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  • Debates para as Europeias 2024: um circo?

    Debates para as Europeias 2024: um circo?


    Durante um dos debates para as eleições europeias, a moderadora, colaboradora permanente de um dos canais de propaganda, iniciou a discussão da seguinte forma: “Como é que aquilo que propõem ser discutido na Europa pode melhorar a vida dos portugueses?”. É sempre um exercício de masoquismo intelectual ponderar a possibilidade de que os representantes de dois notórios meliantes, o Estado português e a burocracia de Bruxelas, que nos saqueiam diariamente, possam, em algum momento, vir a ajudar-nos!

    Solicitar aos salteadores tal explicação, recorda-me sempre um dos filmes que me marcaram para sempre: “Casino”; dirigido pelo magistral Martin Scorsese. Somos agraciados com a voz inconfundível de Robert De Niro, interpretando “Ace Rothstein”, enquanto narra a sua trajectória como um dos grandes gestores de um casino em Las Vegas.

    glass walled building during daytime

    Logo no início, Ace Rothstein recordava: “Naquela época, Las Vegas era o destino onde os trouxas iam anualmente com alguns trocados e perdiam milhares de milhões de dólares: o resultado final do brilho das luzes, das viagens pagas, dos banhos de champanhe, das suítes de hotel gratuitas, das miúdas e das bebidas. Tudo era meticulosamente planeado para lhes esvaziar os bolsos: essa é a verdade de Las Vegas”.

    Atentem: nós somos os incautos que pagaremos principesca e perpetuamente estes parasitas em Bruxelas, que, ao contrário da sinceridade cristalina de Ace Rothstein, aparecem sob os holofotes televisivos para nos ludibriar, exaltando incessantemente as perversidades dos instrumentos de Bruxelas, concebidos com um único propósito: parasitar-nos, humilhar-nos e enxovalhar-nos.

    Quer seja a imigração descontrolada, que devemos aceitar sob pena de sermos rotulados de racistas e xenófobos; quer seja a compra de novos parasitas com o dinheiro dos cidadãos abastados do Norte da Europa, eufemisticamente denominada de processo de alargamento; quer seja a guerra até ao último ucraniano, servindo apenas para encher os bolsos do escol em Bruxelas; quer seja o Banco Central Europeu (BCE), que “paga” as putativas pandemias com inflação — em tudo, os candidatos concordam: tudo vale por uma sinecura dourada!

    É sempre causa de admiração a capacidade desta gente de transformar cinismo em arte, pilhagem em virtude, enquanto nos forçam a pagar o seu opulento teatro de crueldades.

    Casino (1995), de Martin Scorsese, protagonizado por Robert De Niro.

    Numa população estagnada em 450 milhões, um candidato propõe, com uma candura desconcertante, que acolhamos 200 milhões de “refugiados climáticos” – sabe Deus o que isso significa?! A teoria de que o CO2 é um poluente (!), ou de que é o grande vilão do suposto aquecimento global, é sustentada pela “nova ciência”, que não tolera qualquer dissidência, prontamente rotulada de “negacionismo climático” por estes modernos inquisidores, apesar da discordância de muitos cientistas.

    A teoria da “emergência climática” assemelha-se às indulgências vendidas pela Igreja Católica há séculos: pague e não irá para o Inferno! Agora, a mensagem é: pague e salvará o planeta Terra! Quão fascinante é a capacidade destes modernos clérigos de transformar a ciência em dogma, onde a fé cega substitui a dúvida metódica, e o assalto aos nossos bolsos, sob a forma de impostos de carbono, se disfarça de virtude ecológica!

    Um candidato, supostamente liberal, defende que o Banco Central Europeu, uma entidade que opera sob um regime de monopólio e respaldada por leis de curso legal – atente-se: um “liberal” que idolatra monopólios públicos! – deve continuar a agir com total “independência política” – vá-se lá saber o que isso significa.

    Tenta, assim, fazer-nos esquecer que, sem a sua existência, a putativa pandemia jamais teria sido possível. Quem pagaria os milhões de trabalhadores em casa, de baixa devido ao terrível “vírus”, e sem nada produzir? Quem financiaria os milhões de testes falsos? Quem arcaria com os milhões de “vacinas” inúteis e perigosas? A resposta é simples: a dívida pública emitida pelo Estado português e adquirida com o dinheiro de monopólio desta instituição, resultando numa inflação sem precedentes, após ter criado 4 biliões de Euros do nada. Pasme-se: diz agora que está a combater a inflação que criou! É como o criminoso que volta ao local do crime.

    Durante os debates, a outrora actriz e agora candidata ao Parlamento Europeu, soltou esta eloquente afirmação: “Por dia, a UE está a perder nove mil milhões de Euros por não fazer a transição climática!” Dá sempre vontade de perguntar se a senhora irá colocar o seu próprio dinheiro nas previsões infalíveis que realiza. Será que está disposta a investir do seu próprio bolso em energias de fiabilidade duvidosa e extremamente caras, como é o caso da energia solar e eólica? Parece que não, pois é sempre mais seguro viver do confisco aos nossos bolsos, como faz há décadas, e pedir ao gado que se arruíne com energia caríssima e não fiável.

    O ex-comentador, agora candidato da “direita” globalista, veio afirmar que a habitação deve integrar a carta dos direitos fundamentais da União Europeia! A confusão persiste sobre a definição do que constitui um direito. Eu tenho o direito à vida – o direito de não ser privado dela por outrem –, o direito à liberdade, o direito à propriedade privada – aquilo que produzi, aquilo que adquiri. Ou seja, um direito legítimo não impõe obrigações sobre os outros; é negativo por natureza. Contudo, para o candidato da “direita” globalista, direito é sinónimo de desapropriação; é roubar uns cidadãos para conceder habitação a outros. Temos mais um socialista assumido.

    Para a ex-ministra da saúde, candidata da “esquerda” globalista, a Europa é um poço de virtudes porque permitiu a contratação conjunta de “vacinas”, incluindo a controversa compra à empresa farmacêutica Pfizer que agora está sob investigação pela Procuradoria Europeia. Reparem: ninguém a interpela com esta questão!

    Antes dos debates, o candidato do partido “fascista” e “antiglobalização”, após uma entrevista onde expressou teorias conspiratórias sobre os eventos de 11 de Setembro, foi logo apelidado pejorativamente de chalupa pelo regime e os seus órgãos de propaganda.

    Nunca se esqueçam: foi um grupo de terroristas, sob a coordenação de um indivíduo oculto nas montanhas do Afeganistão – praticamente sem conhecimentos de pilotagem – que conseguiu assumir o controlo de quatro aviões civis, servindo-se apenas de canivetes suíços, num audacioso ataque ao espaço aéreo da maior potência militar do mundo.

    Assim, após a reprimenda, apareceu nos debates como um cordeiro, acatando obedientemente os ditames dos órgãos de propaganda: “a emergência climática existe”, “nós precisamos de imigrantes”, “defendo a integridade territorial da Ucrânia, não podendo implicar a cedência de territórios”, “é evidente que se deve atribuir uma maior verba à Defesa”. Resta a pergunta: qual é mesmo a diferença?

    Jamais se abordaram ou irão abordar questões relevantes: por que devemos entregar a nossa soberania a uma entidade supranacional não democrática, na qual 21 deputados em 705 são absolutamente irrelevantes? Por que motivo o crescimento económico é tão medíocre desde o aparecimento do BCE, uns míseros 1,1% ao ano? O que explica o disparar exponencial da dívida pública desde a adesão ao Euro, de menos de 60% do PIB para 100% do PIB?

    Por outro lado, por que estamos atrelados a uma União Política pela qual ninguém votou, à qual ninguém concedeu legitimidade? De que forma os nossos direitos serão afectados pela Identidade Digital e pelo Euro Digital? Qual o risco real da possibilidade de serem enviados os nossos jovens para guerras que servem apenas para encher os bolsos da casta parasitária em Bruxelas?

    Ursula von der Leye, presidente da Comissão Europeia, e Albert Bourla, presidente da Pfizer
    Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, e Albert Bourla, presidente-executivo da Pfizer.

    Por último, mas não menos importante, o crescente totalitarismo da União Europeia: qual é a legitimidade da Sra. Ursula von der Leyen e os seus comparsas para determinar o que posso ou não ver, em nome da protecção contra a propaganda russa? Quem lhes concedeu poder para censurar os cidadãos, sob o pretexto de combater a desinformação, aprovando esse documento ignominioso denominado Regulamento dos Serviços Digitais?

    Enfim, alguém me pode explicar a razão para ser governado por um gigantesco Estado totalitário que almeja controlar cada aspecto da minha existência, parasitando o meu bolso em paralelo com o Estado português? São perguntas que aparentemente nenhum dos senhores dos partidos do regime deseja responder. Compreende-se: o salário mensal de 20 mil Euros que todos iremos pagar está à sua espera…

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


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  • Castelo Branco, ou a incrível história de Zé Vieira

    Castelo Branco, ou a incrível história de Zé Vieira

    Fargo é uma série televisiva com poucos anos, mas é também o título de um filme dos irmãos Coen, realizado em 1996.

    Um grande objecto cinematográfico que tem, como protagonistas, as personagens mais estúpidas do cinema, pelo menos em filmes sérios, ainda que com humor negro entrelaçado lá pelo meio – marca dos realizadores.

    Para mim, claro.

    Não pretendo ser absoluto e muito menos totalitário nas ideias, como alguns que por aí andam na política, e, sobretudo, na horticultura, mas isso é sumo para outro copo… sustentável, claro.

    Nesta fita, dois criminosos de terceira linha, e não muito credíveis, são contratados para raptar a mulher de um vendedor de automóveis.

    Acontece que quem os contrata é o próprio vendedor de automóveis que anda com problemas financeiros, fruto de esquemas trafulhas não muito claros para o espectador, para assim receber, através de um resgate, o dinheiro que será pago pelo pai da vítima, o seu sogro e dono do stand onde o contratante trabalha.

    O homem de 70 anos é relativamente rico, gosta muito da filha e, aparentemente, fará tudo por ela. Pelo menos, na cabeça do vendedor. A ideia seria, depois, o marido dividir o dinheiro com os criminosos contratados, e voltaria tudo ao normal.

    Como se nos filmes dos irmãos houvesse normalidade.

    Se até a própria realidade já não é normal quanto mais o cinema em Hollywood…

    Mas corre tudo mal, claro.

    O plano absurdo é sabotado pelo próprio cinema, como mandam as regras, e por isso entre malas de dinheiro, neve, sangue, sangue na neve, formas de falar características da região saloia onde se abusa do YA, mentiras e estupidezes relativamente evidentes, com mortes à mistura, a trama vai aparecendo, por sinal… Bastante tramada. 

    A personagem principal é uma xerife, gravida de vários meses, a quem foi incumbida a tarefa de capturar os raptores e de resolver os três assassinatos que, entretanto, se deram na sua jurisdição por causa do rapto mal engendrado.

    Como se sabe, os americanos não são conhecidos por serem muito espertos nem bons a raptar.

    Não querendo ser spoiler, creio que este resumo, sobretudo para quem conhece os filmes dos irmãos Coen, e que por sinal são bastante populares, será claro – e perceberá o alcance da história, para assim nos aventurarmos nas metáforas e analogias com a realidade e as sinopses das comédias negras portuguesas, travestidas de crime real ou não.

    Como se o Direito ainda tivesse os seus direitos. Quem não conhece o filme, que o veja. É uma ordem.

    Alguma semelhança com a realidade?

    Toda.

    Podemos hoje questionar a realidade e as suas diferentes facetas. Mas isso é vaso para outras flores – ou para outros canteiros, como dizem os chauvinistas dos franceses.

    Tudo isto a pretexto, na verdade, do que tenho assistido pela TV ao ‘caso de polícia do momento’, e por isso tirei  alguns apontamentos para um filme digno dos Coen. Não é uma sinopse, nem mesmo uma ideia. Acrescento, no entanto, alguns comentários e limito-me a reproduzir a trama de forma tão atabalhoada quanto a própria história.

    Zé Vieira é conhecido por ser uma das, ou um dos, principais socialites da fauna portuguesa. Os media em geral deram-lhe sempre muita atenção, convidando-o muitas vezes para animar canais televisivos, pouco importando a credibilidade, destacando-se mais o palhaço para animar o circo onde os trapezistas de serviço até agora se têm aguentado.

    Ao menos este não escondia o nariz.

    Chegou mesmo a pulular por Quintas das Celebridades e programas do género. Nada contra.

    É casado com uma senhora agora com 95 anos, de nacionalidade estadunidense, e tem um enteado de 77 anos que vive em Miami num prédio que tem como vizinho um dos filhos de Donald Trump. O enteado odeia-o e, numa fotografia que circula, estranhamente parece-se com o Cavaco Silva.

    Qualquer semelhança com a realidade será, portanto, puro entretenimento.

    Zé tem um amigo chamado Pedro, que também já andou por Big Brothers e coisas do estilo. Tem um ar pouco credível, mas simpático, não deixando de parecer um pouco tonto.

    Por sua vez, Maya é uma senhora bastante duvidosa no que toca ao conhecimento de astrologia – e, já agora, no que toca a outras vertentes, como por exemplo ser apresentadora de programas cor-de-rosa na CMTV. Bom, também como se sabe, os portugueses não são conhecidos por serem grandes apresentadores de televisão, assim como os espanhóis não são por serem apreciadores de caracóis. Já os franceses matam-se por eles. Ah, e anda por aí, de igual modo, que os turcos… não!, desses não convém falar…

    Voltemos a Maya. Uns tempos antes do episódio que levou a Lady B. para o hospital por supostamente ter sido empurrada pelo marido Zé, afectando o fémur, Maya fez grandes elogios no seu programa colorido ao ex-travesti por ser um grande cuidador e sobretudo um excelente marido.

