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  • 10 de Março: uma oportunidade para despolarizar

    10 de Março: uma oportunidade para despolarizar

    O resultado das eleições de 10 de Março não deixou ninguém indiferente. O grande vencedor das eleições foi o Chega, que, para além de ter passado de 12 para 50 mandatos, contribuiu para uma surpreendente redução da abstenção. Pessoas que nunca tinham sequer votado, ou que não votavam há muito, sentiram-se mobilizadas pelo partido de André Ventura. Nestes casos, contam-se muitos jovens, que, saturados com a situação do país, depositaram no Chega a sua fé numa mudança.

    Agora, o futuro afigura-se imprevisível, mas se há efeito que devia brotar destes resultados eleitorais, é este: o travar de um discurso que insiste numa visão maniqueísta e simplista, onde os eleitores do Chega são perigosos fascistas, reacionários, ou estúpidos. No contexto actual, a ideia de que quase 1.200.000 portugueses votaram no Chega porque são antidemocráticos é demasiado curta, preguiçosa, e ignora a heterogeneidade deste universo de votantes.

    Por vezes, vemos também uma postura elitista e sobranceira que pretende diminuir os eleitores do Chega, e a sua inteligência, apelidando-os de ignorantes e boçais. Os arautos da inclusão terão, afinal, algum preconceito para com as camadas menos letradas da população?

    Muitos consideram ingénuo acreditar que o Chega será a mudança que diz ser para o país, e de facto, até agora, temos poucos motivos para crer que o partido de André Ventura terá qualidades superiores aos partidos que nos têm governado. Contudo, aplicando-se o mesmo raciocínio, não deveria chamar-se com o mesmo fervor de incautos aos milhões de portugueses que continuam a votar no Partido Socialista [PS], depois de anos a fio de fraca governação?

    É até muito mais lógico confiar o voto a quem ainda não tem “cadastro”, do que a um partido, ou a um “bloco central” que, de forma reiterada, já deu provas de que não o merece. E, embora tenha perdido muitos dos votos obtidos em 2022 – cerca de meio milhão -, o PS nem sequer foi fortemente penalizado nestas eleições. A sua desvantagem em relação à Aliança Democrática foi tão exígua que, se o PSD não tivesse concorrido em coligação com o CDS-PP, provavelmente Pedro Nuno Santos seria dado como vencedor – pelo menos, pondo de parte o assinalável crescimento da direita. Ora, como é que os eleitores socialistas podem merecer a complacência daqueles que condenam quem dá um voto de confiança a quem nunca governou?

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    Quase duas semanas depois das eleições, há alguns efeitos visíveis. Há quem se mostre agora mais disposto a tentar compreender o ponto de vista de quem pensa, e vota, num sentido diferente, e a dialogar e a criar pontes. Outros, infelizmente, parecem agarrar-se com o mesmo – ou ainda mais – afinco a uma visão dicotómica do mundo, em que de um lado estão os bons, e do outro os maus.

    Para estes últimos, não deveria ser difícil perceber os motivos que levaram ao crescimento do Chega, que são mais que muitos, e até legítimos, por muito que lhes seja confortável enterrar a cabeça na sua ideologia e recusarem-se a ver óbvio. É evidente que os eleitores do Chega não são criaturas temíveis e medonhas, que devemos enxotar a todo o custo. Muitos, talvez a maior parte, são pessoas normais, insatisfeitas (e quem pode estar satisfeito?), que viram neste partido uma possibilidade de inversão de rumo. Se viram bem, é discutível. Mas, então, que se discuta, e se debata, com mais abertura e respeito mútuos, e menos chavões e epítetos ocos.

    Também é pertinente reflectir sobre a vitória do Chega dada pelos emigrantes, e que nada tem de paradoxal, incoerente ou hipócrita, sabendo nós que estes portugueses foram obrigados a emigrar, precisamente, devido às políticas do centrão. É, pois, natural que tenham batido com o pé, votando no partido que se diz antissistema. Além disso, a forma lamentável como o Partido Socialista tem (des)tratado os emigrantes teria de ter consequências. O contrário é que seria de estranhar.

    Finalmente, se queremos combater esta cultura de trincheiras, é preciso reprovar a atitude antidemocrática e deplorável de um outro vencedor destas eleições: o Livre. Rui Tavares, arrolando os argumentos mais mirabolantes, tentou fazer tábula rasa do voto de mais de um milhão de portugueses, conspurcando o partido de André Ventura como se este não contasse para nada. Mostrou a essência do seu partido: um lobo em pele de cordeiro, porventura o mais perigoso à esquerda, de tão cínico e dissimulado.

    Sempre debitando palavras vãs e evocando a defesa da democracia, esta esquerda dita “moderada”, “fresca” e “cosmopolita”, revelou-se o seu oposto. Engendrando uma bizarra e sinistra teoria ao melhor estilo democrático, numa espécie de “vamos a eleições até que a esquerda consiga maioria para governar”, Rui Tavares comprovou que de democrático, tem pouco, e de divisivo, tem muito.

    Maria Afonso Peixoto é jornalista


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


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  • Jornalistas como defensores da democracia: o grande embuste

    Jornalistas como defensores da democracia: o grande embuste


    Vimos, na passada quinta-feira, uma classe em greve. Muitos jornalistas pararam. Muitas notícias não foram publicadas ou emitidas nas TVs e rádios. Muitos eventos não tiveram cobertura da imprensa.

    A greve dos jornalistas surgiu num momento particularmente triste para a imprensa em Portugal. O Diário de Notícias (DN) está num ‘buraco’, tanto financeiro como de credibilidade.

    Já escrevi várias vezes sobre a minha ligação afectiva ao DN, um jornal que entrou no meu coração quando, na infância, fiz uma visita de estudo à redacção do jornal e vi como era impresso. Guardo comigo a placa com o meu nome que trouxe de lá.

    Quando assinei notícias e entrevistas no DN, não era eu quem assinava. Era a miúda que se apaixonou pelo jornal naquela visita de estudo.

    (Foto: D.R.)

    Isso não me impede de ver como o jornal foi destruído ao longo dos anos, sobretudo nos anos mais recentes. As péssimas decisões de (má) gestão e a explosão da Internet e das redes sociais não explicam tudo. Também directores do jornal e jornalistas se sentaram ‘à mesa’ com o poder político e económico, com quem tinha poder, esquecendo o que era o DN e esquecendo o que é ser jornalista.

    Isto aconteceu também em outros meios de comunicação social. Tem sido mais visível, nos últimos anos, a grande quebra na qualidade da informação difundida pela imprensa. A precariedade, os baixos salários (para muitos, não para todos) e a praga do churnalism não explicam tudo. Também tem sido mais visível o enviesamento, a falta de rigor, a colagem ao poder político, económico e financeiro. Mas já existiam antes, talvez não fossem tão óbvios. Hoje, o enviesamento, está em níveis estratosféricos, ao ponto de muitos jornalistas nem perceberem que deixaram, há muito, de se comportar como jornalistas e são apenas meros papagaios.

    Em geral, os jornalistas e as direcções dos jornais acompanham o ambiente de cultura de cancelamento, censura e condicionamento da liberdade de imprensa e de expressão que é promovida, hoje, pelas grandes tecnológicas como a Meta (dona do Facebook) e a Google (dona do YouTube). Foi evidente na pandemia. Tem sido evidente no tema da guerra na Ucrânia. Tem sido evidente no conflito em Gaza.

    Jornalistas e directores podem ter ganho amigos poderosos com isso. Podem achar que assim são bem vistos e aceites pela generalidade dos pares. Mas os leitores vão percebendo que isso não é compatível com o Jornalismo. Daí ter também surgido o termo ‘jornalixo’ – que abomino.

    Muitos jornalistas portugueses vivem numa bolha. Pensam que são ‘especiais’ por serem jornalistas e pensam que são donos da verdade e que são ‘o farol da democracia’. Nada podia estar mais longe da verdade. A falta de humildade, de isenção, de pensamento crítico e rigor de muitos jornalistas dos grandes grupos de comunicação social são asfixiantes. Não se respira verdadeiro Jornalismo nas redacções dos grandes grupos de media portugueses, hoje, em geral (com raras excepções).

    Por outro lado, os jornalistas que querem fazer bom jornalismo não conseguem. Têm sido inúmeros os relatos que me chegam de jornalistas que não têm tempo para investigar e são pressionados a fazer notícias ao segundo. Outros não têm sido autorizados a fazer determinadas investigações, reportagens, entrevistas e notícias. Outros, já nem se ‘atrevem’ a propor alguns temas. Preferem salvar os seus postos de trabalho (para já).

    Nos media, como no mundo académico, está instalado um ambiente pútrido e podre de caça à opinião ‘divergente’ e de bullying e difamação em relação ao ‘dissidente’. Os factos, a verdade e a democracia pouco são para ali chamados. Quem diverge das ideologias e visões da moda é classificado como sendo militante de ‘extrema-direita’, ‘radical’. Dependendo do tema, o bullying e a difamação envolvem os mais diversos insultos e nomes pejorativos.

    É um ambiente de perseguição mas também de discriminação. Basta lembrar a discriminação e o discurso de ódio promovido nas TVs, jornais, revistas e redes sociais por alguns jornalistas e directores de órgãos de comunicação social durante a pandemia.

    Alguns desses jornalistas e directores são os mesmos que afirmam ser “totalmente” contra qualquer tipo de “discriminação”, contra “todo” o “discurso de ódio” e que dizem defender a “soberania sobre o próprio corpo”. Isto não se inventa. Isto é o populismo em acção.

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    (Foto: D.R.)

    O mesmo ambiente de falta de rigor informativo, falta de isenção, enviesamento e perseguição é visível, hoje, na cobertura das eleições legislativas.  Além da falta de pluralismo, em geral, com partidos de ‘primeira’ e partidos de ‘segunda’. (Daí o PÁGINA UM ter levado a cabo uma iniciativa única na imprensa, a rubrica HORA POLÍTICA, para dar voz aos líderes dos 24 partidos existentes em Portugal.)

    Não votei num partido do espectro da direita. Mas farei tudo para que os portugueses e os europeus possam votar no partido que bem entenderem. Democracia é também isso. E é igualmente respeitar a decisão de quem vota.

    E, como jornalista, não posso – não devo – fazer uma cobertura diferente dos partidos consoante sejam de esquerda ou extrema-esquerda, de centro, de direita ou extrema-direita, ou partidos que assentam no princípio de serem formados por cidadãos independentes.  

