Informa-me um amigo português que um jornal daquela terra de navegadores [o Diário de Notícias] vai publicar semanalmente uma edição em “português brasileiro” e que manterá um sítio no qual colocará, todos os dias, notícias de interesse da vasta parcela de brasileiros que por aí vivem.
Num primeiro momento, leva-se um susto porque se trata de algo que soa estranho. Ou seja, uma empresa noticiosa se propõe a traduzir informações escritas, em tese, na mesma língua.
Pouco depois, mais calmos, temos que admitir que são grandes as diferenças entre o português europeu e o linguajar brasílico.
A tradução em si já é um baita pepino. Ao se referirem à quase impossibilidade de verter um texto de uma língua a outra sem que se perca parte do sentido original, sentenciam os inventores da pizza: traduttore, traditore.
Como seria a coisa entre “dois” idiomas que têm o mesmo nome?
Vamos por partes, como diria o esquartejador no matadouro.
Imagino que os dirigentes do jornal certamente fizeram estudos sobre a viabilidade dessa empreitada. Torço para que sejam bem-sucedidos!
Ocorre-me, de início, que duas das nossas maiores diferenças linguísticas vêm do futebol: a divisão entre “adeptos” e “torcedores” e entre “times” e “equipas”.
Aliás, por falar no esporte bretão, dele vem grande parte do nosso atual intercâmbio: há incontáveis jogadores brasileiros por aí, enquanto por cá pululam os treinadores lusos.
Nas vezes em que fui a Portugal costumava frequentar as bancas de revistas porque aqui, em Brasília, sumiram. Melhor dizendo: transformaram-se em lanchonetes.
Por que ia às bancas? Porque gosto de ler jornais e, em Lisboa, podia comprar vários.
Aqui os impressos estão virando raridade.
Recentemente, num voo para o Rio de Janeiro, desfraldei um exemplar de O Globo. Na fila dos que entravam no avião, todas as pessoas com menos de trinta anos me olhavam intrigadas, perguntando-se: para que serve essa imensa bandeira (tabloides aqui são raros) de papel borrado?
Voltando. Nas minhas passagens por Portugal, sempre pensei que deveria haver um sítio jornalístico para os nossos exilados em Lusitânia, que são multidão. Uns 5 por cento da população local, dizem. É muita gente!
Na base do puro palpite, acho que esses nativos de Pindorama querem, antes de tudo, notícias da sua “terrinha”.
Mas não será “terrinha” uma expressão privativa dos filhos do país do bacalhau?
Os brasileiros também precisam muito de notícias sobre o país no qual vivem, em especial dos órgãos públicos aos quais precisam recorrer no seu dia-a-dia.
Mas quem é o brasileiro que vive em Portugal?
Quando por aí passei, pareceu-me que o grupo mais numeroso dos brazucas (assim são chamados aqui os que moram nos Estados Unidos) seria o daqueles que, com menor escolaridade, exercem funções mais modestas.
Percebi que há também muitas pessoas com mais estudo, saídas da classe média, na maioria jovens, que se lançam como empreendedores ou profissionais liberais.
Há, ainda, uma ala de pessoas de mais idade, quase sempre aposentadas aqui (seriam reformadas aí), que escolhem viver seus anos outonais sem os muitos sobressaltos das nossas maiores cidades.
Posso imaginar, por fim, que há ricos também, embora as más línguas digam, por aqui, que esses, na maioria, preferem Miami, a Meca Mundial da Cafonice.
Traduzo: cafonice é mau gosto extremo.
Os conterrâneos que encontrei por aí elogiavam, antes de mais nada, o sentimento de segurança. Podiam, em Portugal, flanar pelas ruas, mesmo à noite, sem grandes preocupações.
Eu também pensava o mesmo. Nos anos de 2016 e 2017, quando fui a Lisboa, sentia-me como se estivesse caminhando na minha cidade (Pelotas, 300 mil habitantes, muitíssimos luso-descendentes) no começo dos anos 1970.
Retornando à edição brasílica do periódico lusitano: 600 mil pessoas formam um belo público-alvo, como diriam publicitários ou marqueteiros tupiniquins.
Mas quem serão os tradutores? Tudo nos leva a crer que serão brasileiros conhecedores do idioma de Graciliano Ramos. Não sei se lusos, mesmo tendo residido por muitos anos no Brasil, conseguirão trocar o infinitivo pelo gerúndio.
– Sempre que leio um texto acadêmico rabiscado em português de Portugal tenho a impressão de estar enfrentando um trabalho escrito originalmente em finlandês e traduzido, depois, por um húngaro.
Não chego a tanto, mas penso, sem ser íntimo de gramáticas e dicionários, que os imensos Machado de Assis e Eça de Queiroz escreviam em uma língua que parecia a mesma. Hoje, sinto que é considerável a diferença entre as duas escritas (no jornalismo, na literatura).
Publicar, em Portugal, um jornal para os que nasceram na nação dos sambistas, além de ser uma árdua tarefa, certamente será uma grande diversão.
Que Camões nos proteja!
Lourenço Cazarré é um escritor brasileiro
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No fim da década de sessenta do século vinte iniciei a minha actividade profissional como jornalista do “Jornal do Fundão”.
Um Jornal “de província” que era um marco no jornalismo nacional.
Numa época de censura feroz era a voz dos resistentes enfrentando um Poder todo-poderoso e antidemocrático.
Nomes como José Saramago, Alçada Batista, Artur Portela Filho, Carlos Porto, José Carlos Vasconcelos, José Rabaça, Fernando Luso Soares, Armindo Mendes de Carvalho, Alexandre Babo, Isabel da Nóbrega, Luís Sttau Monteiro e tantos outros, com as suas Crónicas, faziam tremer o Regime Fascista que nos governava.
Acima de todos, António Paulouro como líder incontestado pela sua extraordinária coragem, verticalidade, cultura enciclopédica e respeito total pela democracia.
Com Sede num concelho de casas vazias e aldeias desertas, pelo fenómeno da emigração, uma elevada percentagem da edição do “Jornal do Fundão” seguia para os milhares de assinantes, emigrantes espalhados por todo o mundo.
O “Jornal do Fundão” dividia as suas páginas pela análise da política local, nacional e internacional com as informações da pequena notícia das pequenas aldeias do concelho.
Era por ele que os emigrantes recebiam as notícias dos seus familiares e conterrâneos e todos os portugueses sabiam muitas das notícias que a imprensa nacional calava, fosse por conveniência, fosse por medo.
Toda a Redacção tinha a missão de receber e rever as informações dos inúmeros “correspondentes” do Jornal que, a partir da sua terra, nos faziam chegar as notícias e, por vezes, dar-lhes um “cunho jornalístico”.
Sabíamos que era um trabalho importante porque eram essas as páginas que os leitores, no estrangeiro, liam em primeiro lugar.
As centenas de cartas que chegavam ao jornal, muitas publicadas na rubrica “Cartas ao Director”, eram a demonstração da sintonia entre a Redacção e estes leitores especiais.
Daí que eu tenha um apreço único, de mais de cinquenta anos, por esses homens (e mulheres) que deixaram as suas terras para irem “a salto” (sem documentos e passando ilegalmente as fronteiras) para países longínquos, sem dinheiro no bolso, sem trabalho garantido, sem conhecerem a língua falada nesses locais.
Maior prova de heroicidade (ou loucura) não conheço.
A alternativa era a fome na sua terra ou a obrigação de irem lutar numa guerra com a qual não concordavam.
Oriundo de família de “fracos rendimentos”, mas com refeições garantidas, e tendo optado por fazer a tropa, não emigrei, mas quando falo com um emigrante, e muitíssimos deles tornaram-se gente de sucesso, de muito sucesso, sinto sempre uma enorme admiração e respeito por eles.
Daí que uma raiva me cresça no peito quando ouço compatriotas meus, alguns deles descendentes desses emigrantes de que venho falando, a manifestarem-se contra os imigrantes que, hoje, nos batem à porta.
E a quererem pôr regras que, na prática, os impediriam de entrar no país.