    E também não é verdade que a violência doméstica quase sempre se pratica na obscuridade? E não é um facto que a descoberta da identidade dos grandes serial killers sempre se mostra uma surpresa para os vizinhos e até para a família, quando estes são apanhados?

    Nunca se vê em documentários os conhecidos do criminoso a dizer que se via logo que era ele, ou sempre desconfiei, aqueles blazers não me enganavam, ou ainda que o carrasco tinha mesmo cara de serial killer.

    Nesta história parece haver também bastante testosterona tóxica por parte dos protagonistas – Zé e Pedro – que até são vistos num vídeo caseiro a darem estaladas e murros um ao outro. Ou coisa parecida.

    Mas também não deixa de ser verdade que noutro vídeo filmado pelos próprios, estão numa cama aos beijos e abraços ainda que sem erotismo. Parece…

    Numa das noites da Maya, até chegámos a ver ao mesmo tempo, no ecrã, os dois vídeos caseiros, um de cada lado, com os comentadores cor-de-rosa ao meio. Na esquerda dão estalos, na direita, beijos.

    Genial! O paradoxo da condição humana.

    Zé garante que nasceu homem e morrerá homem, e que é heterossexual. Um paradoxo interessante para explorar. Ou não. Pode sempre haver dias em que ele se sentirá o que quiser sentir-se. Afinal, no + do LGBTQIA+ cabe + do que o L, o G, o B, o T, o Q, o I, o A e o próprio +. Um looping infinito que nos proporcionam estes interessantes tempos do wokismo.

    Nestes programas são sempre usados muitos superlativos e há transgressão politicamente incorrecta.

    No meio de tanto confetti e lantejoula, também há verdade, e isso faz-nos mergulhar num mundo que se esforça para se afastar de clichés, os grandes inimigos da complexidade. Mas quase sempre não o conseguem.

    Não é fácil. E exige arte. 

    A marca para a qual Zé estava a trabalhar, chamada Feira dos Sofás, lançou entretanto um comunicado a anuncia o fim da parceria com o socialite.

    Num dos vídeos feitos para a marca, Zé, apontando para um sofá no qual se irá sentar, diz para o “empregado” que o móvel é pindérico, mas depois senta-se e fica tremendamente confortável, mandando de seguida o “empregado” comprar o sofá.

    Tudo filmado na vertical e com muita chunguice. Eu não compraria um sofá daqueles. Horrível, é – mas confortável, segundo o reclame.

    Nisto, Maya será importante porque é através do seu programa nocturno que vamos conhecendo os melhores ingredientes desta historieta.

    Estes ingredientes, com aparentes contradições e muito suspense, poderão apimentar o filme, caso seja esse o objectivo. E sobretudo caso ainda haja espaço para a continuidade do Cinema com c grande também, já que, com tanta história tridimensional e tanta auto-representação que anda por aí, uma pessoa já nem sabe. 

    Se a vida é um filme, como dizem, com o Zé são dois.

    Mas, a ser feito, será um meta-filme, de forma que o público se percepcione na realidade, mas dentro de uma sala de cinema.

    Giro, giro, seria o Zé e o Pedro aparecerem de rompante num dos cinemas,  no meio de uma sessão, plateia adentro a fazer das suas. Ou estalos, ou beijos.

    Ou não… Até poderiam ser hologramas.

    Mas, seja como for, possivelmente o público já não se surpreenderia.

    Público que, aliás, neste caso também faz parte do guião. As pessoas, porque não vamos meter aqui o homónimo jornal para não tornar isto ainda mais degradante.

    (ah!, e caso o filme seja realizado, e se um dia passar num cinema em Budapeste, não se admirem se os húngaros não o entenderem, pois, os húngaros são conhecidos por não perceberem nada de cinema).

    Mas isto ainda não terminou, até porque é preciso acrescentar ao guião que o Pedro arrendou a casa à Betty para depois a poder subarrendar ao Zé para aí fazer os seus “espectáculos” de cabaret.

    Como se sabe, em tempos foi Zé a Tatiana Romanova, e esteve perdidamente apaixonado por Pedro, segundo Pedro, que parece ter mau carácter – e, nisto, Zé sente-se vítima de uma cabala orquestrada pela Chanel. 

    No meio disto, o cabeleireiro de Zé é dos poucos amigos que dão a cara nos media, enquanto lhe continua a arranjar o cabelo, não se sabendo, porém, se agora é uma borla, já que a imprensa afirma que a ex-drag queen está sem dinheiro.  

    As TVs vão dando cobertura a todas estas informações oferecidas pelos próprios protagonistas, através de vídeos para as redes, e mesmo de telefonemas gravados pelos próprios.

    As TVs deverão, aliás, funcionar como convém: promovendo primeiro para matando depois, e fazer isto como se não tivessem culpa nenhuma. Para dar força a esta ideia. dever-se-á dar relevo à história do dentista da TVI, que está a ser investigado por uma jornalista da CMTV que foi despedida da TVI. Talvez a jornalista o faça também por vingança pessoal, quem sabe…

    Pensando bem, a ser feito um filme ao estilo dos Coen, se estes nos derem os direitos, deverá haver um capítulo dedicado a este dentista sádico.

    Para quem estiver confuso por não ter visto as reportagens, este dentista terá chegado, dizem as supostas vítimas, a arrancar os dentes todos da boca sem anestesia de umas quantas pessoas que, entretanto, fizeram queixa às autoridades.

    Isto surge aqui porque estas reportagens da CMTV têm potencial e estão a coincidir no tempo com a história do famoso socialite e do Pedro. Parece mais um daqueles casos de ‘o que interesssa é aparecer’. Nunca percebi o exibicionismo e a necessidade de que falem de nós, nem que seja para dizer bem…

    Sou argumentista e não dentista – e por isso, junto histórias; não separo dentes de gengivas.

    Portanto, chegados aqui, com a sociopatia aparente do Pedro, o narcisismo estético do Zé e o sadismo do dentista, sempre coadjuvados com os programas das Mayas, teremos um filme profícuo de neurose contemporânea dando cabo de vez da figura do Direito e da possibilidade desse estandarte da democracia existir. E sei qualquer ordem a pôr cobro na desordem.

    Talvez, neste caso, por causa de tantos policias e ladrões a pulularem permanentemente pelos canais televisivos, em programas de manhã, à tarde e à noite.

    Aliás, quem não se lembra também do ex-agente da Judiciária que veio a ser vice presidente do Sporting, mas que também depois tinha um gangue que assaltava casas de idosas em Cascais? Foi comentador muito tempo.

    E eu próprio estou a ficar baralhado já.

    E outros também. Os protagonistas desta história, por exemplo. O Zé e o Pedro viram certamente o Truman Show e baralharam-se.

    Depois veio o Matrix, o 11 de setembro, o século XXI, e as grandes conspirações tipo Zeitgeist, mais tarde as extremas-direitas meteram a cereja no topo do bolo da discórdia. Agora, aqui estamos cheios de fulgor para ser os actores e os espectadores ao mesmo tempo nesta novela em tempo real. E baralhados.

    Bom, mas entretanto, Lady B. pede o divórcio e deixa a entender que quer recomeçar a vida, dito por um dos comentadores que sempre que se refere a Zé e a Pedro, chama-lhes “os artistas”

    (Aqui há um pequeno exagero de humor negro já que o comentador não disse que a senhora queria recomeçar a sua vida, mas fica a nota do autor com a sua liberdade para o sarcasmo).

    Durante as primeiras semanas, uma nata de comentadores revisteiros do jet-set que aparentemente conheciam os confins do casal atípico, vão criticando a neurose do momento, como se eles fossem os médicos e psicólogos de serviço no ambiente asséptico dos estúdios em croma.

    Não deixam de dizer o que pensam nesses estúdios-clínica.

    Pelo menos, parece haver uma certa liberdade para isso.

    Poderemos depreender que Pedro e Zé tinham uma espécie de plano para ficar com a casa em Sintra, um palacete, segundo Pedro.

    Poderá ser este o clímax.

    A verdade, no entanto, quanto a esta hipótese ainda está por apurar.

    Saiu, entretanto, uma notícia que definitivamente sugere mesmo que Zé empurrou Lady B. pelas escadas do hotel.

    Os médicos confirmam que poderá haver crime público e a queixa é apresentada.

    Zé passa uma noite detido.

    A prisão não é desenhada por Santiago Calatrava.

    Nos media, em geral, há sempre um talvez definitivo.

    Nunca se sabe. É talvez essa a fórmula de ainda manterem alguma audiência. 

    Ficamos a saber também que o idoso e enteado de Zé, também sofre de problemas de saúde, justificando-se assim a sua não vinda para acompanhar a mãe no hospital.

    Esperem! Afinal, veio. Chegou a Lisboa, com os competentes jornalistas a cobrirem o acontecimento.

    Entretanto saiu uma lista dada por Lady B. indicando quem a pode visitar no Hospital.

    Gui, o filho de Zé e enteado de Lady B., não é um dos felizes contemplados dessa lista. Porém, mais tarde, num telefonema exibido pela CMTV, Pedro insta Zé a falar com o filho para ir ao hospital propor a compra da mansão por 700 mil euros, sendo que metade ficaria para o Zé.

    Imaginamos que a mansão valha milhões.

    Zé diz, contudo, que não tem direito a essa metade devido à separação de bens.

    Pedro cai em si e responde:

    -Pois é, caralho. (Longa pausa).  Mas dou-te 30 mil.

    Corte.

    Aqui morro a rir como se tivesse mesmo a ver um filme dos bro Coen.

    A pausa matou-me.

    Surge ainda a notícia que Zé deverá estar a mais de um quilómetro da mulher, ou futura ex-mulher, através do controlo de pulseira electrónica

    Por meio de telefonemas dos protagonistas, vamos percebendo a estupidez dos planos, tipo Fargo.

    Quem manda para lá as gravações aparentemente é o próprio Zé, queimando-se a toda a hora por falar e aparecer demais. Segundo os jornalistas, devia era estar calado.

    Mas queimar-se em televisão não parece ser assim tão mau. Até é bom, digo eu.

    Pelo menos para o programa.

    Como se trata de violência doméstica, Pedro faz um apelo nas redes para comprarem algumas t-shirts originais desenhadas pelo próprio, embora  confesse não ser designer, e diz que o dinheiro irá para os cofres de várias instituições que acodem vítimas deste tipo de crime.

    Ele próprio irá comprar uma a si mesmo.

    Pouco tempo depois, as instituições negam o acordo.

    Pelos vistos, o número da conta é a do próprio Pedro. A forma de pagamento seria através de PayPal.

    Horas depois, é dito nas notícias que Pedro já foi agressor num caso que chegou a tribunal de violência doméstica e apanhou uma pena suspensa, por ameaçar de morte o seu então marido.

    Ainda querem melhor do que isto?!

    Um dia depois, o site das t-shirts sai de cena. Error 404.

    Tchau t-shirts.

    Indignados, os comentadores massacram Pedro, dando a entender que não está bem mentalmente.

    As t-shirts têm a imagem de Zé, entre outras – e são horríveis. O mau gosto vem ao de cima. Mais uma vez.

    Pedro ainda entrevista uma antiga empregada do casal que confessa que, depois de alguns jantares em Sintra, iam todos para o quarto do casal comprar jóias por baixo da mesa, sem recibos.

    A empregada, porém, jura que as jóias eram junk

    Entretanto, a CMTV passa imagens antigas de Zé no sentido de contextualizar o seu passado criminoso, mostrando-o no aeroporto, anos atrás, a filmar-se a si mesmo depois de roubar um perfume, negando o roubo, e afirmando que a rapariga-segurança que vai aparecendo em fundo, com o ar mais humilde do mundo, só quer é ter os seus 15 minutos de fama.  A rapariga parece assustadíssima. Só fez o seu trabalho.

    Ficamos a saber que o roubo aconteceu mesmo, e Zé Vieira acabou a fazer trabalho comunitário e pagou um multa.

    E nós que pensávamos que todo o trabalho do Zé já era comunitário!…

    Depois de Pedro confessar novamente, e em directo, que havia um plano sinistro de Zé para ambos sacarem o palacete assim que Lady B. morresse, ficamos com a certeza de que qualquer semelhança com um filme dos Coen é puro cinema.

    A minha proposta final, portanto: peguemos nestes apontamentos que compilei (haverá com o tempo muito mais, à velocidade que os protagonistas vão abrindo a boca), e tentemos isto bem vendidinho aos irmãos Coen, para que façam um brilharete em Cannes.

    Mas já sei que não vai resultar. Os portugueses são conhecidos por não saberem vender guiões a Hollywood.

    Quem é bom nisso são os turcos. Ou os indianos…

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações de ©Ruy Otero com colaboração de Nuno Bettencourt


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  • Hora Política: assim se defende (e pratica) a igualdade de oportunidades em democracia

    Hora Política: assim se defende (e pratica) a igualdade de oportunidades em democracia


    Na HORA POLÍTICA, o PÁGINA UM inicia hoje, e pela segunda vez este ano, um périplo democrático, propondo-se entrevistar todas os cabeças-de-lista às eleições para o Parlamento Europeu marcadas para o dia 9 de Junho. Começamos hoje, com a entrevista com Ossanda Liber, primeira candidata da Nova Direita, e seguimos diariamente m função da antiguidade, do mais ‘jovem’ partido até ao mais antigo (PCP, como representante principal da CDU).