    Democracia não é só quando ganha o “meu” partido. Mas, nestas eleições legislativas, ficou claro que, para alguns – incluindo jornalistas –, mudou o conceito de ‘democracia’.

    Desde logo, com a reacção ao queimar de um cartaz de um dos partidos – do Chega –, um acto que foi bem visto, em geral, na imprensa. Tivesse acontecido com um partido que se diz de esquerda ou de extrema-esquerda e caia o Carmo e a Trindade. Depois, com a forma claramente enviesada, deturpada e indigna como a maioria da comunicação social trata o Chega e André Ventura.

    (Foto: D.R.)

    A forma como a maior parte dos jornalistas e da imprensa trata o Chega e Ventura não é mau para Ventura nem para o partido. É mau para o Jornalismo e para a imprensa. E para os jornalistas.

    Aliás, com a má imagem que muitos portugueses têm dos jornalistas, quanto pior a imprensa tratar Ventura e o Chega, mais votos terão.

    Agora, é comum ver-se na imprensa notícias e artigos e entrevistas que difundem ideias sobre os perigos do populismo na Europa e da ascensão da extrema-direita (mas, para os media, quase tudo hoje que não é de esquerda é ‘extrema-direita’). Mas são a imprensa e os partidos no poder que têm sido decisivos para o crescimento dos votos em partidos de direita, populistas e de extrema-direita.

    É difícil encontrar notícias, entrevistas e artigos de opinião sobre um outro facto muito concreto e perigoso: a grande ameaça para a Europa, a democracia e a liberdade tem sido protagonizada pelos políticos que têm liderado a região nos últimos anos.

    Os relatórios que mostram um enorme recuo no nível de democracia nos países do Ocidente são claros. Os alertas de jornalistas, de activistas dos direitos humanos, de políticos e de reputados académicos e cientistas acerca da crescente censura e do condicionamento da liberdade de imprensa e de expressão são claros.

    white and black typewriter on green grass

    Não têm sido ‘partidos populistas’ ou a ‘extrema-direita’ que têm aprovado leis e regulação que constituem uma ameaça à liberdade de imprensa, à liberdade de expressão, aos direitos humanos e aos direitos civis. Tem sido a Comissão Europeia, o Parlamento Europeu e governos que têm tido o apoio de partidos que se dizem de ‘esquerda’, como é o caso de Portugal.

    O mesmo se passa em países como o Canadá, Estados Unidos, Nova Zelândia, Austrália e Brasil. Nestes países, a liberdade de expressão, os direitos humanos e civis estão sob séria ameaça. Por isso, na Europa como em outras regiões, a população ‘abandona’ partidos que, se afirmando de ‘esquerda’, estão cada vez mais com tiques totalitários e de tirania (e de perseguição dos jornalistas isentos e não comprometidos com o poder).

    Não são partidos ‘populistas’ ou de ‘extrema-direita’ que estão a promover e que pretendem subscrever na íntegra – sem negociar – as alterações perigosas e desumanas ao Regulamento Sanitário Internacional. São partidos como o PS e o PSD. É a Comissão Europeia.

    Não são partidos ‘populistas’ e de ‘extrema-direita’ que apoiam e aprovam gigantescos desvios – de milhares de milhões de euros – de dinheiros públicos para entregar às poderosas indústrias de venda de armas para a compra de armamento e equipamento militar, para criar uma “economia de guerra”. (Aliás, pergunto-me onde andam os pacifistas da ‘esquerda’ em Portugal e outras países na Europa).   

    black and white labeled bottle
    (Foto: D.R.)

    Mas os jornalistas portugueses ignoram tudo isto. Se assistirmos aos noticiários, se lermos revistas, jornais e sites dos media, a ameaça é o Chega, os partidos populistas e a extrema-direita.

    Nenhuma notícia ou opinião (tirando uma ou outra excepção) sobre como as forças, os interesses e os políticos que têm estado no poder em Portugal e a nível comunitário têm colocado em risco a liberdade de imprensa, a democracia e os direitos humanos e civis. (E a paz e a defesa do meio ambiente, a meu ver.)  

    Isto só acontece porque os media estão capturados por interesses políticos e económicos. E porque há jornalistas que esqueceram o que é ser jornalista. Apropriaram-se da ‘verdade’, mas difundem notícias enviesadas e carregadas de ideologia. Pensam ser um ‘farol da democracia’ e fazem um trabalho sem o mínimo pensamento crítico, rigor e busca pela isenção.

    O Jornalismo é, para mim, uma das profissões mais belas. É uma Arte. E é fundamental para manter os poderosos sob escrutínio. Para o Jornalismo viver é preciso que haja jornalistas, profissionais com vontade de cumprir escrupulosamente os princípios que regem a profissão, incluindo o rigor, a isenção, a independência. Ter pensamento crítico, literacia em diversas áreas e cultura geral ajudam. Mas, se os jornalistas seguirem as regras de base no Jornalismo, também farão um trabalho competente.

    Mas, por enquanto, muitos jornalistas portugueses preferem continuar a viver na bolha. A bolha em que preferem ignorar que os media são coniventes com os poderes políticos e económicos. A bolha em que os jornalistas se sentem especiais, deixaram de ser humildes, e vivem agarrados às suas ideologias, crenças e preconceitos, agarrados à moda dos slogans do wokismo e dos slogans dos spin-doctors pagos pelos grandes partidos e pelas indústrias e lobbies. Os mesmos que, depois, pagam as parcerias comerciais com os grandes grupos do sector da comunicação social, como a Global Media, que é (ainda) a dona do DN.

    (Foto: D.R.)

    Enquanto a esmagadora maioria dos jornalistas, e quase todos os directores dos principais órgãos de comunicação social, viverem na bolha, a democracia continuará em risco e o Jornalismo também. Porque ser jornalista é a melhor profissão do mundo, mas também acarreta uma enorme responsabilidade: a de se ser independente, rigoroso e isento. De fazer escrutínio dos poderes. E de ser livre de amarras feitas em almoços e jantares com políticos, banqueiros, comentadores comprometidos, ‘almirantes-aspirantes-a-Presidente-da-República’ e lobistas de toda a espécie.

    Os jornalistas podem continuar a querer viver na sua bolha. Mas enquanto não fizerem greve aos fretes, às ideologias, às conferências pagas, aos podcasts patrocinados (encomendados) e aos almoços e jantares com poderosos, a democracia e o Jornalismo continuarão em risco.

    Pode já não se conseguir salvar o DN. Mesmo que venha a ser alvo de perdão de dívidas e de uma mega injecção de dinheiros dos contribuintes (o que não defendo), dificilmente voltará a ser o mesmo de outrora. Mas pode ainda salvar-se o Jornalismo e a profissão de jornalista. Assim, os leitores exijam, os reguladores actuem e os jornalistas queiram.   


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  • Condução

    Condução

    É qualquer coisa como uma calma natural – não diria paz, diria harmonia. O motor segue, trabalhando, naquele compasso próprio, e ronronado, mais rápido do que nós poderíamos andar, talvez mais seguro, dependendo apenas da capacidade de ele, o carro, curvar, como se quer e para onde se quer, mesmo se a chuva martela o seu fino tecto sem piedade.

    Mãos calejadas de bate-chapas. E a forma como, numa curva, se desfaz a manobra, largando o volante na pressão exacta para deslizar pelas mãos, e pelos calos, de uma forma suave, macia, meiga, num shush arrastado, parecendo um corpo a esfregar-se nos lençóis ainda quentes da manhã.

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    Tanto assim é que, aliás, estamos sentados, a bordo da “viatura”, veículo, nave, como que argonautas percorrendo o mundo. E o mundo se move lá fora, tanto que estamos, aliás, sentados, a bordo, gestos suaves nos pedais, pressão suave no volante. E o mundo se abre à chuva, lá fora, e o sol tímido de Primavera surge e nos cega pelo vidro, ali, enquanto estamos, aliás, sentados.

    Sentados.

    Sentados.

    E o mundo é que se move lá fora.

    Cheiro a óleo de motor numa cave escura, panos esfarrapados tingidos de negro, tinir de martelos na distância, chapa amolgada, a queda de uma peça, metal, metal, metal. Calos nas mãos, e a pressão exacta que se exerce, com paciência, na condução, metade do caminho nem por nós é feito, mas pelo mundo que se move lá fora, forças cinéticas que nos levam, alguns a segurarem o leme, outros só à boleia.

    A acidez industrial que nos penetra as narinas, e sabemos que o mundo se constrói assim, de forma suja, veloz, violenta (mas a pressão exacta e a suavidade do couro nos calos das mãos, shush, shush).

    Fatos macacos azuis, semanas de segundas a sábados. Domingos desmaiados num sofá, que se esmaga debaixo de ossos, que vibraram em demasia em cada martelada. Sestas com sonhos nebulosos, e a pressão da água a ferver em radiadores que se preparam para declarar a sua irritação. Velas, faíscas, ar, combustível.

    white vehicle on road

    A forma de condução diz tudo de uma pessoa (já viste, já viste?) – se tem o sangue quente de novos imortais ou a frieza conformada de velhos curvados (que força é essa, que força é essa que trazes nos braços?).

    A espacialidade, a navegação, a rota imaginária. O olhar de soslaio para um retrovisor na esquerda, na direita (em cima?) e o não parar e o parar também.

    Há homens que nascem para conduzir uma vida inteira (eterna), conduzem e engatam mudanças, quebram ciclos com o pé na embraiagem, travam ao de leve, gerindo a poupança de calços, nariz no ar a medir a máquina, ouvidos afilados a auscultar os sussurros.

    Se tirais a máquina ao homem, que conduz, é vê-lo lá, desmaiado a um domingo eterno, durante a sesta, a premir ligeiramente o pé direito no acelerador e a mão (e os calos) a engatar a mudança, o volante a deslizar na curva de saída da via rápida, e o horizonte agora tão longe, porque a máquina se vai sem eles (e agora? E agora?).

    Agora, é montar puzzles, cismar, sem saber se envelhece, porque parou, ou parou porque envelhece.

    Como podemos nós envelhecer se ainda nos lembramos tão bem de ter sangue quente de jovem imortal, mas dentes que caem, gengivas que retraem, calos que amolecem, joelhos que petrificam se sentados.

    assorted-color car lot

    Sentados.

    Sentados.

    Ajustes na máquina. Calibragem, nariz no ar, a medir, ouvidos afilados, a auscultar. Reserva de combustível tem impurezas, contamina o circuito e tolhe os movimentos.

