Etiqueta: Destaque Opinião

  • Medina, sinónimo de aldrabice

    Medina, sinónimo de aldrabice


    Em Abril do ano passado, escrevi um editorial no PÁGINA UM intitulado “Medina: o pináculo de um governo de aldrabões”.

    Confesso que sempre me senti estupefacto como uma nulidade do ponto de vista do pensamento político e de acção tinha tanta boa imagem nos media, sustentado à sombra de António Costa. Foi o pior presidente da autarquia de Lisboa nem sequer aproveitando o boom financeiro derivado da actualização do valor patrimonial das casas e do crescente fluxo de turismo e das receitas daí advindas.

    Como ministro das Finanças, sem qualquer política pensada, antes aproveitando-se dos milhões do PRR e de uma inflação galopante que encheu os cofres do Estado com as receitas do IVA. E por fim, inventou os maiores malabarismos financeiros para inventar um superávit, como se tem confirmado agora com uma distribuição de dividendos à má fila de empresas públicas ou com o empurrar de compromissos financeiros para o futuro, de sorte a fazer um brilharete pessoal.

    E neste interim, deixou a máquina administrativa fazer as maiores tropelias na gestão dos dinheiros públicos.

    Pior do que isto tudo, que ele nos fez, é a possibilidade de, hélas, o vermos regressar a um cargo político de relevo.


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  • Os justiceiros da Baixa do Porto

    Os justiceiros da Baixa do Porto


    É comum dizer-se que um “mas” utilizado no meio de uma frase, invalida a primeira parte do que foi dito. Querem ver? “A Maria passou numa rua escura à noite e foi violada…mas estava de saia curta”. O que queremos dizer aqui é o clássico da grunhice: “a Maria meteu-se a jeito”.

    Outro exemplo que tem estado muito em voga nos últimos 7 meses: “Israel já matou 34000 palestinianos mas o Hamas é que começou”.

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    (Foto: Dan Burton)

    Foi algo deste género que aconteceu, na sempre dividida sociedade portuguesa, no caso das agressões a imigrantes argelinos e marroquinos, no Porto. Algumas pessoas, a maior parte quero crer, condenaram. Com um ponto final. Outras, condenaram e acrescentaram um “mas”. 

    Há momentos na vida em que não podemos ter dúvidas e muito menos procurar atenuantes. Este é um deles. Um ataque planeado e pensado contra imigrantes, alegadamente por membros de gangues com ligações a movimentos nazis, não pode ser usado como desculpa para libertar o racismo e a xenofobia escondidos.

    Maria João Marques, autora de várias pérolas em tempo de pandemia, escreveu assim no Público:

    “A extrema-direita, já vimos, relativiza o ataque aos imigrantes no Porto. Mas não notei qualquer reação, ou sequer comentário, vindo da esquerda às notícias televisivas dando conta dos assaltos e agressões por imigrantes (aparentemente ilegais) às lojas e às pessoas no Campo 24 de Agosto. Crimes cometidos por imigrantes são tema tabu, finge-se que não existem, porque vai contra a linha política ‘temos de receber todos os imigrantes que cá quiserem residir, sem colocar quaisquer condições, e quem contestar é fascista e racista’”.

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    (Foto: Markus Spiske)

     

    Não está só, entenda-se. A direita mais extremista acompanhou este pensamento. André Ventura discursou durante 25 minutos a propósito dos assaltos na baixa portuense. Um pouco por toda a direita mais conservadora, usou-se o argumento encapotado de “ainda levaram poucas”.

    Repito o que já disse antes: gosto que as pessoas assumas as suas ideias, por mais aberrantes que sejam. Constato, no entanto, que a vergonha de partilhar sentimentos primários, como racismo ou a total falta de empatia, está cada vez mais distante. Há uma espécie de ‘carta branca’ para se ser um orgulhoso xenófobo, nesta Europa que implora por mais muros.

    Este foi um dos tema em debate no podcast “Estrago da Nação”, do PÁGINA UM. O meu companheiro de microfone (Luís Gomes) alinhou pelo diapasão da Maria João Marques, acrescentando ainda que os cidadãos estavam a cumprir o papel do Estado já que este se demitia das suas obrigações. Ou seja, para justiçar a mais rudimentar antipatia por imigrantes em Portugal, já se acha razoável instituir um sistema de vigilantes onde marginais “limpam as ruas”.

    brown and black jigsaw puzzle
    (Foto: D.R.)

    Confesso que este assunto, bem como qualquer animosidade em relação à imigração, é algo que me incomoda bastante. Fui imigrante quase duas décadas e sei o que é a busca por uma vida melhor, deixando para trás o conforto do conhecido. Não suporto racismo primário e nem percebo, no caso português onde a imigração é absolutamente essencial, esta luta da direita contra quem vem para cá pegar em empregos que português algum quer.

    Deve ser por ter o tema colado na pele que, assumo, tenho alguma dificuldade em manter a calma perante correntes de xenofobia. Para quem ouviu o podcast, imagino que tenha percebido. Aproveito para pedir desculpa aos nossos ouvintes.

    Alguns meios de comunicação relataram que entre os agressores estavam membros do grupo neo-nazi liderado por Mário Machado. Não sei se é verdade, mas não me custa a acreditar que um ataque a imigrantes não tenha sido, em princípio, planeado por membros do coro Santo Amaro de Oeiras.

    Agora que Mário Machado foi preso, depois de ter incitado ao ódio e violência contra mulheres de esquerda (com destaque para Renata Cambra, antiga porta-voz do Movimento Alternativa Socialista), fico um pouco preocupado com a segurança da baixa portuense. Quem é que vai manter a ordem agora se os nazis ficarem sem liderança durante dois anos? É que, só para piorar, nem o Dr. Macaco está disponível para ajudar na limpeza por dificuldades de agenda.

    fist, cut, violence
    (Foto: Annabel_P)

    O que pode esperar a bela cidade do Porto e os seus comerciantes quando os justiceiros estão, ironicamente, a braços com a justiça? 

    Um nazi é um nazi e achar que, a bem da xenofobia, os interesses destes com a população se alinham, é um erro crasso que a nossa extrema-direita faz conscientemente.

    Não há “mas” numa agressão a imigrantes. Há apenas ódio e racismo.

    Misturar isto com roubos, seja onde for, é criar campo fértil para extremistas e nacionalistas. Não ajudem (ainda mais) ao crescimento de pequenos ditadores e aprendam a ler os sinais da História. Se há problemas com a lei, sigam os ensinamentos dos Trabalhadores do Comércio e “chamem a polícia”. Não deem borlas à xenofobia.

    Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


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  • Ruas, vielas e caminhos

    Ruas, vielas e caminhos

    O primeiro Deus atravessou o limiar daquele bar escuro e hesitou frente à Viela da Fonte da Caganita. Sabe Deus que caminhos com nomes de eventos, e não de pessoas, aportam uma carga demoníaca pesada. Ainda mais em entroncamentos. É sabido.

    O escuro do bar espalhou-se, de dentro para fora, pelos céus e, sobre as nossas cabeças, trovejou implacavelmente. Encolhi-me e encostei-me à perna dele, não por medo, mas frio e desconforto. Aí viria a cheia para engolir bocados, quatro cavaleiros a cavalgar em cada nuvem, o dilúvio a limpar as serpentinas de percursos palmilhados, as paredes de farelo a esboroar, gritos histéricos de incautos, os chalupas de galochas no alto da Rua do Rixixi a ver as ondas apoiados em cajados, aguardando a ascenção, crentes que a sua consciência os salvaria antes de serem sorvidos.

    Coitados.

    silhouette photography of street

    Negacionistas a rebolar na lama, adolescentes dopados com ansiolíticos numa canoa a bater com os remos em afogados “A culpa é tua, a culpa é tua! Como te atreves?!”

    Enfim, o caos. E o primeiro Deus manteve-se observador e não me enxotou. Havia uma serenidade no seu comprido casaco negro de fazenda que era boa de colher. O país de Viriato julgava-se por ele escolhido para escapar às águas, sabíeis vós, lusitanos, que não serviriam para mais do que bancada sobranceira ao apocalipse? É sabido que nada escapa, sabe Deus que limpar sem levantar o tapete é batota. Seus batoteiros.

    Também nada há de agradável na margem dos rápidos, sabemos que a água pode galgar num ápice, o que me restava naquele cantinho era decidir-me por galochas, canoas ou lama, pouco mais, na verdade. Desta vez ninguém fez a arca, meteram-se todos os espertalhões debaixo de terra.

    Energúmenos.

    Por alguma razão os dilúvios são a melhor escolha para limpeza, escusam de se enfiar em tocas que só se vão escapar as bactérias na orla da exosfera, a enxurada infiltra-se em tudo.

    man in black crew neck t-shirt sitting on black couch

    E já que estamos no país das ruas, vielas e caminhos que falam dos momentos, olhei o primeiro Deus, sem lhe largar a perna, e perguntei “Afinal onde está a Irmã Lúcia? Aquela que dizia para uns senhores consagrarem a Rússia? É que os chalupas disseram que a senhora foi trocada! E, de facto, que a carinha laroca dela mudou muito, mudou! Não sei se será hábito cirurgia plástica em mosteiros, não me parece!

    O primeiro Deus sorriu, pareceu até conter uma gargalhada, ignorando-me e mantendo a vigília. Amuei, carreguei o sobrolho como garota e bufei. Se fosse sensata largaria a fazenda negra e tinha antes montado refúgio, em tempos idos, na Rua Quebra Cus. Mas aquilo dos três meses de inferno e nove meses de inverno não me apaziguou, certo é que as pessoas fogem de quebrar as costas, ou os cus, ou as almas em rochas e ferro, e dentes também, além Douro, por uma razão, a salto até, pois num salto largo de lá fugiram todas as gentes.

    O que não tem remédio, remediado está.

    Ninguém quer na verdade falar sobre os retornados, insistem em amuos bufados em esquinas enquanto um dos reis que vai nu fala em reparações históricas. Como se a história fosse reparável. Como se fosse assim nau de mastro quebrado, que com os lacinhos das inaugurações bem atado até se põe de pé de novo, como se as nações de hoje devessem algo pelas nações de ontem. Porque se formos a secar o dilúvio de tristezas com as dívidas, sabe Deus onde é que isso vai parar. Qual o limite. Qual a nação (e o que é isso?)

    desk globe on table

    Existem nações refúgio? Em 2020 quase achamos que sim, na Suécia não venderam novos normais com a mesma ganância. “Isto é como uma guerra” disse o rei nu.

    Guerra, é o que estes reis de realejo inventam, na pausa da casa de banho, com as calças nos tornozelos. Patético.

    Mariana Santos Martins é arquitecta


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  • Estado: uma instituição governada por psicopatas

    Estado: uma instituição governada por psicopatas


    Quando ousas expôr crimes, deves concluir que estás sob o jugo de déspotas. Quando honras a tua voz interior, erguendo-a contra as estruturas do Estado, revelando as suas falhas e corrupções, transformas-te, aos olhos desses déspotas, num adversário perigoso a ser neutralizado.

    Quando aqueles ao leme do Estado, desejando apenas a tua subjugação e servilismo, recorrem à distorção da verdade, à manipulação subtil e à propaganda insidiosa, então não apenas governam sobre ti como tiranos, mas também como psicopatas insaciáveis.

    Quando manifestas que imposto é roubo, que equivale a um acto vil de subtracção, fundamentado na força coerciva exercida sobre a tua pessoa, mediante ameaças de severas sanções ou até mesmo a privação da tua liberdade, e és prontamente rotulado como insensato, como alguém que, de forma egoísta, põe em risco o suposto bem colectivo, significa que és um inimigo do Estado.

    Quando enaltecem o destino nobre dos recursos que te são subtraídos, justificando tal confisco com a promessa de erguer hospitais, escolas, estradas e jardins, ou até mesmo de te prover amparo em momentos de adversidade, como o desemprego ou a velhice, revelam que zombam da tua credulidade e te consideram um mero néscio, um tolo carente de discernimento.