    Neste momento, além de Ossanda Liber, temos já gravadas as entrevistas a Duarte Costa (Volt Portugal), Márcia Henriques (RIR), António Tânger Corrêa (Chega), João Cotrim de Figueiredo (Iniciativa Liberal), Pedro Ladeira (Nós, Cidadãos), Joana Amaral Dias (ADN), Francisco Paupério (Livre), Gil Garcia (MAS) e José Manuel Coelho (PTP), estando agendadas já as de Rui Fonseca e Castro (Ergue-te) e Manuel Carreira (MPT).

    blue and white flags on pole

    Esperando agendamento, estão ainda preparadas entrevistas a Pedro Marques (PAN), Catarina Martins (Bloco de Esquerda), Marta Temido (PS), Sebastião Bugalho (AD) e João Oliveira (CDU).

    Seremos, mais uma vez, o único órgão de comunicação a defender princípios democráticos básicos. Tal como hoje não se questiona o princípio “um adulto, um voto”, independentemente do estatuto e condição da pessoa, também se deve pugnar pelo princípio da igualdade de oportunidade, em que qualquer candidato detenha oportunidades similares aos demais para transmitir as suas ideias e propostas.

    Seremos o único órgão de comunicação social a não achar aceitável que a imprensa – que tem uma dívida de agradecimento à democracia, pela liberdade de expressão que nos concede – promova activamente a discriminação de forças partidárias. E isso faz-se também, ou sobretudo, “eliminando” intencionalmente, do combate político e do conhecimento público, as ideias de alguns partidos reconhecidos pelo Tribunal Constitucional, por mais estapafúrdias que algumas sejam, apenas com base num falacioso e inconstitucional critério derepresentatividade social. Uma democracia assim não se rejuvenesce.

    Pelo contrário, cabe à comunicação social (e aos jornalistas) lutar contra quaisquer actos ou medidas que cerceiem – ou censurem –, à priori, a igualdade de oportunidades. Em campanhas eleitorais, a imprensa tem responsabilidades acrescidas. Não deve olhar apenas para as audiências, para a comodidade ou para as preferências, ou para os interesses em manter o status quo. Durante uma campanha eleitoral, não ficaria mal que a comunicação social fosse sobretudo um “prestador de serviços” isento e independente sem olhar a credos nem grandezas – seria uma prestação de serviços ao público, mas esta legítima e necessária, por ser um penhor à democracia.

    Lamentavelmente, na presente campanha eleitoral para o Parlamento Europeu, em confronto com as recentes eleições legislativas, a hipocrisia da imprensa mainstream – e o péssimo serviço que assim concedem à democracia – ainda mais se evidenciou.

    view of stadium interior

    Nas legislativas de 10 de Março, o critério da representatividade parlamentar foi usado genericamente pela comunicação social generalista para “eliminar” as oportunidades de uma dezena de partidos. Por serem pequenos, pequenos serão – parece ser essa a ‘lógica’ democrática. Ao não lhes dar sequer voz, a imprensa manipula desde logo a opinião pública, transmitindo que não têm qualquer credibilidade.

    O mais caricato é que se o critério da representatividade para as legislativas fosse seguido para o Parlamento Europeu, então ter-se-ia de “eliminar” a candidatura do Chega, da Iniciativa Liberal e do Livre. E se o critério fosse as expectactivas de eleições para o Parlamento Europeu – onde é necessário um mínimo de 4,7%) face aos resultados eleitorais das recentes legislativas, então só se deveria ‘ouvir’ a AD, o PS, o Chega, a Iniciativa Liberal e, no limite, o Bloco de Esquerda.  

    Quebrar as amarras de uma democracia já coxa num dos seus fundamentos – a igualdade de oportunidades numa eleição – mostra-se assim fundamental, sobretudo porque está enraizado nas direcções editorais, a começar por aquelas que são de serviço público, como as do universo da RTP. E está enraizado sobretudo numa hipócrita Lei da Assembleia da República de 2015 sobre a cobertura jornalística em período eleitoral que até tem um lindo artigo intitulado “Igualdade de oportunidades e de tratamento das diversas candidaturas”, mas que funciona mais como justificação para manter fora do jogo democrático todos aqueles que não estejam no ‘sistema’.

    Por esse motivo, a HORA POLÍTICA do PÁGINA UM não serve apenas para revelar o pensamento político e as propostas de todos os cabeças-de-lista ao Parlamento Europeu, tem também a clara intenção de ‘mostrar’ à outra comunicação social – dirigida por mui ciosos e escrúpulos jornalistas, muitos julgando-se paladinos da democracia – que, em período eleitoral, há mais do que notícias a dar; há princípios democráticos a defender e a transmitir. Mesmo quando existem mil e uma justificações a preceito para não defender nem transmitir esses princípios democráticos.

    white red and green map

    Se no PÁGINA UM, com um orçamento anual de poucas dezenas de milhares de euros, consegue destacar uma jornalista – a Elisabete Tavares – para fazer e publicar 17 entrevistas a 17 cabeças-de-lista, será que órgãos de comunicação social com milhões de euros de orçamento não conseguem também cumprir uma condição básica em democracia (igualdade de oportunidades)?

    Claro que conseguem – a questão é não quererem.

    Estão no seu direito, porque a liberdade editorial é sagrada, mas tornam-se jornalistas menores numa democracia que eles ‘empurram’ a ser menor.


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  • A ficção tem de ser credível

    A ficção tem de ser credível

    Tal como por vezes acontece com alguns outros homens, aquele só ia precisar da passagem dos anos para conseguir converter-se num terrível desapontamento.

    V.S. Naipaul

    THE MYSTERY OF ARRIVAL


    O meu novo romance, ANTARES, vai ser lançado na Feira do Livro no dia 10 de Junho. À histeria editorial própria destas ocasiões, com voltas e reviravoltas de datas e horas e pedidos constantes de material novo, junta-se o número peculiar de revisores que tenho que confrontar. É que, além das duas revisoras da EXCLAMAÇÃO[1], uma das quais acaba aliás de demitir-se e desaparecer sem deixar rasto num volte-face de telenovela bastante trágico dadas as circunstâncias[2], o Nuno Gomes[3] também reviu o texto todo à medida que o ia lendo, e o senhor a quem eu pedi que fizesse a apresentação do livro[4], que foi revisor literário em pequenino, não resistiu a revê-lo todo também mas à mão, e depois passou as suas notas ao Nuno. Perante tudo isto eu deveria estar tão concentrada no ANTARES que sonhava com ele à noite, como acontecia no Verão passado quando o par amoroso tripava em ácido montado na história que galopava para o fim. Nada que não pudesse acontecer mesmo a qualquer um de nós, porque, como toda a gente sabe, são impensáveis os sobressaltos da realidade tal como são imprevisíveis os caminhos que levam a Deus. Aliás, toda a organização do ANTARES gira em torno do famoso aforisma do Mark Twain

    a única diferença entre a realidade e a ficção é que a ficção tem que ser credível,

    porque o romance é uma ficção absolutamente incrível, tão incrível que só pode ser realidade. E é aqui que sou engolida pelo meu próprio jogo[5], e coisas destas deviam ser proibidas, mas se fossem isso quereria dizer que quem controla a nossa vida somos nós mesmos, o que toda a gente sabe que é a maior falácia deste mundo, porque a nossa vida nos faz tropeçar nela própria sempre que muito bem lhe apetece. Enfim, o predador tornou-se a presa. E a concentração que consigo dedicar ao ANTARES é agora anedótica, depois de todo o amor com que fui alimentando o romance ao longo dos anos até, por fim, ter feito dele o que é.


    Já vivo em Estremoz há mais de três anos. Já há mais de um ano e meio que o Sebastião vive comigo. Já ganhei um grande amor à chegada das andorinhas anunciando a chegada da Primavera, a todas as flores de todas as cores que então rebentam aqui a toda a volta do largo e no meu terraço também, do perfume inebriante das muitas ruas bordejadas por laranjeiras que ficam logo todas em botão, à cantoria feliz e leviana que toda a passarada faz do lado de fora das minhas janelas logo às seis da manhã, agora já dia claro e ainda fresco, quando me levanto para ir abrir a porta ao Sebastião que tem dias em que agora, com a cidade ainda desentupida da afluência de emigrantes e de famílias expatriadas que regressam de visita, é muito menino para só voltar a aparecer lá para as onze.

    a flock of birds flying through a cloudy sky

    Já ganhei o gosto de aproveitar a manhãzinha para ir ao pão caseiro fatiado, ir ao café e trocar umas marradas com o Bruno pelo meio das semi-frases dos velhotes[6], ficar a ouvir sotaques e coloquialismos sem incomodar ninguém, voltar para casa e ver as notícias e sentir cada vez mais que não vivo naquele país de que aqueles senhores estão para ali a falar naquelas vozes todas iguais[7]. A América está suficientemente longe, com todos os meus problemas de saúde é pouco provável que ainda lá volte – mas, e até talvez por isso, lembro-me muito bem de todos os anos em que lá vivi, e continuo a ter um prazer muito grande em passar horas à conversa com as pessoas do meu antigo mundo americano. Mas Lisboa é diferente. Os meus últimos anos na capital foram tão maus que já mal me lembro de Lisboa. Aliás, vou a Lisboa o menos que posso. Se não estivesse a viver aqui, nunca teria conseguido escrever realmente o ANTARES a partir das primeiras vinte páginas desenhadas já há dez anos. Foi esta grande paz, e toda esta beleza à minha volta, que me permitiram levar até ao fim, com todas as suas implicações e desmultiplicações, a história da longa noite de amor muito explícito[8] entre a catedrática de sociologia que acaba de fazer setenta anos e a criatura misteriosa com a beleza de uma estátua renascentista do David que enfrentou Golias, esculpida em mármore e exposta num qualquer museu de luxo, que de súbito entra inopinadamente pela sua janela – tudo isto debruado a vermelho pelo brilho invulgarmente intenso de Antares. Uma história verdadeira, evidentemente. Estas noites só acontecem dentro do foro da realidade, uma vez que a ficção tem que ser credível. Como disse lapidarmente no século II o Padre da Igreja Tertuliano, a propósito dos mistérios da fé,

    Acredito porque é impossível.

    Agora imaginem outra história verdadeira que brutalmente se cruza com esta e parece rasgá-la ao meio como um raio de Zeus.

    Estou eu a sentar-me na sala diante da mesa de apoio, no lugar onde as costas se sentem mais confortáveis e estou ao lado de uma das três janelas da casa com vista para a torre de menagem do castelo de Estremoz, que se recorta orgulhosamente contra océu durante o dia e brilha toda iluminada durante a noite exactamente por baixo do domínio de Antares no céu de Verão. Toca o telefone. Por essa altura, estava eu a recomeçar a rever as provas, já o telefone tocava muito, por causa de mudanças nas provas, alterações nas capas, escolhas de fotos, acertos de datas, e por aí em diante. Atendi logo. Ouvi uma voz masculina.

    E caiu-me a alma aos pés.

    Mesmo vinda de uns anos da minha vida que eu tinha esquecido por completo assim que comecei a viver em Estremoz, aquela voz da vida deixada propositadamente para trás, aquela voz de Lisboa – Santo Deus, aquela voz era uma voz que se reconhecia logo, e era a voz do Jorge.

    A Clara acredita que eu tenho muitas saudades suas?”

    black and brown rotary phone near gray wall

    E não, nem sequer era por causa do assunto sem importância, alguma coisa esquecida, algum artefacto trazido por engano, não era o assunto inconsequente que a pessoa ainda podia rezar para que fosse. Era mesmo aquele Jorge da GNR, o senhor das cavalariças e não propriamente da cavalaria, a declarar, três anos e meio mais tarde, que tinha muitas saudades minhas. E, acto contínuo, a perguntar se não podíamos encontar-nos para tomar café.

    Ah, a Clara nem imagina a falta que me fazem as nossas conversas, a Clara era sempre uma pessoa tão inteligente, tão calma, tão sábia…”

    Como foram as conversas entre o Jorge e o Senhorio depois da minha partida não sei, mas sei que o Senhorio nutria sérios sentimentos carnais[9] a meu respeito. Aliás, uma vez chegou ao ponto de atirar-me para cima da cama e aproveitar-se da minha surpresa para começar a dar-me um linguado, até que eu me levantei e lhe disse com um ar muito tranquilo que não se podia fazer aquilo[10]. Em consequência, ou pelo menos de acordo com os homens das obras que estavam lá sempre a entrar e a sair do prédio, nessa altura o Senhorio tinha uns valentes ciúmes do Jorge, que, ao contrário dele, partilhava a casa comigo. Não sei se o Senhorio alguma vez soube que o Jorge tinha uma tendência exasperante em repetir que eu e ele devíamos era juntar os trapinhos e ficar ali a ser muito felizes um com o outro naquele primeiro andar do Bairro dos Actores: dávamo-nos tão bem, éramos tão complementares, podíamos poupar tanto dinheiro, nunca mais nenhum de nós estaria sozinho, ficávamos com um quarto extra que podia ser o meu escritório, eu era tão bonita, ele não era nada de se deitar fora na cama…

    … e eu nem queria acreditar.

    O Jorge tinha aí uns quarenta anos, eu estava quase a fazer sessenta, pelo que fazia de conta de que não tinha percebido o inuendo, ria, e respondia

    oh Jorge, então mas o que é isso, não vê que eu tinha idade para eu ser sua mãe?”