    Fatos macacos azuis.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


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  • Sou jornalista, não fiz greve e não tenho a cara de pau do Luís Delgado

    Sou jornalista, não fiz greve e não tenho a cara de pau do Luís Delgado


    Sou sincero. Não fiz greve nem ponderei fazer. Enquanto em simultâneo – como sócio maioritário e gestor de um pequeno órgão de comunicação social, com um mísero capital social de 10.000 euros, mas sem dívidas – escrevia mais um caso de contratações públicas de duvidosa legalidade e de questionável ética, congeminava argumentos para escrever um editorial sobre a razão para não participar na greve, mesmo sendo sindicalizado.

    Tinha uns quatro ou cinco motivos para explanar, mas eis que me enviam um texto de um outro gestor de uma empresa de comunicação social também com um capital social de 10.000 euros que escreveu este texto na revista Visão:

    Hoje estou em greve! Sou jornalista, não no ativo, mas acompanho todos os que vão parar neste dia. E incentivo essa manifestação de vontade, fortemente.

    Não é só o SNS, a Educação ou a Habitação que estão na Constituição. Também está a Comunicação Social. E para essa Carta Fundamental e fundacional ter existido, foi necessário ter uma Imprensa livre, respeitada e segura.

    people having rally in the middle of road

    Esta nova AR [Assembleia da República] e Governo têm o dever e a obrigação de prestar a mais básica atenção a toda a Comunicação Social.

    Era o que faltava preocuparem-se apenas com a RTP, RDP e Lusa. Merecem, sem dúvida, mas são a ínfima parte da Imprensa em Portugal.

    Com a Imprensa em greve, está suspenso um dos pilares fundamentais e independentes da Democracia. Assim não pode ser!

    Este texto é – como já exposto no título deste meu editorial – da autoria de Luís Delgado – um ex-jornalista, que é muitíssimo diferente de se ser “um jornalista, não no ativo” –, o detentor único da Trust in News, a empresa de media com um capital social de 10.000 euros (como a empresa do PÁGINA UM) que almejou comprar 17 títulos à Impresa no início de 2018, num nebuloso contrato que incluiu dinheiros do Novo Banco, a ser então intervencionado por um mecanismo de capitalização com fundos estatais.

    Ora, o “jornalista, não no ativo” Luís Delgado, que hoje fez greve, é um dos algozes da imprensa (e personifica todos), que transformaram a nobre função de watchdog do Jornalismo num servil vassalo do poder e dos interesses económicos e financeiros por força de sucessivos endividamentos e falta de ética e vergonha na cara.

    Photograph of a Vintage Typewriter on Table

    Em Economia há duas máximas: sem um produto de qualidade não há procura; e a falta de ética conduz a práticas de concorrência desleal, que a todos afectará.

    Ora, foi o “jornalista, não no ativo” Luís Delgado, que hoje fez greve por um jornalismo credível e independente, que, com os seus ‘produtos’, agora enxameados de parcerias comerciais promíscuas, foi permitindo, com a conivência do Governo socialista (a ‘festa’ começou desde o início de 2018), uma gestão ruinosa que acumulou sem parança dívidas astronómicas ao Estado, que foi escondendo publicamente, porque nem a Entidade Reguladora para a Comunicação Social as queria conhecer (o regulador está mais preocupado com outras minudências).

    Senão vejamos. A Trust in News devia no final de 2018 cerca de 942 mil euros ao Estado. Um ano depois subia para quase 1,6 milhões; em 2020 pulou para 5,1 milhões de euros; a seguir para 8,2 milhões e em 2022 estava já em 11,4 milhões de euros. O PÁGINA UM foi o primeiro e único jornal a falar deste vergonhoso estado de uma empresa de media, em Julho do ano passado.  

    Nada aconteceu. E o “jornalista, não no ativo” Luís Delgado surge agora a fazer greve e a armar-se em arauto do jornalismo credível e independente. Faltou explicar como gere a independência e a credibilidade da informação em 17 títulos da imprensa portuguesa quando a empresa gestora tem um capital social de 10.000 euros e um passivo total de 27,2 milhões de euros.

    PÁGINA UM revelou em Julho de 2023 que a Trust in News tinha um passivo de 27,2 milhões de euros e dívidas ao Estado de 11,4 milhões de euros, Ministério das Finanças sabia e nunca se pronunciou.

    Quem manda – ou quais são os custos para a Imprensa de qualidade – numa empresa onde o tal “jornalista, não no ativo”, único dono de fachada, controla, afinal, menos de 0,04% dos activos?

    Estamos a brincar?  

    Querem que eu faça greve para satisfazer a pedinchice do tal “jornalista, não no ativo”, Luís Delgado, e contribuir assim para que a “nova AR e Governo” concretizem “o dever e a obrigação de prestar a mais básica atenção a toda a Comunicação Social”? E assim, por tabela, ajudar a falida e vendida Trust in News? Ou a Global Media? Ou grande parte dos ‘mastodontes’ que nunca aceitarão que, em tempos difíceis, auxiliar os maus projectos só prejudicará os bons, porque são eles os maus?

    Saibam que a Lei de Gresham aplica-se também à Imprensa. Por isso, querer salvar empregos a todo o custo na Imprensa será o fim do Jornalismo. A greve dos jornalistas faria todo o sentido, mas apenas se fosse por motivos fundamentais, a começar por expulsar do mercado os lobos que se vestem de cordeiros.


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  • A liberdade de dizer coisas abjectas

    A liberdade de dizer coisas abjectas


    1 – Comecemos pelo que deveria ser uma obviedade: defender a liberdade de expressão para as ideias A, B e C não é concordar com as ideias A, B e C. Não compreender isto é não compreender a essência da democracia. Ou defendemos a liberdade de expressão para exprimir ideias que consideramos abjectas, ou não defendemos a liberdade de expressão.

    2 – O artigo «Why Do Citizens Think They Cannot Speak Freely?», de Jan Menzner e Richard Traunmüller, publicado em 11 de Agosto de 2022 na revista Politische Vierteljahresschrift, refere que as restrições à liberdade de expressão têm assolado o mundo dito democrático, e que, na Alemanha, enquanto, em 1971, 83 % dos Alemães se sentiam livres para expressar a sua opinião política, volvidos 50 anos, em 2021, apenas 45 % sentiam tal liberdade. Muito mais dados destes poderiam ser trazidos à colação, designadamente no Reino Unido, em que o direito a não ser ofendido se tem sobreposto à liberdade de expressão, bastando um indivíduo sentir que foi vítima de uma ofensa criminal com base numa determinada característica identitária para isso engrossar as estatísticas dos crimes de ódio.

    angry face illustration

    3 – Entre todas as dissemelhanças das ditaduras, há, pelo menos, uma característica comum a todas: a ausência de liberdade de expressão.

    4 – Se o critério para erigir restrição de discurso for a existência de pessoas que se sintam ofendidas ou melindradas, e se quisermos abranger todos os potencialmente ofendidos ou melindrados, concluiremos que não poderemos falar de nada, porquanto haverá sempre tantas sensibilidades diferentes quantas pessoas houver no mundo. Acresce que vivemos num ambiente cultural em que tudo hoje encerra algo potencialmente ofensivo para alguém. Citando a humorista Joana Marques: «Lembro-me de uma senhora que se ofendeu muito quando falei de comida servida em tábuas. Achei que era dos temas mais inócuos de sempre. Serviu-me de lição.» Vejamos outro exemplo: em lugar de se discutir se Will Smith deveria ter sido expulso da cerimónia dos Óscares na sequência da agressão física a Chris Rock, por causa de uma piada sobre alopecia, o jornalismo centrou-se nos «limites do humor», numa época em que tantos são cancelados e perdem o emprego (por vezes, a carreira, veja-se o que aconteceu a Tim Hunt) devido a uma piada — o que foi cristalinamente sintomático da atmosfera cultural hodierna.

    5 – Para quem entende que as «más ideias» devem ser proibidas, de modo que não se propaguem, sublinhe-se que Hitler e Estaline (muitos outros exemplos podem ser invocados, refiro apenas estes dois por serem muito fortes e muito conhecidos) subscreviam tal crença e que aplicaram tal tese com denodo — e com as consequências que conhecemos.

    photography of woman standing on desert

    6 – Tal como Christopher Hitchens não conhecia um período da História dos Estados Unidos em que «um cerceamento da linguagem» correspondesse a «um alargamento dos direitos», também eu não conheço tal período histórico (nem sequer conheço quem conheça): nem nos Estados Unidos nem fora deles.

    7 – A liberdade de expressão é o corolário democrático de cada cabeça poder pensar diferentemente, e, por conseguinte, o direito de cada um a não ser garrotado quanto à possibilidade de expressão do seu pensamento.

    8 – O direito de liberdade de expressão não é apenas o direito de falar expresso no ponto 7 — é também o (muito menos falado) direito de ouvir e conhecer o que cada um pensa. Quanto maior a autocensura (a censura efectuada pelo próprio) e a heterocensura (a censura do Outro), menos ficamos a saber o que o Outro pensa, ou seja, mais facilmente somos enganados e manipulados. Vejamos um exemplo muito concreto: quem leu e ouviu os comentários feitos no dia 8 de Março, Dia Internacional da Mulher, concluirá, se acreditar, que, no Ocidente, são quase, quase, quase todos feministas encartados.

    9 – Ao longo da História, a ortodoxia dominante foi, não raro, quebrada por vozes de quem era encarado como louco, perigoso, diabólico. Todas as vozes dissonantes têm razão só por serem contra a ortodoxia dominante de determinado tempo e determinado lugar? Evidentemente, não. Assinale-se apenas que, dentro dessas vozes dissonantes, pode haver uma ideia que, ultraminoritária e herética à época, constituirá o embrião das «boas ideias» do futuro. A História está pejada de exemplos e mártires destes.