As mesmas regras que criticávamos a franceses, alemães e ingleses.
Exigem Contratos de Trabalho, sabendo que, nos países de onde são oriundos, os Consulados Portugueses nem visto lhes dão para poderem entrar no nosso.
Querem saber se têm dinheiro para alguns meses de estadia em Portugal quando a realidade, de todos conhecida, é que a maioria não tem o suficiente para o dia-a-dia no seu país.
Numa palavra, têm como objectivo impedir a entrada de gente a quem tanto devemos.
Sentados nas cadeiras dos gabinetes de Lisboa não têm a possibilidade de visitar, por exemplo, a zona Oeste do nosso Portugal.
Caso contrário abririam a boca de espanto com as muitas centenas de hectares de terrenos que, há meia dúzia de anos, eram terrenos incultos e cheios de silvas e que, hoje, produzem toneladas de morango, batata-doce, alface, etc. graças ao esforço de milhares de imigrantes.
É passar por esses campos e ver centenas de homens (principalmente) num trabalho duro, a tornar rica uma terra improdutiva durante décadas.
Sem haver, ali, um único português!
À noite, estes trabalhadores ficam às dúzias em casas planeadas para quatro ou cinco pessoas.
Não são os “bidonville” habitados pelos portugueses em meados do século passado, mas deveriam ser proibidos pelos mesmos políticos que condenam a sua entrada no nosso país.
Esta gente, com os seus descontos para a Segurança Social, acaba, ainda, por ajudar na garantia da reforma dos nossos idosos nas próximas décadas.
Tudo isso é sabido.
Mas, todos os dias, ouvimos os mesmos discursos, os mesmos insultos, as mesmas ameaças por parte de alguns políticos que têm como única regra o incentivo ao ódio, o racismo e a xenofobia.
Um nojo de gente!
Vítor Ilharco é assessor
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
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No dia 13 de junho de 1654, em São Luís do Maranhão, o padre António Vieira proferiu o Sermão de Santo António aos Peixes aos brasilienses. Era dia de Santo António, santo propiciador na busca de objetos perdidos, padroeiros pobres e dos oprimidos, dos casais e das grávidas.
Trezentos e setenta anos depois, no Porto, a Senhora Ursula van der Leyen proferiu um discurso aos portuenses. Era Dia de São Norberto, que foi bispo de Magdeburgo, germânico como a Senhora Ursula e padroeiro da Boémia.
Durante o seu discurso no Porto, a Senhora Ursula foi confrontada com um grupo de jovens manifestantes que protestavam contra o alegado financiamento, feito pela Comissão Europeia, do “genocídio em Gaza”. Recordemos que a Senhora Ursula é presidente da Comissão Europeia, pelo que aquele protesto, concorde-se ou não com o motivo e com a forma, não parece ser totalmente deslocado. Os jovens foram, obviamente, detidos pela polícia, assim se provando a lendária hospitalidade portuguesa.
Claro que a Senhora Ursula não deixou o protesto passar incólume. E de pronto, dirigindo-se aos jovens que nesse momento estavam a ser arrastados pela Polícia, afirmou, num tom onde alguma pedagogia se mesclava com algum desdém, que, afinal, aqueles jovens tinham muita sorte, pois se estivessem na Rússia acabariam na prisão em dois minutos. E, sob os aplausos gerais das pessoas presentes no comício, bem como sob o perfume geral de incenso que a rodeava, a Senhora Ursula passou a sua mensagem contra a Rússia e contra os manifestantes.
Há 370 anos, o padre Vieira disse em São Luís do Maranhão:
«O efeito do sal é impedir a corrupção, mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, outra corrupção?»
Há dois dias, a Senhora Ursula disse no Porto:
«Se vocês estivessem em Moscovo, estavam na prisão em dois minutos»
Duas mensagens fortes, dois estilos. Qual delas permanecerá para a posteridade? É ousado fazer previsões.
Todavia, ainda no contexto de uma -quiçá abusiva- comparação entre os dois discursos, persiste uma dúvida. O padre António Vieira fez o sermão num momento em que o Brasil-colónia se debatia com o problema da escravidão dos povos indígenas e os litígios daí decorrentes entre os colonos e alguns missionários.
A Senhora Ursula fez o seu sermão sobre a Rússia aos portuenses, a propósito de quê? Por outras palavras, o que tem a Rússia a ver com aqueles jovens que protestavam contra a política da Comissão Europeia em relação à Palestina? Que se saiba, a Palestina não é a Rússia, são coisas e causas diferentes, pelo que o sermão da Senhora Ursula aos portuenses me parece tão a deslocado (ao contrário da manifestação) como se o padre António Vieira, no sermão em São Luís do Maranhão, reclamasse contra a expulsão dos parlamentares ingleses adversários por parte de Oliver Cromwell, ocorrida no mesmo ano.
Talvez eu esteja a exagerar. Afinal, entre São Luís do Maranhão e Londres são 7.306 quilómetros, entre o Porto e Moscovo é cerca de metade. Por outro lado, a dita expulsão levada a cabo por Cromwell dos parlamentares desafetos, só ocorreu meses depois do sermão de Vieira, pelo que o bom padre nunca o poderia citar. Eis porque acho que, se calhar, estou mesmo a exagerar.
Mas a minha dúvida persiste.
Porquê referir tão enfaticamente a Rússia contra jovens que se manifestavam em relação à Palestina? Dizer que a questão da Rússia é uma das mais marcantes questões atuais, não me convence. Há outras questões atuais tão marcantes como essa. Imagine-se como nos soaria deslocado se a Senhora Ursula se virasse para os manifestantes e exclamasse:
«Se vocês estivessem na Amazónia, estariam a arder em dois minutos»
Ou:
«Se vocês estivessem num icebergue do Pólo Norte estariam a derreter em dois minutos»
Pois, de facto parece-me deslocado. Mas isso sou eu, pronto…
Talvez haja outras explicações.
Será que a Senhora Ursula, como muitos dos seus conterrâneos norte-europeus, persiste na ideia de que os povos do sul da Europa (os PIGS, como solidariamente lhes chamam) precisam de pedagogia político-financeira como de pão para a boca? É possível. Afinal, a tradição já vem de longe. Há uns aninhos, o Senhor ministro holandês Dijsselbloem afirmou que os povos do Sul gastam tudo em copos e mulheres. Note-se que não estou a criticar o Senhor ministro Dijsselbloem. Afinal, basta olhar para ele para perceber que aquilo é homem que nunca gastaria um euro numa coisa ou noutra.
Apenas trago à colação esta frase do Senhor holandês (agora neerlandês) para que se compreenda essa recorrente preocupação norte-europeia em instruir-nos, o que até será louvável. Por isso, aqueles jovens que, no Porto, protestavam contra o que se passa em Gaza, precisavam de ouvir a Senhora Ursula, alemã, a educar-nos com o exemplo da Rússia.
Se se pensar bem, até que o sermão da Senhora Ursula terá sido bem escolhido. A Rússia é tema presente, omnipresente, aliás, e está mesmo ali à mão de semear. Se a Senhora Ursula fosse buscar outras comparações históricas, talvez os jovens manifestantes não percebessem a alegoria e a atualidade. Imaginem que a germânica Senhora Ursula lhes bramava:
«Se vocês estivessem no meu país no tempo em que os alemães seguiam cegamente Hitler, estariam num campo de concentração em dois minutos».
Pois… Talvez os jovens não percebessem. Afinal, os portugueses são incultos, desorganizados, improdutivos e gastam tudo em copos e mulheres. Não somos organizados e poupados como a nação do Senhor Dijsselbloem, que, solidária, foi a nação estrangeira que mais voluntários deu às SS no tempo em que os alemães seguiam cegamente o senhor Hitler.