    A verdade é que, ainda não estava a viver em Estremoz nem há dois meses, e de repente me telefona o Senhorio num tom colérico, inicialmente sem eu perceber nada daquela cólera. Finalmente, depois de vários protestos de indignação, saiu-se com o que verdadeiramente lhe fazia doer:

    “A Maria Clara não vê a extensão dos seus abusos, ou apenas, pura e simplesmente, não tem escrúpulos? Eu deixei-a estar à vontade, não vigiei as suas acções, e a Maria Clara aproveitou-se, aproximou-se, e  fez do Jorge seu criado! Fez do Jorge seu criado! A Maria Clara fez do Jorge seu criado!”

    boy and woman holding hands outdoor

    Lembrei-me das horas perdidas  a ouvir o Jorge, confortar o Jorge, aconselhar o Jorge, e desliguei o telefone.

    O Jorge frequentava vários sites de engate mas corria-lhe sempre tudo mal. Depois ele sentia-se – sempre – muito só. E a seguir sobrava – sempre – tudo para mim. Ao fim destes anos todos, continuo a ter imensa dificuldade em dizer às pessoas que vão dar uma curva.

    O Jorge saía às oito da manhã para estar no quartel da GNR às nove, e passava o dia a tratar dos cavalos e das cavalariças. Voltava às cinco, chegava às seis, tomava o seu duche, e depois dependia da altura do ano. No Inverno enfiava-se dentro de um babygro amarelo muito quentinho. No Verão envergava apenas umas bermudas verdes e pretas – e, como era muito barrigudo e muito peludo, o espectáculo não era nada gratificante. Foi no babygro amarelo, sobretudo, que nem as minhas irmãs nem os meus amigos acreditaram. Foi preciso irem lá a casa e verem-no naqueles preparos para lhes cair o queixo e me darem razão. O Jorge vinha-me sempre dizer que as minhas irmãs eram lindas, e que as minhas amigas eram encantadoras. Se fossem antes amigos, preferia fechar-se no quarto, bater a porta com força, e nunca dizer nada.

    Isto sim, isto é a realidade. Tudo de tal forma tortuoso que em ficção nunca seria credível.

    E continua.

    Apesar de tudo, o Jorge foi a pessoa menos má com quem partilhei casas depois de voltar para Lisboa em 2018 e encontrar o mercado de aluguer de tal forma caro que só se aguentava alugar uma casa dividindo a renda com outras pessoas. Essas pessoas eram todas completas desconhecidas, e, não sei porquê, regra geral eram gente mal formada. O Jorge não batia bem. Antes da casa onde só vivia ele, passei por outras duas casas, uma cheia de ordinários do Porto e outra cheias de selvagens de Angola. Dizia-se que já havia emprego, e eu vim para Lisboa com essa ilusão[11], mas também isto era mentira. Não havia qualquer espécie de emprego: o que havia era imenso trabalho escravo.

    Aquilo era tudo tão sufocante, e eu ficava doente tantas vezes sempre com o Jorge a entrar-me no quarto onde a chave não dava a volta na fechadura para indagar se eu estava bem ou se precisava de alguma coisa da rua, que agarrei em mim e vim viver sozinha para Estremoz, numa casa mágica cheia de espaço e de luz, apenas na companhia do meu Sebastião, que não me faz perguntas nem me exige respostas.

    Agora, quando começo a rever o ANTARES, telefona-me o Jorge que tem saudades minhas e quer ir tomar um café.

    Para ver se ele desiste, eu digo-lhe logo que já não vivo em Lisboa, que nunca mais fui a Lisboa. Estou a viver em Estremoz desde que saí do Bairro dos Actores.

    brown horse in a wooden cage

    Estremoz? Ah, espantoso, foi onde eu fiz a tropa! É um sinal, Clara, é um sinal. Vou aí visitá-la em breve. Se calhar vou já esta noite. Sim, não hei de ir porquê? Vou já esta noite.”

    Lisboa está a procurar-me às escuras com as suas longas garras.

    Jorge, por favor, agora não. Estou a rever as provas do meu novo romance e isto dá imenso trabalho. Ligue mais tarde.”

    Desliguei logo.

    O Jorge voltou a ligar na manhã seguinte.

    Pânico.

    Jorge, por favor, não esteja a ligar-me agora. Eu tenho que rever as provas do romance. Falamos mais tarde.”

    O Jorge tem telefonado todos os dias, frequentemente três ou quatro vezes por dia. Eu já nem atendo, claro. Mas claro: ele não se enxerga. Quando eu mais precisava de estar cencentrada e de estar feliz, de repente cada dia que passa é um rosário de telefonemas do Jorge.

    Isto sim, meus amigos. Isto é a realidade.

    Não tem que ser credível.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Uma micro-editora do Porto, radicalmente independente, cheia de pessoas que podiam ser minhas filhas ou netas, e com um excelente catálogo. Sinto-me lá muito bem. Detesto as camisas de forças das grandes multinacionais. E o director da EXCLAMAÇÃO é… biólogo!

    [2] O meu romance não é o umbigo do mundo. A EXCLAMAÇÃO tem vários outros livros programados para lançamento na feira, e que estavam a ser revistos pela jovem que se demitiu sem mais conversas.

    [3] Biólogo e director da EXCLAMAÇÃO. De tal forma empreendedor, como é próprio das pessoas do Porto, que não pára de fazer planos para salvar o planeta.

    [4] Um dos homens mais inteligentes e irónicos que conheço. Parece uma declaração de amor, não é? Que se lixe, Estremoz fica longe de tudo.

    [5] Estava-se mesmo a ver, não é? Tantos anos, tantos netos, e nunca mais aprendo a ter cuidado com as minhas próprias ideias.

    [6] Também parece uma declaração de amor, não é? Que se lixe, o outro lado do balcão fica longe de tudo.

    [7] Eu sei que já falei nisto, o que não quer dizer que o fenómeno tenha deixado de me incomodar. Pior ainda, cada vez oiço mais os meus vizinhos dizerem exactamente o mesmo que eu, mas por outras palavras. Ou então oiço os meus vizinhos exaltarem-se em defesa do CHEGA, o que continua a ser dizer exactamente o mesmo do que eu por outras – e mais assustadoras – palavras.

    [8] Na manhã seguinte, quando ela começa a dizer “então mas agora é que tu me explicas que eu passei a noite inteira a curtir com…”, ele interrompe-a, com ternura e ironia, “Curtir? Mas o que é isso, curtir? Pareces uma adolescente a falar, o que desmerece em muito a grandeza do que nós fizemos. Eu diria antes que estiveste a foder com…” – “Ai, cala-te!” – “O que é que tem?”. O que é que se terá passado ao certo naquela noite dominada por Antares?

    [9] Termo dele, no dia em que decidiu convidar-me para um whisky em sua casa e pôr as cartas na mesa.

    [10] Sim, já disse que aqueles últimos anos da minha vida em Lisboa foram totalmente para esquecer.

    [11] Tenho imensas qualificações. Com um bom emprego, talvez pudesse alugar uma casinha decente só para mim, como costumava fazer antes da visita trágica da Troika.


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  • A liberdade de expressão no Parlamento

    A liberdade de expressão no Parlamento


    “[Esta estranha gente] move-se tão rapidamente que deixa tudo por fazer, incluindo ir depressa. Não há nada menos ocioso do que um português. A única parte ociosa do país é a que trabalha. Daí a sua falta de evidente progresso.”

    Fernando Pessoa, Textos de Intervenção Social e Cultural – A ficção dos heterónimos, Mem-Martins, 1985, p. 84.

    “O Português, dentro de determinadas condições, se a vida lhe fosse inteiramente favorável, ele gostaria muito mais de contemplar e poetar do que trabalhar. Mas quando é levado a uma função em que tem de trabalhar, ele trabalha.”

    Agostinho da Silva, Citações e Pensamentos, 2.ª ed., Alfragide, 2009, pp. 94-95.


    O passado dia 17 de Maio, em virtude da posição assumida pelo novo Presidente da Assembleia da República, ao declarar expressamente que se recusava a ser o censor da liberdade de expressão dos Deputados (remetendo o ónus para o Plenário), deu origem a uma acalorada discussão, dentro e fora da Assembleia da República, com dois campos extremados a digladiarem-se em partes relativamente iguais, com a curiosidade de no lado da comunicação social escrita e televisiva se pressentir maior hostilidade, nas 24 horas seguintes, à posição de José Pedro Aguiar-Branco.

    A circunstância de ter podido avaliar a prestação do seu antecessor no cargo, Augusto Santos Silva, num escrito divulgado no dia que que se iniciou a presente legislatura[1], permite-me, além de apreciar a questão central do âmbito e limites da liberdade de expressão dos Deputados quando no exercício de funções (ou actuem nessa qualidade – ainda referível ao mandato parlamentar), fazer uma comparação entre o desempenho do cargo por esses dois titulares, não obstante a diferença temporal de um ano e onze meses, num caso, e de menos de dois meses, no outro, comparação pela qual começarei.

    1. Perfil de dois Presidentes da Assembleia da República

    a) Relativamente ao anterior titular do cargo de Presidente da Assembleia da República, começo então por recuperar alguns dos tópicos do que escrevi anteriormente (cingindo-me aos aspectos que deram o mote ao presente texto):

    • Logo no discurso de tomada de posse, a propósito da língua portuguesa, o então Presidente procurou estabelecer uma diferença política e moralmente marcante entre o “patriota” e o “nacionalista”, vendo neste último aquele que “odeia a pátria dos outros”[2]; como escrevi, independentemente do arriscado da comparação, o problema de fundo reside no facto de germinarem nessa passagem as “sementes de um discurso de exclusão” de uma determinada força política, força política essa que não está “excluída” da Constituição[3] e que, de modo algum, deveria ter sido hostilizada, na hora em que se davam as boas-vindas aos Deputados[4];
    • Arrogou-se poderes que não lhe cabiam, designadamente o poder de interpretação do Regimento, matéria que, segundo o (actual) artigo 264.º, n.º 1, do Regimento, está cometida à Mesa, com recurso para o Plenário;
    • Uma vez invadidos esses poderes, aplicou aos Deputados do Chega a disposição do (actual) artigo 16.º, n.º 1, alínea p), do Regimento (que dispõe que compete ao Presidente manter a ordem e a disciplina, bem como a segurança da Assembleia, podendo para isso requisitar e usar os meios necessários e tomar as medidas que entender convenientes), quando esse preceito não é manifestamente aplicável aos Deputados, como na altura recordaram diversos juristas;
    • No dia 25 de Abril de 2023, sentiu-se autorizado não só a interromper o discurso de um Chefe de Estado Estrangeiro, o Presidente da República Federativa do Brasil, como a censurar e admoestar duramente os Deputados do Chega;
    • Dias depois, sem que até hoje se conheça a norma aplicável, o procedimento havido (e sequer a existência de audição prévia do grupo parlamentar interessado), segundo a imprensa, tomou a decisão de suspensão de acompanhamento de comitivas parlamentares por parte de Deputados do Chega[5];
    • Depois de tais episódios, foi solicitada e analisada a legislação de Direito Comparado sobre ética parlamentar, sucedendo que, no final, por sugestão do próprio, a Conferência de Líderes veio a concordar em nada fazer, quando o que se impunha era, evidentemente, o inverso.

    b) Confrontemos agora esses registos com os do actual Presidente da Assembleia da República:

    • Superada a confrangedora situação do dia anterior, em que a sua eleição fora rejeitada por duas vezes, o novo Presidente, antes de subir ao seu lugar na tribuna, fez questão de cumprimentar todos os líderes políticos e dos grupos parlamentares sentados na primeira fila da sala de sessões;
    • No seu discurso de tomada de posse, depois do imediato (e, quanto a mim) premente desafio lançado a todos os grupos parlamentares de repensar o Regimento[6], começou por referir que o voto de cada português “deve merecer igual respeito por parte de todos os cidadãos” e que é “fundamental a liderança pelo exemplo”, acrescentando: “sei e aceito a exigência de imparcialidade, equidistância e rigor que todos esperam de mim” e que “a lealdade do Presidente da Assembleia da República aplica-se para com todos os 229 Deputados. Por uma razão simples, se não somos capazes de nos entender na casa da democracia, que exemplo estamos a dar para fora? Que esta mesa que vai ser hoje eleita seja capaz de unir o que as ideologias separam”[7];
    • Ciente do peso para as instituições da iniciativa desencadeada contra o Presidente da República, sem fundamento material ou jurídico algum, o Presidente da Assembleia da República fez tudo o que era possível não para obstacularizar ou adiar o procedimento em causa mas para o acelerar e promover no tempo mais expedito possível;
    • Chegados assim à manhã de 17 de Maio de 2024, tudo decorreu tão normalmente que não foi esse procedimento a desencadear a polémica, mas sim uma outra declaração acerca do prazo de conclusão das obras do futuro aeroporto Luís de Camões, comparando os 10 anos previstos pelo Governo com os 5 anos que teria levado a construção do aeroporto de Istambul.

    c) Ainda sem termos descido ao problema da liberdade de expressão, podemos desde já facilmente concluir haver aqui dois padrões muito distintos do exercício da função de Presidente do Parlamento (Speaker):

    • Num caso, temos um Presidente que toma partido, no outro, um Presidente neutral;
    • Num caso, um Presidente que prefere a polarização, no outro, um Presidente que prefere a diluição da polarização;
    • Num caso, um Presidente que abusa dos seus poderes, no outro, um Presidente que prefere a autocontenção;
    • Num caso, um Presidente que decide (mesmo sem olhar às exigências do Estado de Direito), no outro, um Presidente que prefere remeter a resolução dos problemas para as regras e para os instrumentos ao dispor dos principais actores parlamentares.
    woman sitting on swing

    2. Âmbito e limites da liberdade de expressão dos Deputados

    a) Quanto ao âmbito e limites da liberdade de expressão em geral, é matéria sobre a qual já me pronunciei de forma abundante[8], em termos que vão sendo muito lentamente acolhidos, numa sociedade que, por muitas e complexas razões, como tentei revelar num outro texto publicado neste jornal, por ocasião dos 50 Anos do 25 de Abril, tem ainda muitas aprendizagens por fazer.