    10 – Convirá sempre lembrar que erigir tabus não apaga essas ideias impronunciáveis de todas as mentes, mas que apenas esconde a dimensão da sua existência, podendo, com uma probabilidade que não deve ser subestimada, pavimentar a estrada para o surgimento de maiorias silenciosas, que um dia poderão explodir de forma descontrolada. Mais: no dia em que aparece Fulano a quebrar tais tabus, as pessoas poderão vingar-se nas urnas do longo silêncio acumulado.

    people in green and black jackets standing on green grass field during daytime

    11 – A persuasão é um método mais eficaz de mudar mentalidades do que a proibição por decreto ou do que a «proibição» pela via de um ambiente cultural muito opressivo. Para convencer o Outro de que X é melhor do que Y, costuma ser preferível propor e conquistar mentalidades a impor sem ter um número considerável de mentalidades conquistadas. Enquanto a persuasão, os argumentos, as estatísticas, os números, a lógica (e a dose certa de pathos, consoante os auditórios) podem incrustar uma ideia na cabeça do Outro, a proibição incute apenas o medo de se defender uma ideia, desistindo de a inculcar nas mentes alheias pela força das palavras e dos argumentos. Em suma: a proibição é, perdoe-se-me a rima, uma rendição. Quanto ao mais, a proibição vem acompanhada da fragrância sedutora da transgressão, permite a vitimização («Não me deixam falar! Fui censurado! Não posso dizer o que penso! É isto uma democracia?») e cria a dúvida («Se não podemos defender esta ideia, deve haver interesses muito fortes que a querem proibir», «Têm medo de que esta ideia se discuta, estão assim tão seguros dela? Têm medo de quê, afinal?»).

    12 – Se é verdade que a violência verbal pode, em certos casos, concitar a violência física, não é menos verdade que deixar os outros aliviar a tralha que os enraivece pode funcionar como um saco de pugilismo que lhes esvazia o ódio, a raiva e o ressentimento. Daqui se segue que tirar-lhes tal saco de pancada pode desaguar na solidificação do ódio, da raiva, do ressentimento e na expressão de uma maior violência física.

    13 – Quando a censura é desocultada, a ideia proibida e a pessoa amordaçada crescem em simpatizantes. Mais: a solidificação de ódios é garantida, e tanto maior quanto maior a pena para o que disse o que não deveria ter dito.

    14 – Há dois tipos de censura: não podes falar sobre x de certa forma (censura negativa) e tens de falar sobre y desta forma (vejam-se os critérios anunciados para os Óscares).

    grayscale photo of people on street near buildings during daytime

    15 – Muitos terão ouvido a frase atribuída a Voltaire (mas de Evelyn Beatrice): «Não concordo com o que dizes, mas defenderei até à morte o teu direito a dizê-lo.» Seria tão saudável que os habitantes do espaço público a repetissem diariamente e, acima de tudo, a aplicassem. Não deixa de ser curioso que tantos invoquem a liberdade de expressão, mas que tão poucos a invoquem para a defesa das ideias que não são as da sua tribo. Em matéria de confinamentos, da guerra na Ucrânia, de Israel versus Palestina, encontramos tantas pessoas que procuraram garrotar a opinião dos outros e que um dia descobriram o princípio sacrossanto da liberdade de expressão: o dia em que sentiram a expressão das suas ideias cerceada. É forçoso dizer-lhes, de modo que aprendam a duras penas: «Desculpe-me, mas não defendeu a liberdade de expressão para a ideia X. Como pode agora reclamar o sacrossanto direito da liberdade de expressão para a ideia Y?»

    Termino com uma sugestão: faça-se um inquérito, totalmente anónimo, que pergunte a cada jornalista, opinador e comentador: Sente total liberdade por parte da sua entidade patronal para dizer o que pensa?
    Quando escreve ou fala, o medo da reacção das redes sociais e da ortodoxia dominante leva-o/a a não dizer o que pensa?

    Manuel Matos Monteiro é escritor e director da Escola da Língua


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Universidade de Harvard espezinha a verdade

    Universidade de Harvard espezinha a verdade


    Já não sou professor de Medicina na Universidade de Harvard. O lema de Harvard é Veritas, latim para ‘verdade’. Mas, como descobri, a verdade pode levá-lo a ser demitido. Esta é a minha história – uma história de um bioestatístico de Harvard e epidemiologista de doenças infeciosas, agarrado à verdade enquanto o mundo perdia o rumo durante a pandemia de covid-19.

    Em 10 de março de 2020, antes de qualquer solicitação do governo, Harvard declarou que “suspenderia as aulas presenciais e mudaria para o ensino online”. Em todo o país, universidades, escolas e governos estaduais seguiram o exemplo de Harvard.

    (Foto: D.R.)

    No entanto, ficou claro, desde o início de 2020, que o vírus acabaria espalhando-se pelo mundo e que seria inútil tentar suprimi-lo com confinamentos. Também ficou claro que os confinamentos infligiriam enormes danos colaterais, não apenas à educação, mas também à saúde pública, incluindo tratamento para cancro, doenças cardiovasculares e saúde mental. Durante anos vamos estar a lidar com os danos causados pelos confinamentos. As nossas crianças, os idosos, a classe média, a classe trabalhadora e os pobres em todo o mundo – todos sofrerão.

    As escolas também fecharam em muitos outros países, mas sob fortes críticas internacionais, a Suécia manteve as suas escolas e creches abertas para seus 1,8 milhões de crianças, de um aos 15 anos. Porquê? Embora qualquer pessoa possa ser infectada, sabemos desde o início de 2020 que existe uma diferença de mais de mil vezes no risco de mortalidade por covid-19 entre jovens e idosos. As crianças enfrentavam um risco minúsculo de covid-19, e interromper a sua educação iria prejudicá-las por toda a vida, especialmente aquelas cujas famílias não podiam pagar escolas particulares ou tutores para estudar em casa.

    Quais foram os resultados durante a primavera de 2020? Com as escolas abertas, a Suécia teve zero mortes por covid-19 na faixa etária de um aos 15 anos, enquanto os professores tiveram a mesma mortalidade que a média de outras profissões. Com base nesses factos, resumidos num relatório de 7 de Julho de 2020 da Agência de Saúde Pública sueca, todas as escolas dos Estados Unidos deveriam ter reaberto rapidamente. Não fazê-lo levou a “evidências surpreendentes sobre a perda de aprendizagem” nos Estados Unidos, especialmente entre crianças de classe baixa e média, um efeito não observado na Suécia.

    A Suécia foi o único grande país ocidental que rejeitou o encerramento de escolas e outros lockdowns em favor [da estratégia] do foco na protecção dos idosos, e o veredicto final está agora emitido. Liderada por um inteligente primeiro-ministro social-democrata (um soldador), a Suécia teve o menor excesso de mortalidade entre os principais países europeus durante a pandemia, e menos de metade da dos Estados Unidos. As mortes por covid-19 na Suécia ficaram abaixo da média e evitaram a mortalidade colateral causada por lockdowns.

    Crianças a brincar num parque infantil em Estocolmo, em Agosto de 2020. A Suécia manteve a sociedade a funcionar durante a pandemia. Manteve as escolas e creches abertas e recusou confinamentos, em geral. Também não recomendou o uso de máscara facial, com raras excepções. (Foto: PAV)

    No entanto, em 29 de julho de 2020, o New England Journal of Medicine, editado por Harvard, publicou um artigo de dois professores de Harvard sobre se as escolas primárias deveriam reabrir, sem sequer mencionar a Suécia. Foi como ignorar o grupo de controle placebo ao avaliar um novo medicamento farmacêutico. Esse não é o caminho para a verdade.

    Nessa primavera, apoiei a abordagem sueca em artigos de opinião publicados no meu país natal, a Suécia, mas, apesar de ser professor de Harvard, não consegui publicar as minhas ideias nos meios de comunicação social americanos. As minhas tentativas de divulgar o relatório da escola sueca no Twitter (agora X) colocaram-me na lista negra de tendências da plataforma. Em agosto de 2020, o meu artigo de opinião sobre o encerramento de escolas e a Suécia foi finalmente publicado pela CNN em espanhol mas não aquele em que está a pensar. Escrevi-o em espanhol, e a CNN-Español publicou-o. A CNN-English não estava interessada.

    Não fui o único cientista de saúde pública a manifestar-se contra o encerramento de escolas e outras medidas não científicas. Scott Atlas, uma voz especialmente corajosa, usou artigos e factos científicos para desafiar os conselheiros de saúde pública na Casa Branca de Trump, o diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas, Anthony Fauci, o diretor dos Institutos Nacionais de Saúde, Francis Collins, e a coordenadora da covid-19, Deborah Birx, mas sem sucesso. Quando 98 de seus colegas do corpo docente de Stanford atacaram injustamente Atlas numa carta aberta que não forneceu um único exemplo sobre onde ele estava errado, escrevi uma resposta no Stanford Daily para o defender. Terminei a carta salientando que:

    Entre os peritos em surtos de doenças infeciosas, muitos de nós, há muito que defendemos uma estratégia orientada para a idade, e eu teria todo o gosto em debater esta questão com qualquer um dos 98 signatários. Entre os apoiantes está a professora Sunetra Gupta, da Universidade de Oxford, a epidemiologista de doenças infecciosas mais proeminente do mundo. Assumindo que não há preconceito contra mulheres cientistas negras, peço aos professores e alunos de Stanford que leiam os seus pensamentos.

    Nenhum dos 98 signatários aceitou a minha proposta de debate. Em vez disso, alguém em Stanford enviou queixas aos meus superiores em Harvard, que não ficaram entusiasmados comigo.

    Eu não tinha nenhuma inclinação para recuar. Juntamente com Gupta e Jay Bhattacharya em Stanford, escrevi a Declaração de Great Barrington, defendendo uma proteção centrada na idade em vez de lockdowns universais, com sugestões específicas sobre a melhor forma de proteger os idosos, permitindo que crianças e jovens adultos vivessem perto de vidas normais.

    Com a Declaração de Great Barrington, o silenciamento foi quebrado. Embora seja fácil descartar cientistas individuais, era impossível ignorar três epidemiologistas seniores de doenças infeciosas de três universidades importantes. A declaração deixou claro que não havia consenso científico para o fecho de escolas e muitas outras medidas de confinamento. Em resposta, porém, os ataques intensificaram-se – e até se tornaram caluniosos. Collins, um cientista de laboratório com experiência limitada em saúde pública que controla a maior parte do orçamento de pesquisa médica do país, chamou-nos de “epidemiologistas marginais” e pediu aos seus colegas que orquestrassem uma “retirada devastadora da publicação”. Alguns em Harvard obedeceram.

    Um proeminente epidemiologista de Harvard chamou publicamente a declaração de “uma visão marginal extrema“, equiparando-a ao exorcismo para expulsar demónios. Um membro do Centro de Saúde e Direitos Humanos de Harvard, que tinha defendido o encerramento das escolas, acusou-me de “provocar [trolling]” e de ter “política idiossincrática”, alegando falsamente que eu estava “aliciado (…) com o dinheiro de Koch“, “cultivado por think tanks de direita” e “não iria debater com ninguém“. (A preocupação com os menos privilegiados não torna alguém automaticamente de direita!) Outros em Harvard preocuparam-se com a minha “posição cientificamente imprecisa” e “potencialmente perigosa”, enquanto “lutavam com as proteções oferecidas pela liberdade académica”.  

