemos sujeitos nas últimas décadas. Pelo menos é um fim, que já não se confunde com o meio.
Quando vemos estas transmissões, podemos achar que estamos naquelas salas de espelhos do jardim zoológico que aumentam e diminuem a nossa imagem, deformando-a, sendo que ela, já por si, pode ser uma caricatura. Muitas vezes, basta ter de dizer o que não pensamos e fazer o que não queremos durante a vida as vezes suficientes, fugindo à nossa verdade intrínseca, para acabarmos no psiquiatra, sendo essa sim, a nova normalidade tão estafada.
Se pensarmos assim, e aludindo aos espelhos-monstro, estamos dentro da pura semiótica, isto para a tentativa de elevação desta análise, não querendo, porém, torná-la pseudo-académica e arrogante.
Como conheço bastantes actores que estão no mercado, sei de antemão que a sua maioria não gosta de fazer figuras tristes, como as de domingo em prime-time. Tenho mesmo um amigo actor que, conhecendo uma boa parte dos colegas de profissão que por lá se arrastavam, recusa-se sempre ver este tipo de galas, muito menos a ir, sendo constantemente atacado à traição pelo triste e inoportuno sentimento da vergonha alheia.
Eu ainda julguei que as coisas más podiam ser boas, depois de ver o filme EdWood do Tim Burton, um filme genial por muitas razões, mas também porque transmitia a ideia de que o realizador e personagem do filme era sobretudo ingénuo, e isso aos olhos do realizador parecia interessante. Ed Wood é considerado o pior realizador de todos os tempos.
Quando o vi, parecia ser possível desenvolver actividade artística entre o lado cerebral e matemático de Stanley Kubrick e a idiotice enérgica do Ed Wood.
Anos depois vi um filme real do próprio e não foi fácil chegar ao fim, porque era mesmo mau.
A verdade é que se pode fazer um bom filme sobre um mau realizador, mas nunca um bom filme por um mau realizador.
Sem com isto querer comparar a gala com um filme mau, apenas faço uma analogia com certos critérios de qualidade. Não é que aqui fosse essa a situação, porque não havia efectivamente ingenuidade e pureza na execução do espectáculo como no olhar do Tim Burton sobre o Ed Wood, no sentido do princípio pós-moderno de que tudo o que é muito mau pode ser bom.
O fenómeno sadomasoquista explica melhor certas situações de angústia que, supostamente também são remixes de prazer, o que pode justificar a minha atenção à gala, como aquelas pessoas que vão à tourada na esperança, de ver o touro agredir o toureiro.
Acho é que a estação quis mesmo dar uns tiros aos jornalistas, mas também, se nos fixarmos na cara do director José Eduardo Moniz, podemos constatar que se assemelha cada vez mais a um velho samurai que perdeu a espada e a barba, e anda a norte de nenhum sul, ainda que lidere audiências, sempre confirmadas por audiometrias discutíveis pelo próprio sector.
Mas a vida é feita de acordos.
Eu aqui, não queria mal a ninguém, nem sei como é que isso seria possível.
Caírem? Não saberem o texto? Um incêndio no teleponto?
Bem, pior só mesmo pôr jornalistas a fazer de políticos de forma revisteira…
E não é que minutos depois o desejo se tornou “real”…
De um momento para o outro, apareceram seis jornalistas com péssimos textos, a fazer de pessoas que estão no BigBrother, que por acaso são os políticos líderes do momento e candidatos a primeiro-ministro. Políticos que alguns terão certamente de entrevistar no futuro.
Mas também basta o Araújo Pereira (RAP) querer, e consegue meter inversamente os políticos a fazer de jornalistas no programa dele à vontadex.
A televisão ainda é um prontuário que dá para tudo.
Aproveito a ocasião para dizer que o RAP está mesmo a ficar repetitivo, e cada vez mais parece imitar os trejeitos do Jon Stewart, no seu Daily Show da Comedy Central, de há mais de uma década, quando ainda parecia credível e fracturante fazer este tipo de programas. Agora parece que o americano voltou ao local do crime e não é certamente porque viu o RAP a traduzir Portugal para o pequeno ecrã.
Comecei a perceber paulatinamente que estava a ver um espelho da realidade ali a passar diante de mim e em directo.
Esfreguei as mãos.
Aquilo era demasiado real para ser uma encenação, onde é que já vai o tempo das encenações!
Não estamos a falar de uma gala deprimente encenada pelo Filipe Lá Féria, mas sim de outra coisa bem mais triste e soturna, sobretudo para os actores de profissão, não incluindo evidentemente os jornalistas, que similarmente tinham papeis atribuídos, mas para a área do Shakespeare e não da do Pulitzer.
Só faltava lá o Daniel Oliveira, que nessa semana tinha feito em directo um mea culpa, no Eixo do Mal, referindo-se à catástrofe do espectáculo da política em que nos encontrávamos, aludindo à proliferação de comentadores que analisavam os debates, que eram mais que as mães, matematicamente falando.
Dias depois, lá estava ele na SIC a exorcizar-se e… E a comentar.
Só agora o exorcismo?
O Paulo Salvador, jornalista e editor da TVI, também se retratou muito recentemente, enviando um artigo aqui para o PÁGINA UM, com um texto suicida para o jornalismo. Ainda assim bastante mais nobre e verdadeiro que a declaração inesperada e traiçoeira do tudólogo da SIC.
Estará alguma coisa a mudar? Não creio.
O mundo ainda precisa desta psicose colectiva para o seu desequilíbrio estável e para o seu normal funcionamento. Acho é que vai havendo menos dinheiro para a festarola e as dívidas vão-se acumulando. Há é muito Xanax e Prozac para suportar a ressaca. Como sempre, ganha a BigPharma.