Bem, talvez eu esteja a ver mal as coisas. Não seria a primeira vez, não será a última. E talvez esteja a fazer uma comparação tola entre o discurso da Senhora Ursula aos portuenses e o sermão do padre António Vieira aos maranhenses. E daí, talvez não. A presidência da Comissão Europeia tem alguma tradição piscícola. Afinal, o antecessor da Senhora Ursula não era também conhecido pelo cognome de “o cherne”? Mas, lá está, se calhar estou de novo a exagerar…
Sérgio Luís de Carvalho é escritor e historiador
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
No último texto que escrevi aqui no PÁGINA UM, usei o Luís Ribeiro (jornalista que escreve na Visão) como exemplo de uma tribo que defende a narrativa das “Bombas pela Paz”. Ou seja, que gritam pela continuação da Guerra na Ucrânia a todo o custo, com os argumentos já conhecidos do invasor imperialista e da moralidade sobre a justiça na discussão da integridade territorial. É bom de notar que, por norma, as mesmas pessoas que defendem isto já acham exactamente o contrário no conflito de Gaza onde, como se sabe, não há invasor e apenas um “direito de defesa”.
Ao que parece, o meu texto chegou ao amigo Luís que, em consequência, me dedicou um mimo no X (ex-Twitter), e de boleia zurziu ainda no PÁGINA UM e no seu director. Como expliquei, nesse texto, raramente passo por aquela plataforma e tudo aquilo me parece uma constante descarga de bílis. No Twitter, agora X, parece que espalhar ódio e embirrar de manhã à noite é uma modalidade desportiva com direito a Olimpíadas. Contudo, fizeram-me o favor de enviar as palavras do revolucionário (com sangue alheio, claro) Luís, e lá fui eu ver o que se passava.
Chalupa
Primeiro, o Luís diz que não me conhece, e eu devo confirmar e avisar ser isso normal num planeta com já mais de oito mil milhões de pessoas. Não conhecemos a maior parte daqueles que respiram no nosso quilómetro quadrado. E, no meu caso, o não conhecer significa que nem sequer sabia o que ele fazia até um amigo, poucas semanas antes, me ter dito: “tu já viste as coisas que este gajo escreve?”. Aí passei a conhecer o Luís, pela sua prosa twitteira, pelo menos até ao limite da minha paciência, ou seja, dois ou três “scroll down“.
Na sua elaborada prosa na rede do Musk, o Luís passa os dias a insultar tudo o que mexe, bastando que não pensem como ele. Não importa o tema – isso é secundário. Também faz parte daquele clube que adjectiva de “chalupa” qualquer pessoa que não vote no Centrão, no CDS ou na IL. Obviamente, ainda mais por isso, fui contemplado com esse magnífico adjectivo que, se a memória não me atraiçoa, surgiu durante a pandemia. Nessa altura, pessoas que não sabiam nada de Saúde Pública chamavam chalupas a outras pessoas que também não sabiam nada de Saúde Pública. E chamavam também “chalupas” a quem sabia de Saúde Pública, desde que não pensassem como eles. Foram tempos bonitos.
De facto, durante esses anos, eu, que percebo nada de Saúde Pública, segui as recomendações do Epidemologista-Chefe que coordenava a Saúde Pública do país onde eu vivia, a Suécia. Portanto, mantive o distanciamento, não usei máscara, não fiz qualquer confinamento e vacinei-me. Foram essas as recomendações das instituições médicas do país e, portanto, foram essas que segui.
Portanto, há que perceber isto, Luís: no país onde eu vivia durante a pandemia, havia um especialista de créditos firmados a coordenar a coisa. Não eram vendedores da Pfizer que andavam a recomendar mais doses, e muito menos professores de Geologia a fazer estudos que anunciavam o fim do Mundo e a necessidade de máscaras e confinamentos. Não sei se isto entra na tua definição clássica de “chalupa”, mas, adiante, que ainda temos alguma lenha para serrar.
Convenhamos assim que chamar alguém de “chalupa” como único argumento, e acrescentar zero sobre o assunto em discussão é ligeiramente pobre. Se me permites, é até uma entrada no “reino da chalupice” que, na verdade, parece ser o teu ganha-pão diário. Parece-me até um pouco conversa de “chegano”, que cancela todo e qualquer debate alinhando de imediato no insulto.
Mas eu não quero ir tão longe. Vamos ao teu modus operandi apenas de “chalupice ribeirinha”. Para já. Ou por agora.
Avancemos. Quando em 2022 a Guerra da Ucrânia entrou na segunda parte – leia-se, invasão russa –, eu fiz o que costumo fazer em momentos novos e inesperados: ouço quem parece entender do assunto.
Assim, passei mais de um ano a ouvir falar em game changers, em armas que tudo iriam mudar o curso do conflito, em russos que iam para a frente de batalha descalços, que roubavam máquinas de lavar e caíam que nem tordos. A cada semana, mais uma épica vitória dos ucranianos, mas, curiosamente, os russos consolidavam posições e a não mais largaram o território.
Ao mesmo tempo, nós, os europeus, fomos empobrecendo, rebentando com a inflação e pagando taxas de juros exorbitantes. A solidariedade é muito bonita quando o banco não nos leva a casa em nome de uma guerra que não escolhemos e, honestamente, não nos diz sequer respeito.
Comentários do jornalista da Visão, Luís Ribeiro, sobre o jornal PÁGINA UM, publicados na rede social X na sequência do seu tweet sobre o artigo de opinião de Tiago Franco.
Passaram mais de dois anos, e já poucos, muito poucos, repetem a conversa dos game changers ou do “exército com pés de barro”. Aqueles que o fazem são, se me permites, os idiotas úteis.
Chegamos ao dia de hoje onde é mais ou menos do senso comum que a Ucrânia não tem a mínima hipótese de ganhar esta guerra, por mais dinheiro ou armas que lá se despejem. Assim sendo, de que lado está a chalupice? Em quem defende que tudo continue como está, ou em quem insiste na diplomacia? Já fiz esta pergunta N vezes e nunca vi uma resposta. Tento agora contigo, Luís, até porque sei que vais ler isto porque, sei, segues secretamente o PÁGINA UM.
Mas diz lá se, no íntimo, pensas mesmo que há hipótese de a Ucrânia ganhar a guerra se continuarmos a enviar armas, dinheiro e casas para os bancos.
Se sim, então não tenho mais pergunta alguma, e percebo melhor as coisas que escreves. Fica o encontro marcado para essa Nárnia onde me pagarás um copo.
Se não, então qual é o passo seguinte para quem defende o envio de mais armas? Continuar até que os russos larguem o território com a NATO a entrar no conflito? Alinhas numa III Guerra Mundial? É essa a questão.
Por fim, uma nota sobre deselegância que não mete casas de strip (mas dou-te nota 10 por esse raciocínio, que foi apenas teu, mas que tentaste chutar para mim).
O PÁGINA UM não é um blogue, como tu bem sabes. É um órgão de comunicação oficial – modesto, é um facto, porque subsiste e cresce enquanto os leitores assim o entenderem, sem acumular dívidas. Não terá o peso e reconhecimento da revista Visão – e esta dou-te de borla. Mas o reconhecimento da Visão vem de tempos já longínquos, naquela época em que eu, fiel seguidor, a comprava regularmente, quando vivia em Portugal. Mas eram também tempos em que a proprietária da Visão não tinha problemas com dívidas ao Estado, sob o beneplácito dos Governos.
Não há mundos perfeitos, camarada. Foi exactamente por isso que, no meu texto anterior, o título era “o Ribeiro da Visão”. Primeiro, para não se confundir com o outro, que tem piada – o da Rádio Comercial –; e, depois, para ter um ponto de referência (a Visão), pois imaginei, talvez erradamente, que, tal como eu, a maior parte dos leitores não soubessem quem eras. E tal como tu não saberes quem eu sou, isso não tem nada de mal. É apenas a consequência de um mundo cheio de gente. Não há tempo para nos conhecermos a todos, mesmo se cortares os chineses. Fica difícil e é uma pena.