    Embora cientistas, políticos e os media poderosos a tenham denunciado vigorosamente, a Declaração de Great Barrington reuniu quase um milhão de assinaturas, incluindo dezenas de milhares de cientistas e profissionais de saúde. Estávamos menos sozinhos do que pensávamos.

    Martin Kulldorff, Sunetra Gupta e Jay Bhattacharya escreveram a Declaração de Great Barrington.
    (Foto: D.R./GBD)

    Mesmo de Harvard, recebi mais feedback positivo do que negativo. Entre muitos outros, o apoio veio de uma ex-presidente do Departamento de Epidemiologia – uma ex-reitora, uma cirurgiã de alto nível e uma especialista em autismo, que viu em primeira mão os danos colaterais devastadores que os lockdowns infligiram aos seus pacientes. Embora parte do apoio que recebi tenha sido público, a maioria foi nos bastidores, de professores que não estavam dispostos a falar publicamente.

    Dois colegas de Harvard tentaram organizar um debate entre mim e os professores de Harvard, mas, tal como aconteceu com Stanford, não houve interessados. O convite ao debate permanece em aberto. O público não deve confiar nos cientistas, mesmo nos cientistas de Harvard, que não estão dispostos a debater as suas posições com outros cientistas.

    O meu antigo empregador, o sistema hospitalar Mass General Brigham, emprega a maioria dos professores da Harvard Medical School. É o maior beneficiário individual de financiamento do NIH [National Institutes of Health] – mais de mil milhões de dólares por ano dos contribuintes dos Estados Unidos. Como parte da ofensiva contra a Declaração de Great Barrington, um dos membros do conselho do Mass General, Rochelle Walensky, uma colega professora de Harvard que havia servido no conselho consultivo do diretor do NIH, Collins, envolveu-me num “debate” unidireccional. Depois de uma estação de rádio de Boston me ter entrevistado, Walensky apareceu como representante oficial do General Brigham para me rebater, sem me dar a oportunidade de responder. Alguns meses depois, tornou-se a nova diretora do CDC [Centers for Disease Control and Prevention].

    Neste ponto, ficou claro que eu estava diante de uma escolha entre a ciência ou minha carreira académica. Escolhi a primeira. O que é ciência se não buscarmos humildemente a verdade?

    Na década de 1980, trabalhei para uma organização de direitos humanos na Guatemala. Nós fornecíamos acompanhamento físico internacional ininterrupto a camponeses pobres, sindicalistas, grupos de mulheres, estudantes e organizações religiosas. A nossa missão era proteger aqueles que se manifestaram contra os assassinatos e desaparecimentos perpetrados pela ditadura militar de direita, que evitou o escrutínio internacional de seu trabalho sujo. Embora os militares nos tivessem ameaçado, esfaqueado dois dos meus colegas e lançado uma granada de mão para a casa onde todos vivíamos e trabalhávamos, ficámos para proteger os bravos guatemaltecos.

    Escolhi, então, arriscar a minha vida para ajudar a proteger pessoas vulneráveis. Foi uma escolha relativamente fácil arriscar a minha carreira académica para fazer o mesmo durante a pandemia. Embora a situação fosse menos dramática e aterrorizante do que a que enfrentei na Guatemala, muitas outras vidas acabaram por estar em jogo.

    Jovens a praticar desporto em Estocolmo, em Agosto de 2020. Enquanto que nos Estados Unidos e em Portugal se fechavam escolas, creches e parques infantis, na Suécia a vida continuou praticamente como era habitual. (Foto: PAV)

    Embora o fecho de escolas e os lockdowns tenham sido a grande polémica de 2020, uma nova disputa surgiu em 2021: as vacinas contra a covid-19. Por mais de duas décadas, ajudei o CDC e a FDA [Food and Drug Administration] a desenvolver seus sistemas de segurança de vacinas pós-comercialização. As vacinas são uma invenção médica vital, permitindo que as pessoas obtenham imunidade sem o risco que advém de ficarem doentes. Só a vacina contra a varíola salvou milhões de vidas. Em 2020, o CDC pediu-me para participar de seu Grupo de Trabalho Técnico de Segurança de Vacinas covid-19. O meu mandato não durou muito tempo – embora não pela razão que possa pensar.

    Os ensaios clínicos randomizados e controlados (ECRCs) para as vacinas contra a covid-19 não foram adequadamente desenhados. Embora tenham demonstrado a eficácia a curto prazo das vacinas contra a infecção sintomática, não foram projectadas para avaliar a hospitalização e morte, que é o que importa. Em análises subsequentes agrupadas de RCT por tipo de vacina, cientistas dinamarqueses independentes mostraram que as vacinas de mRNA (Pfizer e Moderna) não reduziram a mortalidade de curto prazo, por todas as causas, enquanto as vacinas de vector de adenovírus (Johnson & Johnson, AstraZeneca, Sputnik) reduziram a mortalidade em pelo menos 30%.

    Passei décadas a estudar reacções adversas a medicamentos e vacinas sem receber dinheiro das empresas farmacêuticas. Toda a pessoa honesta sabe que novos medicamentos e vacinas vêm com riscos potenciais que são desconhecidos quando aprovados. Este era um risco que valia a pena correr para pessoas mais velhas com alto risco de mortalidade por covid-19 – mas não para crianças, que têm um risco minúsculo de mortalidade por covid-19, nem para aquelas que já tinham imunidade adquirida por infecção. A uma pergunta sobre isso no Twitter em 2021, respondi:

    Pensar que todos devem ser vacinados é uma falha científica tal como pensar que ninguém deve. As vacinas contra a covid-19 são importantes para pessoas idosas de alto risco e os seus cuidadores. Aqueles com infecção natural prévia não precisam dela. Nem crianças.

    A pedido do governo dos EUA, o Twitter censurou o meu tweet por violar a política do CDC. Tendo sido também censurado pelo LinkedIn, Facebook e YouTube, não conseguia comunicar livremente como cientista. Quem decidiu que os direitos americanos de liberdade de expressão não se aplicavam a comentários científicos honestos em desacordo com os do diretor do CDC?

    (Foto: D.R.)

    Fiquei tentado a calar-me, mas um colega de Harvard convenceu-me do contrário. A sua família tinha sido activa contra o comunismo na Europa de Leste, e ela lembrou-me que precisávamos usar todas as aberturas que pudéssemos encontrar – e autocensura, quando necessário, para evitar ser suspenso ou demitido.

    Nesse aspeto, porém, falhei. Um mês depois do meu tweet, fui demitido do Grupo de Trabalho de Segurança de Vacinas Covid do CDC – não porque eu fosse crítico das vacinas, mas porque eu contradizia a política do CDC. Em abril de 2021, o CDC interrompeu a vacina da J&J após relatos de coágulos sanguíneos em algumas mulheres com menos de 50 anos. Não foram notificados casos entre os idosos, que são os que mais beneficiam da vacina. Como havia uma escassez geral de vacinas naquela época, argumentei num artigo de opinião que a vacina da J&J não deveria ser suspensa para norte-americanos mais velhos. Foi isso que me deixou em apuros. Eu sou provavelmente a única pessoa já demitida pelo CDC por ser muito pró-vacina. Embora o CDC tenha suspendido a pausa quatro dias depois, o estrago estava feito. Sem dúvida, alguns norte-americanos mais velhos morreram por causa dessa “suspensão” da vacina.

    A soberania sobre o corpo não é o único argumento contra a obrigatoriedade da vacina contra a covid-19. [A obrigatoriedade] É também anticientífica e antiética.

    Com uma condição genética chamada deficiência de alfa-1 antitripsina, que me deixa com um sistema imunológico enfraquecido, eu tinha mais motivos para estar pessoalmente preocupado com a covid-19 do que a maioria dos professores de Harvard. Eu esperava que a covid-19 me atingisse fortemente, e foi exatamente isso que aconteceu no início de 2021, quando a equipe dedicada do Hospital Manchester, em Connecticut, salvou a minha vida. Mas teria sido errado para mim deixar que a minha vulnerabilidade pessoal às infecções influenciasse as minhas opiniões e recomendações como cientista de saúde pública, que deve concentrar-se na saúde de todos.

    A beleza do nosso sistema imunitário é que aqueles que recuperam de uma infeção estão protegidos se e quando forem novamente expostos. Isso é conhecido desde a Peste Ateniense de 430 a.C. – mas já não é conhecido em Harvard. Três proeminentes professores de Harvard foram coautores do agora infame memorando de “consenso” na revista The Lancet, questionando a existência de imunidade adquirida pela covid-19. Ao continuar a exigir a vacina para estudantes com uma infecção prévia por covid-19, Harvard está de facto a negar 2.500 anos de ciência.

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    Martin Kulldorff criticou a decisão de suspensão da vacina contra a covid-19 da Johnson & Johnson no caso dos idosos. (Foto: D.R.)

    Desde meados de 2021, sabemos, como seria de esperar, que a imunidade adquirida pela covid-19 é superior à imunidade adquirida pela vacina. Com base nisso, defendi que os hospitais deveriam contratar, e não demitir, enfermeiros e outros funcionários hospitalares com imunidade adquirida pela covid-19, uma vez que têm imunidade mais forte do que os vacinados.

    Os mandatos de vacinação são antiéticos. Os ECRs incluíram principalmente adultos jovens e de meia-idade, mas estudos observacionais mostraram que as vacinas contra a covid-19 evitaram hospitalizações e mortes por covid-19 em pessoas mais velhas. No meio de uma escassez mundial de vacinas, era antiético forçar a vacina em estudantes de baixo risco ou aqueles como eu que já estavam imunes por terem tido covid-19, enquanto o meu vizinho de 87 anos e outras pessoas idosas de alto risco em todo o mundo não podiam receber a vacina. Qualquer pessoa pró-vacina deveria, apenas por esta razão, ter-se oposto aos mandatos de vacina contra a covid-19.

    Por razões científicas, éticas, de saúde pública e médicas, opus-me pública e privadamente aos mandatos da vacina covid-19. Eu já tinha imunidade superior adquirida por infecção. E era arriscado vacinar-me sem estudos adequados de eficácia e segurança em doentes com o meu tipo de imunodeficiência. Essa postura fez-me ser demitido pelo General Brigham e, consequentemente, demitido do meu cargo de professor de Harvard.