De certa forma todas as principais caras televisivas do canal andavam por lá, mas parecia que nenhum deles queria acreditar no momento.
Com o andamento da carruagem, parecia um comboio suburbano desnorteado a andar aos solavancos (cheia de ferrugem pelos vistos).
Por vezes o relógio faz partidas e transforma o ponteiro dos segundos em minutos e começava a ficar chato, mas imaginando que ninguém iria criticar aquilo, talvez o Cintra Torres no Correio da Manhã o fizesse, mas era no Correio da Manhã… E a fazê-lo, seria enquanto critico de televisão em que é difícil dar um tiro no próprio regimento. Decidi então investir um pouco mais, imbuído até de espirito de missão e cheguei ao fim da emissão. Agora só faltava escrever qualquer coisa para assinalar o momento. E eis-nos aqui.
O mais absurdo era, o som cacofónico vindo da plateia, estar sempre presente, num péssimo trabalho de sonoplastia, o que denunciava um certo desinteresse por aquilo que ia sucedendo em palco, que na verdade, e aí posso entender a audiência, era… Nada.
Ao menos escondessem esse som estridente que pouco acrescentava ao espectáculo. Parecia a FIL-Auto com o seu caos sonoro assumido.
Quando a câmara focava alguém, era inevitável essas pessoas conhecidas, esboçarem um sorriso televisivo Colgate, voltando depois à actividade social natural, na qual comiam, falavam e olhavam para os seus pequenos ecrãs tácteis.
Os textos não tinham interesse nem piada, já vi muito melhor noutras ocasiões (nos Globos de Ouro da SIC, por exemplo), e os actores lá iam fazendo o seu trabalho, debitando deixas, em conjunto com as outras caras conhecidas do canal, neste caso jornalistas.
Creio que os actores em Portugal têm uma qualidade inegável, tanto que faziam o seu trabalho com a dignidade possível para a ocasião.
O Eduardo Madeira e a Paula Neves, com um texto que envergonhava um doente em coma, esforçaram-se enormemente, já que foi na actuação dele que o público mais ignorou e bebeu champagne. Foi penoso verificar que literalmente ninguém lhes prestava atenção. Os inserts da plateia, revelavam essa situação sem pudor. Até parecia de propósito.
Considero o Eduardo Madeira um excelente cómico e intérprete, o que me fez ter vergonha alheia e perceber o meu amigo que citei há pouco. Não se pode dizer o mesmo dos jornalistas a quem foram atribuídas várias tarefas, como por exemplo, a de cómicos de serviço.
O mais degradante ainda, foi o facto de terem de fazer de políticos, como já atrás tinha referido, parecendo ser essas intromissões a cereja no topo do bolo estragado que nunca ninguém comeu.
A Sandra Felgueiras, a melhor ainda assim a cumprir a tarefa, fazia de Mariana Mortágua, usando para isso uma peruca semelhante ao cabelo liso e comprido que a política nos habituou. O jornalista desportivo e agora director Sousa Martins, fazia de líder do PCP, estando mesmo sem cabelo para interpretar o Paulo Raimundo… mas se nem o próprio Paulo sabe fazer de Raimundo!
Parecia, no entanto, que se vingava de uma prestação que o político, ainda jovem e com cabelo à CDS, teve nos anos 90, no programa da Cornélia, descoberto pela equipa do cómico oficial, RAP e exibido com algum desdém, uma semana antes, no seu programa dos domingos.
Dificilmente me lembro de uma charge tão má como esta dos jornalistas a tentar imitar políticos, mesmo contando com os piores sketches do Prédio do Vasco.
Havia uns que nem os mínimos faziam para se assemelharem aos originais. Ninguém se ria nesses supostos directos à falsa casa do BigBrother.
Fez o BigBrother, que está agora na grelha do canal, parecer um filme do Ingmar Bergman em comparação, e elevou o La Féria a Bob Wilson.
É assim que o mundo por comparação funciona, as coisas parecem sempre melhores do que aquilo que são.
Exemplo disso, foi o aparecimento da CMTV, que fez parecer os outros canais, obras de arte. Mas por pouco tempo.
Não percebo como é que canais tão grandes, para a dimensão do país, passam pelos pingos da chuva que por sinal… Escasseia.
Uma hora antes tinha assistido ao programa do RAP em que gozava com o líder do PS, porque tinha chorado no programa do Daniel Oliveira (director de conteúdos da SIC), programa esse, conhecido pela actividade lacrimal, que todos os portugueses já ouviram falar alguma vez, e que dura há décadas.
Mas será que os convidados não sabem ao que vão? Claro que sabem, mas chorar fica sempre bem, é catártico e depurador.
Ainda assim o Pedro Nuno Santos fazia melhor de Pedro Nuno Santos que o jornalista destacado pela direção para esse papel. Mas se este putativo primeiro-ministro chora assim tão facilmente, podemos prever uma epopeia de lágrimas numa eventual catástrofe sísmica, ou na eventualidade de outra visita da Troika, não nos deixando esse cenário muito seguros quanto à frieza necessária para combater tais hipotéticos teatros de operações. Será assim? Noutros tempos é que se exigia aos políticos mais capacidade de raciocínio e menos espectáculo. A mudança dos paradigmas também não é necessariamente sempre para pior, até porque isso seria absurdo, mas depois de ver jornalistas a fazerem de políticos sem qualquer possibilidade de humor, que havendo, até poderia suavizar a actuação, fiquei aturdido. Por outro lado, parecia ser um espelho bastante realista do nosso momento actual, em que a verdade levou um pontapé e foi dar uma volta ao bilhar grande.