Por fim, tirando-se do X, estou até convencido de que, quando não estás a escrever atrocidades e insultos no Twitter, deves ser um encanto. Assim, se me vires um destes dias na roulotte do Estádio da Luz (aquela ao lado do túnel), promete que me contas como é que se ganha esta guerra pela escalada militar. E prometo que podes desenvolver as teorias mais alucinantes sem eu te chamar chalupa. E como é óbvio, a imperial fica por minha conta, até porque, pelo que vou lendo nas notícias, os descontos para a Segurança Social não estão em dia aí na casa.
Um abraço.
P.S. – Aos leitores do PÁGINA UM, deixo aqui o compromisso de honra em voltar a temas importantes no próximo texto.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
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A decência, mais do que a inteligência, é a maior qualidade do ser humano. Na verdade, É esta, porventura, a qualidade que nos torna humanos, para além dos genes.
Acredito não haver estudos sobre esta matéria, até por o conceito de decência se equivale à dificuldade de Santo Agostinho definir tempo, mas todos nós sabemos identificar a indecência.
Por exemplo, a indecência dos políticos e de muita comunicação social, e ainda de muitas organizações (‘sequestradas’) de base científica e de peritos, que manipularam uma crise sanitária – e, muito provavelmente, até a sua origem –, de sorte a criarem uma onda de pânico e de emoção que, por sua vez, incrementaram uma crise assistencial e socioeconómica, que também causaram muitas mortes.
A indecência de políticos, jornalistas, organismos internacionais e até muitos peritos que impuseram, sem qualquer base científica, um conjunto de regras e medidas, amiúde inconstitucionais, e a mais das vezes ineficazes, apenas pelo simples ‘prazer’ de ostentar poder e mostrarem uma hipócrita preocupação por terceiros.
A indecência de ocultarem e manipularem informação, de modo a criarem a ideia de que um conjunto de fármacos (antivirais e vacinas), sem suficiente tempo de testagem, era a única ‘salvação’, e a eficaz e segurança dogmaticamente inquestionáveis.
A indecência de perseguirem quem, porventura, mesmo com argumentos válidos, questionasse as medidas populistas e de atrozes efeitos nefastos (e.g., adiamentos de diagnósticos e de cirurgias programadas, e necessárias) e os fármacos que constituíram um filão inimaginável a certas farmacêuticas.
A indecência de, onanisticamente, se elogiarem mutuamente, se premiarem até com prémios de ética e bioética, se alcandorarem a cargos políticos e afins, aproveitando-se da manipulação.
A indecência de, durante anos, bloquear um debate científico, aberto à discussão, sem tabus nem limites que não seja a vitória da verdade, que deve estar sempre disponível a ser continuamente colocada à prova.
A indecência de negar, nem que fosse por mera hipótese académica, talvez as vacinas não sejam assim tão seguras nem tão eficazes; que a imunidade natural confere uma melhor protecção contra a doença, e que foi um erro colossal vacinar jovens saudáveis.
A indecência de colocar em cima da mesa, como única e dogmática hipótese, as quiméricas sequelas da covid-19 como causa do excesso de mortalidade, excluindo as vacinas.
Jardim em Estocolmo, em Agosto de 2020.
Por tudo isto, a notícia que hoje o PÁGINA UM publicou, dando eco a um artigo cientifico sobre o excesso de mortalidade do triénio 2020-2022 estar associado também às vacinas contra a covid-19, é um sinal de esperança na decência humana – e na decência dos cientistas, que devem mostrar-se humanos não apenas pela sua inteligência e rigor mas também através da decência.
No fim do artigo, depois de apresentarem os as análises e discussão, os quatro holandeses – Saskia Mostert, Marcel Hoogland, Minke Huibers e Gertjan Kaspers – lançam um apelo às consciências: “A mortalidade excessiva permaneceu alta no Mundo Ocidental durante três anos consecutivos, apesar da implementação de medidas de contenção da covid-19 e das vacinas contra a covid-19. Isto não tem precedentes e levanta sérias preocupações. Durante a pandemia, foi enfatizado diariamente por políticos e pelos media que cada morte por covid-19 importava e que cada vida merecia proteção através das medidas de contenção e das vacinas contra a covid-19. No rescaldo da pandemia, a mesma moral deve ser aplicada. Cada morte precisa ser reconhecida e contabilizada, independentemente da sua origem. A transparência em relação aos possíveis factores letais é necessária. Os dados específicos sobre a mortalidade por causa precisam ser disponibilizados para permitir análises mais detalhadas, directas e robustas para determinar os contribuintes subjacentes. E exames post-mortem precisam ser facilitados para determinar a causa exacta da morte. Os líderes governamentais e os formuladores de políticas públicas precisam de investigar minuciosamente as causas subjacentes da mortalidade excessiva persistente e avaliar as suas políticas perante crises sanitárias”.
Esta é, acreditem, uma peça de decência da Ciência, mas que ainda não ainda paralelo no mundo dos media, que continuam em negação sobre o que se fez durante a pandemia – com a ajuda de jornalistas e direcções dos media. A decência ainda vai demorar a chegar ao Jornalismo, tanto assim que, de entre a imprensa internacional, até agora o único jornal de relevância a noticiar este artigo científico foi o The Telegraph, esta tarde.
Que seja. Por mais críticas que façam ao PÁGINA UM, e a mim, continuarei o caminho em prol da decência: por isso mesmo, temos lutado nos tribunais administrativos, para serem satisfeitos os pedidos de acesso às bases de dados sobre mortalidade (SICO), sobre os internamentos hospitalares (Grupos de Diagnóstico Homogéneos), sobre as mortes em lares durante a pandemia, sobre os contágios em hospitais, sobre as reacções adversas das vacinas e sobre os contratos de compra. Muitos destas casos correm nos tribunais há mais de ano e meio, o que só se justifica pela indecência reinante.
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Aquilo que devemos ter em conta sobre viagens no tempo é se, de verdade, as queremos fazer.
Nadar contra a corrente, para além de esforço considerável, requer a capacidade de engolir golfadas de pirolitos. Os ribeiros trepam fragas e não sobram margens para abrir os braços, de verdade, pagas o preço dessa viagem?
Ah, e depois, podes sempre decompôr, se é mera viagem (ida e volta) ou se é regresso (retorno). Numa viagem, a tentação da nostalgia é tão imensa que quase admitimos o risco.
– Deixa-me só ir lá ver, de novo.
Num regresso há, pois então, perda. Perdemos a pescaria, fogem-nos as redes das mãos, a rebentação engole-nos e abafa-nos, choca o corpo contra pedras polidas.
Nunca arriscaria tal. Isso é para garotos e românticas que se atiram do barco em plena rebentação.
– Simão! Simão!
Viagens no tempo fazem-se com facilidade, fazem-se com música e água, sem precisarmos de regressar, para ir (e vir) só lá ver (de novo).
Somos todos antenas. Seja em que ponto do ribeiro (tempo) for. Estamos todos a ampliar o sinal uns dos outros, lembramo-nos mutuamente de pedras nos caminhos e saltamos riachos que alimentam lameiros (a lama) que alimentam aquele rebanho (a lã) que nos alimenta a nós, aos nossos filhos, enquanto o sangue se inflama com coisas vãs (a lama) e o lodo entra nos sapatos se nos falha um pé.
Todos nós antenas, que lá continuam pelo tempo corrido, corninhos no ar, flutuando ao de leve com as brisas e ventanias da sociedade do espectáculo, entre actores que memorizam bem as suas deixas – até com precisão matemática –, pontos, encenadores nas sombras, e os críticos – ah! Os críticos. Essa massa soberba – cheia de ar no recheio, fermento lento e pão que seca num dia até parecer cavaca amarga. Ranho que pinga do nariz (são as alergias, as alergias!), mas têm eles sempre uma opinião, homessa! Sempre um refrão na ponta da língua, para cantar em verso e fingir que não seguem a partitura. Os instrumentistas todos a levar com chimbalaus e a plateia só ais e uis, que espanto, que emoção! Ora são os turcos, os argelinos, os brasileiros, os portugueses de bem e os portugueses de mal, os aventais e os bordados! Ai! Ui! Pim! Pam! (Pum!)