    Quando ousas questionar a moralidade do assalto ao teu bolso, assumindo directamente tais louváveis despesas, és prontamente desacreditado; insistem, com desfaçatez, que somente uma instituição “benevolente” e “justa” como o Estado seria capaz de tal proeza.

    Quando te asseguram que a expropriação coerciva dos frutos do teu trabalho é para o teu próprio bem, deves reconhecer a presença de uma máfia profundamente desonesta; afinal, até um monarca medieval, ao praticar semelhante usurpação, ia além, tomando para si não apenas a tua riqueza, mas também a tua honra, secundado por milhares de soldados, demonstrando, assim, uma honestidade brutal, mas muito mais cristalina que o presente estado de coisas.

    man in black jacket standing near green wall

    Quando te sugerem que se todos os cidadãos cumprissem com a sua “quota-parte”, talvez fosse viável reduzir a voracidade do confisco sobre a tua pessoa; deves simplesmente compreender que estão claramente a menosprezar a tua inteligência, tratando-te como um tolo incauto. Afinal, ao longo de décadas, a voracidade do braço estatal tem sido insaciável, mergulhando cada vez mais fundo nos teus bolsos, numa escalada incessante de expropriação.

    Quando te aludem que uma certa empresa é tida como “estratégica”, fundamental para os interesses nacionais, é imperativo observar através da cortina de retórica, pois tal adjectivação muitas vezes encobre uma verdade sombria: trata-se, na realidade, de um abismo financeiro, um vórtice, onde o “nosso dinheiro” é despejado directamente nos bolsos dos comparsas, correligionários e aliados dos facínoras que detêm o poder.

    Quando te “prometem” ou “dão” casas, seguros e viagens “grátis”, sem nunca reconhecerem o rebanho que foi vilipendiado, humilhado e espoliado para possibilitar tais benesses, deves perceber que estás diante de uma fauna de psicopatas narcisistas, destituídos de qualquer traço de empatia pelo próximo.

    Quando te manifestam preocupação com a “despesa fiscal”, que não é mais que um alívio do fardo sobre os teus ombros, compreende que estás diante de uma horda de malfeitores desprovidos de escrúpulos, cuja falta de pudor não tem limite.

    pink pig coin bank on brown wooden table

    Quando, na tua busca por transparência, indagas: “Como é que sei que o Estado gasta bem o dinheiro que lhe damos?”. Se te é retorquido com desdém: “Simples, basta consultares o Orçamento de Estado, onde diz todo o dinheiro que o Estado recebe e como vai ser usado para ajudar (!) todos os cidadãos, causas ou empresas. Até o podes encontrar na Internet!”; nesse caso, podes ter a absoluta convicção de que és apenas um entre a multidão, tratado com a mais profunda displicência pelos detentores do poder. Na verdade, riem-se a bandeiras despregadas da tua inocência e estupidez.

    Quando o Estado, valendo-se dos recursos que te subtrai de forma arbitrária e criminosa, utiliza-os para doutrinar os teus filhos com o intuito de perpetuar a subserviência, o desrespeito e a pilhagem que também afligem a tua condição, através de obras literárias tão indignas como a “Joaninha e os Impostos“, tens a certeza não apenas da tua própria sina como mero rato enjaulado a correr como um louco numa roda, sustentando parasitas desprovidos de escrúpulos, mas também reconheces que a tua descendência está fadada a integrar-se nesse ciclo vicioso em breve.

    Quando o Estado, sob a égide de uma suposta ameaça de um “vírus” mortal, embora não testemunhes mortes ao teu redor, insiste em prender-te no domicílio, em fechar o teu negócio, em impor-te o uso de uma humilhante fralda facial, em proibir a frequência dos teus filhos na escola, em forçar-te a abandonar os teus avós à própria sorte, em proibir-te de te deslocares ou viajares, tudo em prol da promoção de um produto milagroso e salvífico que deves aceitar coercivamente em nome do “bem comum”, que proporciona ao mesmo tempo lucros pornográficos à casta parasitária que te governa, é manifesto que perderam todo o respeito pela tua dignidade. Não és senão gado, destinado a ser pastoreado e subjugado.

    herd of sheep on green grass field during daytime

    Quando te exigem o apoio a um regime corrupto e totalitário, em nome da “democracia” e da “liberdade”, mesmo que esse regime cerceie a liberdade de imprensa, detenha oponentes políticos e legalize a lavagem do dinheiro que envias directamente para os bolsos dos cúmplices e aliados, fica claro que te consideram a ti e aos teus descendentes como meros peões sacrificáveis, prontos a serem escravizados pelo Estado no momento que lhes convier.

    Quando o Estado, por meio do seu Banco Central, decide aumentar a quantidade de moeda em circulação, impondo-te o seu uso por meio de leis de curso legal e roubo exclusivo nessa moeda, enquanto permite que os seus comparsas nos bancos por si supervisionados inflacionem desmesuradamente tal moeda, concedendo, desta forma, vantagens indevidas à casta parasitária, que adquire tudo em primeiro lugar e a preços não inflacionados com crédito do nada, e ainda tenta convencer-te de que este roubo silencioso surgiu do nada ou que foi o resultado de conflitos militares distantes e irrelevantes para a tua vida quotidiana, é um sinal claro de que almejam despojar-te de tudo. Tanto, que até possuem uma divisa para tal enxovalho: “Não terás nada e serás feliz”!

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


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  • E ergue-se, magnífico, rodeado de relâmpagos

    E ergue-se, magnífico, rodeado de relâmpagos

    Ó cores viscerais que jazeis subterrâneas

    Fulgurações de azul, vermelhos de hemoptize,

    Reprezados clarões, cromáticas vesânias,

    No limbo onde esperais a luz que vos baptize,

    As pálpebras cerrai, ansiosas, não veleis.

    Camilo Pessanha

    POEMA FINAL in CLEPSYDRA (1920)


    Lembram-se? Continuamos aqui as contribuições deste mês para a grande charada que vos sugeri o mês passado a título de novíssimo ensaio científico: o que é que estabelece pontes tão estreitas entre o Ornitorrinco e o Urso Polar?

    Deixámos para trás os Ornitorrincos ocultos debaixo de água, iguaizinhos a outros tantos Ursos Polares, a caçar tudo o que precisam de comer por dia e com sistemas, também remeniscientes dos que existem no Urso Polar, de  blindar olhos, ouvidos, e narinas, de cada vez que voltam a mergulhar.

    Mas então, se debaixo de água não vêem, não ouvem, nem cheiram – como é que se alimentam, por muito que andem por ali a cirandar durante  doze horas?


    A forma de caçar do Ornitorrinco foi outro ensaio ousado da Natureza que se revelou muito bem sucedido. E, como costuma acontecer nestas aventuras, o monotrémato semi-aquático não foi o único bicho onde a evolução testou o potencial de sucesso do sistema: depois do mergulho, com os orgãos dos sentidos bloqueados automaticamente, estas criaturas detectam as suas presas, tanto animais como vegetais, através de um radar semelhante… ao dos morcegos[1].

    Pois, morcegos.

    Nada a ver.

    Ora toma que ensaio é ensaio e onde corre bem já não se mexe.

    brown and black bat opening mouth

    No caso específico do Ornitorrinco, o radar vem de centenas de células altamente especializadas do seu famoso bico de pato, que detectam as ondas de energia eléctrica que qualquer ser vivo emite, sobretudo quando está em movimento, mesmo que esse movimento seja só tentar esconder-se dentro do lodo e depois ficar lá muito quietinho. O radar dos monotrématos[2] é de tal forma preciso que os entendidos lhe chamam “o sexto sentido.”

    Os animais não costumam ter sextos sentidos.

    Será porventura que os Ursos Polares…?

    Faça-lhe justiça desde já: o Urso Polar também passa vários minutos debaixo de água nas suas expedições de caça, e tem vários mecanismos específicos que lhe permitem fazer proezas submarinas que mais nenhum mamífero caçador de focas faz. Mas não, desta vez a charada não vai por aqui. O Urso Polar não caça com radar. Tem outros truques na manga. Lá iremos.

    Agora, e antes de mais nada, acalmem-se por fim os ânimos e vamos por fim à pequena lista de tudo o que combina com os patos. Se o pressuposto desta grande charada estiver correcto, mais cedo ou mais tarde o que tem a ver com os patos há de ter a ver com o Urso Polar.

    Os Ornitorrincos têm bico de pato[3]. E, nos dedos das patas da frente, possuem uma membrana interdigital destinada a facilitar a natação, que é também igual à dos patos[4]. E note-se que todo este conjunto da pata e do pé é por regra completamente preto[5], o que o torna mais igual ainda ao que os patos ostentam como maquinaria de grande classe para nadar durante horas se fôr preciso[6].

    Outra característica dos monotrématos que lembra os patos é a sua cobertura: faz-nos logo recordar a brilhante expressão portuguesa “água em pena de pato”, que usamos quando queremos referir-nos a qualquer ideia que, por maiores e mais inteligentes que sejam os nossos esforços, argumentos, e metáforas, não conseguimos nem por nada meter na cabeça dos nossos alunos, ou dos nossos filhos, ou dos nossos cães, ou mesmo dos nossos maridos[7]. É que, embora sejam mamíferos, e portanto estejam cobertos de pêlos, e não de penas, também os Ornitorrincos têm o corpo revestido de um óleo que repele a água, à semelhança dos patos.

    Não escondendo nada neste jogo, note-se desde já que o pêlo da lontra, sobretudo o da lontra-marinha, outro mamífero que também passa a vida dentro de água, está igualmente preparado com grande engenho para afastar as águas. O caso mais interessante é sem dúvida o da lontra-marinha americana[8], destinado maioritariamente a proteger os animais das águas gélidas do Pacífico Norte junto à costa da Califórnia mergulhada nas mesmas brumas que constantemente engolem San Francisco, sobretudo durante os meses de Inverno. Esta lontra-marinha tem o pêlo mais denso de todos os mamíferos terrestres[9], mil vezes mais denso do que o cabelo humano, semeado a uma média de um milhão de pêlos por polegada. E, como não podia deixar de ser, também este pêlo formidável está revestido de óleo hidro-repelente. Aliás, é exactamente esse óleo que torna os casacos, os chapéus, ou as malinhas de pele de lontra, todos sempre tão lustrosos e macios, tão assombrosamente resistentes ao tempo. O que faz com que sejam vendidas pelo valor mínimo de cem dólares por lontra sem defeito no corte[10].

    brown and black seal in water

    Mas, lá por ser tão fino na passerelle, o óleo das lontras-marinhas não é um óleo tão potente na Natureza como o dos Ornitorrincos, que saem da água praticamente secos. Isto é porque há certas coisas que as lontras não possuem, por muito que se tenham adaptado à sua vida marinha com aquela estranha dieta estrita de ouriços do mar que elas próprias partem com dois seixos enquanto nadam de costas, absolutamente encantadoras[11]: nenhuma lontra do mundo, nem nenhum outro mamífero do mundo dado a passar grandes temporadas na água, possui as duas camadas de pêlo do ornitorrinco. Estas duas camadas cumprem duas funções diferentes. A camada externa repele a água, e a camada interna mantém uma câmara de ar sempre presente entre a pele do animal e o seu pêlo.

    Meninos, para que é que isto serve?

    Ah, isto é incrível.

    E, por incrível que pareça, não deixa de ser verdade: esta dupla face é pura qualidade de vida. Não implica nenhum esforço, está sempre ali, e serve para o Ornitorrinco estar sempre seco.

    Sequinho sequinho, sequinho sequinho. Com esta dupla face nunca molha o rabinho.

    Desculpem a leviandade mas não resisti. Eu sei que parece publicidade a fraldas para bebé. Agora olhem, façam publicidade com esta história do Ornitorrinco e vão ver se não vendem fraldas aos milhares.

    Retomando a seriedade que a charada merece.