Agora, quando vir esses jornalistas a debitarem a moral do costume envoltos em chroma key a falar da Palestina, não sei…
Ainda assim, nada supera as performances “covidianas” do Rodrigo Guedes de Carvalho nas noites informativas e poéticas da SIC por altura da pandemia.
Logo no início, o Goucha e o Cláudio Ramos fizeram uma brincadeira com uma conhecida música brasileira, em que cantavam e dançavam. Cantar e dançar? Teríamos de rever o dicionário.
Mas o mais incrível de tudo é que imaginamos que tenha havido ensaios. Ensaios? Abram novamente o dicionário. Foi um pesadelo.
Gostava de ver a cara dos criativos, quando conceberam o guião, a exultar de alegria com as ideias. Então naquela de pôr jornalistas a fazer de políticos, devem ter aberto uma garrafa de… Espumante.
Confrangedor também foi ver o director José Eduardo Moniz, que ia aparecendo no palco, a dizer umas piadas escritas, (o improviso parece ser proibido nestes eventos), para festejar e elogiar os 31 anos da estação. Convém lembrar que quando esta estação apareceu, ainda ligada à Igreja, um ano depois da SIC, ele era o director da RTP, encetando uma concorrência severa e desleal aos canais privados, sobretudo à SIC, com dinheiro publico, facto pelo qual foi bastante criticado. E agora quem diria, estava à frente do canal concorrente, a exultar os resultados e a liderança de audiências.
A memória em Portugal parece ser apenas coisa do canal com o mesmo nome, canal esse que ninguém deve ver, muito menos o José Eduardo.
Jornalistas a cantar e a anunciar bandas, jornalistas a dizer piadas, jornalistas a dançar, jornalistas sem responsabilidade a massacrar a arte da representação, deve ter sido um vexame para os actores, que, coitados, lá têm de andar de novela em novela a comer o pão que o Rangel amassou.
O desfile ia ficando cada vez mais grotesco, mas a Cristina Ferreira era a única que se ria, só que das próprias piadas, com um humor pouco refinado e requentado como é habitual, no meio de auto-elogios ao próprio evento, aludindo ao cuidado que tiveram na execução.
Qual execução? Estava tudo mal.
Os Anjos e os D´zrt, entre muitos outros, também animaram a festa, e era nesses momentos de música, com as bandas e os cantores em acção, em que não se ouvia o ruído suicida de fundo, que parecia um programa normal e fluído, tanto que os inserts mostravam pessoas a cantar com os artistas, a bater palmas e a rir que nem loucos sempre que a câmara os focava.
Este modelo de eventos televisivos, inventado pelos americanos, já teve melhores dias, mas como a falta de imaginação parece ser um dos atributos das funestas estações, nada de anormal então na ‘frente ocidental’.
A promiscuidade cada vez mais intensa entre o espectáculo e a política, com a contaminação daquilo que já foi o jornalismo, é que me parecem bastante preocupantes.
Ficamos à espera de uma análise mais detalhada do Daniel comentador, que muito terá a dizer sobre o assunto.
Dizem que temos milhões de anos de existência, mas cada vez estamos mais infantis, e agora é que parece mesmo que estamos a brincar com os dinossauros.
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Eu sou o que acreditava nas bombas de destruição massiva que estavam debaixo dos colchões de Bagdad. Acreditei porque me fascinava ouvir o Tony Blair – ponderado, lógico, estratégico. Também depois acreditei no Obama, e depois percebi que se fartaram de construir muros com ele, que nunca acabou a tortura aos islâmicos, que nunca terminou guerra nenhuma. Mentiram-me várias vezes. Assumo, sem titubear, que caí.
O Néscio, que sou, acreditava no plano de construção de um Portugal moderno, feito por Cavaco Silva, quando chegámos à Europa. Fui um seguidor do Torres Couto nas formações da UGT, com dinheiro da CEE. Acreditava que os Bancos eram geridos por gente séria e não entendia nada do subprime, nem acreditava que a bolsa fosse um jogo onde nos podiam tramar. Nunca me passou pela cabeça, que colocassem produtos que nos fazem mal, nos alimentos, como os corantes, indutores de sabor, viciantes. Jamais me passava pela cabeça que os árbitros alterassem um jogo de futebol. Nunca acreditei que a indústria farmacêutica colocasse preços especulativos nos seus medicamentos para tratar e salvar pessoas. Eu acreditei em tanta coisa, e empenhei-me na defesa de tantas ideias. Possivelmente sou o Néscio.
O incrível de tudo é que ainda tenho fé! Depois deste texto, talvez devam desconfiar das minhas certezas, porque:
1 – Acredito que vamos repensar os seis mil milhões de euros que estamos a perder com o fecho das centrais de carvão do Pego e de Sines.
2 – Acredito que o Ministério Público tem explicações para o golpe de estado que demitiu António Costa e o governo da Madeira. Tenho a certeza que vão demitir a Procuradora da República.
3 – Estou convicto de que os médicos vão abrir o SICO – eVM, e por fim, ver como não existiu qualquer mortalidade pandémica abaixo de 50 anos, mesmo em 20 de Janeiro de 2021 (o pico da doença em Portugal).
4 – Tenho a certeza que Zeinal Bava explicará como perdeu mil milhões na RioForte. Alguém justificará como se gastaram três mil milhões na TAP para depois a vender por preço muito inferior ao “investido”. Joe Berardo mostrará como se enriquece com empréstimos.