Nada de novo. Qualquer viagem no tempo nos ensina isso. Mas precisamos de tempo para a fazer, pode parecer diferente, mas na verdade não há atalhos para ida e volta. Podemos ter ido até onde o primeiro Deus habita, a distância percorrida continua a mesma.
E mesmo que agora baixem todos os lancis, pintem os passeios de vermelho, para em seguida desovar mecos de ferro a cada cem centímetros (cem). Pim! Pam! (Pum!) Tomem lá estas acessibilidades mágicas, que a vida não foi feita para trepar ribeiros sem tropeçar nas fragas, dependendo da distância das rodas a um potencial volante tereis ou não privilégio de circular pelas ruas ocupadas pelas forças opressoras.
Entre rios, ribeiros e riachos, anda a água acima e abaixo, a alimentar mares e oceanos e, com música bastante, quantas viagens no tempo podemos fazer até ficarmos loucos?
– Sabes que, para os meus filhos, eu sou como a chuva e peço desculpa, e isso é razão bastante para que me gostem.
O primeiro Deus, ouvindo-me, soltou sonora gargalhada, sobressaltando-me. E, imediatamente, se enrolou como um bicho-de-conta.
Mariana Santos Martins é arquitecta
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
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Em Janeiro do ano passado, em final de mandato na Ordem dos Médicos, e preparando já caminho para voos políticos – é agora vice-presidente da bancada parlamentar do Partido Social Democrata (PSD) e uma escolha de Luís Montenegro nas eleições legislativas para o distrito do Porto –, Miguel Guimarães concedeu uma entrevista ao Diário de Notícias. E destacava que “o caso do bebé sem rosto foi o mais difícil dos seus mandatos”. Garantiu: “Senti-me pequenino no mundo”.
O mesmíssimo homem que se sentiu “pequenino no mundo” pelo mediático caso de uma dramática e lastimável negligência de outro médico (e não dele) – e que resultou no nascimento de uma criança com elevadas deficiências (ainda viva), em vez de se fazer uma interrupção de gravidez (a ‘terapêutica’ para estes casos) –, não teve pejo de lançar a sua bênção institucional, como bastonário da Ordem dos Médicos, para que centenas de milhar de jovens portugueses recebessem um fármaco cujo benefício era virtualmente nulo para a larguíssima esmagadora maioria, e grande ainda era (e é) a incerteza sobre os efeitos adversos, incluindo mortes, a curto, médio e longo prazos.
Miguel Guimarães foi bastonário da Ordem dos Médicos entre 2017 e Março de 2023.
E não fez isto de forma inconsciente nem negligente. Em Julho de 2021, como ontem o PÁGINA UM revelou (e depois de ser necessário recorrer ao Tribunal Administrativo para obrigar o agora bastonário Carlos Cortes a ceder), Miguel Guimarães escondeu activamente dos seus colegas do Conselho Nacional e da opinião pública um parecer aprovado pelos 11 membros do Colégio da Especialidade de Pediatria da própria Ordem dos Médicos – um órgão independente –, assinado pelo seu presidente, Jorge Amil Dias, que não recomendava a vacinação contra a covid-19 para adolescentes saudáveis entre os 12 e os 15 anos. Meses mais tarde, Miguel Guimarães agiu de novo dolosamente no sentido de esconder um alerta para a ser prudente quanto à vacinação contra a covid-19 de crianças entre os 5 e os 11 anos.
Não satisfeito, Miguel Guimarães ‘montou’ nos meses seguintes, activamente, com os seus apaniguados – onde se destaca o inefável Filipe Froes, um marketeer de bata branca –, uma das mais vergonhosas e nauseantes campanhas de difamação contra Jorge Amil Dias, ‘patrocinando’ um processo disciplinar sem pés nem cabeça, por delito de opinião (ainda mais científica e médica), com a conivência de uma imprensa acéfala. Nesta fase, Miguel Guimarães sempre se mostrou mais favorável em agradar, por exemplo, ao comentador Marques Mendes do que em salvaguardar a saúde de crianças.
Miguel Guimarães poderia ser apenas um tonto e inábil para a função que exerceu durante o período da pandemia, ou a ‘ressurreição’ de Tomás de Torquemada, se a Ordem dos Médicos fosse apenas uma associação profissional – chateava e perseguia os seus, e eles que se entendessem como agremiação. Mas não. A Ordem dos Médicos é mais do que isso; é sobretudo um bastião da defesa das práticas e princípios de uma classe profissional, não apenas terapêuticos e éticos, que se baseiam na confiança – e, legalmente, é um dos pilares da Saúde Pública, o que lhe dá direitos, mas também responsabilidades. E sobretudo deveres sobre cada um de nós.
Pintura de Anne-Louis Girodet-Trioson (1767-1824) representando Hipócrates negando presentes do imperador persa Artaxerxes II.
Por isso, quando Miguel Guimarães decidiu intencionalmente ‘engavetar”, sem sequer levar à discussão no seio da Ordem dos Médicos, um parecer da cúpula da Pediatria portuguesa – e depois encetar uma perseguição ao autor desse parecer –, não cometeu um acto a ser dirimido eventualmente numa assembleia geral dos seus ‘confrades’. Violou sim, vergonhosamente, vários dos princípios da Medicina, que fariam estremecer Hipócrates, a saber:
Primum non nocere: primeiro, não prejudicar – um princípio que recomendaria não administrar um fármaco supostamente preventivo, cujos efeitos secundários ainda não estão consolidados, a um vasto grupo de pessoas (jovens) sobre a qual a doença em causa era genericamente benigna.
Beneficum: existência de um benefício evidente da terapêutica – um princípio que recomendaria que apenas se deve administrar uma terapêutica a alguém se os seus efeitos benéficos suplantarem, para o indivíduo que a toma, os eventuais efeitos adversos, não sendo sequer aceitável que seja prejudicado mesmo se outros pudessem beneficiar desse “sacrifício”.
Fidelitas: fidelidade – um princípio que se refere à lealdade e compromisso de um médico para com os seus pacientes, no sentido de lhe conceder todas a informação para um consentimento informado, o que foi impedido, no caso em concreto, com a ocultação do parecer do Colégio de Pediatria.
Veritas: verdade – um princípio básico em sociedade, mas ainda de maior valia na Medicina, porquanto qualquer ocultação intencional de informação, ainda mais saída do Colégio de Pediatria, é um ultraje à verdade, se outros mais graves actos não tivessem sido cometidos.
Respectus: respeito – um princípio que, em primeira análise, e neste caso, deveria impedir que se olhasse, no processo de vacinação de menores, para cada um dos adolescentes e para cada uma das crianças como simples membros indistintos de um ‘rebanho’, porquanto uma das fundamentais diferenças entre tratamentos veterinários e tratamentos médicos é que, nos segundos, o tratamento é individualizado e o objectivo é o indivíduo em si.
Bem sei que a História é escrita pelos vencedores. E, por agora, Miguel Guimarães – como outros, com Gouveia e Melo à cabeça – é um dos ‘vitoriosos da pandemia’, não apenas pelos lugares que agora ocupam como pela impunidade de que beneficiam. Aliás, veja-se o caso de Miguel Guimarães – e também de Ana Paula Martins, a actual ministra da Saúde – que se fizeram de ‘bons samaritanos’ gerindo numa conta pessoal mais de 1,4 milhões de euros numa suposta campanha solidária, mas financiada quase na sua totalidade pela indústria farmacêutica, sem pagar impostos, promovendo facturas e declarações falsas, sem que nada tenha sucedido. Veja-se também o caso da vacinação de médicos não-prioritários, em articulação com Gouveia e Melo, violando as normas da Direcção-Geral da Saúde (DGS), mas que uma inspecção intencionalmente pífia da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) considerou estar legal sem sequer analisar a lista dos inoculados e sem se preocupar com o facto de um político ter beneficiado de uma dose ‘dada’ por Miguel Guimarães.