    É o Rei, sem sombra de dúvida. Nisto de ser um mamífero semi-aquático não há que negar que o Ornitorrinco é o rei. Mas, já que veio a propósito: querem inserir aqui outra camada de explorações evolutivas?

    towels hanging on clothes line

    O pêlo imensamente denso da lontra-marinha cobre o animal para o proteger das águas gélidas do Pacífico. Sem dúvida. E, quando adaptado às pessoas, é indisputácel que esse mesmo pêlo nos cobre de casacos flexíveis, leves – e muito quentes. Mas e na Natureza como é, a manta térmica da lontra é mesmo o pêlo?

    Não é bem.

    Sabem por que é que é um pêlo muito grosso e muito rugosso, que a lontra usa o mais emaranhado possível? Porque este é o seu truque para estar sempre a capturar, mergulho após mergulho, ouriço após ouriço, mais e mais e mais bolhas de ar, que as rugosidades do pêlo, sempre em movimento quando submersas, empurram automaticamente para baixo: por baixo de toda aquela floresta, junto à raiz, a pele da lontra-marinha está quase seca. E, enquanto não estiver toda molhada, a lontra-marinha nunca estará toda arrepiada.

    Há um padrão.

    O sistema da lontra-marinha é mais rudimentar do que o do Ornitorrinco, estes dois nadadores vivem nos antípodas um do outro e nunca se cruzaram, mas é evidente que há um padrão.

    Quanto ao Urso Polar…

    O Urso Polar molha-se, mas não se molha assim tanto como isso; e a seguir, quando se instala a devorar a sua foca em cima do seu bloco de gelo, seca logo num instante. Claro que também tem o pêlo oleoso. Ainda por cima, esse pêlo por onde a água escorre depressa fica exposto à secura dos ventos do Àrtico assim que aquelas trezentas toneladas saiem da água.

    polar bear on snow covered ground during daytime

    As trezentas toneladas contam. Primeiro que um mamífero desta envergadura sinta frio é preciso molestá-lo com águas muitíssimo mais frias do que as que têm por emblema umas lontras-marinhas do tamanho de um esquilo. E, para não deixar molhar um bicho acostumado a ambientes tropicais que no entanto vive dentro de água, claro de duas camadas de pele fazem todo o sentido.

    São tantas coisas tão bem feitas que as pessoas, pronto – a certa altura já não houve mesmo outro remédio senão inventar Deus.

    E esta foi a nossa grande lição de modéstia.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Sistema de radar esse que, por seu turno, serviu de base à invenção do radar dos aviões, mas enfim. Isso já não são invenções da Natureza nem tirocínios pelo fogo da Selecção Natural.

    [2] Embora não capturem as suas presas na água, os únicos outros monotrématos que existem hoje, as misteriosas Equidnas, detectam as formigas e térmitas de que se alimentam através de um radar idêntico.

    [3] O tal bico onde estão alojadas as tais centenas de células do sexto sentido.

    [4] As patas de trás e a cauda são antes usadas como leme. Nos machos, há uma glândula de veneno injectável junto dos dedos de trás: embora seja raríssimo encontrarmos mamíferos venenosos, este é tão eficiente que mata cães e gatos em poucos minutos. Em terra, a membrana interdigital da frente retrai-se, para facilitar a corrida e a luta.

    [5] Claro que há excepções, e que há diferenças entre as excepções. Isto é Biologia, não é Política.

    [6] Os patos-bravos que fazem migrações mais longas podem ser obrigados pelas tempestades a pousar sobre as ondas. E, aí, em péssimas condições de navegação, podem mesmo nadar durante horas até aparecer terra à vista. Embora a história contada em A MARAVILHOSA VIAGEM DE NILS HOLGERSON ATRAVÉS DA SUÉCIA pela escritora sueca laureada Selma Lagerloff seja obviamente um trabalho de ficção, a migração dos patos-bravos aqui descrita não é ficcional de todo. A autora estudou-a cuidadosamente antes de escrever o livro, descobrindo ela própria fenómenos de resiliência e capacidade de corrigir rotas na água que desconhecia anteriormente.

    [7] Peloamor de Deus, não está aqui em causa nenhuma assimetria mal-intencionada. Falo daquilo que os maridos não entendem apenaas porque, como creio ser evidente e dispensar argumentos explicativos, nunca fui um marido a tentar desesperadamente explicar à minha esposa fenómenos que ela não consegue entender, já que o meu conhecimento lhe escorre pelas paredes exteriores do cérebro sem nunca conseguir lá entrar dentro, exactamente como “água em pena de pato”. Alguns exemplos: “querida, um bife do lombo e um bife de alcatra não são a mesma coisa só por ambos se chamarem bifes”; ou “querida, a tabuada dos quatro não é igual à tabuada dos oito só por ambas se chamarem tabuada”; e assim por diante.

    [8] Ou, pelo menos, sem dúvida o caso raro estudado com mais avidez. Há milhares de investigadores nos Estados Unidos, financiados por milhões de dólares. E estas lontras são umas completas malucas.

    [9] E também dos poucos semi-aquáticos que existem, pensando bem nisso.

    [10] Hoje em dia, a caça à lontra está severamente condicionada por cada estação, uma vez que o animal esteve quase extinto em 1900 por causa da febre dos casacos de peles. Os estilistas que querem construir modelos grandes preferem ter a segurança de lontras criadas em viveiro, que todos os anos lhes dão uma noção muito clara do que têm ao seu dispor. Dramas destes, ao menos, não infernizam a vida dos Ornitorrincos. Alguma vantagem haveria de ter ser-se yum bicho feio com um pêlo horrível.

    [11] Atenção, que este encanto é muitíssimo enganoso, porque as lontras-marinhas estão no topo da lista dos animais em que já se observaram rotinas mais sádicas. Por exemplo, roubar bebés-foca às mães que se distraem por um minuto para depois poderem andar a brincar com eles no meio das ondas, atirá-los ao ar, voltar a apanhá-los, deixá-los secar ao seu lado quando estão em terra – e manter estas práticas sempre com o mesmo bebé-foca durante uma semana, ou mesmo dez dias, obviamente muito depois de o brinquedo já estar morto.


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  • A ERC envergonha a Constituição; é um ultraje para a democracia

    A ERC envergonha a Constituição; é um ultraje para a democracia


    Todas as vitórias são saborosas, mas há pelejas que, só por si, são uma derrota, mesmo que supostamente haja um vencedor. Neste caso, a derrota prevalece, porque em democracias adultas há direitos que são óbvios, que nem sequer merecem conflito – e, assim, se há um conflito, que ainda mais chega aos tribunais, e demora (por agora) 21 meses a resolver, não pode haver razões para comemorações. Como se pode festejar uma vitória numa democracia doente?

    O acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul que confirmou uma sentença de Novembro de 2022 (num processo iniciado em Julho desse ano) a conceder o direito ao PÁGINA UM para obter documentos sobre processos relacionados com a Lei da Transparência dos Media é um desses casos: é uma vitória do PÁGINA UM, mas a necessidade de recorrer aos tribunais para exercer um direito – que deveria ser óbvio e pacífico – é, em si mesmo, e apesar de duas decisões favoráveis, uma derrota para a democracia.

    Há 50 anos – e a data está bem presente, porque se comemorou na quinta-feira passada – encerrou-se um regime ditatorial e criaram-se as raízes para um país democrático. No papel – leia-se, na Constituição da República Portuguesa – ficaram consagrados diversos direitos fundamentais como “o direito de informar, de se informar e de ser informado, sem impedimentos nem discriminações”, bem como “a liberdade e a independência dos órgãos de comunicação social perante o poder político e o poder económico”.

    Embora muitos se esqueçam, um dos artigos da CRP justifica a existência da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), que não tem somente um papel de fiscalização, mas sobretudo, sendo uma “entidade administrativa independente” (se bem que com os seus membros nomeados pelo chamado Bloco Central), a função de “assegurar (…) o direito à informação e a liberdade de imprensa”.

    Ora, mas que sucedeu quando em Julho de 2022 o PÁGINA UM, poucos meses depois da sua fundação, requereu documentos administrativos à própria ERC sobre a sua fundamentação para a atribuição arbitrária de excepções à Lei da Transparência dos Media?

    Recusou.

    E o que sucedeu quando o PÁGINA UM interpôs uma intimação junto do Tribunal Administrativo de Lisboa para que a ERC fosse obrigada a revelar essa informação?

    A ERC montou-me, duas semanas depois, uma campanha de difamação, fazendo mesmo um comunicado de imprensa sobre uma situação inventada (e invertendo deveres e direitos), acusando-me mesmo “de insultar os membros do Conselho Regulador e a exercer coação sobre os funcionários”. O comunicado da ERC chegava mesmo a expor a seguinte e lastimável frase: “Intitulando-se jornalista, o referido cidadão tenta legitimar comportamentos nos quais, consideramos, que a classe jornalística não se revê”.

    grayscale photo of woman doing silent hand sign

    Patenteando uma lamentável dificuldade em aceitar escrutínios de jornalistas, a ERC tem procurado activamente descredibilizar o jornalismo do PÁGINA UM. São já quatro as deliberações completamente enviesadas contra notícias do PÁGINA UM, e houve mesmo uma queixa contra mim para a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) para tentar ‘branquear’ uma absurda confusão do próprio regulador. A queixa deu origem a um processo disciplinar, que só poderia ter o destino que teve: o arquivo.

    Mas, mesmo acreditando que haja razões pessoais para que, na ERC, não se aprecie o PÁGINA UM e a minha teimosia em ser jornalista, há linhas vermelhas que jamais poderiam ser ultrapassadas pela tal suposta “entidade administrativa independente” com a função de “assegurar (…) o direito à informação e a liberdade de imprensa”.

    Com efeito, como pode a entidade que deve assegurar o direito à informação e a liberdade de imprensa recusar um pedido legítimo de documentos administrativos feito por um jornalista?

    Como pode depois continuar a recusar após um tribunal administrativo dizer que tem de mostrar?

    Como pode, em sede de um recurso (que, por pudor, nem sequer deveria ter sido apresentado) para o Tribunal Central Administrativo Sul, a ERC alegar que um jornalista – uma profissão que constitucionalmente tem o dever de proteger – faz pedidos “manifestamente abusivos”? Um jornalista faz pedidos manifestamente abusivos num regime democrático? Brincamos às ditaduras? Ou assumimo-nos como uma democracia?

    Person Reading Newspaper Inside Room

    Hoje, e com mais este acórdão, confirma-se que existem pessoas que sequestraram os princípios do 25 de Abril, e foram colocados em cargos não para sustentaram a transparência e o necessário escrutínio público das instituições, mas sim para liquidarem um país democrático.

    A ERC tem provado – ou, melhor dizendo, os seus membros do Conselho Regulador – que não está em funções para garantir uma imprensa livre nem para proteger jornalistas isentos. Pelo contrário: é uma das causas directas para a degradação da imprensa em Portugal, permitindo as maiores promiscuidades às empresas da denominada legacy media, enquanto tenta espezinhar e enlamear projectos jornalísticos independentes como o PÁGINA UM. A ERC, como está, é uma vergonha democrática.


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  • Tabaco e Revolução

    Tabaco e Revolução

    Leio com alguma surpresa uma notícia que dá conta da nova lei do tabaco em Inglaterra. Uma espécie de lei gasosa, se pensarmos na lei seca que se impôs nos Estados Unidos de 1920 a 1933, que proibia o acesso ao álcool.

    A notícia acabava assim: A idade a partir da qual as pessoas podem comprar cigarros e tabaco na Inglaterra deve aumentar anualmente, acrescentando um ano de idade a cada período, para que em algum momento ninguém possa comprar, afirmou o primeiro-ministro Rishi Sunak.

    Mas ao mesmo tempo passavam na televisão imagens do período do 25 de Abril de 1974, em que se fumava muito e a palavra liberdade era exaustivamente proferida.

    E pensei sobre o assunto.

    Há um filme admirável de Alain Resnais chamado Smoking/No smoking que na realidade se trata de um díptico e para o qual será preciso prestar alguma atenção. Também há paisagens e automóveis admiráveis, mas não são assunto para este texto, qual é o problema? Vive-se uma época de crispação. Qual é o problema?

    Qualquer dia há para aí uma guerra. 