Enfim, sou um Néscio que deu em protestar! Não consigo ficar indiferente à falta de vergonha do “método comentador” para influenciar a percepção que os ouvintes tiveram dos debates entre candidatos. Não consigo silenciar as dúvidas que se me colocam com a agenda dos novos moralistas. Os embandeirados, transportam suas insofismáveis garantias sobre a imoralidade alheia.
Eu, Néscio, que acreditava em quase tudo, agora tenho incertezas sobre o clima, sobre o sexo, sobre a Educação, e sobretudo sobre a evangelização ideológica. Não quero ser doutrinado! Não quero ser induzido religiosa ou ideologicamente.
Diogo Cabrita é médico
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Um cronista tem, sobre si, qual espada de Dâmocles, um temor: o bloqueio da folha em branco, consequência (supondo que o cronista sabe escrever) do bloqueio de assunto. Nem sempre calha ter tema inicial para o jogo que venho aqui assistir (se bem que ninguém precise de mim, embora até agora esta Da Varanda da Luz esteja a manter o Benfica invencível).
Começar sempre com o quimérico 15-0 também já aborrece, exactamente por parecer que o introduzo por falta de matéria. Falar do farnel ofertado também já se mostra maçante, pese embora hoje tenha variado; trocaram a barrita de cereais por um chocolate Mars, e saiu uma banana na vez de uma maçã. Por isso, olhem, começo a desejar que hoje o Benfica consiga ‘desentupir’ o jogo melhor do que eu consegui desentupir, com o famoso truque da esfregona, a sanita da minha casa de banho…
(entretanto, começa o jogo, antecedido por um minuto de silêncio em homenagem ao antigo jogador e treinador Artur Jorge, mais feliz no FCP do que aqui na Luz, que foi, além de tudo, homem erudito, coisa ainda rara na Arte da Ludopédia)
Além disso, também espero que nenhum dos jogadores ali em campo (do Benfica, claro), esteja como eu estou hoje: no estado de alguém com mais de 25 anos de vida do que quase todos eles (sou apenas dois anos mais novo que o Roger Schmidt), e ainda por cima meio entrevado por um ‘mau jeito’ na coluna (parece que a probabilidade dos ‘maus jeitos’ aumenta com a idade, não sei bem porquê).
Enfim, de igual modo, espero sempre que as incidências do jogo, ou algo menos normal, me auxiliem em encarreirar uma crónica que, por um lado, não me comprometa no final (por exemplo, cantar vitória logo no início, e a ‘coisa’ redundar num fracasso), e por outro não transforme isto numa coisa desenxabida, sem préstimo nem para quem é benfiquista (que os outros, presumo, nem me lêem).
(o jogo tem sido, até agora, uma sucessão de oportunidade perdidas, quando já estão perdidos 35 minutos… para se chegar ao 15-0 teria de haver um golo em pouco mais de três minutos e meio; portanto, percamos, neste jogo, essa esperança)
Isto não está, com efeito, nada fácil, e como tive uma tarde algo stressante, a cuidar da canalização de uma sanita, não estou a conseguir, confesso, obrar (pôr em obra, atenção!) coisa de jeito. Nem sempre sai, da pena de um escriba, palavras em jactância. Por vezes, sucede uma certa prisão… enfim, isto já está a ficar demasiado escatológico, e não no sentido teológico do termo.
A primeira parte, neste ínterim, está a terminar, e pode ser que o intervalo me ajude a conjecturar uma melhor linha condutora para a segunda parte. E quanto ao Benfica, eu queria evitar ter de pedir uma ajuda ao Tiago Franco para comentar as perfomances do João Mário…
(intervalo; vejo as estátisticas, enquanto oiço a Mariza Liz cantar “carrega, Benfica”: 70,3% de posse de bola. Lá carregar, carregou-se, e deu para 10 remates, mas só três a chegarem à baliza, e nenhum ao fundo das redes)
Para animar as hostes (e, espero, como incentivo), enquantos os jogadores recarregam as ‘baterias’, homenageia-se o nadador (benfiquista) Diogo Ribeiro, medalha de ouro nos Mundiais de Natação em 50 e 100 metros mariposa. Vamos lá ver se, daqui a nada, o Benfica voa como uma mariposa, ou como soberba águia, sobre este Portimonense de trazer por casa…
(e começa a segunda parte, com o Benfica a começar logo a porfiar… mas sem sucesso; Roger Schmidt, não referi, por não ser este o objecto principal da crónica, decidiu inventar mais do que o habitual e não meteu ainda nenhum ponta de lança: Arthur Cabral e Marcos Leonardo estão no banco, e o Tengstedt estará doente e nem convocado foi)
Quer dizer, já passaram seis minutos nesta segunda parte, já houve dois bruaás, mas tudo está um bocado morno. Ó Roger Schmidt; queres mesmo que eu peça um comentário ao Tiago Franco para ficares com as orelhas a arder? Não te chegou esta semana o jogo lastimável com o Toulouse, que anda a lutar para não descer na Liga francesa?
Bom, vou-te dar cinco minutos…
(golooooooooooo…. já está! Desentupida a baliza do Portimonense: Rafa com uma trivela esquisita)
Era isto que faltava! Agora deve ser como a minha sanita quando o truque da esfregona resultou na minha sanita.
(goloooooooo… vai tudo; nem demorou dois minutos; numa correria desenfreada, aguentando tudo, David Neres contorna o goleiro e factura!)
Caramba! Nem de propósito. A metáfora do desentupimento está mesmo a funcionar… Doi golos em dois minutos.