Mas, apesar desta ‘vitória’ fruto de uma ‘verdade’ imposta pelo poder, e não pela realidade, os factos são factos. E os factos são evidentes: Miguel Guimarães – que se sentiu “pequenino” por um lamentável caso de negligência médica, que implicaria, se não tivesse existido, a ocorrência de uma interrupção de gravidez (porque seria impossível tratamento intra-uterino) – é um hipócrita, porque tratou centenas de milhar de crianças e adolescentes saudáveis como gado, contribuindo para um clima de pânico junto dos pais, que não haveria se o parecer do Colégio de Pediatria tivesse sido conhecido.
Com isto, negou e violou os princípios do Juramento de Hipócrates, mais graves ainda por estar em funções de bastonário, obstaculizando o acesso a informação vital para um consentimento informado, tornando-se assim um hipócrita anti-Hipócrates.
Miguel Guimarães, por tudo o que fez – começando pela ocultação do parecer do Colégio de Pediatria em 2021 e consequente perseguição ao pediatra Amil Dias –, só não é, para além de hipócrita anti-Hipócrates, um criminoso, porque estamos em Portugal, onde o Ministério Público não defende o bem público, entrando em jogos de conveniência e de política, e avalizando, com a sua inércia, práticas previstas e punidas pelo Código Penal.
Só por esse motivo, e por recomendação de advogados, este texto de opinião não se intitula “Miguel Guimarães, um criminoso hipócrita anti-Hipócrates”. Não faz mal, substituir criminoso por infame até me parece mais apropriado para a persona em causa. E assim atinge também, justamente, muitos médicos que aceitaram, sem protestar nem sequer pestanejar, ser representados por esta infame figura que se destacou negativamente num dos períodos mais negros e sombrios da Medicina e da Ética em Portugal.
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A realidade transformada é agora a percepção da normalidade. A ideia que transmitimos do que é comum e genericamente desejado está pervertida no politicamente correto.
Hoje vivemos um tempo de várias bizarrias. Um exemplo da forma leve e acrítica como recebemos notícias chegadas dos meios de informação é o fenómeno Castelo Branco. Ou a bizarria em que se converteu a Eurovisão. Ou os julgamentos sumários de pessoas exóticas que servem propósitos mediáticos e depois se destroem sem pudor. Para cantar não se carece de uma extravagância. Para dizer uma letra eloquente não se precisa uma bandeira. Mas acha, quem organiza, que a maioria dos ouvintes prefere a bizarria? Só por dizermos isto incomodamos muita gente!
A forma quase obrigatória em que os programas da tarde são anunciados por homossexuais é outra face única da realidade. Nada me ofende em Manuel Luís Goucha, excepcional apresentador. Nada me afasta do Malato ou do Cláudio Ramos. Já me parece desproporcional a obrigatoriedade de ser gay para apresentar um programa na televisão. A realidade é uma face de um mundo em que cinco outras faces se escondem. Não há heterossexuais de qualidade? Só o facto de dizer isto, deixa muita gente incomodada!
A projeção de uma “realidade”, que só transporta uma verdade, é um processo de aculturação perverso que esconde muitas faces da composição da realidade. Deste modo, conduzimos o mundo para um silêncio balizado por discursos corretos, verdades convenientes, políticas de insulto ofuscante. A realidade pode estar desenhada sem perceber que a maioria silenciosa está cansada das montras obrigatórias.
O bizarro facto de haver dezenas de comentadores do “centrão político”, do globalismo feroz, dos fascinados por certificações, dos sucumbidos da tecnociência, tenta apagar o homem religioso, a componente mágica da mente, a importância do desconhecido, as consequências da utilização de aditivos, medicações, vigilância informática. Qualquer dúvida sobre os temas fortes do globalismo, tornou-se um alvo dos canhões dos crentes na emergência climática, dos defensores das energias ditas sustentáveis, na aposta nos carros elétricos. Os outros são negacionistas e terraplanistas. Logo depois, são fascistas e toda a lista de ‘istas’ que fervem na boca de ‘Catrina Martins’. A total indiferença que o candidato do Chega ofereceu a Catarina Martins foi tonitruante. A verborreia insultuosa com que esta retorquiu reduz a protagonista.
A realidade deve ser um cubo, e está vertida numa exposição de uma face, apresentando-se como um quadrado simples, que esconde as cinco faces restantes. A melhor visão da realidade é supormos um cubo inclinado na perspetiva de observarmos três faces, ou se quiserem três verdades. Um ser humano é social, mental, biológico, circunstancial, genético e celular. Nunca estes capítulos são observáveis em simultâneo.
Nunca o conhecimento do outro integra a totalidade das verdades do cubo. Por outro lado, cada face é um título cheio de capítulos. A mente é emoção, razão, memória, comportamento, atitude, relação. A circunstância é ambiente, tempo, política. A genética é isso mesmo com suas consequências boas e más. A célula é o homem só, o ser na completa solidão, as características da pessoa sem observação.
Serve este texto para explicar como a ferocidade ideológica se está a impor no Mundo. Aqueles que não concordam com algumas evoluções encontram um radicalismo bizarro que só se pode combater com uma bizarria igual. Os actores são cada dia mais bufões, mas carregam com eles os silêncios das cinco faces que não se quer mostrar. São bufões, como os cantores da eurovisão que vestem a música que não cantam. Imaginem que se candidatam à europa trajados assim…
Diogo Cabrita é médico
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Numa homenagem ao Professor Santana Castilho, ontem falecido, o PÁGINA UM publica um texto fundamental de cidadania, da sua autoria, lido num debate em 21 de Janeiro de 2021 sobre os efeitos sociais da pandemia. Foi escrito em pleno período de atropelos constitucionais, de promoção do medo e de perseguição a quem considerava que a gestão de uma crise sanitária não poderia ser feita (muito pelo contrário) com imposição de regras irracionais e mesmo erradas. A leitura deste texto, três anos depois, não é apenas um acto de respeito ao pensamento livre e independente de Santana Castilho, sobretudo na área que amava (a Educação); é algo que deve ser feito como uma reflexão para o presente e o futuro – é isso que nos ajuda a não permitir que se cometam os erros passados.
O PÁGINA UM agradece à Cidadania XXI, e particularmente a António Jorge Nogueira, organizador das Tertúlias da Junqueira, onde este debate (e muitos outros) se realizou – que contou também com a participação de Raquel Varela e Jorge Torgal – a amabilidade pela cedência do texto integral de Santana Castilho.
Decidi destacar a negrito as partes fundamentais, de leitura obrigatória, deste texto de Santana Castilho. Pequei por defeito; deveria ter destacado tudo!
Pedro Almeida Vieira
Desde que o Governo determinou a situação de alerta, o pânico foi alastrando e contagiando boa parte dos portugueses. Nesta onda de mata e esfola, cresceu o apoio a medidas mais drásticas e já vamos no nono estado de emergência. Porém, à democracia do medo (que tanto nos pode confrontar com o melhor como com o pior dos comportamentos cívicos), incentivada agora por muitos dos que foram imolando o SNS [Serviço Nacional de Saúde] no altar da austeridade, preferia a democracia da serenidade fundamentada e bem comunicada.
Cruzam-se decisões pouco fundamentadas com análises em cascata, criteriosas umas, simplesmente especulativas ou descuidadas outras, tudo contribuindo para a banalização do medo e escancarando portas a iniciativas, eventual e desnecessariamente atentatórias de responsabilidades partilhadas e de direitos e liberdades. Para dominar o contágio não chega a higiene sanitária. Precisamos, também, de higiene social, para simplesmente não enclausurarmos toda a vida.
Com o medo de ficarmos contaminados ou a angústia de vermos adoecer familiares e amigos, esquecemos rápido o vírus da xenofobia desumana que se abateu sobre milhares de refugiados, que continuam a fugir da guerra e da fome, sem pão nem amor, vindos não importa donde. É em momentos como este que a solidariedade incondicional deve ser reiterada.