    Embora várias isenções de vacina tenham sido dadas pelo hospital, o meu pedido de isenção médica foi negado. Fiquei menos surpreso que o meu pedido de isenção religiosa tenha sido negado: “Tendo tido a doença covid-19, tenho imunidade mais forte e duradoura do que os vacinados (Gazit et al). Sem fundamentação científica, os mandatos de vacina são dogmas religiosos, e solicito uma isenção religiosa da vacinação contra a covid-19.”

    Se Harvard e os seus hospitais querem ser instituições científicas credíveis, devem recontratar aqueles de nós que despediram. E Harvard seria sensata em eliminar seus mandatos de vacina contra a covid-19 para estudantes, como a maioria das outras universidades já fez.

    (Foto: D.R.)

    A maioria dos professores de Harvard busca diligentemente a verdade em uma ampla variedade de campos, mas Veritas não tem sido o princípio orientador dos líderes de Harvard. Nem a liberdade académica, a curiosidade intelectual, a independência em relação a forças externas ou a preocupação com as pessoas comuns orientaram as suas decisões.

    Harvard e a comunidade científica em geral têm muito trabalho a fazer para merecer e recuperar a confiança do público. Os primeiros passos são a restauração da liberdade académica e o cancelamento da cultura do cancelamento. Quando os cientistas têm visões diferentes sobre temas de importância pública, as universidades devem organizar debates abertos e civilizados para buscar a verdade. Harvard poderia ter feito isso – e ainda pode, se quiser.

    Quase todo mundo agora percebe que o fechamento de escolas e outros lockdowns foram um erro colossal. Francis Collins reconheceu seu erro de se concentrar singularmente na covid-19 sem considerar danos colaterais à educação e resultados de saúde não-covid-19. Essa é a coisa honesta a fazer, e espero que essa honestidade chegue a Harvard. O público merece-o e a academia precisa dele para restaurar a sua credibilidade.

    A ciência não pode sobreviver numa sociedade que não valoriza a verdade e se esforça por descobri-la. A comunidade científica perderá gradualmente o apoio do público e desintegrar-se-á lentamente nessa cultura. A busca da verdade requer liberdade acadêmica com discurso científico aberto, apaixonado e civilizado, com tolerância zero para calúnias, bullying ou cancelamento. A minha esperança é que, um dia, Harvard encontre o seu caminho de regresso à liberdade e independência académicas.

    Martin Kulldorff é ex-professor de Medicina na Universidade de Harvard e no Mass General Brigham. É membro fundador da Academia para a Ciência e a Liberdade.

    Nota:

    Este artigo foi publicado originalmente, em inglês, no dia 11 de Março de 2024, no City Journal.


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  • Meio país completamente zangado

    Meio país completamente zangado


    Durante a recente campanha eleitoral, tanto os partidos políticos tradicionais como a legacy media – mais os seus jornalistas e comentadores – tiveram um único objectivo: atacar o Chega anunciando uma suposta ameaça fascizante. O resultado está à vista: André Ventura ‘tripartidarizou’ Portugal, tornando o Chega um partido verdadeiramente nacional, apenas sem representação no círculo de Bragança. Foi aquilo que se costuma dizer, ‘um tiro pela culatra’.

    Era expectável. Na busca insana de diabolizar o Chega, não se avaliaram, portanto, os oito anos de falta de visão política dos sucessivos Governos Costa, que serviram para alimentar uma despudorada rede de gestão de dinheiros públicos, sem controlo nem regras, e que a pandemia apenas ajudou a propagar como um vírus. Hoje, a corrupção, moral e financeira, está encrustada na sociedade, perante um Ministério Público temeroso da sua própria sombra (e de falhar, como falha muitas vezes), perante tribunais vagarosos num ambiente de canceroso corporativismo. Deixar que a denúncia à corrupção (moral e financeira) fosse uma ‘bandeira do Chega’ terá sido um dos maiores erros políticos dos últimos anos dos partidos da oposição. Achar que Costa não se deveria demitir perante a Operação Influencer, porque redundou no crescimento do Chega é defender que o mau cheiro da ‘decomposição’ da democracia se pode resolver com um simples perfume.

    No processo de diabolização do Chega, ao longo da campanha eleitoral, não se avaliaram as perdas de soberania de Portugal como Nação, patente na forma como as políticas e as regras são agora já ditadas por uma União Europeia que foi perdendo os seus princípios, e se transformou num polvo encimado por uma elite não-democrática que distribui entre si as riquezas artificialmente produzidas por um Banco Central. Os portugueses estão hoje como estavam os nossos patrícios na segunda década do século XIX, ou seja, sob um estranho jugo dos ingleses, que, na prática, governavam o país, a pretexto de protecção após as invasões napoleónicas e da ausência do rei D. João VI (então no Brasil). Hoje, não temos um ‘rei’ no outro lado do Atlântico, mas temos burocratas europeus, que nem sequer nos conhecem (nem querem conhecer), conluiados com os nossos governantes num sistema de quase absolutismo.

    Não se avaliaram os sistémicos e duradouros efeitos (económicos, sociais, de saúde, etc.) de uma pandemia – ou melhor dizendo, de uma gestão da pandemia –, onde muitos enriqueceram sem ética nem controlo, e se criou um ambiente de mão-estendida, mesquinha e comezinha, perdendo-se o espírito crítico. Os pequenos escândalos que foram surgindo, uns atrás dos outros, mas ‘apagados’ rapidamente pela imprensa, deu no absurdo de nem sequer termos assistido a uma renovação do PS, e de assistirmos a uma oposição de esquerda fofinha – leia-se Bloco de Esquerda, Livre e PCP – que aparentou sempre estar interessada em não beliscar demasiado o legado desastroso do PS, numa vã esperança de ter sol na eira e chuva no nabal.

    Cada um dos três partidos à esquerda dos socialistas pareceu contrariado em querer mais votos, receosos de retirarem a possibilidade de o PS ser o mais votado, e mais votado do que o PSD (ou AD) e o Chega. Depois de oito anos de Governo PS, secundados por uma ‘esquerda fofinha’, achar que a Esquerda ainda poderia almejar vencer estas eleições é de uma ingenuidade que me surpreende. Livre e Bloco de Esquerda – e menos o PCP – perderam talvez a derradeira hipótese de crescerem para, um dia, serem uma alternativa ao PS. Assumiram em 2024 que somente almejam ser duas muletas (ou mulas) de Governos socialistas.

    Não se avaliaram, enfim, nesta campanha, as políticas de imigração, colocando o tema numa ‘redoma de tabu’, esquecendo que a obrigação de aceitarmos alguém em ‘nossa casa’ desemboca sempre em duas premissas: primeiro, termos os nossos bem tratados (por exemplo, dar médicos de família a TODOS os imigrantes ‘exige’ dar médicos de família a TODOS os portugueses, incluindo os que se vão naturalizando) e tratarmos os que recebemos com dignidade e ajudando-os numa adaptação às nossas regras e costumes. Transformar assuntos sensíveis em dogmas é arranjar lenha para uma fogueira.

    Acredito que a forma como a imprensa tratou a campanha do Chega – que, no seu programa para estas legislativas, de um modo oportunista, ‘eliminou’ quaisquer laivos de xenofobia, tornando-se meramente populista – possa ter refreado um maior crescimento em regiões mais metropolitanas.

    De facto, se analisarmos os resultados eleitorais do Chega – que, na minha opinião, funcionam muito mais como um indicador de insatisfação do que uma opção ideológica –, verificamos que em Lisboa e Porto – e também em Coimbra e Braga –, o partido de André Ventura teve um desempenho abaixo da média nacional. Significa que num ‘ecossistema’ mais urbano, mais dependente do Estado, a insatisfação ainda não atingiu os níveis dos registados no ‘país real’, por via do efeito comunicacional. Mas o Chega tem hoje um horizonte de crescimento impressionante, sobretudo por ser agora um partido de dimensão nacional de forma absoluta, e de não ter ainda ‘conquistado’ a população feminina e os mais idosos.

    E não se duvide: a sua representatividade subirá muito se se continuar nesta absurda diabolização como um perigo para a democracia.

    Não é! Os perigos para a democracia vieram das políticas que nos conduziram a um tal grau de insatisfação que o ‘escape’ se fez sob a forma de voto no Chega. Vieram da contínua insatisfação e desilusão das pessoas, muitas das quais que até votavam na esquerda, quando os ‘amanhãs’ ainda cantavam.

    Estou muito longe de ser eleitor do Chega, e o meu voto neste domingo esteve nos antípodas do partido de André Ventura, embora não tenha votado com convicção, mas mais pela via de ser um ‘mal menor’. Em todo o caso, este resultado mostrou ser – e acrescente, finalmente – um ‘cartão amarelo’ aos partidos tradicionais, sobretudo aos partidos da esquerda ideológica, que de forma incompetente perderam a capacidade de auto-crítica, de renovação de ideias, insistindo e reiterando sempre no ‘perigo do fascismo’ como se não houvesse leis fundamentais e Justiça para aplacar quaisquer derivas.

    Aliás, se coisas próximas do fascismo se viram nos últimos anos foi entre 2020 e 2022 – e não num Governo de André Ventura – com supostas medidas de Saúde Pública, que colidiram (Tribunal Constitucional dixit, embora tarde e a más horas) com direitos, liberdades e garantias.

    Não sou dos que esquecem as multas às pessoas que estavam durante a pandemia a comer sandes no carro.

    Não sou dos que esqueceram os absurdos lockdowns e outras restrições patéticas (até vedaram bancos de jardim!).

    Não sou dos que esqueceram encerramentos de estabelecimentos comerciais ou de actividades por via de nunca justificadas razões de saúde pública.

    Não sou dos que esqueceram como o Estado (leiam-se, pessoas da máquina estatal) lidou com aqueles que apelavam à racionalidade na gestão da pandemia, que se recusavam a vacinar (por, entre outras razões, terem imunidade natural adquirida), apodando-os de negacionistas (isto já não era discriminação?!), vedando-lhes o acesso a locais públicos e impedindo-os até de viajar.

    Não sou daqueles que se esqueceram do obscurantismo de uma Administração Pública (e de um Governo) que manipula informação e esconde documentos, aproveitando-se de um poder judicial complacente.

    Não sou daqueles que se esqueceram das perseguições dos reguladores da imprensa quando um órgão de comunicação social começou a incomodar o status quo de uma imprensa em podridão (ética) e falida, ou a denunciar esquemas (muito) suspeitos.

    Estes anos, sim, pareceram-me muito mais próximos de um regime fascista do que aqueles que poderão vir por um partido como o Chega ser (apenas) o terceiro mais votado.