(golooooooooooo… que é que é isto, minhas senhoras e meus senhores!!! Desentupiu-se mesmo tudo! 3-0, desta vez, Angel Di Maria, a ser diabólico para o Portimonense)
Portanto, sem imaginar, porque estas crónicas (acredite-se ou não) são mesmo escritas em directo, não são pré-fabricadas e vão ao sabor da pena (ou dos dedos), e da minha confusa e conturbada vida, estou muito satisfeito desta imagem muito pouco, convenhamos, agradável de se imaginar: um cano cheio de, digamos assim, resíduos sólidos que não deixam sequer passar água límpida, mas tanto se pressiona, tanto se carrega, que, quando se desobstrói, o fluxo tudo leva à frente. Foi assim também neste jogo contra o Portimonense, que até está mais de branco do que de preto.
Vitória garantida, presumo. Tudo se acalma. Nas bancadas há umas cantorias, batem-se palmas à saída do David Neres e do João Neves (para as entradas do Florentino e do Tiago Gouveia); está a ser, portanto, e afinal, uma tarde (princípio de noite) bem passada, apenas a precisar agora de mais um golito para equilibrar a crónica, que estou a acabar o segundo parágrafo.
Ia sendo mais um, acabou em canto, mas ainda estou esperançoso que, correndo anda o minuto 73 ainda calhem mais dois golitos, para que, não se chegando ao 15-0, pelo menos que seja por causa do 1: o 1 das dezenas, claro.
(golooooooo… enquanto eu estava agachado a meter a ficha do computador na tomada aqui da Varanda da Luz… não vi o 4-0, mas foi marcado pelo Rafa)
O intervalo fez muito bem ao Benfica. Uma belíssima segunda parte. Tenho de dar umas bicadas ao Roger Schmidt durante o jogo, que parece que funciona. Vou tentar ver se com a ‘ameaça’ dos comentários do Tiago Franco, os jogos se desempecem.
Acho que não há muito mais a contar. Ainda entrou o Arthur Cabral, a substituir o João Mário (para alegria, presumo, do Tiago Franco), e eu fico ainda a aguardar o golito final da praxe, enquanto arrumo as fotografias e acerto a crónica; tenho de me despachar daqui que ainda esta noite vou ter de gravar o podacast O Estrago da Nação, com o Luís e o Tiago, e meter em linha mais uns textos, que a minha vida (infelizmente) não é futeboladas.
(e acabou; tudo fica bem, quando acaba bem… mesmo quando parecia, em determinado momento, que ia ficar a cheirar mal)
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A única diferença entre a realidade e a ficção é que a ficção tem que ser credível.
Mark Twain
Esta história é absolutamente real, e, nessa condição, parece horrivelmente fantasiosa. Tem a ver com segredos que não são possíveis e sentimentos que não são credíveis, todos eles revelados por uma única frase que um contabilista me repete duas vezes, a segunda mais contundente do que a primeira: “a doutora passe uma procuração ao seu advogado para ele ir lá ver o que se passa.” E eu, feita parva, ainda falo com o advogado a espernear: “se é para os bancários dizerem quem é que penhorou a minha conta e em quanto, porque é que não basta ir lá eu? Eles não têm a obrigação de me dizer o que se passa com a conta?” E o meu advogado, com os ouvidos cheios de conversas iguais: “Pois têm, Clarinha, pois têm. Mas nunca te vão dizer nada.” E eu, furiosa: “Mas porquê, pá? Porquê? A conta é minha, não é?” E ele, com um suspiro: “Pois é, Clarinha, pois é. Mas, quando há porcaria, eles têm um medo doido de dizerem seja o que for aos titulares das contas.” Medo? MEDO? Mas isto é o quê, é algum offshore na Colômbia onde se movimentam nas sombras personagens sem rosto de um romance do Graham Greene?
Esclareça-se já que este sítio suspeito onde as pessoas têm medo de falar não está localizado em águas internacionais, os contabilistas que não o dizem claramente mas sabem muito bem que esse medo existe não trabalham para nenhum offshore, e os advogados que já não podem nem ouvir falar de penhoras que ninguém quer explicar aos titulares das contas não viajam em Executiva pelo mundo ao serviço de uma grande ONG de socorro aos lesados de grandes promessas a prazo que afinal eram grandes extorsões à ordem. Muito pelo contrário. Todas as pessoas envolvidas por esta novela financeira estão tranquilamente aqui, em Estremoz, à excepção dos bancários que se distribuem, em dias alternados, pelo eixo Estremoz – Vila Viçosa – Borba.
Tanto medo, tanta procuração ao advogado, tanto conselho codificado do contabilista num cenário tão bucólico.
E, partindo do princípio saudável de que este estranho medo não me afecta só a mim, tanto alentejano tranquilo que tem por lei o direito de saber quem é que lhe penhorou a conta e em quanto, mas em vez disso anda para aí à toa porque os bancários se fecharam em copas e ainda hoje estão fechados.
É que eu, vá lá. Posso estar um bocado à toa, mas sempre tenho para onde me virar. Tenho um óptimo contabilista que me dá bons conselhos e não cobra separadamente por eles, e um grande amigo que pode ser muito lento mas é seguramente muito entendido na matéria. Mas nem toda a gente tem estas benesses. Se eu já ando de cabeça perdida com o silêncio da banca, imagino o inferno que tudo isto será para quem tem que enfrentar sozinho esse mesmo silêncio. Entretanto o tempo passa, as taxas de juro aumentam, e a nossa possibilidade de falência vai crescendo, crescendo, crescendo.
Esta penhora que afectou a minha conta foi a primeira penhora que alguma vez afectou a minha vida. Eu estava, portanto, completamente virgem na matéria. O banco tinha a obrigação legal de me fornecer todas as informações que me ajudassem a compreender a situação e depois a lidar com ela. Mas, de facto, tendo em conta a forma como funcionam as penhoras também tinha a possibilidade ilegal de me deixar completamente pendurada, já que qualquer bancário com quem eu falasse podia sempre inventar um pretexto para não me dizer fosse o que fosse.