Muitas doenças, evitáveis ou pelo menos substancialmente retardáveis por alteração de comportamentos ou estilos de vida, entram naquilo que aceitamos (erradamente) como determinismos do nosso existir. As mortes que provocam (porque dispersas no nosso desconhecimento da sua existência), numericamente bem mais significativas do que as que esta pandemia vai causar, não nos afligem como este confronto inesperado com a nossa fragilidade, para mais sujeito a uma mediatização, que tanto informa validamente, como agita o medo desnecessariamente.
Na longa vida que já levo, não guardo memória de uma hecatombe assim. Nunca vi uma travagem da Economia tão generalizada e um pânico social tão ampliado. Por isso, aflige-me não sabermos quando acabará a prisão preventiva da sociedade inteira. Embora a atmosfera actual esteja dominada por uma certa ideologia comportamental, seja opressiva e reaja mal a opiniões sem máscara, afirmo que não teria parado a economia deste modo, muito menos teria alimentado o medo desta maneira.
A opinião pública está hoje fortemente condicionada para aceitar um só ângulo de observação da pandemia. O receio deu lugar ao medo e o medo abriu a porta ao pânico, desproporcionado face a outras patologias e a outros males que assolam o mundo. As bolas de cristal foram substituídas por modelos matemáticos, que protagonizaram cenários em que, a breve trecho, teríamos mais infectados que população existente.
O dilúvio noticioso sobre a covid-19 superou largamente a alienação de outras ondas mediáticas (futebol, incêndios, calamidades climáticas). Os noticiários são massacrantes e repetem ad nauseam quadros de desgraça. Perplexo, pergunto-me como é possível que equipas de reportagem, atropelando a privacidade e a dignidade mínima dos prostrados nos cuidados intensivos, filmem o que o decoro e a protecção de dados interdita.
Dia após dia, os mais populares pivots das nossas televisões descodificam gráficos mágicos, com as antevisões dos penúltimos dias da humanidade. No fim dos noticiários asfixiantes, paramentam-se de sacerdotes da esperança e catequizam-nos com uma longa e poética homilia de boas condutas.
Aos velhos foram aplicadas duas penas: aos que vivem em lares, a crueldade da solidão imposta; aos que lá não estão, a discriminação, como cidadãos de segunda. Não é aceitável que o Estado, que legalizou a eutanásia, decida retirar aos velhos o direito de continuarem a ver os filhos e os netos, se entenderem correr o risco.
Considero isto uma infantilização dos velhos, uma interrupção da democracia, um paternalismo que dispenso, um desrespeito pelo direito ao “convívio familiar” e à “autonomia pessoal”, que a Constituição expressamente consigna (Artº 72º).
Perante os números que documentam esta pandemia, o Mundo parece ter esquecido que morrem por ano 10 milhões com cancro. Que em 2018 morreram 200 mil crianças com tuberculose e 300 mil com malária.
Vejo com enorme preocupação que se comece a falar em certificados de vacinação, escabrosa ideia que nos ofereceria mais uma repugnante divisão social: cidadãos puros, devidamente munidos de passaporte de sanidade, e párias impuros, sem direito ao novo papel selado. O que é que isto nos recorda?
Santana Castilho lendo o seu texto na Tertúlia da Junqueira em 21 de Janeiro de 2021
Em tempo de restrições como nunca tivemos depois de Abril, a liberdade é o valor maior que me apetece invocar, num país sob uma autofágica polarização: os que querem permanecer fechados, encurralados pelo pânico, e os que, embora reconhecendo a gravidade da situação, sacodem cabrestos e discriminações que julgavam afastadas.
São livres os portugueses presos em lares miseráveis, que não percebem porque lhes desapareceram filhos e netos? Não é um défice de liberdade a falta de conhecimento para interpretar com serenidade o fenómeno que nos atormenta? São hoje livres os milhares de portugueses que ficaram ontem sem emprego? Os que já viviam na fronteira da sobrevivência e hoje desesperam, esses, são livres?
Porque não tenho senhores e penso livremente, ouso perguntar ainda: será que um estado de emergência nove vezes repetido, com tão pequeno questionamento e tão generalizada aceitação, pode ser socialmente havido como um resquício da ditadura de que Abril nos livrou? Como aceitar, sem enorme perplexidade, os delatores que a covid-19 destapou? Antes, a PIDE zelava pela ordem que o Estado Novo determinava e a censura amordaçava-nos. Hoje há quem defenda certificados de imunidade e a georreferenciação das pessoas, enquanto, sofredores, resignados, confinados, de máscara posta, adoecemos mentalmente.
Vão-me dizendo que as decisões políticas são tomadas depois de ouvir os especialistas. Mas há especialistas que não são ouvidos. Não são ouvidos os virologistas e os epidemiologistas que pensam a contrario sensu dos que são seguidos por Marcelo e Costa, muito menos são ouvidos outros especialistas, de outras áreas (psicólogos sociais e psiquiatras, por exemplo), que poderiam complementar o saber médico e epidemiológico e explicar as consequências do autêntico assédio moral que tem sido exercido sobre os mais velhos, ou a influência depressiva do massacre noticioso dos telejornais, sobre toda a população.
Uma grande parte dos portugueses, resignada, deprimida pela campanha da promoção do medo a que foi submetida, parece querer aceitar em silêncio a limitação dos seus direitos. Vive-se, assim, numa cidadania apenas simbólica, tutelada pela polícia e pela Direcção-Geral da Saúde, que têm agora o monopólio do espaço público. Sente-se, assim, a opressão de uma espécie de religião do confinamento, que nos empurra, em rebanho, para a neurose colectiva.
À salvação pelo grande confinamento e pela ditadura sanitária, opõe-se uma racionalidade ponderada para combater o vírus. Trata-se da dicotomia entre um risco de infecção e uma morte lenta, mas certa, por catástrofe económica, psíquica e social, sem precedentes.
No que toca à escola, custa-me ver que se aceite tão facilmente trocar relações pessoais por relações digitais, admitindo que a profissionalidade docente possa prescindir do contacto social e da empatia humana. Como se um colectivo de pessoas pudesse ser substituído por um colectivo de computadores, sem perda de humanidade. Tecnólogos e tecnocratas não entendem que a interacção pedagógica exige presença. Professores e alunos sabem e sentem isso. Agora, mais que nunca, interiorizaram, certamente, que uma aula tem múltiplos papéis sociais, que nenhuma máquina substitui.
O medo encerrou os parques infantis ao ar livre, castrando imbecilmente as crianças do direito de brincarem. As múltiplas proibições e obrigações, redefinidas hora-a-hora por catadupas de informações inúteis, incoerentes e contraditórias, são impostas pelas novas brigadas dos costumes sanitários, que despejam álcool-gel na inteligência dos cidadãos, enquanto o vírus comtempla o esplendor da desumanização que os humanos criaram.
A continuarmos assim, não me surpreenderá que eu ainda viva para lutar contra vacinações obrigatórias, impostas a sociedades sem vontade própria e alimentadas por sistemas de ensino meramente utilitários.
Vivemos numa sociedade desorientada entre a histeria e o desleixo, perdida no meio de um amontoado de pequenas razões incoerentes, governada por gente que pouco se importa com os danos que o medo impõe. A epifania da liberdade de Abril vai-se diluindo no seio de uma sociedade autoritária, onde, graças ao medo, os cidadãos trocam liberdade por segurança aparente e aceitam que se combata o vírus de pau na mão.
As regras opressoras, o controlo dos direitos individuais, a vigilância intrusiva e os abusos do Estado, consentidos por uma cidadania enfraquecida, vão-nos aproximando de novos autoritarismos, com aparência de democracia. Basta que atentemos em acontecimentos recentes:
– A PSP, diligente a responder à denúncia de um bufo anónimo, entrou na Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa, interrompeu uma aula e, à porta da sala escancarada para ventilação, multou um professor por, durante uma palestra de quatro horas e meia, ter retirado, por momentos, a máscara que usava.
– A distopia Orwelliana do 1984 aportou à Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa em 2020, ano da graça do SARS-CoV-2, sob forma de vigilância omnipresente: coleiras identificadoras em todos os circulantes e seguranças a controlar e delatar quem infrinja as normas sanitárias. Um sistema por pontos sociais, à chinesa, pode levar os prevaricadores à presença do Grande Irmão, desde que não usem uma máscara limpa e seca no campus universitário.