    Repito: não fui eleitor do Chega – mas compreendo, e mais do que isso: até aceito como justo que mais de 1,1 milhões de portugueses tenham votado no partido de André Ventura. Têm toda a razão para esse voto de protesto, para esse voto de indignação. E, por isso, resta agora saber como evoluiremos a partir daqui: ou os partidos de génese ideológica de esquerda corrigem a sua concepção de Estado Social – exigindo uma gestão criteriosa e transparente dos dinheiros públicos, não ‘sufocando’ a iniciativa privada e as finanças dos cidadãos; ou a insatisfação aumenta e o Chega aumentará, inevitavelmente, a sua influência.

    Mas, se este último for o caminho, nunca se culpe o Chega, nem a sua (quase certa) impreparação para fazer diferente e melhor. Numa derrota, a culpa nunca é do adversário; é nossa.


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  • A palavra é o mais belo dos templos

    A palavra é o mais belo dos templos

    Ó cores virtusis que jazeis subterrâneas
    Fulgurações de azul, vermelhos de hemoptize
    Represados clarões, cromáticas vesânias
    No limbo onde esperais a luz que vos baptize

    As pálpebras cerrai, ansiosas, não veleis

    Camilo Pessanha

    POEMA FINAL

    in CLEPSYDRA (1920)


    No início do século XVII, com a febre da microscopia que marcou o arranque da Revolução Científica, até Galileu inverteu temporariamente o seu telescópio para tentar ver aquilo que, até aí, só o semi-deus que viajou com os Argonautas era capaz de ver. Quem é que, ainda hoje, consegue resistir ao sonho de trazer guardada dentro dos olhos a visão mágica de Lynceus, aquela que mais ninguém alguma vez teve, que mais ninguém alguma vez terá, e que inspirou a aventura japonesa dos Pokemons, onde pululam criaturas tornadas semi-divinas por um único poder especial?

    Mesmo nos nossos dias, ninguém deixa de reconhecer que a capacidade de visão do lince é assombrosa, e indiscutivelmente rara entre todos os animais. Sabe-se agora que esta visão tem uma grande ajuda na audição fora de série que lhe proporcionam os tufos de pêlos no cimo das orelhas, orientando-o para o mínimo ruído nocturno a toda a sua volta[1]. Mas os olhos, aqueles olhos, aquela visão do lince que lhe permite localizar um rato no escuro a 76 metros de distância, isso leva a palma a tudo o resto. É um tecido de espelho organizado por trás dos olhos que reflecte a luz na retina, activando os receptores pela segunda vez e permitindo-lhe ver na sombra como se estivesse a nascer o dia.

    a lynx sitting on a rock in front of a stone wall

    Desde o princípio dos tempos que toda a gente sabe isto.

    A primeira Academia de Microscopistas do mundo, fundada em Roma em 1603 pelo Duque Frederiggo Cessi que era um apreciador endinheirado daquele Universo Perfeito Escondido Debaixo da Lente de que então tanto se falava, chamava-se ACADEMIA DEI LINCEI, em homenagem à visão semi-divina do animal em causa. A Visão Superior do Lince é desde sempre tão bem conhecida que muitos textos sagrados herdados do Paganismo já debatiam se Aquele que Vê Por Nós fôra criado pelas Forças do Bem ou pelos Esbirros do Mal[2]. Em 1300 AC, quando Jasão arrancou com os Argonautas na sua Incrível Viagem em busca do Velo de Ouro, levava consigo a bordo um companheiro muito especial. Foi o piloto do seu barco. Chamava-se Lynceus.

    Lynceus era um semi-deus.

    Esperava-se deste semi-deus que visse por toda a tripulação o caminho preciso, aquele que nenhuma criatura normal alguma vez poderia ver.

    Este detalhe, quase sempre ignorado, é de uma importância enorme na construção de toda a narrativa.

    Na mitologia grega, é de regra definir assim um semi-deus: trata-se de uma criatura igual a todas as criaturas que vivem em seu redor[3], com um único poder mágico que a distingue[4]. No caso de Lynceus, esse poder mágico era a capacidade de ver o que mais ninguém via. O marinheiro mágico via através das paredes, das árvores, da pele, e do chão. Há passagens das proezas dos Argonautas em que o semi-deus parece ter a mesma visão-RAIOX que tem o Superman e descobre tesouros escondidos debaixo da rocha, outras em que se revela capaz de ver no escuro, e ainda outras em que é evidentemente versado em geologia, e até em descobrir minas de ouro[5]. Na mitologia popular, Lynceus é aquele que consegue, até, ver o Céu e o Inferno.

    person holding eyeglasses

    Até consegue ver o Futuro.

    Houve uma vez em que conseguiu contar, de uma só vez e a uma distância de mais de duzentos quilómetros, o número de barcos de uma frota acabada de sair de Cartago.

    Lynceus devia o seu olhar divinalmente penetrante à grande coroa de cristais que lhe rodeava toda a pupila, cobrindo praticamente toda a extensão da íris.

    Olhos de cristal.

    Amigos, seriamente – por acaso já algum lince vos olhou de frente nos olhos?

    Eu ia a seguir uma equipa de Ecologia Vegetal, no terceiro ano do meu curso, logo no início da campanha SALVEMOS O LINCE E A SERRA DA MALCATA. Estávamos a esquadrinhar o Matagal Mediterrânico ali para os lados da Serra de Candeeiros, e no regresso eu escreveria uma Grande Reportagem para o defunto semanário O JORNAL, onde costumava publicar os meus textos na altura.

    Foi quando se deu aquela epifania.

    Fiquem sabendo que uma criatura ameaçada de extinção pode muito bem não deixar por isso de ser uma criatura mágica.

    Esta era, certamente, uma criatura com Poderes.

    Talvez noutros tempos a queimassem nas fogueiras.

    Quem sabe.

    É tudo muito confuso, porque aquilo foi tudo muito brutal.

    blue eye photo

    Um malandrão pardo e lesto, traçado de pintas pretas, que, na opinião avisada dos assistentes, não podia ter mais de oito meses, saltou de trás de um monte de giestas coladas ao chão pelo vento, e travou às quatro patas a olhar fixamente para mim com o recorte majestático dos seus olhos perfeitamente dourados. Depois, no que na irrealidade do nosso sobressalto nos pareceu menos de uma fracção de segundo, escolheu o curso da fuga pela esquerda, no meio do rolar de uns quantos fragmentos de xisto e de outros tantos gritos veementes de pegas rabudas, combinados com os berros roucos das gralhas de bico vermelho.  

    Como é que podem acontecer coisas destas a uma pessoa normal?

    Ainda por cima, mais tarde um grande amigo que trabalha exactamente em protecção de espécies em extinção disse-me que os casos de contacto olhos nos olhos com um lince são extraordinariamente raros.

    Para já, os linces, em si mesmo, são extraordinariamente raros. Não é costume a pessoa andar para aí a tropeçar em animais que estão em vias de extinção.

    Além disso, os linces são dos animais mais evasivos deste mundo. Um biólogo dedicado pode passar anos a palmilhar os seus territórios, ouvir os seus vocalizos, encontrar os seus excrementos, descobrir as suas pegadas – e tudo isto sem nunca chegar a ver o animal que estuda.

    Quanto a olhar um ser humano nos olhos…[6]

    Disse-me aquilo em voz baixa, sem olhar para mim, como se já estivesse com medo de alguma espécie de contágio.

    E eu não disse nada.

    Olhos de cristal, por favor.

    Quarenta e dois anos mais tarde, ainda não encontrei as palavras que entretanto precisava de ter descoberto para escrever um parágrafo inteiro que fosse capaz de falar do arrepio que correu pela minha pele quando foi tocada por aqueles dois olhos tão cintilantes e tão arrogantes, e sem qualquer espécie de dúvida tão vindos de um qualquer outro planeta, que rasgavam o focinho de uma cria silenciosa que podia fazer de nós o que muito bem lhe apetecesse e que estava perfeitamente consciente disso mesmo.

    a cat walking on a rock

    Nunca consegui domesticar essas tais palavras porque elas são as palavras perigosas do meu caminho, sempre a fervilhar num caldeirão de poção mágica onde a cultura e a ciência ousam constantemente formar uma só linguagem, e a seguir vir borbulhar à superfície num tecido linguístico bordado de uma forma que toda a gente consegue gozar. E eu, mesmo sendo especializada desde há décadas em Comunicação de Ciência, fui tão condicionada como todos os meus colegas para nunca me aventurar dentro do Poço sem Fundo ligado ao País das Maravilhas onde vale tudo, porque é lá dentro que os conhecimentos se combinam por inteiro sem terem medo de nada. É o Poço Psicadélico onde a ciência se casa com a cultura para se cantar na linguagem misteriosa da Lucy in The Sky With Diamonds. É onde o Dodó arbitra uma corrida que não faz sentido vigiada pela Lagarta que está sempre agarrada ao narguilé. E se, enquanto cultores da língua nós tememos aquilo que até a Alice prefere evitar, é porque fomos criados desde pequeninos para termos medo dos mundos que escapam ao nosso controlo.

    Falta-nos a coragem que é a Mãe do Caos, de onde tudo veio, e onde tudo nos faz dar um passo de prudência para trás.

    Podemos ser todos muito cultos ou muito galardoados cientificamente. E no entanto até nessa condição ficaremos sempre aquém, porque sem o ímpeto da visão combinada que aliou Lynceus aos Argonautas, nem toda a sabedoria do mundo nos ajudará a dar aquele grande passo em frente que nos falta há séculos de visão enevoada.

    Mas, no momento em que combinarmos as duas forças e de repente deixarmos de ter medo, vamos viver uma espécie nova de mudança de paradigma em que não haverá nada que não passe a ser possível. Nunca mais ficaremos inertes a desperdiçar os anos com as nossas hesitações. Quando nos libertarmos dessa inércia, conseguiremos soltar conjuntamente os nossos risos. E será então, nesse preciso segundo, no encanto dessa fusão mais universal do que todas as outras, que o nosso pensamento inteiro começará a rodopiar como ainda nunca tinha rodopiado antes.

    hands painting

    A diferença que vai descer sobre as nossas vidas será tão pequena que quase não nos aperceberemos de que está um milagre a atravessar-se no nosso caminho.

    Mas claro que estará mesmo. 

