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  • A importância do combate à desinformação oficial: um exemplo

    A importância do combate à desinformação oficial: um exemplo


    Věra Jourová, vice-presidente da Comissão Europeia (CE) para ‘os Valores e Transparência’, certamente que não esperava ser desmentida em público tão prontamente. Mas foi isso mesmo que aconteceu esta semana, quando a responsável da CE decidiu publicar um “esclarecimento”.

    Em causa está uma nova regulação polémica que iria ser votada na passada quinta-feira, dia 20 de Junho, em sede do Conselho Europeu, e que foi anunciada como tendo como objectivo o combate à partilha de conteúdos relacionados com abusos sexuais de menores. Mas críticos da regulação, conhecida como ‘Chat Control 2.0’, apontam que se trata de um ‘cavalo de Tróia’ que vai acabar com as mensagens encriptadas e eliminar a privacidade das comunicações digitais de todos os europeus, como noticiou o PÁGINA UM.

    Věra Jourová, vice-presidente da Comissão Europeia para ‘os Valores e a Transparência’. (Foto: D.R.)

    A proposta de lei surge numa altura em que na Comissão Europeia floresce um ideia que ameaça provocar um retrocesso civilizacional ao nível dos direitos humanos e civis. Trata-se de uma ideia que também tem vindo a ser semeada pela própria vice-presidente da CE: a ideia de que a ‘segurança’ é tão importante quanto o direito à privacidade. Ninguém decente questiona a importância de se combater e travar a partilha de conteúdos com abusos de menores, um crime hediondo. A questão é quando se admite que a solução é eliminar o direito à privacidade a todos os cidadãos. [Sobre este tema escreverei um outro texto em breve.]

    A celeuma que a proposta de nova regulação gerou foi tanta que acabou por ser retirada da agenda de trabalhos do Coreper, onde iria ser votada, e não tem ainda data para nova deliberação.

    No seu “esclarecimento”, publicado na rede social X, Věra Jourová tentava desacreditar os muitos críticos da proposta, entre os quais se contam os líderes de empresas de mensagens como Whatsapp e Signal e também políticos e académicos.

    “Deixem-me esclarecer uma coisa sobre o nosso projeto de lei para detectar abuso sexual infantil online #CSAM“. A nossa proposta não é quebrar a encriptação. A nossa proposta preserva a privacidade e quaisquer medidas tomadas devem estar em conformidade com as leis de privacidade da UE”, escreveu Jourová.

    Imediatamente, a vice-presidente da Comissão Europeia foi desmentida através de uma nota de contexto, ou ‘nota de comunidade’, que foi adicionada ao seu comentário. As notas de contexto são uma ferramenta da rede X que permite que haja uma rápida contextualização (ou desmentido) por parte da comunidade de utilizadores. “A proposta de vigiar todas as comunicações digitais de todos os europeus não preserva a privacidade. É condenada por académicos, reguladores de protecção de privacidade e peritos jurídicos internos do Conselho da União Europeia pela sua grosseira violação de privacidade”, diz a nota que é complementada com ligações para diversas fontes.

    Mas a nota de contexto foi actualizada mais tarde e a vice-presidente da CE passou a ser desmentida … por si própria. “A senhora Jourová disse que a proposta de lei quebra a encriptação. Ela disse isso hoje”, lê-se na nota de contexto mais recente, que é fundamentada num vídeo com declarações da própria responsável da CE.

    A publicação que partilhou o vídeo transcreve as declarações de Jourová: “mesmo as mensagens encriptadas podem ser quebradas”. [Pode ver o vídeo original na íntegra AQUI]. A publicação acrescenta ainda: “a vice-presidente de Transparência da UE mina as declarações da UE de que #ChatControl não quebra a encriptação na Cimeira de Proteção de Dados da UE“, um evento que decorreu no dia 20.

    Mas Jourová foi também desmentida pela presidente da Signal Foundation, entre outros, que se mostraram desconcertados com o “esclarecimento” da vice-presidente da CE.

    A presidente da Signal Foundation republicou a publicação de Jourová desmentido a responsável da CE com o comentário: “respeitosamente, a sua proposta quebra a encriptação”. Adicionou que teria “prazer em gastar o tempo que precisar a rever com o máximo de detalhes que se sentir confortável sobre como exatamente isso quebra a encriptação e por que isso é tão perigoso”.