– Numa escola de Rio de Mouro, em Sintra, um aluno foi suspenso das aulas por ter partilhado o lanche com um colega que “tinha fome e não comia nada desde a manhã“.
Vejo demasiadas escolas mais preocupadas com máscaras, medidas sanitárias e regras, que com aqueles que as têm de cumprir e fazer cumprir. Com as suas perdas emocionais. Com as suas ansiedades. Com o esmagamento dos padrões de vida democrática. Com o mal-estar colectivo. Afinal, com aquilo que uma escola deve ser e ensinar, particularmente num momento de retorno de múltiplos impulsos autoritários que, a propósito da “guerra” ao vírus, abrem caminho para o êxito de agendas indesejáveis. Gradualmente, o absurdo e a anormalidade vão sendo adoptados como o “novo normal”, por uma sociedade domesticada pelo medo e pela perda do senso comum.
A hipocrisia abunda e enoja: festas com dezenas de jovens são apontadas como focos de contágio, enquanto de milhares de passageiros amontoados às horas de ponta nos meios de transporte se diz não haver indício de surtos; pune-se uma criança que partilha um sumo com colegas, mas celebra-se a singeleza do presidente da República, que divide com outra uma bola de Berlim; proíbem-se uns, inconstitucionalmente, de visitarem os seus mortos, quando outros, aos milhares e sem respeito pelas regras vigentes, se amontoaram em Portimão para ver a Fórmula 1 e foram abençoados pela engraçada Dra. Graça.
Santana Castilho (2021)
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
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Raramente entro no X (Twitter) e, quando o faço, não consigo passar por lá mais do que cinco minutos. Aquilo é um esgoto a céu aberto de baboseiras, discurso de ódio e ameaças embrulhadas no anonimato.
Mas, não sei por que mal tenha feito aos deuses do Olimpo, entrando lá, só me aparece gente como a Câncio, o Milhões, o Milhazes, o Luís Ribeiro da Visão e mais uma catrefada de gente cuja opinião não deveria importar sequer ao menino Jesus.
Ontem, como se sabe bem, foi dia de visita do Zelensky a Portugal. Uma visita de um chefe de Estado que está em guerra, que precisa de apoio financeiro militar, financeiro e moral. Uma visita de alguém que não se pode dar ao luxo de deixar o conflito entrar nas notícias de rodapé e cair no cansaço e na saturação dos parceiros europeus.
Tudo normal, tudo natural, tudo expectável. E tudo bem.
Dito isto, vamos aos factos sem mais delongas. O Luís Ribeiro da Visão é uma espécie de idiota útil e palerma clássico – dito com carinho para não ser tomado como insulto. Uma daquelas pessoas que cataloga pensamentos diferentes segundo as suas doutas verdades. Uma variante de Câncio pós-separação do Sócrates.
É um da tribo que chamava “negacionista” (e assassino, presumo) a quem achava que os confinamentos não faziam sentido – e que nem sequer era real porque maior parte dos trabalhadores continuaram na rua em Portugal. E é um dos que apelida de “putinista” todo e qualquer membro do PCP, mesmo aqueles que criticam as políticas do Kremlin há quase 20 anos, desde os tempos de Ieltsin.
Hoje, em relação à Ucrânia, todos os que pedem conversações de paz são “putinistas” para o Luís Ribeiro. Os Ribeiros desta vida, que andaram 15 anos a aplaudir discursos do Putin no parlamento alemão e a salivar enquanto ele nos vendia botijas de gás, passaram a paladinos da decência em Fevereiro de 2022. Os mesmos que em 2014 ainda estavam adormecidos e diziam que aquilo eram só escaramuças entre nazis. Coisas lá longe.
Luís Ribeiro é um jornalista especialista em ambiente que se casou com uma ucraniana e passou, por osmose, a especialista em invasões imperialistas. Que escreve atrocidades na Visão vezes sem conta e que usa o X como intestino para o café matinal.
Rejubila com os apoios financeiros de Portugal à Ucrânia, insultando uma quantidade de inimigos imaginários. E escreve algo em que nem a própria mulher deve acreditar, que estes apoios vão ajudar a expulsar os russos. Ora…a única coisa que pode expulsar os russos é o início (com botas no terreno) de uma III Guerra Mundial. O Luís vai para lá?
Pelo que sei, é mais velho do que eu apenas um ano, portanto, ainda está a tempo de alombar e mostrar toda essa inata coragem de anti-putinismo.
Por mais que tentem camuflar a realidade e chamar nomes para cancelar o discurso, até os Ribeiros desta paróquia sabem o óbvio: Putin é um ditador perigoso que, à frente de um dos maiores exércitos do Mundo, entrou numa guerra estimulada pelos Estados Unidos e patrocinada pela União Europeia. Ninguém quer saber da Ucrânia. Não queriam em 2014 e não querem hoje. O território ucraniano serve, essencialmente, para se criar um novo balanço de poder entre a Rússia/ China/ Índia e os Estados Unidos/ União Europeia.
A Rússia não passou a ser uma ditadura porque o Milhazes se veio embora (já era quando ele só via maravilhas lá); e a Ucrânia não passou a ser uma democracia saudável porque foi invadida, ou porque o Ribeiro foi a uma casa de strip em Kiev.
De igual modo, não há dinheiro que Portugal envie que safe aquilo (dinheiro que, já agora, seria bem mais útil em escolas e creches públicas) e também não é propriamente verdade que “Portugal está com Zelensky”. Epá!, Luis: nem os ucranianos estão. Numa comunidade com alguns 50 mil habitantes em Portugal, apareceram 50 em Belém (e alguns para lhe chamar nomes).
Há quem deseje ardentemente a versão Ribeirinho do conflito, ou seja, continuar a escalada e esperar que as bombas continuem a rebentar só em cima dos filhos dos outros. E há quem queira que isto acabe já, sem ter grandes moralismos sobre integridade territorial.
Sim, Luís: moralismos. Essa conversa do invasor e do direito à defesa, bate sempre naquela trave da moralidade da terraplanagem em Gaza. Lá, em seis meses mataram mais crianças em 60 quilómetros de extensão de território do Médio Oriente do que em toda a guerra da Ucrânia. E sabes quem é que se está a cagar? O Mundo todo. E depois há gajos como tu, que acham que existem invasores do bem e bombas amigas.
Portanto, as coisas são o que são, e não vale a pena andarmos aqui a criar duas barricadas, tentado cancelar o debate com insultos. Vou-te dizer Luís, como é que um gajo que vive de algoritmos, vê isto:
– A Rússia invadiu? Sim. Está errado? Está.
– A Nato ajudou? Sim. Está errado? Está.
– A Ucrânia deve perder território? Não.
– A Ucrânia tem o direito de se defender? Sim, claro. Defender, atacar, rebentar com o Kremlin, fazer o que quiser.
– A União Europeia consegue impedir que a Ucrânia perca território? Não.
– Deve fazer o quê nesse caso? Estar quieta e entrar no conflito como mediador de paz.
– Os Estados Unidos conseguem impedir que a Ucrânia perca território? Sim. Metendo soldados no terreno e começando a combater a Rússia.
Portanto… justo ou injusto, a análise é simples, mesmo para um gajo que não assimila doutoramentos em ‘ucraniedade’ por osmose:
– ou estamos quietos e vamos convencendo os ucranianos a perderem território, por troca com uma entrada na NATO e na União Europeia no futuro;
ou
– convencemos o Joe Biden a meter os marines no Donbass numa operação daquelas que depois acabam em filme, do género “Freedom for Real, part VIII”.
É isto, Luís, e não é outra coisa. Tem juízo, rapaz, e trabalha mais na vertente ambiental (nomeadamente do Twitter) que deve ser a área onde dizes menos alarvidades. Como disse há dois anos o Ricardo M Santos, não precisas de continuar a ser um Ribeiro “de esgoto a céu aberto“.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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