    Não havendo por isso razões para reincidir num discurso já feito pela quarta ou quinta vez, posso começar pela revelação de um primeiro “critério de aferição”: quando alguém (incluindo aqui uma instituição, um tribunal, um advogado, um jornalista ou uma entidade reguladora) disser “a liberdade de expressão não é absoluta”, isso é o primeiro sinal de que essa pessoa não faz ideia do que é a liberdade de expressão – ora porque recebeu o essencial da tradição francesa, ora porque o legado do Estado Novo ainda está presente, ora por razões de outra índole.

    Facto é que nas dezenas de processos em que Portugal foi condenado pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, por violação da liberdade de expressão, os tribunais portugueses visados utilizaram sempre essa triste gramática, que pode servir à generalidade dos demais direitos fundamentais, mas não serve à liberdade de expressão.

    E por que razão não serve à liberdade de expressão?

    man wearing black t-shirt close-up photography

    Porque, ao contrário do que sucede com a generalidade dos demais direitos fundamentais (que protegem bens, valores ou interesses unilaterais, como a vida, a integridade física, o segredo das comunicações, o poder de decretar a greve ou de a ela aderir, etc.), a liberdade de expressão é um princípio que já envolve múltiplas dimensões do conjunto, havendo por isso nela «uma implícita presunção de correspondência com a ordem do todo, por não serem facilmente concebíveis bens ou circunstâncias com força suficiente para [a] neutralizarem, mesmo quando o respectivo exercício se situe já na orla crítica do ordenamento (como acontece na generalidade dos genuínos movimentos radicais de protesto político ou nas situações a que os norte‑americanos apelidaram de clear and present danger[9].

    Identificado e justificado o “critério de aferição”, na Constituição Portuguesa de 1976, a liberdade de expressão em geral, só conhece um limite: o limite de que o pensamento seja o da pessoa que se está a exprimir (artigo 37.º, n.º 1, da Constituição), não protegendo por isso a mentira objectiva (dolosa) ou o plágio.

    Os demais princípios constitucionais ou direitos fundamentais, ao contrário do que muitas vezes se diz, não são, nem podem ser considerados, limites da liberdade de expressão, nem têm de ser com ela compatibilizados (veja-se como as Constituições alemã ou angolana, ao contrário da nossa, expressaram quais desses direitos eram limites). Quando muito, na nossa Constituição, esses princípios ou direitos fundamentais podem servir de fundamento para restrições legislativas, mas estas têm de obedecer a apertados critérios, porque se defrontam com a liberdade matricial do sistema. E, na verdade, não faltam no Código Penal tipos de crimes que não passam as barreiras dos “guardas de flanco” da liberdade de expressão (como é o caso, só para dar dois exemplos, do de ultraje a Chefe de Estado estrangeiro ou de ultraje aos símbolos nacionais).

    Imaginemos que um cidadão diz o seguinte de um governante: que é um perfeito salteador político; que é as fezes da República; que é um escroque nato; que andou abrindo as pernas do espírito prostituidamente; que é um Carimbiborrão de quem o pariu; que é um intrujão, de tipo patibular a quem não vale a pena de morte estar abolida; que é falho mesmo como malandro; que é um pulha, um bandalho.

    yellow and black smiley wall art

    Pode esse cidadão dizê-lo ao abrigo da sua liberdade de expressão?

    Pode! E disse-o, em meia página, Fernando Pessoa do Dr. Afonso Costa[10].

    Imaginemos agora um cidadão que sobre a bandeira nacional e o regime que a criou diz o seguinte (apesar da norma do Código Penal): “o regime está, na verdade, expresso naquele ignóbil trapo que, imposto por uma reduzidíssima minoria de esfarrapados morais, nos serve de bandeira nacional – trapo contrário à heráldica e à estética porque duas cores se justapõem sem intervenção de um metal e porque é a mais feia coisa que se pode inventar em cor. Está ali contudo a alma do republicanismo português – o encarnado do sangue que derramaram e fizeram derramar, o verde da erva de que por direito mental, devem alimentar-se”.

    Pode esse cidadão dizê-lo ao abrigo da sua liberdade de expressão?

    Pode![11] E disse-o igualmente, em poucas linhas e sem que estivesse em democracia, Fernando Pessoa[12].

    Em suma, fora das restrições ditadas pelo artigo 270.º da Constituição para as pessoas que se encontrem nessas situações (militares, agentes militarizados dos quadros permanentes em serviço efectivo, forças de segurança) e de casos conhecidos como de “estatuto especial” (como é, entre outros, o de diplomatas ou juízes), um cidadão pode dizer essas e muitas outras coisas.

    b) Se é assim tão amplo e assim deve ser entendido o âmbito da liberdade de expressão do comum das pessoas (não têm de ser cidadãos, na medida em que os estrangeiros e os apátridas também dela beneficiam, por decorrência imediata da dignidade da pessoa humana), que dizer dos Deputados?

    A primeira coisa a dizer é, obviamente, que os Deputados também beneficiam, como pessoas, deste âmbito alargado da liberdade de expressão.

    A segunda coisa a dizer é que, fruto da Revolução Inglesa dos finais do século XVII, os Deputados gozam de um reforço da liberdade de expressão, quando se encontrem no exercício de funções, através de um instituto entre nós conhecido como “imunidades parlamentares”: segundo a regra mais relevante para este efeito (o artigo 157.º, n.º 1, da Constituição), «os Deputados não respondem civil, criminal ou disciplinarmente pelos votos e opiniões que emitirem no exercício das suas funções».

    Ora, além das imunidades, a Constituição estabelece igualmente poderes dos Deputados (artigo 156.º), direitos e regalias (artigo 158.º) e também deveres (artigo 159.º). Entre estes deveres não há porém nenhum que contenda com a liberdade de expressão ou que imponha ao Deputado a moderação no uso da linguagem.

    Devemos, no entanto, ter especialmente em conta o facto de a Constituição não ser uma ordem completa, mas apenas uma “ordem-quadro”[13], deixando muitos aspectos por regular, remetendo o que falta para o legislador (e outros aspectos ainda para a ponderação dos órgãos políticos)[14], competindo por isso à Assembleia da República definir e completar (no Estatuto dos Deputados, no Regimento da Assembleia da República e em outros instrumentos que definam padrões normativos aplicáveis ao trabalho parlamentar) o que não está, nem podia estar, integralmente previsto no texto da Constituição.

    Sucede que entre os vícios do parlamentarismo democrático português se contam a dificuldade de reformar (datando o último esforço de 2006, por mérito de António José Seguro), a fixação no Regimento (quando muitas outras regulações e estruturas complementares são necessárias) e a prática das sucessivas pequenas alterações ao Estatuto dos Deputados, sem mudar o essencial – típica característica lusitana. A aprendizagem aqui tem de fazer-se a olhar para outros lados[15], designadamente para os países que foram o berço ou continuam a ser os bastiões da democracia, e onde há muito existem e são sistematicamente afinados os padrões aplicáveis ao comportamento dos Deputados, dentro e fora do Parlamento[16].

    Importa, no entanto, também aqui, ponderar alguns exemplos.

    Pode um Deputado, no exercício de funções, fazer um discurso discriminatório ou xenófobo?

    À luz da nossa Constituição, pode.

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    Pode um Deputado, no exercício de funções, fazer um discurso racista ou fascista?

    Neste caso, a resposta é matizada: em princípio, pode, mas o registo do acto fica para um eventual processo para efeitos do artigo 46.º, n.º 4, da Constituição (preceito que indicia que esse tipo de discurso, sendo à partida individualmente permitido, não é apreciado pela Constituição).

    Pode um Deputado mentir, no exercício de funções?

    A resposta, também aqui, é variável: tratando-se de mentira subjectiva (ou seja, estando o próprio convencido de que aquilo que diz é verdade), pode; tratando-se de mentira objectiva e caso não haja regra expressa em contrário[17], à luz da Constituição, também pode[18], a menos que se encontre numa situação em que esteja obrigado a dizer a verdade (como, por exemplo, no âmbito de uma Comissão de Inquérito), devendo nesse caso o acto ilícito ser participado ao Ministério Público.

    Se tudo isto é assim no que respeita ao âmbito jurídico da liberdade de expressão do Deputado, tal não significa que esses discursos não devam ser combatidos e contestados na esfera política e social, pelos meios que os demais cidadãos, grupos e partidos considerem convenientes, no uso dos respectivos direitos. Mas esse é um plano totalmente distinto do que é visado neste texto.

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    3. Conclusão

    Não parece que tenha justificação o alarido que se ouviu no dia 17 de Maio nas bancadas do Bloco de Esquerda, do Livre e do Partido Socialista sobre a opção do Presidente da Assembleia da República de remeter para o Plenário o ónus da censura de um potencial discurso xenófobo ou discriminatório.

    Tal não significa que o Parlamento não deva meditar numa profunda reforma da Casa, a começar pela aprovação de um adequado Código de Conduta dos Deputados e respectivas estruturas de supervisão (que não devem ser compostas apenas por Deputados), pela reforma do Estatuto dos Deputados e da Lei orgânica da Assembleia da República (onde não são poucas as ambiguidades e as normas flagrantemente inconstitucionais), e a terminar na reforma do Regimento, que espera há 18 anos por grandes obras de reparação (e não remendos).

    José Melo Alexandrino é professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa


    [1] José Melo Alexandrino, Manchas sobre o Speaker, texto inserido em 26 de Março de 2024, disponível aqui.

    [2] Diário da Assembleia da República, 1.ª série, n.º 1, de 30 de Março de 2022, p. 11.

    [3] Artigo 46.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa.

    [4] José M. Alexandrino, Manchas sobre o Speaker, cit., p. 3.

    [5] Decisão que, no Verão desse mesmo ano, declarou estar disposto a reconsiderar.

    [6] Discurso de 27 de Março de 2024, disponível aqui.

    [7] Ibidem.

    [8] Especialmente: José Alberto de Melo Alexandrino, Estatuto constitucional da actividade de televisão, Coimbra, 1998, pp. 80-111; Id., «O âmbito constitucionalmente protegido da liberdade de expressão», in Carlos Blanco de Morais/Maria Luísa Duarte/Raquel Alexandra Brízida Castro (coords.), Media, Direito e Democracia – I Curso pós graduado de Direito da Comunicação, Coimbra, 2014, pp. 41-66 (agora in José Melo Alexandrino, Escritos de Direito da Comunicação Social, Lisboa, 2004, pp. 137-163 [no prelo]); Id., «Artigo 37.º», in Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição da República Portuguesa Anotada, tomo I, 3.ª ed., Lisboa, 2017, pp. 612-623.

    [9] Cfr. José Melo Alexandrino, «Deus é bem e Justiça» (2014), in Elementos de Direito Público Lusófono, vol. II, Lisboa, 2024, p. 124 (no prelo).

    [10] Fernando Pessoa, Páginas de Pensamento Político – 1, 1910-1919, org. de António Quadros, Mem-Martins, 1986, p. 79.

    [11] José Melo Alexandrino, «O âmbito constitucionalmente protegido…», cit., p. 54, nota 68.

    [12] Fernando Pessoa, Da República, org. de Joel Serrão, Lisboa, 1979, p. 47; também acessível aqui.

    [13] Sobre este conceito, José Melo Alexandrino/Jaime Valle, Lições de Direito Constitucional, vol. I, 4.ª ed., reimp., Lisboa, 2023, pp. 233 ss.

    [14] Como sucede, por exemplo, com a nomeação do Primeiro-Ministro ou a dissolução da Assembleia da República.

    [15] Sobre o tema, com interesse, Pedro Costa Gonçalves, «A expulsão de deputados “desordeiros”», in Observador, de 8 de Maio de 2023, disponível aqui.

    [16] Sobre o Código de Conduta da Câmara dos Comuns, aprovado em Dezembro de 2022, ver aqui; para outras indicações relevantes, ver aqui.

    [17] Segundo a doutrina que tenho por mais consistente, é ao Parlamento (e não aos tribunais) que compete, em primeira linha, regular, investigar e sancionar estes e outros comportamentos.

    [18] Já no Reino Unido, a regra é outra.


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


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  • Método fácil de roubar votos aos partidos ‘fascistas’ em 5 passos

    Método fácil de roubar votos aos partidos ‘fascistas’ em 5 passos


    Pela Europa fora, fala-se na “ascensão do populismo” e do “aumento de votos na direita” e na “extrema-direita”. As perspectivas apontam para que, nestas eleições europeias, se incline para a direita a balança dos deputados eleitos.

    Da Avenida da Liberdade, no dia 25 de Abril, passando pela comunicação social, pela opinião de comentadores/influencers pagos e publicações nas redes sociais, somam-se os apelos ao “combate ao populismo e à extrema-direita”. Em resumo, “aos fascistas”.

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    (Foto: Tetiana Shyshkina)

    Esta visão simplista, infantil e a preto e branco só não espanta porque todos temos observado a enorme bolha em que confortavelmente têm vivido os que apontam o dedo ao “perigo” do “fascismo” como a grande batalha dos nossos tempos, na Europa.

    Jornalistas, comentadores, influencers diversos (incluindo antigos políticos a lucrar com grandes empresas e lobbies), acotovelam-se a ver quem grita mais alto “fora os fascistas!” depois de anos a apoiar políticas anti-democráticas e perigosas, que promoveram a opacidade e a censura e criaram crises em várias frentes.