    Aliás, a Signal já tinha alertado que se esta legislação for aprovada, a empresa deixará de operar no espaço europeu.

    Esta situação serve para reflectir sobre o que se passa nos dias de hoje, em que as fontes governamentais ou oficiais de entidades públicas, organizações internacionais e autoridades diversas, raramente são escrutinadas pelos maiores órgãos de comunicação social. O que colocam nos seus comunicados de imprensa ‘é Lei’ para os media. O que dizem nos seus discursos ‘é inquestionável’ para os media. E quem questionar ou é da extrema-direita ou é classificado como pertencendo a um grupo específico ‘nefasto’ qualquer. Quem questionar é alguém que faz “desinformação”, na óptica dos media dos dias de hoje.

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    Os media hoje fazem, em geral, pouco ou nenhum escrutínio de comunicações e anúncios de entidades como a Comissão Europeia ou a Organização Mundial de Saúde, por exemplo, cujos comunicados são recebidos nas redacções como ‘a Verdade’ única e absoluta. (Foto: Freddy Kearney)

    Ou seja, há uns anos, ainda se podia contar com os media, em geral, para contradizer e apanhar políticos e autoridades a mentir. Hoje, com raras excepções, já não é assim. Governos, Comissão Europeia, autoridades diversas, sabem que a maioria dos principais meios de comunicação social não vai contrariar absolutamente nada do que disserem. São raras as ocasiões, nos últimos anos, em que os media mainstream fizeram escrutínio real de comunicados, de políticas e de anúncios de entidades como a Comissão Europeia, a Casa Branca, ou outra, incluindo a ‘suprema’ Organização Mundial da Saúde ou a Direcção-geral de Saúde, que estão colocadas pelos media num pedestal, como se de divindades supremas se tratassem. O mesmo sucede com multinacionais e empresas de certas indústrias, como a farmacêutica. Já viu algum grande jornal a verificar as afirmações da Pfizer, por exemplo?

    Claro que para este lodo tem contribuído a situação financeira deficitária de grandes grupos de comunicação social. [ Veja-se o caso português]. Cada vez, dependem mais das chamadas parcerias comerciais com entidades públicas e privadas. Além da falta de transparência (também por culpa dos reguladores), a situação não augura uma melhoria. Pelo contrário: paira no ar o perigo de grupos de comunicação social ou títulos virem a ser alvo de ‘resgates’ ou de financiamento público no futuro.

    Por outro lado, os meios de comunicação social independentes, com jornalistas experientes mas com menos recursos humanos e financeiros – como o PÁGINA UM – fazem escrutínio, mas centram-se em alguns temas. Não conseguem ‘ir a todos’.

    A acrescentar aos media dóceis e domesticados junta-se uma indústria de supostos ‘verificadores de factos’, os quais têm demonstrado que nem sempre são imparciais e em muitos temas alinham com o comunicado oficial, o press release, o discurso do político ou autoridade, em resumo, alinham com a propaganda. Com algumas excepções, não fazem verdadeiro escrutínio. Alinham com os dogmas do momento, tal como os media.

    Aliás, ‘verificadores de factos’ usariam a frase de Jourová publicada na rede X para poder classificar como falsa qualquer notícia que mencionasse críticas à proposta de lei colocada na mesa pela CE!

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    Existem muitas tácticas para conseguir criar uma cortina de fumo sobre a verdade e ajudar os verificadores de factos a perseguir … os factos e a classificá-los como falsos.

    Aconteceu, por exemplo, com toda a campanha elaborada para censurar a tese de que a covid-19 teve origem num laboratório. E-mails que foram tornados públicos, recentemente, são relevadores sobre como um artigo foi publicado numa publicação científica para desacreditar a tese de que a covid-19 poderá ter surgido de um laboratório. Os e-mails sugerem que o ‘guru’ da gestão da pandemia nos Estados Unidos, Anthony Fauci, teve conhecimento e esteve ligado à criação desse artigo. A organização liderada por Fauci tinha interesse no tema: tinha financiado pesquisa controversa no laboratório em Wuhan, na China. Fauci negou o seu envolvimento, apesar do e-mail de um seu assessor que o implica no caso. Mas, certo é que, com o artigo publicado e a activa colaboração dos media e dos chamados ‘fact-checkers‘, o ‘problema’ estava resolvido. A tese de que a pandemia teve origem num laboratório foi censurada nas redes sociais e plataformas na Internet e ridicularizada nos media. O mesmo tem sucedido com muitos outros temas.