    Estava a brincar (ou mesmo a jogar), já que parece cada vez mais que estamos dentro do Big Brother e a diferença entre jogo e não-jogo está a ficar aceleradamente mais ténue, tipo blade runner, em que no filme com o mesmo nome, não era fácil perceber quem era humano e quem não era. Qual é o problema? Vive-se uma época de crispação.

    Ah, já disse!

    Accionemos o isqueiro e vamos ao que nos traz aqui.

    Ora bem, fumar ou não fumar um cigarro poderá fazer toda a diferença para a narrativa daquele filme feito a partir de uma peça de teatro intitulada Intimate Exchanges de Alan Ayckbourn. Este princípio dá para muitas situações, tipo teoria do caos que esteve muito em voga nos anos 90.

    Enfim, desde que remetesse para acções banais, mas que pudessem alterar o futuro, dependendo de fazer-se uma coisa ou outra. O exemplo mais comum era o de que o bater de asas de uma simples borboleta em Nova Iorque poderia influenciar o curso natural das coisas e, assim talvez provocar um tufão do outro lado do mundo. Neste caso, fumar ou não fumar um cigarro (acção que não pratico neste preciso momento), altera o curso dos acontecimentos no filme. Se eu fosse agora o comentador Daniel Oliveira diria já lá vou. Mas felizmente não sou esse comentador, mas já lá vou à mesma, pronto!

    Qual é o problema?

    Ao rever as eternas imagens da Revolução dos Cravos que todos os anos alimentam as televisões nesta época primaveril, percebemos que os actores da famosa e libertária operação estão muitas vezes a fumar, assim como os jornalistas de serviço.

    Parece mentira, mas as imagens mostram apresentadores de telejornal a fumar em directo e durante a emissão. Fialho Gouveia e Joaquim Letria, eram exemplo disso, mas não propriamente nas emissões desse dia de 25 de Abril. Torna-se muito claro a apoteose fumadora no dia das eleições para a Assembleia Constituinte, as primeiras em democracia, algum tempo depois do dia 25 de Abril, dia fundamental para a esquerda, já que para uma certa direita será o dia 25 de novembro. Têm o número em comum. Já não é mau.

    Epá, mas tanto à direita como à esquerda ou ao centro, fumava-se que se fartava. Também é certo que nem todos o faziam, embora fosse recorrente fumar-se para cima de inocentes sem que isso fosse um grande problema. Havia poucos ou nenhum estudo que fizesse disparar o alerta tabágico. Ainda hoje me pergunto, como é que foi possível viver tempos sem estudos a toda a hora, sem especialistas e comentadores a emitir opinião a todos os minutos. E já agora, muitos não acreditam que chegou a haver vida sem internet…

    Bolas!

    Tenho mesmo a certeza que os militares, para discutirem as estratégias a adoptar para tomar Lisboa, ostentavam sempre um cigarro ao canto da boca. Provavelmente SG Filtro, ou SG Gigante, talvez os mais cowboys ainda fumassem o Português Suave sem filtro inspirando-se em John Wayne e nas suas coboiadas musculadas, mas que por sinal era um facho de primeira, segundo a minha tia que era comunista e uma excelente pessoa.

    A Tabaqueira ganhou muito com a revolução. Os nervos andavam à flor da pele e é do senso comum que o tabaco ajuda a descomprimir. Pareciam dragões.

    “Epá capitão apague lá isso que ainda fuma o filtro”, parece que estou a ouvir isto no meio de uma névoa de fumo na cantina dos militares. Ouço também “Ò Fernandes vá ali à papelaria e traga-me três maços de Ventil”. O Fernandes seria o soldado raso de serviço que também aproveitava e comprava um maço de Três Vintes para ele. Ou ainda, “O Antunes fuma que nem um cavalo”. “ Mas os cavalos não fumam, ò meu major!” – diria um cabo menos adepto de metáforas.

    No ano de 74 também revejo com prazer imagens em que o futebolista Johan Cruijff durante o intervalo de um jogo, enquanto ajusta as meias do equipamento da selecção da Laranja Mecânica, tem um cigarro ao canto da boca.

    Nessa altura não proliferavam imagens de doenças nos maços, e até os carros da Fórmula Um tinham as marcas estampadas na carroçaria, já para não falar do Marlboro-man e no reclame publicitário muito popular, em que um homem a cavalo fumava calmamente um cigarro numa ardente paisagem texana. Acho que o cavalo também dava umas passas. Mais tarde dizem que o Marlboro-man morreu de cancro do pulmão e processou a marca. Mas pode não ser verdade, pode mesmo ter sido inventado pelo Trump.

    Eu era muito pequeno e ao ver esses filmes, queria fumar quando fosse grande. Achava que todos os homens fumavam e as mulheres que o faziam, estranhamente tornavam-se sensuais. Ficava a olhar para elas fixamente durante bastante tempo à espera de levar com uma baforada na cara, coisas de puto e de filmes italianos que muito nos influenciavam nessa época.

    Entre epás e muita fumarada, assim se preparou o saudoso ataque a Lisboa, disso não haja dúvidas.

    Fiquei há pouco tempo a saber que a operação teria de acontecer a uma terça, quarta ou quinta porque nos outros dias havia pouca gente nos quartéis, dito pelo próprio Otelo Saraiva de Carvalho numa entrevista dada ao Frederico Duarte Carvalho, no meio de pás e baforadas, imagino.

    O fim de semana era sagrado para os militares e nem mesmo uma perspectiva de golpe de Estado com uma putativa mudança de regime para melhor, abalaria o religioso fim de semana.

    O cravo veio depois e não saiu da cabeça de nenhum militar, ou actor principal desse filme. Também é curioso ver nessas mesmas imagens na sua maioria, que os cravos são cinzentos já que era ainda um mundo a preto e branco. Paulatinamente estamos a voltar a esse mundo, mas com cores garridas a 4K, o que vai dar ao mesmo.

    Está assim contada a história do cravo na Wikipédia:

    Celeste Caeiro, (…) transportava pelas ruas um ramo de cravos brancos e vermelhos nas mãos. Um soldado pediu-lhe um cigarro, mas ela só tinha flores e decidiu então iniciar a distribuição dos cravos aos soldados, que logo os colocaram nos canos das suas armas. Mais tarde as floristas da Baixa continuaram a replicar o gesto (…).

    Claro que só podia ter começado com um cigarro, melhor ainda, com a falta dele. Para fazer raccord e uma analogia com o filme de Resnais e indo lá (tipo Daniel Oliveira como prometido), aqui poderíamos questionar o símbolo do cravo, caso o soldado não fosse fumador. Teria a dona Celeste posto à mesma o cravo na espingarda do soldado desconhecido caso ele não lhe tivesse cravado um cigarro? E se levasse com ela algodão doce em vez de uma flor e achasse que isso ficava bem dentro da arma, ainda que o soldado pedisse à mesma um cigarro?

    Mais tarde os feirantes da Baixa continuaram a replicar o gesto, poderia ser esta a frase da Wikipédia hoje?

    Nunca o saberemos, no entanto, parece que o soldado esqueceu-se de levar tabaco para a revolução. Talvez o stress associado ao momento tivesse tido consequências na sua memória e capacidade de concentração ou então já tinha fumado que nem um cavalo nesse dia e acabado o maço sem se aperceber, ou então ainda podia tratar-se de um fumador casual que apenas lhe apeteceu um cigarro.

    Dizem mesmo que houve um capitão que parou o tanque e foi comprar tabaco a uma papelaria que se mantinha aberta, não fosse o dia terminar só dias depois.

    Esta época teve momentos muito particulares. Para além de todos os benefícios políticos e democráticos que nos trouxe, também nos presenteou com uma espontaneidade que andava esquecida, o que é libertador também.

    Não deixo de rir quando vejo o Pinheiro de Azevedo meses depois a dizer que já foi raptado um par de vezes e que não gosta, é chato. Já para não falar do “é só fumaça”, também proferido pelo mesmo ao microfone na Praça do Comércio, o que faz um raccord linguístico perfeito com o suave aroma a tabaco que o texto deve ter.

    Outro político importante, noutro documentário sobre o verão quente, contou que uns quantos pararam em frente à casa dele às tantas da manhã na tentativa de o aliciarem a dar um golpe de Estado. Estavam num mini, e ainda cabia mais um, ao que o político respondeu dizendo para irem para casa e fazerem o golpe de Estado noutra altura que àquela hora era muito tarde. O político imagino que estivesse de pijama. Conseguimos sem grande imaginação ver um cigarro em cada um dos loucos revolucionários que estavam no Austin. Eu até consigo ver o carro com um Definitivos no tubo de escape tal a voragem fumadora da época. Mas as coisas mudam, como dizem os mafiosos do David Mamet.

    Não estamos a imaginar os capitães a irem à janela fumar um cigarrinho enquanto tratam da logística dos tanques e dos chaimites. “Ò capitão não pode fumar aqui na sala, vamos até à varanda. Isso faz mal à saúde e já agora não chame mariquinhas ao cabo Nelson só porque não quer ir à frente do pelotão. O capitão sabe que ainda pode levar um processo em cima e isso era chato”. Isto, se fosse nos dias de hoje e houvesse revoluções dos cravos mesmo com algodão doce no seu lugar. 

    Claro que aqui o termo não tem a ver com questões sexuais mas não nos esqueçamos da conhecida homofobia em Ché Guevara e em Fidel por exemplo, outros icónicos grandes fumadores, mesmo que isso chateie muita gente, ou mesmo a homofobia nos albaneses de Enver Hoxha que a UDP tanto gostava, não tolerando nada aproximações masculinas corporais que não seriam certamente para jogar basquete em Tirana.

    Mas eram outros tempos em que não interessava muito o politicamente correcto e andavam mais preocupados com o revolucionariamente correcto, o que faz sentido e merece já uma pausa para um cigarro ali à janela, porque eu não me deixo fumar aqui dentro de casa. Isto agora era assim, não?

    A autocensura quando nasce é para todos, assim como a democracia.

    Enquanto fumava, ia pensando em como seria uma revolução hoje, com telemóveis e cigarros electrónicos a organizarem-nos a vida e o vício. Não consigo imaginar o Otelo a carregar um cigarro. Um chaimite hoje até poderia ser conduzido por controle remoto através do Bluetooth e andar a lítio, haveriam soldados vegans certamente que não aceitariam uma sandes de mortadela dada pelo povo.

    Cheguei a ver o protótipo de uma bala que mata como as outras, mas é ecológica e não polui através de um processo químico. Fica dentro do cadáver, mas evapora-se.

    Claro que isto não é nenhuma crítica, é apenas o zeitgeist a que temos direito.

    Mas não é fácil imaginar uma revolução de rua com kit completo, portanto com golpe de Estado e mudança de paradigma como objectivo final.

    Os satélites vêm tudo, e não é fácil quitar telemóveis sem a ajuda de hackers que andam caríssimos, embora nunca tenha havido tantas guerras por aí, isto só para invocar o sempre bem vindo paradoxo que dá cabo das pessoas em geral.

    Mas este texto é sobre fumo, charutos cubanos e cigarros, e não paradoxos fumegantes e incendiários.

    Um amigo meu, alertou-me para o facto de hoje se limparem digitalmente fotografias, subtraindo os cigarros a escritores e artistas por exemplo.

    Irão fazer isso um dia, aos nossos militares? Fico a pensar. No caso deles era melhor limparem logo o pulmão

    Uma amiga minha há uns tempos no meio de uma cigarrada de enrolar, disse que isto era preciso era mais dois 25 de Abril, e um taxista enquanto calmamente fumava um Camel, parado num semáforo confessou-me que para ele isto só ia lá com doze Salazares. O “isto “ referindo-se ao regime, foi utilizado por ambos.

    O que mais me impressiona nestas conversas hiperbólicas, é o uso dos números. Porquê dois 25 de Abril e doze Salazares? 

    Percebo que doze 25 de Abril, seria demais. Ou que dois Salazares para o taxista, também seriam poucos, uma vez que hoje há mais manias nas pessoas. Não tendo no entanto a minha amiga especificado se tinham de ser as duas na mesma data ou ao mesmo tempo, ou se seriam uma de cada vez, no sentido de a segunda colmatar a primeira. querendo com isso acentuar a intensidade.