O primeiro bancário com quem eu falei disse-me que essas informações só podiam ser fornecidas pelo gerente do balcão.
O gerente do balcão, misteriosamente, de cada vez que eu lá ia estava sempre em Borba ou em Vila Viçosa, e portanto não podia falar comigo.
Entretanto, e ao contrário de todos os outros bancos que são normais e fecham pelas três da tarde, aquele banco passa a fechar à uma e ao meio dia e meia já está tudo em pé, de pasta na mão.
Acabei por encostar um bocadinho mais o primeiro bancário à parede, comentando com ele que sabia perfeitamente que aquela penhora ou era das Finanças ou era da Segurança Social. Ele ouviu-me, abanou afirmativamente com a cabeça, e lá suspirou “pois é, são sempre as sanguessugas.”
Dadas as circunstâncias, foi graças a este expediente que fiquei a saber que a penhora era das Finanças.
E fiquei, também, absolutamente furiosa, porque obter de um banco este tipo de informação não deveria obrigar nenhum cidadão a recorrer a qualquer tipo de expedientes. Mas é que nunca na vida.
Foi quando o contabilista sensato me disse, duas vezes, para eu passar antes uma procuração ao meu advogado.
Como se a vida fosse um filme.
Epá, se é, tirem-me deste filme por favor.
Eu estava tão indignada com aquele comportamente surreal dos bancários que ainda voltei sozinha ao balcão de Estremoz. Desta vez fui atendida por outro funcionário. Uma senhora madura, com aquele ar posto em sossego de quem já ali anda há muito tempo. Ah, esta de certeza que ia ajudar-me.
Recitei outra vez a minha litania.
Recebi um pagamento de 250 Euros por uma tradução. Esse pagamento entrou na minha conta, e logo a seguir saiu. Foi assim que suspeitei logo da penhora, embora não tenha recebido nenhum aviso nesse sentido, fiscal ou outro. O seu colega já viu isso comigo, e já confirmou que é uma penhora das Finanças. Tenho mais pagamentos para receber, mas não quero que eles sejam sumariamente penhorados. Quero saber qual é o valor total da penhora, e como é que eu posso negociar o seu pagamento.
Ãh? Pareço mesmo uma pessoa crescida a falar.
A senhora madura esquadrinhou cuidadosamente o seu computador, foi dizendo hm-hm e ah-ah, acenou várias vezes, e por fim fez-me um sorriso profissionalmente simpático.
Eu nem queria acreditar no que ouvi a seguir.
“Não se preocupe, porque está tudo bem com a sua conta. Está a zeros, sem nenhum saldo negativo.”
Ó sua grandessíssima cabra!
Claro que a conta estava a zeros, uma vez que as Finanças limparam tudo o que entrou. E claro que voltarão a limpar o que voltar a entrar se eu entretanto não fizer nada para alterar o rumo das coisas.
E claro que a senhora madura tinha a obrigação legal de me alertar para tudo isto.
Saí dali a bater com os pés de cólera e falei com o meu advogado nesse mesmo dia. Ainda deixei escapar uns berros, porque, acima de tudo, eu não percebia. Se a lei manda os bancários fazerem uma coisa, por que é que eles se esforçam tanto para fazer outra? O que vem a ser este filme? O que é que eles ganham com isso?
“Não ganham nada,” disse-me o meu advogado. “Por causa das contas penhoradas, os bancos até perdem dinheiro.”
“Então eles fazem isto porquê?”
“Porque têm medo.”
“Têm medo?”
“Pois têm.”
“Mas medo de quê?”
“Então… ó Clarinha… como é que tu dizes? Ah, têm medo da própria sombra! Têm medo de fazer porcaria, têm medo uns dos outros, têm medo dos chefes, controlam-se, espiam-se, é um ambiente de cortar à faca.”
Eu sei, de fonte incontestável, que os bancários são uma classe muito castigada. Em plena euforia do governo Guterres e da EXPO98, eram o grupo profissional que mais procurava o acompanhamento dos psiquiatras[1]. Entre várias outras coisas horrivelmente humilhantes, chegaram a ter que vender ao balcão férias no Algarve e jogos de faqueiros, uns em aço e outros em prata[2]. A vida deles é dura? Decerto. Mas e a nossa? Se calhar não é? Precisarei de voltar a dizer que os portugueses, quando chegam ao ponto de abrir contas nos bancos de Estremoz, não estão necessariamente a usá-las para ocultar os milhões que desviaram para aquele seu opulento offshore na Grande Caymão[3]?
Já agora, para vos provar que sei mesmo imensa coisa sobre dinheiro sujo, vou contar-vos uma história que se passou comigo na Grande Caimão, quando fui velejar à volta do mundo no três mastros de um comandante sueco meu amigo.
Aquilo a gente chega lá e a rua principal é toda ela bancos, que têm diante deles, no passeio, um porteiro muito jovem e simpático que nos convida sempre a entrar. Tudo isto se passa no rés-do-chão, e no primeiro andar ficam os bares e os restaurantes para os clientes fazerem horas, quase todos com vista para o porto. Como já estávamos todos um bocado fartos da comida do iate, decidimos ir almoçar numa daquelas esplanadas simpáticas.
De repente vimos uma grande fumarada, e percebemos que estava alguma coisa a arder no porto.
Perante a leviandade dos outros comensais, que nem sequer se dignaram a desviar o olhar, fomos nós a correr ter com o porteiro, a gesticular e guinchar sobre a questão do incêndio.