    É assim que tem funcionado a rede que protege os ‘dogmas oficiais’ enquanto espezinha os factos e impede o apuramento da verdade. Quando não se consegue manter o ‘dogma’, tem-se recorrido ao plano B: politizar os temas, forjar facções, tribos, e acusar os críticos de serem ‘conservadores’ ou mesmo da ‘extrema-direita’ (chegando a recorrer à difamação e ao insulto).

    Por isso, é tão refrescante ver uma vice-presidente da Comissão Europeia ser desmentida publicamente de forma tão pronta. Não quer dizer que defenda as notas de contexto do X como sendo infalíveis. Estão longe de ser perfeitas. Mas são uma ferramenta plural e em que toda a comunidade pode intervir, apesar de já estar a haver uma batalha para as controlar. É que, como se sabe, mais do que nunca, dominar a mensagem que chega ao público é o verdadeiro poder. Por isso, tem havido tanta censura e tanta pressão para impedir que informação rigorosa e verdadeira chegue ao público em diversas matérias cruciais para políticos e para grandes multinacionais.

    Se ferramentas como as notas de comunidade servirem para trazer maior transparência e contrariar o lodo de propaganda que chega hoje ao público em massa através dos media, é positivo.

    Preferia, naturalmente, que fossem os media e os jornalistas a fazer o seu trabalho de escrutinar comunicados oficiais e discursos e de questionarem as versões de Ursula von der Leyen, de Jourová, de Anthony Fauci, de Tedros Adhanom, director-geral da OMS. Estamos muito longe desse escrutínio ser feito pelos principais media.

    Mas, para já, enquanto as redacções dos maiores órgãos de comunicação social alinharem com os ‘dogmas oficiais’, percorrendo o caminho para a sua autodestruição, a desinformação proveniente de fontes oficiais vai continuar a florescer e a prosperar. E é uma das principais ameaças à democracia e ao modo de vida dos europeus. Precisa ser combatida. Por todos. Se tiver de ser através de notas de contexto em redes sociais, assim seja.

    Elisabete Tavares é jornalista


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • A Ameaça do Advogado Alves da Alves & Associados

    A Ameaça do Advogado Alves da Alves & Associados


    O PÁGINA UM peregrina, desde há mais de dois anos, num pântano que envolve duas figuras gradas da actual política portuguesa: a actual ministra da Saúde, Ana Paula Martins, e o actual vice-presidente da bancada social-democrata na Assembleia da República, Miguel Guimarães. Há dois anos, como bastonários da Ordem dos Farmacêuticos e dos Médicos, respectivamente, decidiram ser bons samaritanos e apelaram à bondade dos portugueses para apoiarem na luta contra a pandemia e depois fartaram-se de dar a cara enquanto distribuíram equipamentos de protecção individual e materiais diversos a instituições de solidariedade social e mesmo a hospitais.

    Uma investigação do PÁGINA UM quis ver as contas e descobriu, depois da obtenção da documentação por via do tribunal administrativo, que afinal, além de questões éticas – quase toda o financiamento veio de farmacêuticas, mais de 1,2 milhões de euros, não declarados no Portal da Transparência e Publicidade –, toda a campanha esteve assente em irregularidades e ilegalidades gritantes, a começar pelo facto de a conta receptora dos donativos ser titulada por Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves, e a desembocar em fugas ao fisco (não pagamento de imposto de selo), em facturas falsas, em declarações falsas com repercussões fiscais e em condições propícias para a criação de um ‘saco azul’ de mais de 968 mil euros.

    Desde o processo no Tribunal Administrativo de Lisboa para acesso aos documentos contabilísticos, iniciado em 2022, a Ordem dos Médicos garantia que todas as iniciativas da campanha solidária estavam a ser alvo de uma auditoria da consultora BDO, e que seria divulgada quando concluída. Mas nunca foi. E só agora, com uma nova intervenção do Tribunal Administrativo de Lisboa, já este ano, surgiu afinal a tal auditoria.