    Claro que não lhes dá jeito nenhum contar a verdade e defender soluções para os problemas que levam a um certo sentido de voto. Dá-lhes muito jeito apontar o dedo a um novo “inimigo” contra o qual “todos se têm de unir”. Faz lembrar algo?

    Este estratagema antigo e conhecido pode resultar com alguma franja da população (normalmente, sem acesso a informação além das TVs e dos mass media). Mas falha em conseguir já convencer a grande maioria dos cidadãos.

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    (Foto: Slim Emcee)

    Os problemas que afectam hoje muitas famílias e empresas na Europa são sérios. As crises que se acumulam são sérias. O futuro não parece auspicioso e faltam soluções credíveis. Da subida do custo de vida, à habitação, passando pela insegurança, os rendimentos, segurança, impostos e emprego, têm faltado respostas convincentes aos mais vulneráveis e aos jovens.

    Todas estas crises alimentam-se de medidas e políticas que foram tomadas sucessivamente ao longo dos anos por governos que não tiveram como absoluta prioridade o bem-estar das populações e a saúde da economia.

    Uma chatice. Não se pode culpar os “populistas” e a “extrema-direita”, os “fascistas”, pelas medidas lamentavelmente adoptadas na última década, incluindo o abandono a que foram votados muitos imigrantes, que vivem sem condições e vulneráveis a redes de criminosos.

    Mas existe uma solução. Em cinco passos, é possível combater os partidos “populistas” e a “extrema-direita”. Apenas é necessário que todos os partidos que têm governado, nomeadamente com o apoio da suposta esquerda e de centristas, adoptem as seguintes bandeiras:

    • 1 – Pacifismo e “não à guerra”. Ninguém quer ver os maridos, filhos e netos em risco de ir para a guerra. NINGUÉM. Além disso, as guerras criam deslocados e podem abalar os alicerces das economias, atirar milhões para o desemprego e fazer, em simultâneo, disparar o custo de alguns bens. Assim, para atrair votos, é crucial que os partidos de esquerda e centro defendam a diplomação, a negociação e a … PAZ.
    • 2 – Defesa dos direitos humanos, das mulheres, das crianças e da soberania sobre o próprio corpo. Este ponto é fundamental. Para retirar votos aos partidos “populistas” e de “extrema-direita” é crucial que os restantes partidos políticos defendam os direitos humanos. Isto implica mudar algumas das linhas dos seus programas eleitorais que defendem políticas internacionais limitativas aos direitos humanos e civis, nomeadamente na área da Saúde. Defender os direitos humanos é também defender os imigrantes, promover a inclusão e a diversidade. É combater a insegurança e as redes de tráfego humano que assolam a Europa. É também combater o ódio, nomeadamente contra as mulheres, que enfrentam hoje também a discriminação no desporto e outras competições por via da concorrência desleal e injusta por parte de atletas nascidos homem.
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    Têm sido aprovadas na União Europeia, nos anos recentes, políticas que condicionam a liberdade de imprensa e promovem limitações à liberdade de expressão. Ao mesmo tempo, tem estado a ser construída e financiada uma vasta indústria de censura no mundo ocidental que envolve a eliminação de informação verdadeira e a perseguição e difamação de jornalistas, académicos, políticos e cientistas. (Foto: Mick Haupt)

    • 3 – Defesa da liberdade de imprensa e da liberdade de expressão. Não confundir com a defesa dos mass media, ou media mainstream, que estão muito alinhados com partidos que têm governado na Europa e que têm apoiado políticas que limitam a liberdade de imprensa e de expressão. Para conquistar votos ao “populismo” e à extrema-direita” é importante defender o verdadeiro Jornalismo – o oposto da propaganda – a liberdade de imprensa e o acesso a informação. Isto implica, por exemplo, condenar e rejeitar algumas leis e políticas adoptadas na União Europeia e países do Ocidente, incluindo especificamente a Irlanda e o Canadá. E é crucial exigir a liberdade de Julian Assange, jornalista detido vergonhosamente no Reino Unido e em risco de ser extraditado para os Estados Unidos. O seu “crime” inclui ter publicado provas de crimes de guerra por parte de Estados, incluindo o assassinato de jornalistas. Do mesmo modo, por exemplo, deve acentuar-se a pressão sobre a Rússia para libertar o jornalista norte-americano Evan Gershkovich ou o russo Roman Ivanov. Ou apurar as verdadeiras causa da morte do jornalista Gonzalo Lira numa prisão da Ucrânia. É também crucial compreender que tem vindo a ser criada uma indústria de censura que elimina informação verdadeira e persegue jornalistas, académicos, cientistas, políticos, activistas, médicos que divulguem factos verdadeiros “não autorizados”. Esta indústria é vasta. Envolve governos, universidades, organizações não governamentais financiadas para o efeito, empresas de comunicação social e sites de suposta “verificação de factos”. Há documentos que apontam ainda o envolvimento de agências de informação governamentais em práticas de censura de informação verdadeira e na realização de campanhas de desinformação. É importante defender o debate, o contraditório e a reflexão crítica.
    • 4 – Defesa do ambiente e de uma sociedade verdadeiramente sustentável. Este é outro ponto fundamental. Para roubar votos ao “populismo” é preciso voltar a apostar em políticas de defesa do ambiente e da saúde e bem-estar das populações, com foco na protecção de paisagens naturais e combate aos grandes poluidores. Defender o ambiente é, também, apontar baterias a grandes indústrias poluidoras, fiscalizar e adoptar novas políticas que penalizam essas indústrias. É também desincentivar a sociedade de consumo desenfreado e a produção de bens de curto tempo de vida. É combater o abate de árvores e destruição de habitats. É defender as melhores práticas na agricultura, o bem-estar animal, eliminar de vez a autorização do uso de produtos como o glifosato, proteger bancos de sementes dos interesses de multinacionais e afastar o uso de organismos geneticamente modificados.
    • 5 – Defesa da Democracia. Este é um dos pontos mais relevantes. O nível de democracia tem vindo a cair nos países ocidentais, incluindo Portugal. Há planos para mutilar a Constituição da República Portuguesa. Há um histórico recente preocupante de políticas a serem implementadas sem serem seguidos os devidos procedimentos legais, não só em Portugal mas em outros países. Falta transparência em negócios com dinheiros públicos. Falta combate verdadeiro a corrupção e conflitos de interesses. Na União Europeia, há problemas com opacidade e o envolvimento de lobbies e influência de indústrias. O crescente poder e influência sobre políticas públicas por parte de organizações internacionais não eleitas é uma séria ameaça às democracias ocidentais.
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    (Foto: Shane Rounce)

    A receita para eliminar o “populismo” parece simples, mas não é. Muitos dos partidos de esquerda e centro apoiaram as políticas que têm diminuído o nível de democracia em países como Portugal e que têm ameaçado o respeito pelos direitos humanos, liberdade de expressão e liberdades fundamentais. Apoiaram políticas que afectaram gravemente a economia, o emprego e os rendimentos disponíveis no final do mês e geraram insegurança e instabilidade.

    Recuperar a confiança do eleitorado vai exigir mais do que novos programas eleitorais e frases bonitas.

    Porque, ao contrário do que acusam alguns partidos de esquerda e do centro, não são os partidos “populistas”, de “direita” e de “extrema-direita” que se apropriaram de temas como a defesa dos direitos humanos. Foram os partidos antigos, que têm governado, os partidos de esquerda e de centro que abandonaram temas cruciais como a defesa da Paz, dos Direitos Humanos, da Democracia, da Liberdade e do Jornalismo.

    A crise dos valores europeus é real. Apontar o dedo, criar um inimigo a abater, não é a solução. Criar novas guerras, novas crises, novas emergências não é a solução. A solução é mudar e restaurar a confiança perdida. Mesmo que isso implique reconhecer que se causou dano e que se errou. Reconhecer o erro pode ser o início da reconciliação e o princípio de uma nova era na Europa, em que partidos procurarão defender os interesses e bem-estar dos europeus e os seus valores universais de democracia, paz e respeito pelos direitos humanos e individuais.

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    Temo que partidos à esquerda e centristas não compreendam que o que têm defendido nos útimos anos tem sido, muitas vezes, políticas fascistas, totalitárias. Censura. Cultura de cancelamento e de difamação e perseguição de jornalistas, académicos, cientistas e políticos. Protecção da especulação e das grandes multinacionais. Protecção da opacidade e da corrupção. Em Portugal e na União Europeia.

    Apontar o dedo a um inimigo pode ser fácil. Mas, para muitos europeus, já não vai funcionar. O problema não está nos europeus nem no seu sentido de voto. Está, antes, naqueles que os traíram e desiludiram.

    Por isso, quando vir alguém que aprovou as políticas nos últimos anos a gritar “fora com o fascista!”, recomende-lhe que tenha vergonha na cara. E que arranje um espelho.

    Elisabete Tavares é jornalista


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  • Um irresponsável populista chamado Gouveia e Melo

    Um irresponsável populista chamado Gouveia e Melo


    Gouveia e Melo andou em ‘conspirações de maledicência nos corredores militares‘ – irrelevantes e inúteis para a sociedade nacional e internacional – até lhe cair no colo a tarefa logística de vacinar contra a covid-19 até o periquito, incluindo, claro, crianças e jovens que jamais integravam grupos de risco.

    A ‘medalha’ foi a sua ascensão, primeiro ao posto mais elevado do Almirantado da Marinha e depois ao cargo, para nosso encargo, de Chefe do Estado-Maior da Armada. E à boleia veio a peregrina ideia de ser ele um putativo candidato a Presidente da República, sustentada e promovida por jornais como o Diário de Notícias, que se transformou no seu órgão oficial, tanto é o palco que lhe concedem.

    Desde aí, Gouveia e Melo, um especialista em submarinos, aproveita qualquer oportunidade para vir à tona mostrar a sua existência – e, hélas, tentar-nos convencer da suposta necessidade de o termos por perto, mesmo se ele tem vontade de mandar alguns de nós – presumo, os mais novos – morrer longe.

    Em mais uma entrevista publicada hoje no Diário de Notícias, em parceria com a TSF (do mesmo grupo de media) somos confrontados com tiradas populistas e irresponsáveis, o que não admira porque vem de um irresponsável populista. Gouveia e Melo nada mais faz do que instigar um conflito grave. Fala das habituais passagens de navios russos na nossa gigantesca Zona Económica e Exclusiva (a quinta maior da Europa) – que deve ser fiscalizada com naturalidade – como se estivessem associadas a preparativos de uma invasão ou de um iminente conflito mundial. E, perante um conflito localizado geograficamente nos confins da Europa, face à nossa posição, e que deve ser tratado sobretudo pela via diplomática, e não por militares sedentos de bacoco protagonismo, destapa a sua veia – ou variz – bélica, prometendo insensatamente ‘carne lusa para canhão’.

    Não é minimamente aceitável que em Portugal, em modelo democrático e em pleno século XXI, venha uma alta patente militar, como Gouveia e Melo, dizer estas duas simples frases a pretexto de um conflito armado grave, humanamente lastimável, mas que se circuscreve à mesma região há mais de dois anos: “E podem ter certeza absoluta de que se a Europa for atacada e a NATO nos exigir, vamos morrer onde tivermos de morrer para defender a Europa, que é a nossa casa comum. Afinal, estamos a defender o nosso modo de vida, a democracia, os nossos sistemas, a nossa economia“.

    “Defender o nosso modo de vida, a democracia, os nossos sistemas, a nossa economia” não se faz, primeiro, através de uma organização militar a EXIGIR o que quer que seja a um povo, ainda mais ao povo de um país soberano com quase 900 anos de existência. A ideia de ‘carne para canhão’ não se conjuga bem como o ‘nosso modo de vida’ no século XXI.

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    Não se defende “o nosso modo de vida, a democracia, os nossos sistemas, a nossa economia” PROMETENDO que “vamos morrer onde tivermos de morrer”, sobretudo quando o senhor que assim promete não é o Mel Gibson a armar-se em romântico William Wallace – que, na realidade, foi enforcado e esquartejado por alta traição aos 35 anos – mas sim um homem de 63 anos, almirante e Chefe do Estado-Maior da Armada de um país da NATO, antevendo-se assim que, ficando tudo torto, ficará ele no recato do lar ou no conforto do seu gabinete a esquadrinhar estratégias e tácticas militares enquanto a gente (jovem) que ele enviou está a morrer onde tiver de morrer – e a matar. Tudo para supostamente se defender a Europa, como se fosse uma angélica pomba da paz.

    Aliás, a ideia de “defender a Europa, que é a nossa casa comum”, colocando a Europa como um modelo, constitui uma pérola do populismo, ainda mais por meter a Rússia como pária. E nem é por a Rússia e a Ucrânia serem nações consideradas europeias, e nem é por ambos os países lamentavelmente não saberem o que é uma democracia, mas sim por o almirante Gouveia e Melo querer fazer-nos de parvos.

    Se há um Continente do Mundo que é belicista, esse é a Europa, com conflitos seculares, mais ou menos duradouros, mais ou menos grotescos nas causas. Antes das chamadas Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), já houvera muitos mais conflitos armados à escala planetária, e se as duas do século XX foram marcantes deve-se sobretudo à capacidade tecnológica de letalidade e de afectar mais vidas de civis. E em todos esses conflitos de grande dimensão, não me parece ter sido a Rússia a má da fita.

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    Se erro histórico houve para que a Europa não tenha evoluído nas últimas décadas em conjunto com os mesmo valores – aproveitando a Queda do Muro de Berlim e o colapso da União Soviética – foi o ostracismo a que se botou a Rússia – para agradar aos Estados Unidos –, não promovendo, por outro lado, através de vias diplomáticas, a resolução de evidentes disputas territoriais, como as da Crimeia e do Donbass.