    E se fosse em junho? Ainda lhe perguntei, deixando-a pensativa. Respondeu-me que isso não importava desde que fosse um 25 de Abril a sério, portanto com enforcamentos à mistura, deixou a entender. Fiquei na mesma.

    Quanto ao taxista salazarista, depois de lhe perguntar porquê doze, respondeu que tinha feito as contas, e onze não chegavam. Ainda lhe falei de clonagem, mas não sabia o que isso era.

    Hoje há Ubers a fazer de táxis, e também numa pausa para um cigarro electrónico, um rapaz brasileiro usou a versão contemporânea dos exageros numéricos, falou-me em seis Bolsonaros para pôr o Brasil na ordem.

    Na próxima Revolução imagino que seja proibido fumar.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações de ©Ruy Otero com colaboração de Nuno Bettencourt


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


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  • Aprender a democracia em Portugal

    Aprender a democracia em Portugal


    1. UM PONTO DE PARTIDA

    Segundo Fernando Pessoa, sendo o nosso espírito romano-árabe, foram os árabes que nos civilizaram[1]; em troca, ainda segundo ele, o pagamento que fizemos a esses árabes nossos maiores foi o crime de os expulsarmos[2].

    Mas, porque os deuses não dormem, um mal ainda maior nos esperava: no ano em que se cumpriam quatro décadas da expulsão dos muçulmanos e dos judeus por D. Manuel I, já no sinistro reinado de D. João III (em 1536), foi instituída a Inquisição em Portugal. Esta nova realidade – só extinta três séculos mais tarde, no seguimento da Revolução Liberal de 1820 –, por si só, «leva ao êxodo ou à obnubilação das populações de muçulmanos (e de judeus), provoca no país uma sangria de valores humanos, culturais e económicos, que mesmo os proventos dos Descobrimentos não logram nunca compensar. A longo prazo, acabará por vir ao de cima uma decadência de que o país não mais recuperará, inteiramente, até aos dias de hoje»[3].

    Quanto ao espírito romano, cresce no outro lado do Atlântico a corrente histórica que vê “lá bem antes”, na mentalidade do “homem cordial”[4], a principal causa do atraso histórico do Brasil: «na mentalidade que se firmou e se reproduziu em Portugal, logo após a queda do Império Romano»[5] – a mesma que na burocracia tinha reproduzido o predomínio da pessoalidade sobre a aplicação da lei, do privilégio sobre a igualdade, do coração sobre a razão[6].

    Em suma, na parte que agora interessa, do tempo dos últimos romanos, ter-nos-ia ficado assim a lógica da cordialidade e dos privilégios, ou seja, dos favores.

    two men riding carriage statue

    2. A ERA DAS TREVAS

    Se tivermos por boa a tese, depois de expulsos (ou convertidos à força) aqueles que nos educaram[7], seguiram-se três séculos em que o espírito (cordial) dos Portugueses foi calcado aos pés de uma Igreja soberana e, por isso mesmo, “inimiga do pensamento”[8]. Ficaram assim os Portugueses, até aos duros primeiros 50 anos do século XIX, privados da companhia daqueles seus educadores[9], mas também – terrível castigo! – efectivamente privados da possibilidade de aprender, porquanto o nefando Index Lusitano lhes proibia o acesso não só a uma imensidão de livros aí expressamente arrolados (mais extenso do que qualquer outro)[10], como a livros de línguas inteiras (especialmente as que transportavam a corrente da igualdade e da liberdade que então se abria ao Ocidente, entre os séculos XVII e XVIII)[11].

    Um efeito directo – e uma evidente prova – desta nossa triste condição foi o de que, a partir de então (salvo talvez na Música[12], onde o canto popular, o ostinato e depois o Fado nos podem ter salvado), nos tornámos especialistas na arte de copiar: ideias, doutrinas, movimentos, instituições, leis e códigos administrativos[13], constituições, personalidades, modas e sapatos – tudo, em suma, passou a ser importado (por vezes, em segunda e terceira mão), e importado normalmente de Paris. Uma segunda consequência foi a de que apenas os emigrantes mais qualificados (os ditos “estrangeirados”)[14] podiam de alguma forma socorrer-nos como “mestres de recurso”, diante do «abismo da miséria e da ignorância portuguesa»[15].

    3. A GRANDE RUPTURA

    Ora, voltando àquele momento final da nossa era das trevas, para Vasco Pulido Valente, o regresso à aprendizagem começou a fazer-se no início do século XIX, não pela via do pensamento, por óbvia impossibilidade, mas pelo efeito transformador da reacção popular às invasões francesas. «A mudança veio de fora. A invasão de Junot (a mais durável), a invasão de Soult (a de menos consequências), a invasão de Massena (a mais destrutiva) e até a tardia invasão de Marmont desfizeram o antigo regime»[16]. «Napoleão, embora perdendo, revolucionou o país, como revolucionara a Europa. A invasão e a guerra, por assim dizer, “provocaram” o “liberalismo” em Portugal. Um produto exógeno, que não podia ser aceite pacificamente»[17].

    Sobre a dureza e o caos da primeira metade do século XIX[18] – porventura o século a que a historiografia moderna mais atenção dedicou – não cabem dúvidas:

    • No plano simbólico, o Rei e a Corte tiveram (ainda que com grande instinto político) de se refugiar no Brasil, situação que se arrastou até 1821;
    • No plano político, o país – que, desde 1815 até 1822, passou a ser uma união real: o Reino Unido de Portugal Brasil e Algarves[19] – era, para todos os efeitos, um protectorado inglês;
    • No plano material e social, as carências eram de toda a ordem, incluindo o facto de as “elites” terem igualmente emigrado para o Rio de Janeiro, cidade que desde então não deixou de prosperar, a grande benefício do Brasil e da sua rápida e notável independência;
    • Já no plano cultural, foi, no entanto, no segundo quartel do século XIX que alguns historiadores e literatos (a começar por Garrett e Herculano), deram início à recuperação dos laços com a antiga pertença árabe da Nação[20].

    Num contexto como esse, se as lutas populares sem trégua (aos franceses), o pronunciamento de 1820, a contra-revolução, o(s) golpe(s) de Estado[21], os anos de guerra civil, a revolução de 1836, as incontáveis intervenções militares[22], as mortes, os confiscos, os abusos sem-fim, as ditaduras, as revoltas e os protestos dos povos foram muitos e se as práticas da importação (de ideias, de modelos e de constituições) não foram em menor número, não se pode dizer que um tal período pudesse ter sido propício a uma (superior) aprendizagem colectiva, que não a resultante das grandes transformações operadas por tais factos.

    Em compensação, a segunda metade do século XIX[23] foi o único período em que os Portugueses, desde a instauração a Inquisição até ao 25 de Abril de 1974, puderam, individual e colectivamente, respirar um pouco de alívio e aprender realmente outro tanto:

    • Em termos institucionais, 1852 representa um ano a todos os títulos marcante[24], na pacificação das diversas correntes “liberais”, com a estabilização constitucional do sistema, sob a cobertura do 1.º Acto Adicional à Carta Constitucional de 1826;
    • No plano político – apesar da acumulação de poderes no Rei (progressivamente atenuada, por múltiplas razões, pelo menos até à frustrada tentativa de a recuperar no final do século por D. Carlos), apesar do voto limitado e da inautenticidade do sufrágio[25], apesar da ausência de igualdade formal e do défice de garantia jurisdicional –, o chamado “rotativismo”, a política de melhoramentos materiais, bem como a lenta evolução das instituições liberais permitiram introduzir no país as primeiras noções de uma de “democracia limitada”[26], não muito distinta (salvo na qualidade da relação entre poder e sociedade) daquela que se praticava na generalidade dos países da Europa continental;
    • No plano da cultura cívica, deve começar por notar-se, face à grave carestia hoje reinante, que foram muitas as centenas de jornais que então vieram à luz; alguns grandes oradores (como José Estêvão) deixaram a sua marca na instituição parlamentar, instituição que todavia até hoje não conseguiu ainda alcançar o lugar que lhe é devido, diante da primazia de facto do Poder Executivo[27];
    • No plano material, o grande e inesperado governante do século veio a ser Fontes Pereira de Melo, um militar e engenheiro;
    • Do ponto de vista intelectual, não faltaram neste período as provas de um ressurgimento nacional, de que as Conferências do Casino, a Geração de 70 ou os esforços de Alexandre Herculano ou de Oliveira Martins foram evidentes sinais;
    • Finalmente, do ponto de vista individual, os direitos fundamentais do cidadão – que demoraram na realidade 160 anos a implantar-se[28] –, que não passavam de “direitos de papel” (na Constituição de 1822, nas duas primeiras vigências da Carta Constitucional e na vigência da Constituição de 1838), puderam finalmente ver algum tipo de realização e garantia, nomeadamente no que respeita à liberdade de culto, à liberdade pessoal, bem como às liberdades de expressão, de imprensa e de reunião.

    4. UM PASSO APENAS: DA I REPÚBLICA AO ESTADO NOVO

    Chegados ao século XX, com a I República, o mínimo que se pode dizer é que a fase de aprendizagem liberal, que já entrara em relativa crise nos finais do século XIX, sofre um novo e generalizado retrocesso[29]:

    • Uma Constituição nascida num regime com partido único (e o único período da nossa História em que o poder político esteve concentrado nas mãos de um único órgão do Estado), sem que se tenha realizado sufrágio efectivo em mais de 40% dos círculos nas eleições para a Assembleia Constituinte e com esta a desdobrar-se abusivamente, no final, em Câmara dos Deputados e Senado;
    • Num regime sem legitimidade nem legitimação popular, com as primeiras eleições gerais (com sufrágio mais restrito do que na Monarquia) realizadas apenas em 1914;
    • Num regime que hostilizou desde a primeira hora, como nunca, a liberdade religiosa (com medidas que seriam tidas por intoleráveis no século XIX);
    • Num regime que recorreu tanto à mentira (desde logo, relativamente às promessas em matéria de sufrágio universal e de direito à greve) como à violência organizada, e onde, por tudo isso, se regressou às intervenções militares, a rupturas constitucionais (como a de Sidónio), aos assassinatos políticos, mas sobretudo à desinstitucionalização de um sistema desequilibrado desde o início[30] e que, poucos anos volvidos, quase todos os Portugueses aspiravam por derrubar.

    E assim foi plantada a semente de onde, sem surpresa, nasceu o golpe de 28 de Maio de 1926, a Ditadura Militar e, poucos anos depois, o Estado Novo de Salazar, com a grande diferença de Afonso Costa[31] ter conseguido, num ano, promulgar toda a sua obra.

    Quanto a Salazar[32], relativamente ao tema aqui tratado, não há muito a dizer. Salazar sempre foi um declarado inimigo da democracia e da liberdade[33], sobretudo da liberdade de pensar, dando primazia, pelo contrário, ao princípio da autoridade e à ideia de um Estado forte[34]; assumidamente conservador e autoritário, antiparlamentar e anti-partidos, como governante, «acumulou mentiras sobre mentiras»[35], como homem, era frio e, segundo um seu eterno opositor, Salazar «não era português»[36], o que não significa que não tenha deixado profundas marcas no espírito dos portugueses que lhe sucederam, nem que não tenha sido ele próprio produto (do bafio) dos séculos que o precederam.

    5. O 25 DE ABRIL DE 1974

    Não admira por isso que o golpe militar de 25 de Abril de 1974 tenha sido recebido com o júbilo reservado ao momento pelo qual há muitos séculos o Povo Português aguardava – o que talvez não era de esperar foi a rápida instrumentalização do espírito do 25 de Abril, por forças radicais minoritárias, tanto na sociedade (como se viria a comprovar nas eleições para a Assembleia Constituinte), como dentro das Forças Armadas (como se comprovou definitivamente em 25 de Novembro de 1975).