“Ah,” disse-nos o jovem bonitão, muito simpático. “Não se preocupem. De certeza que é alguém que pegou fogo ao barco.”
“O quê?”
“Pois. Não é? Um gajo tem um montão de documentos incriminatórios, certo? Então deita-os todos para o porão do barco… faz-se ao mar… atraca na Grande Caimão e…” – gesto dramático – “up in smoke!”
“Uau!” – disse logo eu, que sou uma verdadeira bandida e não consigo deixar de ficar legitimamente impressionada com estas coisas.
E, declarando-me assim culpada, esta caixa de texto substitui por hoje as notas de rodapé.
Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora
[3] A avaliar pela maneira enfurecida como as Finanças me tratam, é sempre onde eu imagino que “eles” imaginam que eu tenho o meu opulento offshore.
[4] Só para que conste, devo a caixa de texto que ilustra esta crónica ao meu grande e terno amigo e protector Luís Laureano Santos.
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Face à desconfiança que permeia a classe política devido aos efeitos dos recentes escândalos de corrupção, estas novas eleições legislativas surgem como uma oportunidade inesperada para redefinir o panorama político nacional em dois níveis: oferecendo à direita a possibilidade de recuperar a influência perdida e aos novos partidos a ocasião de ampliarem sua voz e ganharem maior escrutínio.
Para analisar a publicidade, o filósofo e linguista Roland Barthes propõe três níveis – icónico, simbólico e linguístico -, os quais serão aplicados nesta sétima análise dedicada ao LIVRE, partido fundado em 2014 por um grupo de cidadãos portugueses, com destaque para o historiador e escritor Rui Tavares. Começo a análise pela designação polissémica do partido: “livre” é tanto um verbo quanto um advérbio ou um adjectivo de dois géneros, incorporando a acção e os valores que o caracterizam. Desde logo esta denominação permite posicionar de forma clara este partido na ala esquerda, integrando princípios como independência, isenção e desembaraço, sugerindo ausência de comprometimento.
Quanto ao seu logótipo, foi escolhida a papoila, uma flor delicada e frágil. Se por um lado, simboliza a paz, por outro, as papoilas vermelhas estão relacionadas com o sono eterno e a morte. Nos Estados Unidos, simbolizam os heróis de guerra falecidos, pois diz-se que cresceu em campos de batalha onde muito sangue foi vertido. Por outro prisma, o design desta flor vermelha, cor que expressa valores de esquerda, tem o centro preto composto por um círculo central rodeado de cinco pontos que lembra a impressão de uma pata animal. Uma iconografia que está muito em consonância com o princípio basilar da ecologia. Curiosamente, o principal uso terapêutico desta planta anual, que floresce entre Fevereiro e Setembro, é calmante, à semelhança aliás, da prestação discursiva sonolenta do seu líder.
Sendo o LIVRE defensor de princípios progressistas, ambientalistas e de equidade de género, o seu discurso é naturalmente moldado pela ideologia de género e a defesa de paridade entre mulheres e homens. No entanto, a sua lista de candidatos para as eleições Legislativas de 2024 é composta por 49 homens versus 25 mulheres, o que revela um desequilíbrio de género, com apenas 34% de candidatas. A coerência está mais cara do que o azeite Gallo Virgem Extra.
Se em tempos, Rui Tavares revelou algum pêlo na venta, quando em 2011 abandonou a delegação do Bloco de Esquerda ao Parlamento Europeu, acusando Francisco Louçã de ser incapaz de lidar com opiniões contrárias, ultimamente tem vindo a assumir-se como caçador de alianças, adoptando uma postura low profile. Tal está bem patente no anterior slogan da campanha “Bota acima não abaixo!” das legislativas de 2022, assumindo o apoio ao PS, diria incondicional, defendendo a noção que assim se facilitaria a governação. Uma oposição meiga e carinhosa.
No próximo dia 10 de Março, o LIVRE, que este ano celebra uma década, visa triplicar a sua representação na assembleia, passando de um deputado para três. Um resultado que tem a grande vantagem de resolver a centralidade na figura de Rui Tavares. Fazendo jus aos seus princípios de equidade, esta campanha eleitoral pode ser uma oportunidade para dar a conhecer os outros rostos — personalidades geralmente com muito pouca projecção mediática — que querem levar ao parlamento. Sublinha-se que segundo um estudo realizado pela Imago-Llorente & Cuenca em parceria com a Universidade Católica Portuguesa e divulgado em 2015, Rui Tavares foi considerado o político mais influente da rede social Twitter em Portugal. Talvez por isso seja considerado um activista, nova profissão bastante em voga.
Ao contrário da maioria das campanhas adversárias que estão na rua, o LIVRE começou por um cartaz sem o retrato do líder, talvez para não evidenciar o facto de ser sempre a mesma pessoa. Assim, não se aproveita da credibilidade e notoriedade da sua figura principal, preferindo uma composição gráfica neutra centrada na iconografia da flor. Com dois motivos de outdoor, vemos uma imagem close-up do carpelo, também chamado de pistilo, que representa a parte reprodutiva feminina da flor, geralmente localizada no seio da estrutura floral.
Sendo o outdoor uma peça de comunicação que é lida numa fracção de segundo, esta imagem pode ser confundida com um ácaro ou um vírus, o que é natural após sermos expostos a tantas imagens científicas do SARS-CoV-2. Embora a composição seja atraente e com cores distintivas, pode este elemento gerar alguma repulsa.