    A forma como se permite que militares se interponham em querelas que devem antes ser diplomáticas é um erro crasso. Ouvir um chefe militar anunciar alegremente que “vamos morrer onde tivermos de morrer para defender a Europa, que é a nossa casa comum” é um ultraje, porque uma guerra é a pior das formas de se atingir a paz.

    Acham que foi melhor, por exemplo, a compra da Louisana aos franceses em 1803 ou seria preferível uma guerra franco-americana?

    Acham que foi melhor, por exemplo, o Tratado de Montevideu em 1828 que consagrou a independência do Uruguai ou seria preferível antes dirimir uma anexação oportunista de Portugal aos territórios da Cisplatina antes ocupados por Espanha através de uma guerra entre o então recém-independente Brasil e os independentistas uruguaios?

    Acham que foi melhor, por exemplo, os milhares de acordos e tratados para se resolverem os milhares de disputas territoriais a nível mundial ou seria preferível que milhares de Gouveias e Melos por este Mundo fora enviassem milhares de inocentes para morrerem (e matarem) em nome de uma suposta “casa comum”?

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    Uma das coisas mais absurdas destes tempos modernos é a desmesurada vontade de muitos responsáveis políticos e militares em levarem toda a Europa para uma guerra fratricida, que é regional, e que assim deve continuar até que surja uma paz moderada pela diplomacia e bom senso.

    E o bom senso inclui permitir que o almirante Gouveia e Melo falar opine sobre o envio de ‘carne para canhão’ contra a Rússia, mas não que o faça como Chefe do Estado-Maior da Armada. Sem funções militares, pode ele mandar as postas de pescadas que assim quiser como comentador de assuntos militares. Ser-me-á indiferente. Mas tê-lo assim, nesta postura, como alta patente militar, assusta-me mais do que os mísseis russos.


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  • Uma Esfinge da União Europeia

    Uma Esfinge da União Europeia


    Os últimos meses e dias, mais ainda do que a iminência das eleições para o Parlamento Europeu, obrigaram-nos a lembrar uma criatura quimérica concebida há um quarto de século, numa cimeira do Conselho Europeu: a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Proclamada solenemente logo em 2000, em Nice, veio, depois de adaptada, a ser tornada vinculativa, saberá Deus porquê, junto ao Atlântico, com as assinaturas de José Manuel Durão Barroso, então Presidente da Comissão Europeia, e José Sócrates, então Presidente do Conselho da União Europeia, no Tratado de Lisboa, em 12 de Dezembro de 2007.

    Como tive ocasião de dizer pouco tempo depois, em Bragança, «de costas voltadas para as realidades e para os povos europeus, na última década, a Europa andou a brincar às Convenções, às Cartas dos Direitos Fundamentais e às Constituições»[1].

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    A verdade é que, passados 25 anos daquele dia 4 de Junho de 1999 em Colónia, a Europa dos 27 continuou a descurar o essencial, a começar pelo reforço do seu processo de democratização (prosseguindo como uma estrutura de poder político sem verdadeiros partidos políticos, sem um fórum público de formação da opinião, sem aperfeiçoamento dos mecanismos de prestação de contas ou da aproximação dos cidadãos aos decisores), a participar (através de alguns dos seus principais membros) em dois dos seis ou sete episódios mais trágicos do milénio até agora (a Guerra do Iraque e a destruição da Líbia) e a terminar no descaso relativamente às necessidades vitais em matéria de segurança e de defesa dos europeus, a ponto de se revelar incapaz de cumprir os compromissos assumidos com a Ucrânia em matéria de fornecimento de munições, após a invasão russa de Fevereiro de 2022.

    1. Ora, na presente situação, embora esse pequeno pormenor seja geralmente omitido, tudo começou mais uma vez nos Estados Unidos (um pouco ao modo das Revoluções de há 250, 235 e 204 anos, respectivamente, nos Estados Unidos, na França e em Portugal, embora agora com inusitada aceleração do tempo de reacção): no dia 24 de Junho de 2022, uma sexta-feira, o Supremo Tribunal (no caso Dobbs v. Jackson Women’s Health Organization) decidiu reverter a jurisprudência que ele próprio firmara 50 anos antes, no célebre caso Roe v. Wade, que reconhecia à mulher (desde logo, contra o poder dos estados) o direito à interrupção voluntária da gravidez, com os três Juízes dissidentes a escreverem agora: «[d]iscordamos, com pesar – por este Tribunal, mas mais ainda, pelos muitos milhões de mulheres americanas que hoje perderam uma protecção constitucional fundamental»[2]. Havia efectivamente uma protecção constitucional da interrupção voluntária da gravidez desde 1973, mas ela não era dada por uma norma da Constituição, mas por uma sentença, que pretextava, no caso “mais difícil de todos”, interpretar a Constituição num sentido que nunca deixou de ser contestado e que não reunia as condições para ser considerada “fonte” de normatividade constitucional[3], estando por conseguinte sujeita ao inerente risco da reversibilidade, por uma decisão equivalente de sentido contrário, como veio a suceder[4].

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    2. Tendo sido este o detonador, foi com a habitual pompa que no Palácio de Versalhes, por proposta do Presidente da República, em 4 de Março deste ano, o Congresso francês fez inscrever no artigo 34.º da Constituição a seguinte disposição: La loi détermine les conditions dans lesquelles s’exerce la liberté garantie à la femme d’avoir recours à une interruption volontaire de grossesse. Deve, em justiça, dizer-se que a fórmula se adapta perfeitamente ao modelo francês das “liberdades administradas por lei” e que a nova garantia está sistematicamente bem colocada no Título V da Constituição de 1958, que se ocupa das Relações entre o Parlamento e o Governo. Tudo porque a Constituição francesa não dispõe de um catálogo, nem conhece sequer o conceito, de direitos fundamentais. E tudo isso numa Constituição que o actual Presidente francês se comprometeu a reformar logo no seu primeiro mandato, mas onde, tal como na generalidade das demais reformas, o insucesso foi total.

    3. De Versalhes a Estrasburgo é um passo, pelo que o Parlamento Europeu fez questão de marcar igualmente a sua posição sobre o tema: no dia 11 de Abril, adoptou uma resolução (sem força vinculativa, pois tal decisão está nas mãos, não do Conselho, como foi noticiado, mas dos Povos europeus) propondo uma alteração ao artigo 3.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que deveria explicitar: todas as pessoas têm o direito à autonomia sobre o seu corpo, o acesso gratuito, informado, pleno e universal à saúde e aos direitos sexuais e reprodutivos, e a todos os serviços de saúde conexos, sem discriminação, incluindo no acesso ao aborto seguro e legal.

    4. Ora, como da França a Lisboa o caminho sempre foi curto, sobretudo em matéria de importações, também a Assembleia da República se quis associar ao assunto, com um voto de saudação à decisão do Parlamento Europeu, apresentado pelo Bloco de Esquerda, logo no dia 15 de Abril[5].

    Todavia, no caso português, quando menos (e de onde menos) se esperava, a esfinge voltou a dar um ar da sua graça, através do cabeça-de-lista da AD às eleições para o Parlamento Europeu, quando, na apresentação do respectivo programa, o candidato revelou o seguinte: «Simbolicamente, mas com vista a colocar em prática soluções que venham resolver esta crise, quero anunciar aqui que defenderemos a elevação do Direito à Habitação na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, nós vamos mesmo universalizar este direito».

    aerial view of people walking on raod

    Sem pretender exagerar na apreciação jurídico-política da ideia, salvo no uso do advérbio inicial – que nestes contextos podemos perdoar –, vejo assomarem aí variadas dificuldades:

    • A primeira é a de que o direito à habitação já está consagrado na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia;
    • A segunda é a de que a formulação presente no artigo 34.º, n.º 3, da Carta  (segundo o qual a União reconhece e respeita o direito a uma ajuda à habitação destinada a assegurar uma existência condigna a todos aqueles que não disponham de recursos suficientes, de acordo com o direito comunitário e as legislações e práticas nacionais) não só é contrária à ideia (do candidato) de universalização do direito, como é a mais condizente com a natureza do “princípio” nela enunciado, designadamente à luz das próprias “Anotações” anexas à Carta, mas também à luz da doutrina e da jurisprudência (constitucional, comunitária e internacional) mais consistentes;
    • A terceira é a de que a realização do direito à habitação é uma competência dos Estados – como teve de ser lembrado ao anterior Governo português, há escassos meses, pela Comissão Europeia –, pouco sentido fazendo apostar, mesmo que simbolicamente, numa medida que não reentra nas atribuições da União Europeia;
    • Como “princípio” que é, a referida garantia está sujeita a um regime muito distinto do regime aplicável aos “direitos e liberdades” previstos na Carta dos Direitos Fundamentais (artigo 52.º), não se podendo, no caso de um direito cujo conteúdo principal se traduz em prestações positivas, transformar a água em vinho; melhor seria o empenho no revigoramento da Carta Social Europeia, cujos direitos, quando comparados com os da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, não passam de balões vazios, no conteúdo e na (ausência de) tutela;
    • Por último, que o candidato não me leve a mal, mas é no mínimo ridículo que um país que, há 48 anos, inscreveu o direito à habitação como direito fundamental na sua Constituição e que (salvo quanto ao programa de erradicação das barracas) se esqueceu desse direito durante mais de 40 anos (bastando para o efeito consultar os sucessivos Orçamentos do Estado), sinta que tem alguma autoridade para reclamar o que não conseguiu realizar na Constituição da sua terra, com o seu “direito fundamental de papel”.

    Em resumo: embora quanto à Grécia tenham sido povos, tradições, deuses e poetas a decidi-lo e uma vez que ela já nos legou Édipo, a Europa precisa menos da esfinge às suas portas do que Tebas dela precisava[6].

    José Melo Alexandrino é professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa


    [1] José Melo Alexandrino, Contexto e sentido da reforma do poder local, 2011 (disponível aqui, p. 6), agora in Uma década de reformas do Poder Local?, Lisboa, 2018, p. 21.

    [2] Não é este o lugar para analisar ou discutir o caso. Certo é que as coisas não ficaram por aqui e, nestes dois anos, tudo já se passou nos Estados Unidos: a repristinação de leis do século XIX, que proibiam totalmente o aborto; a revogação dessa repristinação; a aprovação de leis restritivas da prática do aborto numa série de estados (para um conspecto, um ano depois, ver aqui), com e sem subsequentes referendos constitucionais a favor da introdução do direito ao aborto nas Constituições desses estados mais conservadores (assim tendo sido decidido, em pelo menos cinco deles); o efeito boomerang que a decisão do Supremo Tribunal veio a ter junto da campanha de Donald Trump (obrigando-o à moderação do discurso relativamente aos direitos da autodeterminação da mulher); além de toda a série de referendos, de discussões e de deliberações que prosseguem a sua marcha.

    Por outro lado, ao contrário de uma ideia, por vezes, difundida em Portugal, segundo a qual “os direitos fundamentais não se referendam”, estes dois anos norte-americanos provam justamente o contrário, como já tinham de resto provado, entre muitos outros, os referendos ao aborto realizados em Portugal ou o referendo à eutanásia realizado na Nova Zelândia em 2020. Mais. Se, num regime democrático, a Constituição deve por regra ser referendada (o que ainda não sucedeu na Constituição de 1976) e se é na Constituição que estão consagrados os direitos fundamentais, a lógica só pode ser a inversa: tal como a Constituição, “os direitos fundamentais são e devem ser igualmente referendáveis”.

    [3] Sobre estas condições, José Melo Alexandrino/Jaime Valle, Lições de Direito Constitucional, vol. I, 4.ª ed., reimp., Lisboa, 2023, pp. 246-247.

    [4] Curioso é igualmente que decisões semelhantes do mesmo Supremo Tribunal, entretanto tomadas, por motivos da mesma ordem, não tenham sido apreendidas (como demonstrativas da autonomia do jurídico sobre o político) deste lado do Atlântico, como sucedeu com a decisão unânime Trump v Anderson, que não reconheceu aos estados o poder de excluir um candidato à eleição presidencial, com base no disposto na secção 3.ª do 14.º Aditamento à Constituição.

    [5] Um voto que acabaria rejeitado pelo PSD, Chega e CDS, já em Maio de 2024.

    [6] Quanto à justificação desta tese, como já tive oportunidade de afirmar, nem os direitos da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia são direitos fundamentais, nem eles perturbam os direitos fundamentais da Constituição e que, além disso, «se deveria ter atentado melhor na experiência de verdadeiras federações (como os Estados Unidos ou a Austrália), para verificar como uma vinculação prematura dos Estados membros a um catálogo uniforme de direitos fundamentais não faça sentido» (cfr. Elementos de Direito Público Lusófono, 2.ª ed., Lisboa, 2024, p. 121); para a demonstração da ideia à luz da comparação referida, José M. Alexandrino, A estruturação do sistema…,  cit., vol. I, pp. 213 ss.


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


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  • Vamos ver

    Vamos ver


    A notícia do dia é que o Sporting é campeão europeu de hóquei em patins, a mais portuguesa das modalidades desportivas.

    Tenho uma ‘cacha’ para os leitores do PÁGINA UM: o seu ilustre Director assistiu a tudo sem pregar olho nem tirar os óculos, como aconteceu em dois outros gloriosos momentos desta época. Confortavelmente aterrado no mesmo sofá com formato de nenúfar, vi-o sobreviver corajosamente aos dois golos do Génio Catamo. E jamais poderei esquecer o impávido espanto com que tentou travar, de braços retraídos e pernas no ar, a arrancada dos dois cometas nórdicos que acabou com as incompreensíveis dúvidas sobre o desfecho da meia-final da Taça.