    Como instante fundador do novo regime, três notas podem ser referidas ao seu significado: (i) como acontecimento histórico, o 25 de Abril de 1974 talvez se possa aproximar da Aclamação de D. João I, nas Cortes de Coimbra, pelas três Ordens do reino[37]; (ii) do ponto de vista dos valores, por contraste com a ditadura então derrubada, o 25 de Abril veio proclamar a Liberdade e a Democracia; (iii) do ponto de vista da cultura política, em comparação designadamente com o que se passou depois na Espanha, há quem continue a ver na evolução social a que o 25 de Abril deu imediatamente lugar um aumento do envolvimento político dos cidadãos, da tolerância e da atenção para com os mais fracos (Robert Fishman).

    Com a queda do Estado Novo, os dados estavam lançados para mais um interregno constitucional; ora, na linha dos anteriores[38], também este “período de excepção” (como, com grande premonição, lhe chamou o Programa do Movimento das Forças Armadas) viria a ser marcado pelo autoritarismo, pela concentração de poderes e pela típica criatividade negativa dos Portugueses nestas fases (a imposição do rumo ao socialismo, a ideia da sociedade sem classes, a Aliança Povo-MFA, o poder popular, as nacionalizações, incluindo a do sector da comunicação social, a reforma agrária, etc. etc.), que viria a ser incorporada (mais ou menos à força) na Constituição[39], e cujas marcas vieram a exigir mais de uma década para serem dela removidas e para a correspondente estabilização do regime, naquilo que alguns autores consideram, com razão, “um processo constituinte longo”.

    (Foto: D.R./Arquivos RTP)

    6. APRENDIZAGENS DOS ÚLTIMOS 50 ANOS

    Num exercício paralelo, intitulado “O que aprendemos sobre a economia portuguesa em 50 anos de democracia”, Ricardo Paes Mamede retirava pelo menos duas lições: uma, a de que grande parte do que se passa com a economia portuguesa, dada a importância central do contexto externo, depende de factores que não controlamos; outra, a de que apesar de Portugal ter feito muito em 5 décadas para um crescimento sustentado, «aprendemos em diversas ocasiões que as nossas instituições ainda carecem de regras e mecanismos que assegurem uma governação responsável, menos sujeita à captura por interesses particulares e que esteja ao serviço do bem comum»[40].

    Regressando a Robert Fishman, um cientista político que sempre olhou com extrema benevolência para o caso português, no último estudo que lhe dedicou, sem deixar reiterar a sua paixão pela Revolução dos Cravos e pela herança cultural dela derivada, pondera agora algumas objecções, nomeadamente diante de dados relativos a desigualdades sociais significativas, a importantes casos de corrupção, ao declínio da participação política ou à crescente predisposição do povo português para depender de um líder forte[41], admitindo no final que outros estudiosos possam de facto questionar a sua «narrativa de relativo sucesso»[42].

    Importa, portanto, ir mais fundo, para o que pediremos apoio a um ilustre constitucionalista italiano, Gustavo Zagrebelsky, segundo o qual todos os regimes políticos têm um extracto e um substracto: «O extracto é a superfície, o substracto é a substância. O extracto é frágil. O substracto pelo contrário tem muitas coisas pesadas: valores e interesses, relações de poder e de submissão, interesses e necessidades, esperança e desespero, crenças e ilusões, mitos e ingenuidades, amizades e inimizades, altruísmo e egoísmo, legalidade e corrupção, cultura e ignorância: em suma, é por assim dizer o sangue misto que corre nas veias da sociedade»; em segundo lugar, «a cada regime político corresponde um certo tipo de sociedade, pois o extracto deve estar apoiado num substracto coerente»; ora, se a todo o regime político corresponde na verdade um certo tipo de sociedade, um regime democrático «pressupõe uma sociedade democrática»[43]. Eis-nos, por conseguinte, num terreno mais propício à análise da nossa difícil questão, tendo em conta que aprendizagem da democracia tanto pode dar-se ao nível das instituições, como ao nível da sociedade.

    O remate deste meu exercício, a executar por tópicos, não podia em todo o caso dispensar o contributo dos historiadores, complementado pelo esclarecimento que pode ser colhido por uma (das muitas) explicações teóricas sobre a mecânica do funcionamento da democracia, no caso, a de Nadia Urbinati[44].

    Sem ignorar a relevância dos contextos específicos, a autora entende a democracia representativa como “diarquia da decisão e da opinião”, no sentido de que na democracia se articulam dois níveis: o nível da decisão (que envolve as instituições e os procedimentos) e o nível da opinião (que pressupõe uma esfera pluralista do ambiente de formação da opinião). Papel relevantíssimo nessa explicação diárquica vem a ser desempenhado pelos “mediadores” (entre os planos da decisão e da opinião), com destaque para os partidos políticos, os meios de comunicação social e as universidades – por sinal, todos eles em crise, mais ou menos visível neste momento.

    Assim:

    • Antes de mais, quanto ao extracto, não pode decerto ignorar-se o pano de fundo do desajustamento entre as profundas mudanças tecnológicas entretanto ocorridas e a capacidade de aprendizagem e de adaptação institucional disponível, nem o contexto de “desconsolidação democrática” dos últimos anos, visível um pouco por todo o mundo[45].
    • Por outro lado, quanto ao substracto, é evidente o quanto a sociedade portuguesa se transformou ao longo destes 50 anos, não só ao nível dos valores e dos costumes (tendo agora nós das leis mais “progressistas” que há), mas desde logo ao nível demográfico, face ao impressionante envelhecimento da população.
    • No plano histórico geral (Rui Ramos), e assim também no plano constitucional, quanto ao vigor, capacidade de aprendizagem e capacidade de transformação do sistema político, é possível definir duas grandes épocas, nestes 50 anos: a época anterior a 1995 e a época posterior a 1995: (i) na primeira época (ou seja, nas duas primeiras décadas), a partir da semi-democracia (Sá Carneiro) que lhe fora deixada pela atribulada Constituição de 1976, e com o apoio de três revisões constitucionais necessárias, o sistema político conseguiu: afastar o elemento militar do regime e submeter as Forças Armadas ao poder político democrático; remover o objectivo do socialismo (bem como a referência à sociedade sem classes); superar com sucesso dois programas de resgate financeiro; entrar na CEE e integrar a União Europeia; alcançar maiorias absolutas de governo; ajustar a Constituição económica às novas realidades, entre as quais a da inevitável abertura da comunicação social e a política das reprivatizações; garantir o crescimento económico e transformações materiais significativas – tudo isso sem faltar ao respeito pelas “regras do jogo” e passando por grandes consensos entre os três partidos do (então dito) arco da governação, especialmente em 1982, 1985 e 1989; (ii) na segunda época (em que nos encontramos), o rosto do sistema político é totalmente diferente: as revisões constitucionais ou foram voluptuárias ou estão ainda por concretizar; as reformas políticas (pelas quais ainda se lutou nos anos 90) foram adiadas sine die; se em 1978 e 1985, o Partido Socialista aprendeu as lições de realismo que os pedidos de ajuda financeira lhe trouxeram, em 2015, seguiu a via inversa: a de enveredar, pela primeira vez, na “fantasia” de um 25 de Abril às avessas (com a igualdade social à cabeça e com a democracia e a liberdade no final)[46]; o objectivo da convergência tornou-se uma miragem (ressalvados os anos mais recentes); as reformas feitas ou foram as ditas “reformas fracturantes” ou foram as reformas ditadas por pressões externas (especialmente as do Memorando da Troika); em vez dos anteriores consensos, as últimas décadas viram o crescimento da polarização política entre dois blocos, a somar às marcas da cartelização do sistema partidário; a insatisfação do eleitorado, já expressa pelos números abstenção, veio por fim a revelar-se no surgimento de novos partidos, um dos quais um partido anti-sistema, a despoletar, em 10 de Março passado, uma alteração estrutural do sistema de partidos.
    • Ainda ao nível do sistema político, as reformas mais importantes que estão por fazer são a reforma dos partidos políticos (incluindo aí a substituição das juventudes partidárias por verdadeiras escolas políticas, às quais uma parte significativa do financiamento dos partidos deve ser obrigatoriamente alocado[47], do mesmo modo que deve ser eliminado todo o financiamento das despesas correntes dos partidos) e a reforma do sistema eleitoral, ainda que se deva admitir que tanto uma como a outra possam ser feitas por etapas.
    • Quanto ao funcionamento das instituições, a pandemia da COVID-19 (com excepção de alguns tribunais judiciais e da Provedoria de Justiça) veio pôr a nu (tal segunda pandemia) um quadro de pré-colapso: o Parlamento deixou que, impune e reiteradamente, órgãos executivos (nacionais e regionais) usurpassem as suas funções soberanas; o Governo-legislador redescobriu os decretos ditatoriais da Monarquia e os decretos-leis de urgência do Estado Novo, revelando-se incapaz de apresentar uma proposta de lei sobre a pandemia ao Parlamento, como era seu dever; perante violações em massa da legalidade, à Procuradora-Geral da República não se ouviu uma palavra durante dois anos, nada se sabendo, por outro lado, do desfecho dos inquéritos mandados abrir em 2020 sobre a privação ilícita da liberdade; as muitas entidades com poder funcional de suscitar a fiscalização da constitucionalidade fizeram vista grossa às sucessivas inconstitucionalidades que o Tribunal Constitucional só no final teve coragem de explicitar devidamente (e que os demais tribunais geralmente ignoraram); os órgãos administrativos, a começar pelo Governo e pelos governos regionais, cometeram toda a sorte de ofensas à lei, ao interesse público e aos direitos das pessoas, sem que a comunicação social tenha sabido cumprir, em todo esse período, o seu papel de “cão de guarda” do poder.
    • Fora do sistema político, talvez a reforma da escola pública seja a mais premente: no sentido da concretização do princípio da autonomia das escolas e de uma reformulação profunda da relação entre escola, os alunos, os professores e o meio (família, comunidade e autarquia local competente), à maneira do maturado processo que há algumas décadas se levou a cabo, por exemplo, na Nova Zelândia.
    • Relativamente aos demais mediadores, se a comunicação social tradicional em Portugal, particularmente os jornais, se encontra numa situação lastimável, nem a sociedade nem os tribunais estão ainda compenetrados do “lugar sem paralelo” que deve ser ocupado pela liberdade de expressão numa sociedade livre[48].
    • Finalmente, as Universidades: diante da grande dificuldade de mudar e apesar dos esforços de Mariano Gago – que se repercutiram sobretudo na investigação e na internacionalização –, ao nível do ensino, a massificada universidade pública portuguesa ainda não tem como verdadeira aspiração a excelência – como disse alguém, é um “estado de coisas”.
    people riding on blue and white tram during daytime

    Seja como for, não há razões para desânimo quando, nestes 50 anos, se viu um Professor de uma Universidade Pública abalançar-se a traduzir a Bíblia, a partir do Grego – pelo prisma, com a profundidade e da forma como o fez! – , enquanto prosseguia a tradução de todas as principais obras gregas e romanas. Não há razões para desânimo quando três Universidades (a Católica e duas públicas) conseguiram coordenar-se para traduzir, organizar e publicar a obra que Hannah Arendt considerou o documento mais importante do Século XX: o livro que nos deixou em legado Nadejda Mandelstam, Contra toda a Esperança – Memórias (publicado originalmente em Nova Iorque, em 1970)[49].

    E porque é disso que se trata, no final, a grande tarefa da sociedade portuguesa, tanto no que respeita à Democracia, como à Liberdade e ao Desenvolvimento, é a da “recuperação das aprendizagens”, aprendizagens que, por inúmeras razões, não conseguiu realizar durante metade da sua História.

    Lisboa, 25 de Abril de 2024

    José Melo Alexandrino é professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa


    [[1]] Para Rui Ramos, a “forte marca civilizacional muçulmana” prolongar-se-ia por vários séculos, sobretudo nas regiões do Centro e do Sul [cfr. «Introdução», in Rui Ramos (coord.) História de Portugal, Lisboa, 2009, p. XI].

    [[2]] Teremos de pôr aqui evidentemente de lado a parte revolucionária (a segunda) da proposta por ele formulada nesse texto (intitulado «O problema ibérico»).