    E será assim que, muitos anos mais tarde, se formos capazes de nunca o esquecermos, vindo de parte nenhuma acabará por voltar até nós o olhar do lince, esse olhar do semi-deus inexplicável que nos rouba as palavras, para nos recompensar de repente com a visão distante, renovada, e limpa, de uma galáxia mais rica do que todas as outras, nascida de propósito para que possamos ser tão felizes como a primeira luz da primeira manhã.

    Exactamente aquela primeira manhã em ficou escrito que Deus viu que tudo eram bom.

    E será nessa altura que saberemos, com toda a certeza.

    Fomos abençoados.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] O lince é um predador exclusivamente nocturno. Passa o dia a dormir, ou a tomar conta das crias perto  do esconderijo que tende a utilizar repetidamente ano após ano. Esta exclusividade da caça nocturna é uma das razões que faz com que seja tão difícil observá-lo no seu habitat natural.

    [2]Vê o que mais ninguém consegue ver” prestava-se a ser uma criação do Mal. “Vê por nós” parece, claramente, uma criação do Bem. Escolham o vosso lado.

    [3] Como por exemplo nós, meros mortais.

    [4] Estão a ver os Pokemons? Então pronto. Está explicada a sua entrada em cena.

    [5] A propósito, também há uma altura em que Lynceus mata Polux devido a uma questão amorosa. Não se sabe onde andava Castor nessa altura.

    [6] Subentende-se: “Achas que o lince é parvo ou quê? Ficar a olhar em vez de fugir? Olha-m’esta!”


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  • Da hipocrisia da esquerda

    Da hipocrisia da esquerda


    Já votei Bloco de Esquerda. Não vou votar agora nem sei se aguento votar em qualquer partido da esquerda, mesmo mantendo-me ideologicamente de esquerda. E não vou votar por variadíssimas razões, entre as quais destaco as sucessivas incongruências, os contínuos disparates ideológicos e sobretudo a hipocrisia.

    Esta noite, citada pelo Público, Mariana Mortágua disse num comício que “ser jornalista é uma espécie de teimosia perante todas as adversidades”, assinalando que não só sofrem da “mesma desregulação e precariedade que a economia”, como da “concentração do poder económico”.

    white and black printed paper

    E apontou baterias à “extrema-direita [que] não perde uma oportunidade para intimidar jornalistas”, reforçando que a “extrema-direita odeia o jornalismo livre porque odeia a democracia”.

    Acho muito curioso, para usar um eufemismo, que Mariana Mortágua tenha tecido loas ao “jornalismo livre” e tenha, em simultâneo, recusado conceder uma entrevista ao PÁGINA UM na rubrica HORA POLÍTICA, mesmo conhecendo a jornalista que a iria entrevistar há anos. O Bloco de Esquerda foi um entre apenas cinco partidos faltosos, três dos quais da esquerda (além do Bloco de Esquerda, recusaram Livre e Partido Socialista). Houve 19 partidos que aceitaram o jogo da democraticidade.

    Se há um jornal que melhor encaixa no conceito de imprensa livre, esse é o PÁGINA UM: somos um jornal sem ‘empresários’ por detrás, sem agendas económicoas ou ideológicas escondidas, de acesso livre, contas transparentes, sem dívidas nem publicidade nem parcerias com entes públicos ou privados, e sobrevivendo apenas de donativos dos leitores. Fazemos aquilo que as nossas capacidade financeiras permitem, e preferimos ‘morrer’ a ‘vender-nos’. Mas que faz Mariana Mortágua? Recusa uma entrevista, mas tem tempo para ir a programas de graçolas.

    Recusou Mariana Mortágua uma entrevista ao jornal que nos últimos dois anos apresentou cerca de duas dezenas de intimações no Tribunal Administrativo para aceder a informação escondida deliberadamente por entidades públicas.

    Recusou Mariana Mortágua uma entrevista ao jornal que nos últimos dois anos denunciou as promiscuidades em empresas de media, as falhas ou compadrios na regulação (quando a situação da Global Media explodiu, o PÁGINA UM noticiava sobre o assunto há meses), e não vimos Mariana Mortágua incomodada pelos ataques cerrados da ERC e da CCPJ ao nosso trabalho.

    Recusou Mariana Mortágua uma entrevista ao jornal que nos últimos meses mais casos suspeitos tem revelado de desbaratamento de dinheiros públicos em estranhos contratos.

    Recusou Mariana Mortágua uma entrevista ao único jornal que deu voz, através de uma entrevista, à mulher de Julian Assange, fundador da Wikileaks, que arrisca ser extraditado para os Estados Unidos, sendo uma vítima do mais infame ataque político à liberdade de imprensa e de informação.

    letter wood stamp lot

    Recusou Mariana Mortágua uma entrevista ao único jornal onde os seus colunistas têm uma única condição: liberdade de expressão, e por esse motivo não poucas vezes o ‘amaldiçoado’ Chega foi e é vilipendiado. Mas é um jornal que não coloca o Chega (ou qualquer outro partido fora do arco de governação) como o principal perigo para a democracia – embora já lhe tenha apontado linhas vermelhas que ultrapassaram recentemente -, sendo aliás o contrário: é por os partidos tradicionais terem colocado a democracia em perigo (e vimos todos os atropelos sobre direitos básicos durante a pandemia) que, infelizmente (e digo isto do ponto de vista ideológico), há partidos populistas como o Chega em forte crescimento.

    E estão em crescimento até a esquerda deixar de ser hipócrita. E passar verdadeiramente a defender os princípios que a definem, e não a arranjar bodes expiatórios.  


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  • O candidato Miguel Guimarães e os beijinhos à jornalista do PÁGINA UM

    O candidato Miguel Guimarães e os beijinhos à jornalista do PÁGINA UM


    Campanhas eleitorais trazem sempre muito convívio com o povo, arruadas, comícios. E beijinhos. Muitos beijinhos. Muitos abraços. Tudo sem álcool-gel, sem distanciamento de dois metros, sem máscaras cirúrgicas ou de pano, daquelas com bonecos. Já ‘não há’ covid-19. Já não há testes (não dariam jeito nenhum). Já não há quarentenas. Agora, é beijinhos atrás de beijinhos. (Viva a Ómicron!)

    Pois esta jornalista, não comparecendo em comícios, fugindo de arruadas e de qualquer tipo de ajuntamento de caça ao voto, não conseguiu escapar de uns beijinhos de um candidato.

    Miguel Guimarães, na sede do Ordem dos Médicos, em Julho de 2021, aquando da apresentação do plano de acompanhamento da pandemia.

    O próprio candidato também não se deve ter apercebido, até agora, a quem deu dois beijinhos de cumprimento em plena campanha eleitoral. Se soubesse quem eu era, ter-me-ia cumprimentado com tanto entusiasmo? Com aquele entusiasmo de candidato em campanha? Desconfio que… não.

    Isto porque o candidato em questão é, nada mais nada menos, do que Miguel Guimarães. Esse mesmo. O antigo bastonário da Ordem dos Médicos e actual cabeça de lista no círculo do Porto na coligação Aliança Democrática (AD), que junta o PSD, o CDS-PP e o PPM.

    Para quem não sabe, ou se tiver esquecido, pode ficar a saber mais sobre a ‘relação’ entre Miguel Guimarães e o PÁGINA UM nesta notícia AQUI ou esta AQUI e ou ainda AQUI (e há tantas outras). O PÁGINA UM intentou três processos de intimação contra a Ordem dos Médicos por informações escondidas por Miguel Guimarães, e por três vezes o Tribunal Administrativo de Lisboa deu-nos razão. Em troca, Miguel Guimarães – em conjunto com a Ordem dos Médicos, o pneumologista Filipe Froes e o pediatra Luís Varandas – processou o director do PÁGINA UM. Aliás, o processo acabará mesmo em tribunal, porque agora, mesmo que Miguel Guimarães queira desistir da queixa, Pedro Almeida Vieira já manifestou formalmente a sua oposição.

    Miguel Guimarães, antigo bastonário da Ordem dos Médicos e candidato pela coligação AD. (Foto: AD)

    Mas, pergunta, e bem, o leitor: em que circunstâncias é que a jornalista foi ‘apanhada’ no meio de um evento de caça ao voto de Miguel Guimarães?

    Passo a explicar. Tudo aconteceu no dia em que o PÁGINA UM foi fotografar Joaquim Rocha Afonso, presidente do partido Nós, Cidadãos. A sessão fotográfica foi combinada para o mesmo local onde tinha entrevistado aquele mesmo líder partidário, no dia anterior: o Clube Militar Naval, na Avenida Defensores de Chaves, em Lisboa.

    O edifício apalaçado é belíssimo e os interiores prestam-se a sessões fotográficas. As diferentes salas, a decoração, os ambientes, a escadaria, os vitrais…

    Ora, acontece, que nesse dia, estava agendado um jantar-debate com a presença de Miguel Guimarães. Eu sabia que estava marcado um jantar-debate, mas desconhecia que o candidato da AD seria um dos presentes.

    Assim, estava eu no hall no rés-do-chão, a aguardar pelo presidente do Nós, Cidadãos, quando passa por mim Miguel Guimarães, em passo apressado, a caminho de subir a escadaria para o primeiro andar.

    Com aquele gesto automático de político em plena campanha, que lhe terão ensinado, Miguel Guimarães olha para mim com um largo e simpático sorriso – como se tivesse gostado muito de me ver – e toca a cumprimentar-me com dois rápidos beijinhos no rosto, bem à português (obviamente, o português ‘normal’, não o português com tiques de aristocrata ou da linha de Cascais).

    Nem tive tempo de reagir. Inicialmente, pensei que se dirigia a mim porque nos conhecíamos (como jornalista, conhecemos muita gente, mas a minha memória já teve melhores dias e não guarda todas as caras e nomes).

    Depois, quando vi o enorme sorriso, desconfiei (imaginem a cena em câmara lenta, mas a acontecer, na realidade, em milésimos de segundo). Pensei: “está a sorrir em demasia, não deve saber que sou a jornalista Elisabete Tavares, do PÁGINA UM”.

    Sede do Clube Militar Naval. (Foto: D.R.)

    Quando, por fim, me cumprimenta com dois beijinhos, entusiasticamente, tive a certeza: “não sabe quem sou e pensa que sou uma participante do jantar-debate”.

    Foi tudo tão rápido que apenas me saiu um automático: “Como está?”. Fiquei a sentir-me mesmo parva por não ter travado o candidato da AD para me apresentar convenientemente. Ao mesmo tempo, chega o Joaquim Rocha Afonso e Miguel Guimarães já ia escadaria acima, apressado. É que ainda havia muitos abraços, cumprimentos e beijinhos a dar. E vírus a espalhar.


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