    (O estádio grita “Rafa, Rafa” para bater um penalty. Foi lá antes aquele craque argentino que nunca pode ser substituído e é campeão do Mundo sem alguma vez ter marcado um golo ao Sporting. A harmonia continua na família do querido rival.)

    Ocasiões como as do Catamo, do Hjulmand e do Gyökeres são como sacramentos entre amigos verdadeiros de clubes rivais.

    – Pedro Almeida Vieira, estás convidado para a final da Taça! Nesse dia nem fazes mais nada, acordas e vens logo aqui ter a casa.

    Aqui no estádio, ao meu lado, o Pedro já escreveu umas 12 laudas de texto. Parece o Trincão a fintar os laterais, com ligeiras diferenças de tonalidade na barba, compensadas pelo corte de cabelo fiel ao modelo. Dribla o teclado e ao mesmo tempo consome gurosans de estatísticas ao telemóvel, para depois debitar gigas de resultados mais velhos do que nós ao meu ouvido, com a alegre efervescência dos comprimidos a alaranjar as águas. Manifestamente, o jogo interessa-lhe ainda menos do que a mim.

    (O estádio acorda o Senhor Director do torpor analítico e da sanha historiográfica-futeboleira aos gritos de Rafa, Rafa. Outra vez penalty. A julgar pela rasteira escandalosa que pregou às pernas do adversário, o guarda-redes do Arouca deve ser fan do Rafa. Cá de cima, parece-me um sueco da terra do Gyökeres, imagino que traumatizado desde o recreio da escola primária. E o árbitro apitou mesmo com vontade de alegrar a bancada. Rafa, Rafa? Desta vez marcou o turco que vai ficar com o lugar dele para o ano. O Roger Smith é tão exímio a mostrar quem manda como a culpar os outros pelas derrotas. Como foi golo, isto hoje já não descamba, nem vai dar grande notícia.)

    Notícia digna de registo foi a iniciação do Senhor Director do PÁGINA UM no glorioso Núcleo do Sporting Clube de Portugal da Garagem do Estádio de Alvalade. Aconteceu ontem, dia 11 de Maio de 2024, numa reunião extraordinária realizada no bairro da Graça, para assistir ao jogo no Estoril em comunhão de duas espécies.

    O Núcleo da Garagem tem sementes na abençoada terra de Alpalhão. Zé Sequeira, Major João Presumido, Fernando Cardoso, Cotrim, Severino Cunha, Tó Luís Joeirinha e Ti José Joaquim, este já no prado mais verde dos céus, foram os sete violinos fundadores. Antes e depois de cada jogo, no piso menos um do estádio, montam mesa farta de azeitonas, queijos de cabra e ovelha, cacholeiras, ovos com espargos, toda a sorte de petiscos, muitos vinhos e alguns doces.

    Quem ousa aproximar-se é sempre bem recebido. Eu fui um deles, um dia, e fiquei para sempre. Dantes, o Núcleo da Garagem reunia-se no Alvaláxia, para desespero dos restaurantes de comida rápida do recinto. Para o ano, já comemora 15 anos. Saborosas bodas de cristal, com vinho alentejano a transbordar dos copos.

    (O Rafa marcou um golo de bola corrida. Deve ter posto beicinho de desforra. É mais um benfiquista no estádio com vontade de contrariar o treinador. A orquestra da Luz continua afinada e, desportivamente reconheço, ele sempre foi um solista talentoso…)

    Pedro Almeida Vieira foi recebido pelo Núcleo da Garagem como se fosse o João Pinto. E eu juro que o vi aos saltos, bem embalado. E quem não salta? O Pedro estava muito, mas muito, muito mais divertido ontem do que hoje, que o Benfica ganhou cinco a zero.  

    Eu cumpri a minha parte do nosso trato, com visita ao Estádio da Luz, credencial de imprensa e esta crónica preguiçosa. Foi pena o Arouca ter ido de férias antes do jogo. Daqui de cima, confirma-se que o Benfica tem alguns grandes jogadores. Dou graças a Deus por não ser cego e me ter libertado do fanatismo clubista. Até gostava de ver o João Neves no Sporting mas felizmente isso é impossível. Hoje houve algumas jogadas bonitas, nenhuma como o vôo da águia.   Sonho com o dia em que haverá leões à solta no fosso do nosso estádio. Para já, só no relvado.

    Para o ano, disse-me o Pedro, se o Sporting for bicampeão aumenta exponencialmente a probabilidade de voltar a ser penta. É que nunca fomos só bicampeões. Vamos ver!


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  • Arouca 5.0 (com um sportinguista ao lado)

    Arouca 5.0 (com um sportinguista ao lado)


    Vamos esquecer a história das vindimas que só terminam com o lavar dos cestos, mote da minha última estapafúrdia crónica – ou penúltima, se esta for considerada a derradeira (desta época, convém acrescer) – , que na semana passada em Famalicão o “perdigão perdeu a pena”, e vamos a factos: o Sporting foi um justo campeão, e isso já é passado, pelo que, em sinal de reconhecimento, ou mesmo de homenagem, trouxe hoje comigo um empedernido sportinguista, o jornalista Carlos Enes, para colaborar nesta crónica, não sabemos ainda bem como. Decidimos, agora, que será em crónica autónoma. Uma vez para nunca mais… esta época, claro.

    Está ele, confessou-me, feliz da vida, ainda mais porque o Sporting acaba de vencer esta tarde a Oliveirense na final da Liga dos Campeões de Hóquei em Patins – que tem tanto prestígio internacional como o Mundial do Berlinde –, mas, mesmo sendo um dos excelentes jornalistas de investigação cá do burgo, está convencido que a Estatística é uma ciência esotérica, pelo que não imagina sequer que, ao ganhar este ano o campeonato, o Sporting hipotecou a chance de ser campeão no próximo ano. Passo a explicar…

    (interrompo apenas para assinalar que o jogo começou; com meia casa; algum entusiasmo; sem ninguém brindar, ainda, o Schmidt com nefastos destinos; o João Maria em campo a garantir bolas passadas para trás em número suficiente para não ser possível uma goleada; e dois jogadores no banco que eu nem sabia que existiam: Gianluca Prestianni e Diogo Spencer)

    … portanto, ia dizer, se considerarmos a contemporaneidade – isto é, basicamente, aquilo que não é História para mim, ou seja, o Mundo a partir de Novembro de 1969, e até deveria ser Dezembro de 1969, porquanto deu-me em nascer antes do tempo –, a probabilidade de o Sporting ser campeão na época de 2024/2005, portanto, de ser de novo campeão é… ZERO. Um redondo zero por cento.

    Vejamos então. A última – e tenho a sensação que será mesmo a última até ao bíblico ‘fim dos tempos’…

    (interrupção, por mor de uma ‘interrupção’ à margem das regras de um cruzamento, que dá origem a penalty… Vá lá, Di Maria: não falhes mais um… Golooooooooo!!!! Sem espinhas)

    Continuemos… Como dizia…

    (bolas, assim não dá: estava a aqui a consultar o histórico dos campeonatos desde os tempos da Outra Senhora, passam uns minutos, entoam as bancadas ao minuto 27 um cântico em honra do Rafa, e mais um penalty… a favor do Benfica. Este vai para o turco Kökçü que… goloooooooo!!!! É hoje que vai ser o 15 a zero, para fechar)

    Vamos lá aproveitar alguns segundos – ou, vá lá, minutos – antes de o Benfica espetar o terceiro para continuar a narrativa sobre as chances nulas de o Sporting ser bicampeão, para concretizar a minha tese (de esperança para as águias na próxima época), sem antes notar que, aqui ao meu lado, o Carlos Enes disfarça o seu êxtase pela honra de estar aqui na Varanda da Luz… O deslumbre é tão grande que, olhando-o de soslaio, e para o seu computador, apenas ele me escrevinhou meia dúzia de linhas, e nem sei bem o que dali sairá.

    (e grande fuzil do Rafa a carimbar o terceiro… acho que se reservaram para o último jogo)

    Camandro!, assim não consigo avançar… Vamos lá. Reza a História da Ludopédio Lusitano que, em 90 campeonatos (vamos começar na época de 1934/1935), o Sporting foi tricampeão nas épocas de 1946/1947 a 1948/1949, foi tetra nas épocas de 1950/1951 a 1953 a 1954. Significa isto várias coisas, segundo diversas perspectivas. Do ponto de vista ideológico, o Sporting nunca foi bicampeão em tempos de democracia, porquanto nos pouquíssimos anos em que o campeonato que, vá lá saber-se como (e em dois casos com um treinador que ‘aprendeu’ na Luz), lhe saiu na rifa desde a Revolução dos Cravos – sete, para ser preciso –, depois do sol na eira, seguiu-se a chuva no nabal.

    Carlos Enes em momento de 0-0…

    Sigamos. Do ponto de vista ‘cronológico’, convenhamos que, valendo as estatísticas o que valem, ter de recuar ao tempo dos ‘Cinco Violinos’ para encontrar uma série de mais de uma vitória em dois anos é ‘coisa’ ainda mais longínqua do que a famigerada Maldição de Béla Guttnann, que como é sabido constitui a única e infelizmente inquebrantável razão pela qual o Benfica nunca mais se fez campeão europeu.

    Tenhamos, portanto, benfiquistas, um sinal de desportiva empatia com os sportinguistas, que agora festejam, embora, estatisticamente falando, devam estar desesperançados de se tornarem bicampeões na próxima época. Aqui ao meu lado, o Carlos Enes, nascido nos idos de 73, não apenas jamais viu o Sporting bicampeão como só festejou quatro campeonatos desde que é maior e vacinado, andando a pedinchar por um título entre 2003 e 2020. Já eu, benfiquista de gema, festejei 11 campeonatos desde que sou maior, e ‘colecciono’ um tetra. Isto sem falar nos 10 campeonatos que ganhei enquanto menor de idade, incluindo dois tricampeonatos.

    (intervalo, vamos descansar, que para a segunda parte cheira-me haver mais uns quantos golos, para alívio do Schmidt que devo querer passar o jogo sem ninguém se aperceber que está no banco…)

    Enfim, mas estando resolvida esta questão – o que permite quantificar a esfuziante alegria dos lagartos, pouco atreitos a campeonatos em tempos democráticos –, convenhamos que há mais diferenças entre benfiquistas e sportinguistas, personificados em mim e aqui no meu ‘camarada de carteira’.

    Assim, convidou-me ele – ou desafiou-me – para assistir ao jogo do Sporting de ontem, como contrapartida ao meu convite para vir comigo à Varanda da Luz. Mas em vez de ser num estádio, levou-me para a sua casa. Está bem que o ecrã da televisão dele não é mau de todo, mas, enfim, nisto que se vê porque há uns tipos são benfiquistas e outros que acabam sportinguistas…

    (goloooooooo…. mais um do Rafa… está a despedir-se em grande)

    Ainda por cima, vindo o Carlos Enes ao estádio do Glorioso, ainda recebeu, como eu, o extraordinário repasto constituído por uma baguete de queijo flamengo + carne fumada + espinafres, uma barrita de chocolate, uma maçã e uma garrafinha de água de PH básico. Tudo de borla! Já eu, enfim…

    (golooooooooo…. entrou o Tengstedt, de má memória dos sportinguistas, e marcou… já vamos em cinco, não é?)

    Dizia eu que, enfim, em troca de honrosa estada na Varanda da Luz a assistir a excelente espectáculo desportivo e degustando opíparo farnel, o Carlos Enes somente me disponibilizou ontem – e, confesso, novamente hoje, pelo almoço – um singelo leitão assado, uma despretensiosa cachupa, um primitivo frango de churrasco, umas banalíssimas gambas, tudo antecedido por coxinha de alheira, queijos diversos, batatas doces e normais e outros modestos acepipes, tudo regado por tinto do Alentejo, que houve quem viesse de propósito de Alpalhão para, em Lisboa, assistir ali para os lados da Graça, a um jogo na televisão transmitido a partir do Estoril. Enfim, também aqui se destaca a diferença entre o Benfica e o Sporting…

    (ali em baixo, o jogo caminha para o fim, nada muito relevante, excepto as substituições onde se incluíram as saídas de Di Maria e do Rafa para as palmas)

    Carlos Enes em momento de 5-0, claramente ‘rendido’.

    E, pronto, haveria ainda mais umas quantas coisas a dizer, e a contar, sobre o Benfica – e sobre o Sporting –, mas fica, certamente, para a crónica ‘subsidiária’ do Carlos Enes, que agora me parece estar afanosamente a escrevinhar. Por mim, encerro a época; talvez para o ano tenhamos mais uma edição do Varanda da Luz, neste ou noutros moldes, que parece que ainda não irritei demasiadas pessoas, que nunca conseguem convencer-se que um jogo de futebol é apenas isso: onze gajos (neste caso são gajos) as pontapés e cabeçadas na bola, e caneladas às vezes, com o fito de a meterem nas balizas adversárias, ao qual se seguem sempre momentos onde apenas apetece brincar um pouco com os derrotados. E depois segue-se para a vida a sério… Até para a próxima época!

    (e acaba o jogo e as crónicas desta primeira época Da Varanda da Luz)

    Ah, um post scriptum: reparem que na Varanda da Luz nunca se relatou uma derrota do Benfica, e somente dois empates… Que se registe e se venha a conceder, no futuro, mais do que uma baguete de queijo flamengo + carne fumada + espinafres, que hoje até se leva para casa, porque vim cheio do almoço em casa do Carlos Enes…


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