    [[3]] Adalberto Alves, Portugal e o Islão: Novos escritos do Crescente, Lisboa, 2009, p. 61; exprimindo as suas reservas, Paulo Ferreira da Cunha, «Da construção histórico-mítica do passado pré-nacional», AAVV, in Estudos em homenagem a João Francisco Marques, vol. I, Porto, 2001, pp. 259 ss.

    [[4]] Na fórmula devida ao ensaio inaugural (de 1936) de Sérgio Buarque de Holanda (cfr. Raízes do Brasil, 26.ª ed., 14.ª reimp., São Paulo, 1995, pp. 146 ss. – também disponível aqui); no entanto, já Oliveira Martins utilizara, no século anterior, o adjectivo “meigo” (cfr. História de Portugal, 15.ª ed., Lisboa 1968, p. 19).

    [[5]] Vinícius Müller, A História como Presente, Brasília, 2020, p. 199.

    [[6]] Ibidem, p. 208; do lado português, para um primeiro grande retrato, veja-se Alexandre Herculano, História de Portugal, vol. VIII, Livro VII, Lisboa, 1985, pp. 7 ss. (especialmente sobre as tradições romanas acerca das condições das pessoas nesse período de transição, ibidem, pp. 81-139); para uma revisitação desse período, José Mattoso, «A Época Sueva e Visigótica», in José Matoso (dir.), História de Portugal , vol. 1 – Antes de Portugal, Lisboa, 1992, pp. 300-359.

    [[7]] Adalberto Alves, Portugal e o Islão, cit., p. 77.

    [[8]] Ao contrário, como bem demonstrou o Professor Diogo Ramada Curto, da recente apreciação feita por Nuno Palma (cfr. As Causas do Atraso Português: Repensar o passado para reinventar o presente, Alfragide, 2023) e no sentido do que sempre tenho igualmente defendido (por último, José Melo Alexandrino, Dez apontamentos sobre a Igreja Católica – À luz dos direitos humanos e da transformação necessária, 2023, p. nota 8 (disponível aqui).

    [[9]] E privados até da possibilidade de os lembrar, salvo, segundo Adalberto Alves, nas lendas e romances populares, em três versos de Garcia de Resende e na obra do comediógrafo Simão Machado (cfr. Portugal e o Islão, cit., pp. 77-79).

    [[10]] Embora tenham sido sobretudo os Castelhanos a ter de arcar com as pesadas culpas que lhes foram justamente dirigidas, a partir das Ilhas Britânicas, por John Milton.

    [[11]] Curiosamente, uma das teses do místico luso-muçulmano Ibn Qasî, expressa no seu tratado “Descalça as tuas Sandálias”(Khal’al-na ‘layn), escrito nas vésperas da fundação de Portugal (na arrábida que mandou construir na Arrifana), também o Islão deveria dar lugar a outra coisa no século XVII (cfr. Josef Dreher, Das Imamat des islamischen Mystikers Abulqâsim ibn al-Husain Ibn Qasî: eine Studie zum Selbstvverständnis des Autors des “Buch vom Ausziehen der beiden Sandalen” (Kitab Halan-na ‘laim), tese de doutoramento em Filosofia na Universidade de Bona, 1985; Nagel Tilman, «Le Mhadisme d’Ibn Tûmart et d’Ibn Qasî une analyse phénoménologique», in Revue des mondes musulmans et de la Méditerranée, 91-94 (2000), p. 8 (disponível aqui).

    [[12]] Aliás, mesmo aí, não foi (a visão polifónica e infinita de) Damião de Góis (cfr. Edward Wilson-Lee, A Torre dos Segredos, Lisboa, 2022, p. 276) acusado pela Inquisição, num processo que durou 20 anos, do uso da polifonia, perante o testemunho de alguém que ouvira cantorias «que não era o tipo de canções a que estava habituado» (ibidem, p. 264)?

    [[13]] Como o de Mouzinho da Silveira – segundo Vasco Pulido Valente, «um homem primário e presumido» [cfr. «O liberalismo português» (2007), in Portugal – ensaios de História e de Política, Lisboa, 2009, pp. 22-23].

    [[14]] A começar por Damião de Góis e Luís de Camões (a cujo estimulante confronto procedeu Edward Wilson-Lee, no seu já citado livro A Torre dos Segredos) e a terminar com figuras como Fernando Pessoa, Jorge de Sena, Agostinho da Silva, Mário Soares ou Miguel Esteves Cardoso.

    [[15]] Vasco Pulido Valente, «Imitar a Revolução», in Diário de Notícias, de 25 de Abril de 2004, p. 6.

    [[16]] Vasco Pulido Valente, «O liberalismo português», cit., p. 7.

    [[17]] Ibidem, p. 12.

    [[18]] Por todos, sobre o primeiro quartel do século, Oliveira Martins, História de Portugal, cit., pp. 509-538; Vasco Pulido Valente, «O liberalismo português», cit., pp. 7-16; sobre o segundo, Rui Ramos, «Parte III – Idade Contemporânea», in História de Portugal, cit., pp. 439-478.

    [[19]] Sobre o assunto, AAVV, Portugal e Brasil: Um Direito Comum no Bicentenário do Reino Unido, e-book, Lisboa, 2016.

    [[20]] Para esse registo, quanto aos séculos XIX e XX, Adalberto Alves, Portugal e o Islão, cit., pp. 81-95.

    [[21]] Vasco Pulido Valente, O Fundo da Gaveta, Lisboa, 2018, pp. 15-86.

    [[22]] Por todos, Vasco Pulido Valente, Os Militares e a Política (1820-1856), Lisboa, 1997, que começa justamente por definir as várias formas típicas de intervenção no período em análise (ibidem, pp. 9-10).

    [[23]] Sobre a segunda metade do século até 1890, por todos, Rui Ramos, «Parte III – Idade Contemporânea», in História de Portugal, cit., pp. 521-548; particularmente, sobre a fase final do terceiro quartel, Vasco Pulido Valente, O Fundo da Gaveta, cit., pp. 89-224.

    [[24]] Como tenho defendido, esse momento histórico só voltou a ter o seu equivalente na aprovação da revisão constitucional de 1982 (cfr. José Melo Alexandrino, Lições de Direito Constitucional, vol. II, 4.ª ed., Lisboa, 2024, pp. 51 e 58).

    [[25]] Que, na realidade, durou até ao dia 25 de Abril de 1975.

    [[26]] Sobre o conceito, José Melo Alexandrino/Jaime Valle, Lições de Direito Constitucional, vol. I, 4.ª ed., reimp., Lisboa, 2023, p. 175.

    [[27]] Sobre essa constante do constitucionalismo português, José M. Alexandrino, Lições de Direito Constitucional, vol. II, cit., pp. 26, 53, 150, 253.

    [[28]] Foi esta uma das teses a que cheguei, depois de analisar detidamente (cfr. José de Melo Alexandrino, A estruturação do sistema de direitos liberdades e garantias na Constituição portuguesa, vol. I – Raízes e Contexto, Coimbra, 2006, pp. 289-844) a história, a doutrina e a realidade constitucional (ibidem, vol. II – A construção dogmática, 2006, p. 704).

    [[29]] Segundo Vasco Pulido Valente, «a República era uma degenerescência de uma degenerescência» (cfr. João Céu e Silva, Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente, Lisboa, 2021, p. 88).

    [[30]] Na fórmula de Rolão Preto (que nunca desconsiderou o 5 de Outubro e que acabou a colaborar activamente com os republicanos, a partir de meados do século XX), a I República foi um regime que teimou em marchar «só com uma perna» [cfr. «Carta a um Republicano» (1972), in José Melo Alexandrino (org.), Rolão Preto, Obras Completas, vol. II, 2.ª ed., Lisboa, 2023, p. 410].

    [[31]] Para um retrato de alguém que outorgou sub-repticiamente a Constituição de 1911, cfr. José Melo Alexandrino, «A presença de Afonso Costa na Assembleia Constituinte», in Jorge Miranda/Alexandre Pinheiro/Pedro Lomba (coords.), A Assembleia Constituinte e a Constituição de 1911, Lisboa, 2011, pp. 481-511.

    [[32]] Mais ainda agora quando temos acesso aos seus diários pessoais [cfr. Maria Madalena Garcia (org.), Diários de Salazar (1933-1968), e-book, Porto, 2021].

    [[33]] Sobre o que pensava neste domínio, sobre a forma como o verteu e como o interpretou na Constituição de 1933 (por ele realmente outorgada), cfr. José M. Alexandrino, A estruturação do sistema…, vol. I, cit., pp. 450-469.

    [[34]] Ibidem, p. 468.

    [[35]] Vasco Pulido Valente, in João Céu e Silva, Uma longa viagem, cit., p. 84.

    [[36]] Rolão Preto, «Entrevista com Rolão Preto», in João Medina, Salazar e os Fascistas – salazarismo e nacional-sindicalismo a história de um conflito 1932/1935, Lisboa, 1978, p. 184.

    [[37]] Para conhecimento do respectivo auto, veja-se  aqui.

    [[38]] José M. Alexandrino, Lições de Direito Constitucional, vol. II, cit., p. 39.

    [[39]] Para uma narrativa do processo, José M. Alexandrino, A estruturação do sistema…, vol. I, cit., pp. 517-635.

    [[40]] Público, de 22 de Abril de 2024, p. 9 (disponível, para assinantes, aqui).

    [[41]] Robert Fishman, «De “retardatário” problemático a estrela do Sul?», in Jorge M. Fernandes/Pedro C. Magalhães/António Costa Pinto (org.), O Essencial da Política Portuguesa, Lisboa, 2023, p. 35 (sem necessidade do recurso a sondagens de ocasião).

    [[42]] Ibidem, p. 46.

    [[43]] Gustavo Zagrebelsky, «Basta con il silenzio, è venuto il tempo della resistenza civile», in la Repubblica, de 23 de Novembro de 2018 (disponível aqui).

    [[44]] Para uma introdução, Nadia Urbinati, «Crise e Metamorfoses da Democracia», trad. de Pedro Galé e Vinicius de Castro Soares, in RBCS, vol. 28, n. 82 (junho de 2013), pp. 5-16 (disponível aqui).

    [[45]] Cfr. José Melo Alexandrino, «Introdução», in Estudos sobre o constitucionalismo no mundo de língua portuguesa, vol. III – O sistema político no Brasil e em Portugal, Lisboa, 2020, p. 10 (disponível aqui).

    [[46]] O resultado das eleições legislativas de 2024 parece querer dizer que o Povo registou o facto.

    [[47]] Em sentido próximo, Miguel Poiares Maduro, «Entrevista», in Público, P2, de 5 de Janeiro de 2020, p. 7 (também disponível, para assinantes,  aqui); Paulo Trigo Pereira, Democracia em Portugal: como evitar o seu declínio, Coimbra, 2020, pp. 189 ss.

    [[48]] José Melo Alexandrino, «Prefácio», in Escritos de Direito da Comunicação Social, Lisboa, 2024, pp. 7-8 (no prelo).

    [[49]] Nadejda Mandelstam, Vospominánia, trad. de Ana Matoso e Larissa Shoropa, Contra toda a Esperança – Memórias, Lisboa, Universidade de Lisboa, 2021.


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    Fascistas que se acham democratas,

    democratas que são fascistas,

    são as feridas do passado que reflectem na ignorância deste povo fraco, que a única coisa que sabe fazer é andar com cravo na mão a gritar Liberdade…

    É Abril, a igualdade, grita a tia da Lapa, toda ela cheia de privilégios com a sua mala de marca, a cantar o Grândola Vila Morena.

    Mas sabem uma coisa? Eu não tenho pena.

    Que se lixem todos com este sistema que legitimam com a vossa cegueira ideológica.

    Acreditam mais em políticos do que em vocês mesmos.

    É este o país que temos, onde o voto virou um acto de preguiça.

    Votas para ser governado, entregas tudo ao senhor engravatado, que te rouba, explora,

    e diz-te que não és escravo.