As cores predominantes da campanha do LIVRE nestas eleições são o verde lima e o vermelho aberto, destacando os ideais ambientalistas e de esquerda desta iniciativa política europeísta. Estas cores simbolizam a postura do partido em relação às questões ambientais e às políticas progressistas. O LIVRE declara que “A única hipótese que os europeus têm de conseguir enfrentar esta fase de grande instabilidade internacional é terem união contra os imperialismos. Nós (LIVRE) somos contra todos os imperialismos, quer o dos EUA, quer o da Rússia”, argumenta Rui Tavares.
Nos dois outdoors de 8×3 metros, a designação do partido é destacada com grande protagonismo, atingindo o desejo por liberdade de um certo eleitorado. No centro, um headline apresenta duas mensagens complementares: no primeiro, lemos “o país que queremos”, enquanto no outro são resumidas em apenas três palavras-chave que materializam a promessa eleitoral: “verde. justo. juntos.” Em ambos os casos, que coexistem no espaço público, o apelo é simples, claro e fácil de memorizar. O ano de 2024 é escrito usando várias cores, evocando a diversidade cromática do movimento LGBTQIA+, o que contrasta com o preto da sua designação que aparece ao lado. Apesar de estar destacada por uma caixa branca, o facto de estar à esquerda reduz a sua força.
O XIII Congresso do partido, realizado nos dias 27 e 28 de Janeiro passados, marcou uma mudança no design da campanha, graças ao envolvimento do atelier de comunicação Change is Good, sediado em França e fundado pelo designer português José Albergaria, que também esteve à frente da direcção da campanha presidencial de Ana Gomes em 2021. Nesta nova fase, o partido optou por manter um grafismo sem imagem fotográfica, com composições geométricas, uma verde e outra vermelha, em sintonia com os outdoors. Além disso, lançou um novo slogan, “Contrato com o FUTURO”, com o logo recentemente redesenhado abaixo, onde a palavra LIVRE ganha destaque e permite uma dupla leitura, ao acrescentar-se à promessa “Contrato com o Futuro Livre”.
Considerando as declarações de Rui Tavares sobre a visão para Portugal, que inclui uma economia de alto valor acrescentado, conhecimento e descarbonização, com o objectivo de erradicar a pobreza estrutural, é surpreendente observar que o partido optou por promover-se com cartazes de pequeno formato, feitos em placas de PVC alveolar fixadas com abraçadeiras de plástico, uma escolha que vai contra as preocupações ambientais. Esperemos, pelo menos, que possam ser retirados e reciclados no futuro, prolongando seu ciclo de vida, como a CDU tem conseguido fazer.
Recentemente, foi lançado um motivo em que finalmente aparece um grupo de candidatos sorridentes com Rui Tavares no centro com uma fotografia meio amadora com um pinheiro em pano de fundo. A composição mantém-se capitalizando as anteriores versões, mas como um novo repto: “Como o futuro deve ser”. Uma abordagem que vem contrabalançar a percepção pública de que o LIVRE se centra muito na sua figura, corroborando com a resposta do historiador que afirmo que o partido sempre funcionou de forma plural.
É verdade que o LIVRE é quem menos investe em propaganda. Todavia, em comparação com 2022, seus gastos duplicaram, totalizando cerca de 95 mil euros. Destes, 35 mil são dedicados à campanha de outdoors (estruturas, cartazes e telas) e 10 mil para concepção e estudos. Apesar disso, trata-se de um investimento modesto se considerarmos os oito milhões gastos pelo conjunto de partidos com assento parlamentar. É importante destacar que é um dos partidos com eleitores mais escolarizados, sendo que 60% deles frequentaram a universidade. Em relação à idade e ao sexo, não há diferenças significativas.
Há quem considere intrigante a trajectória política de Rui Tavares (ou Ruizinho, como é carinhosamente chamado por alguns jornalistas), que parece seguir uma linha consistente de procura de novos cargos: até 2025, é vereador sem pasta na Câmara Municipal de Lisboa, sendo assessorado por oito especialistas em part-time, cujos contratos totalizam 280 mil euros. Agora, assume a liderança da candidatura para estas eleições legislativas e deixa em aberto a possibilidade de uma candidatura às eleições europeias previstas para Junho. Numa entrevista à agência Lusa Tavares justifica a decisão afirmando: “As pessoas sabem perfeitamente o que a Europa e o projecto europeu significam para mim, e que é uma área na qual tenho tido sempre muita actividade, empenho e interesse”, em jeito de carta de motivação à UE.
As campanhas eleitorais representam momentos privilegiados na vida política democrática, nas quais são concebidas estratégias e tácticas para transmitir mensagens e persuadir. É essencial respeitar as expectativas fundamentadas em acções reais que sustentam tais apostas.
Na cobertura da campanha, o LIVRE tem agitado a comunicação social ao frisar que “alguns são levados ao colo”. Tal afirmação, conforme observado por muitos, pode parecer ligeiramente descabida para um político que é protegido por algumas figuras filantrópicas mundiais. Há quem diga até que estas mesmas figuras também financiam muitos órgãos de comunicação social através de suas organizações ou fundações.
Citando o linguista Patrick Charaudeau, “o discurso político na arena pública envolve um jogo de máscaras e de imagens construídas no discurso.” Ora, se a eloquência do discurso existe, a consistência não parece ser uma preocupação. Basta recordar a polémica em torno da antiga deputada Joacine Katar Moreira, eleita em 2019, que viria a representar o partido por cerca de apenas dois meses. O meu filho, que na altura tinha 8 anos, até sugeriu a mudança de nome do partido para “NÃO MUITO LIVRE”.
Sara Battesti é especialista em Comunicação
Avaliação do cartaz
Design: 3/5
Impacto: 3/5
Eficácia: 3/5
Média: 3/5
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
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