    E tu repetes: eu não sou escravo, isso são coisas do passado, eu não sou escravo, eu dou metade daquilo que eu ganho a um Estado que nada me dá,

    mas não sou escravo…

    Eu penso algo diferente daquilo que eles querem que eu pense, e sou censurado,

    mas não sou escravo.

    É a política do tem que ser,

    tem que haver respeitinho…

    Então, isto agora é assim?

    Viramos todos uns rebeldes?

    Temos que respeitar os senhores que cuidam com muito carinho e dedicação da nossa vida e da nossa nação,

    que nos oferecem a ração,

    que nós pagamos,

    que nos dão metade daquilo que nos tiram,

    mas pelo menos dão.

    E sim! Eu sou livre.

    A televisão disse-me que eu era livre.

    Os políticos e até os meus ídolos me confirmaram que eu era livre…

    É porque eu sou livre.


    Só seremos livres quando soubermos que somos escravos. Esse é o primeiro passo para a Liberdade!


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  • O Povo Unido já foi vencido (e não sabe)

    O Povo Unido já foi vencido (e não sabe)


    Canta-se ‘Grândola, Vila Morena’ a descer a Avenida. Cravos vermelhos na mão, ao peito, ou no cabelo. Caminha-se emocionado, lado a lado com outros portugueses, respirando a memória daquele dia 25 de Abril, faz 50 anos (a minha idade).

    Como a Revolução, também eu nasci em Abril de 1974. Cresci a ouvir as histórias de censura, repressão e medo, muito medo. De política, não se podia falar. Na minha família, havia essa noção e esse conselho era passado às novas gerações. O medo pode ser poderoso. Já não se vivia em ditadura mas a memória dele permanecia (e ele vivia).

    Ouvindo os gritos e vivas à democracia na Avenida, vejo os rostos dos que, de cravo ao peito, desconhecem que nos jornais, nas rádios e nas TVs já não se pode falar de muitos temas importantes para ‘o povo’. Abril é hoje uma sombra do que foi. E o povo canta, sem saber que a nova era de censura e repressão chegou e prospera, cresce, alimenta-se, flui. O povo canta, mas não sabe.

    O povo não sabe que só sai na imprensa o que é ‘autorizado’. O mantra da ditadura de ‘não se fala de política’ foi substituído por ‘não se fala de políticas de Saúde’, ‘não se fala da censura’, ‘não se fala que há um jornalista preso há 5 anos no Reino Unido’. E, sobretudo, ‘não se fala das novas leis de censura e repressão’.

    Ouço na Avenida os cânticos da Revolução, incluindo ‘O povo é quem mais ordena’. Mas o povo não tem hoje um direito fundamental: o do acesso a informação. Porque os media, a imprensa, não dão informação fora da considerada válida pelo regime. Pior. Os media, hoje, são parte do regime. Estão soldados e inseparáveis.

    E que regime é esse? É um regime cuja função é, exclusivamente, defender e proteger interesses financeiros e comerciais. É um regime apropriado à era do consumo fácil, do compra e deita fora, do troca de carro todos os anos.

    O povo não sabe e canta. Caminha de cravo na mão, feliz por estarmos todos a celebrar Abril. Mas celebrar Abril estando às escuras quanto à realidade actual, que inclui a censura e a repressão, não é uma celebração, é uma condenação. Celebrar Abril na ignorância das notícias que não são autorizadas a sair é condenar a Revolução.

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    Esta semana, foi debatido na Assembleia da República um tema de enorme relevância para o futuro do país e dos portugueses. Em outros tempos, seria tema de telejornais em horário nobre. seria tema de primeira página. Seria tema a destacar pelas agências noticiosas e pelas rádios. Mas tente-se procurar notícias sobre esse debate. Deixo esse desafio. O tema que foi debatido foi tão somente o plano da Organização Mundial de Saúde (OMS) de preparação do mundo para futuras pandemias e crises de saúde pública. Que tenha reparado, o PÁGINA UM foi o único órgão de comunicação social a acompanhar o debate.

    O povo não sabe que houve mudanças profundas no plano nos últimos dois meses. Porquê? Porque tiveram de cair propostas que estavam na mesa, incluindo a eliminação dos direitos humanos e das liberdades fundamentais do artigo 3º do Regulamento Sanitário Internacional. Mas esta era apenas uma das medidas totalitárias e extremistas que estavam na mesa. Outras tiveram de ser ‘riscadas’ do plano. Mas outras medidas polémicas continuam na mesa de negociação. O povo não sabe e este plano da OMS pode ser já adoptado por Portugal no final de Maio.

    E porquê a censura? Porque é um tema sobre políticas de Saúde. O leitor pergunta: porque há censura de temas de Saúde? Porque é uma área que envolve muito, muito dinheiro dos cofres estatais e que é fácil de controlar pela informação que é passada ao ‘povo’. Se o povo só souber o que as TVs passam, o povo é fácil de dominar e aprovará tudo o que lhe disserem que ‘é para o seu bem’. O povo obedecerá e tudo o resto será ‘desinformação’.

    A área de Saúde envolve algo crucial para controlar a população: o medo. O medo de se ficar doente, de morrer, de perder familiares e amigos para vírus e doenças.

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    Mas não é apenas a área de saúde que é alvo de censura por parte dos media. Também a Ciência em geral. Os melhores estudos científicos em diversas áreas são omitidos ao ‘povo’ pela imprensa. Os cientistas e especialistas mais conceituados nunca são entrevistados e até são difamados pela imprensa.

    A censura chega aos jornalistas. Muitas ‘cachas’, temas que seriam manchete, abertura de telejornal, são metidos na gaveta, abafados, escondidos. Jornalistas incómodos , que querem fazer o seu trabalho, são metidos na prateleira.

    Mas o povo canta na Avenida. Os jornais publicam cravos na capa. As TVs passam as imagens da festa de Abril com tom emocionado dos pivots.

    Recordar Abril é fácil (e bom). Honrar Abril é que é cada vez mais difícil na nova era de censura e perseguição.

    Numa entrevista recente ao PÁGINA UM, Stella Assange, mulher do jornalista Julian Assange, disse que o seu marido tem sido “um canário na mina de carvão”. Julian está detido numa prisão de alta segurança no Reino Unido há cinco anos e arrisca a extradição para os Estados Unidos. Biden quer julgá-lo por… ter publicado informação confidencial, incluindo denunciando crimes de guerra cometidos por Estados, incluindo a morte de jornalistas.

    Pouco ou nada se fala de Assange nos media portugueses. Se estivesse preso na Rússia seria notícia todas as semanas.

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    (Foto: Samuel Regan-Asante)

    As ditaduras estão aqui, à nossa porta e a porta já foi aberta. O totalitarismo foi convidado a entrar. O povo unido ‘come e cala’ e ainda canta enquanto come, porque nem sabe o que está a comer.

    Muita legislação tem sido aprovada em países ocidentais com vista a condicionar fortemente a liberdade dos jornalistas e da imprensa e para censurar a liberdade de expressão. Da União Europeia, ao Canadá, Brasil, Austrália, Irlanda, está a ser construído um edifício legislativo de suporte à nova era totalitária. E o povo não sabe porque a imprensa se recusa a noticiar este facto. Este edifício legislativo é um dos pilares do novo regime ocidental anti-democrático, anti-liberdade, anti-jornalismo.

    Este novo regime alimenta os abusos comerciais cometidos por multinacionais, alimenta as políticas globalistas que querem anular culturas e comércio local, alimentam o capitalismo selvagem. Ou seja, este novo regime ocidental alimenta (e alimenta-se de) tudo aquilo que os chamados partidos da esquerda dizem combater.

    E o cravo é agora usurpado, como outros símbolos da liberdade e da democracia, e é usado para promover este novo regime de ‘falsa democracia’ e ‘falsa liberdade’… e do falso jornalismo dos mass media do regime.

    Mas o povo canta, descendo a Avenida. E a imprensa distribui imagens de cravos enquanto anda de braço dado com os opressores e censores.

    Naquela história do elefante que viveu preso toda a vida, o animal, depois de solto, continuou a andar apenas em redor do poste que o prendia. Não sabia que tinha sido libertado. Aqui, em Portugal, no mundo ocidental, o povo tem vindo a ser preso numa redoma de ferro mas sempre com música da revolução e com cravos vermelhos. Está cada vez mais confinado a uma redoma de censura e condicionamento e não sabe.

    O povo pensa que é livre porque canta ‘Grândola, Vila Morena’ e desce a Avenida. O povo pensa que vive em democracia porque vota. O povo pensa que é livre porque pessoas do mesmo sexo se podem casar. Porque o povo pode ir a festivais de música com bandas do estrangeiro. Tudo isto é bom e uma alegria. Mas não chega.

    Na redoma de ferro invisível, sem acesso a informação de forma livre, o povo canta. Dá graças a todas as migalhas de liberdade que o novo regime permite que existam.

    Da imprensa, aos grandes motores de busca na Internet (como o Google), passando por grandes redes sociais ou pela Wikipedia, é patente a ausência de alguma informação verdadeira, factual e crucial que o ‘povo’ devia saber. Pior. Há deturpação de informação e difamação de ‘opositores’ ao regime. A gigantesca indústria de censura que tem vindo a ser montada pelo novo regime ocidental está aí em força. E o povo não sabe.

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    Avenida da Liberdade (Foto: Alice Kotlyarenko)

    Os que lutam contra esta prisão que está quase a ser concluída, fazem uma luta desigual. Mas lutam. Do jornalismo, passando por empresários, por plataformas na Internet, passando por activistas da sociedade civil e mesmo políticos de diversos backgrounds e ideologias, a luta continua. E o povo não sabe.

    Como aconteceu com o caso do plano pandémico da OMS, a imprensa convenceu o povo que o tema é… da ‘extrema-direita’. Como é que o debate sobre o que está nas propostas para a criação de um plano de preparação para pandemias é da ‘extrema-direita’? Quem acredita nisto? Caramba!. Este tema, como outros, não tem cor partidária nem ideologia. Não tem género, nem sexo, nem etnia. O tema do plano pandémico da OMS diz respeito a todos nós, humanos a viver nos países que o irão subscrever e adoptar. Por isso, é bom que saibamos o que está a ser feito para nós e por nós (supostamente).

    Censurar o debate deste tema deveria fazer soar os alarmes. É mais um ‘canário na mina de carvão’. Será que é porque se está a querer criar uma indústria de pandemias para vender produtos, testes, aparelhos, medicação, apps de rastreio? Para impor a venda destes produtos que serão, na maioria, pagos com dinheiros públicos e para encher os bolsos de multinacionais e organizações? Ou o que está a ser feito está a ser bem feito, a pensar efectivamente na saúde pública? Só saberemos se pudermos ter acesso a informação. E isso é o que falta, hoje, sobre este tema e muitos outros.

    Por isso, quando hoje passarem nas TVs as imagens a preto e branco a recordar Abril de 1974, vale a pena pensar na tal redoma de ferro invisível que está a ser construída. Vale a pena pensar que é fácil hoje passar nas TVs imagens de há há meio século e não se consegue ver nas TVs imagens de acontecimentos que estão a acontecer na actualidade. O mesmo se aplica aos jornais e às rádios.

    (Foto: D.R./Arquivos RTP)

    Recordar é bom. Mas não se significar viver num passado de recordações e canções enquanto se ignora que não se é livre. Livre para saber, para se informar, para tomar decisões e apoiar políticas de forma consentida. Sem acesso a informação, o povo é convencido que há temas de que não se fala. Convence-se o povo que temas de relevo como o da Saúde, Liberdade de Expressão, são temas com cor política. Não são. É o novo ‘não se fala de política’ como havia na ditadura do Estado Novo.

    Também canto ‘Grândola, Vila Morena’. Mas canto triste e ao mesmo tempo com esperança. Esperança de que o povo desperte uma madrugada, ao som de uma música na rádio, e desperte, saia do transe em que caiu. E que esse despertar seja o início do fim desta nova ditadura sem rosto, sem nome, mas que nos ameaça manter todos presos. Presos e calados mas com cravos na mão e com autorização para, todos os anos, celebrarmos Abril na Avenida.

    Elisabete Tavares é jornalista


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