    Não quero, desde já, revelar os pormenores desta auditoria da BDO, mas sempre poderei dizer que se fosse apresentada não por uma auditora registada na Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) mas por um aluno da cadeira de Auditoria, o ‘chumbo’ seria a única opção sensata. Por um simples ‘pecado original’: a auditoria ignora olimpicamente – com intenção ou negligência – que a conta bancária era de três pessoas (Guimarães, Martins e Alves) e não de nenhuma das Ordens profissionais, e por isso nem sequer revela (como deveria) que todos os fluxos financeiros se concentravam aí, apesar de a facturação seguir para a Ordem dos Médicos.

    A intenção desta auditoria – que não se sabe sequer se foi paga, porquanto o contrato nunca foi publicitado no Portal Base –, plasmada naquele texto a que o PÁGINA UM teve acesso (apenas após nova intervenção junto do Tribunal Administrativo), parece mais do que óbvia. E daí termos pedido esclarecimentos e apontado factos à BDO para obter comentários. E perante a recusa desta sociedade de auditoria em comentar alegando “segredo profissional”, reagi, respondendo que o que estava em causa eram “evidentes erros primários de auditoria com influência numa avaliação independente e rigorosa”, acrescentando que enviaria “as grosseiras falhas à CMVM para os efeitos legais atendíveis”, concluindo, por fim, que “as auditorias não servem para ‘lavar’ ilegalidades”. Na verdade, estando a notícia ainda em preparação, a CMVM será obviamente contactada.

    selective focus photography of three books beside opened notebook

    A BDO não apreciou esta argumentação legítima de um jornalista, em avaliar o seu trabalho (que tem repercussões públicas), e aparentemente instruiu – e diz-se aparentemente porque não me foi remetida procuração – o advogado Pedro Guerra Alves, detentor da cédula profissional 52266L, a escrever-me. Como ignorava que uma das funções de um advogado é ameaçar com processos judiciais um jornalista no exercício da sua actividade, e como o conteúdo da sua carta é claramente uma tentativa de limitar a liberdade de expressão e o direito de informar – sendo uma obrigação do jornalista divulgar as ofensas a estes direitos, conforme preconiza o Código Deontológico dos Jornalistas, no seu ponto 3 –, tomei a decisão de revelar o seu conteúdo.

    E comunicarei formalmente esta ameaça do advogado Pedro Guerra Alves à Ordem dos Advogados, à Entidade Reguladora para a Comunicação Social e ao Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas (agora com uma nova composição), ponderando, se este tipo de pressões ilegítimas se mantiverem, informar as organizações internacionais que monitorizam a liberdade de imprensa nos diversos países.


    O original pode ser lido AQUI.

    Exmo. Senhor Pedro Almeida Vieira,

    Encarregou-nos o nosso cliente BDO & Associados Sociedade de Revisores Oficial de Contas, Lda. de informar V. Exa, de que, em virtude do teor das suas comunicações anteriores, todos os contactos com a BDO ou seus colaboradores devem passar a ser efetuados através da nossa sociedade.

    A atuação da BDO & Associados, SROC, pauta-se sempre pelo estrito cumprimento da lei, pelo que nos reservamos o direito de reagir em conformidade sempre que a conduta profissional da BDO & Associados, SROC, for posta em causa, nesse sentido não serão admitidas mais afirmações como as constante [sic] do ultimo mail de V. Exa. sob pena de termos de defender em sede próprio o ressarcimento de eventuais danos reputacionais que possam decorrer.

    Por outro lado, recomendamos a V. Exa. que antes de emitir qualquer opinião, deve proceder ao estudo dos temas, uma vez que as questões colocadas por V. Exa. evidenciam graves falhas no que respeito ao conhecimento do regime legal ou regulatório aplicável a atividade da auditoria, desigualmente no que respeitas [sic] as regras da sua supervisão e de execução dos trabalhos.

    Com os nossos melhores cumprimentos,

    Best Regards,

    Pedro Guerra Alves | Advogado

    E-mail enviado às 17h27 de 18 de Junho de 2024


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  • O nome e a coisa

    O nome e a coisa


    — Há aqui muitas coisas no teu texto que tens de substituir. Na página 4, referes «a atitude autista do Governo». Quando queres dizer que alguém não ouve ou se mostra insensível ou inflexível, não deves usar «autista» como insulto, porque estás a estigmatizar, a ofender, a perpetuar um estigma…

    — Tens razão. Deixa-me apontar. Eu altero isso.

    — Também recorres a outras doenças para insultar. Escreveste «bipolar nas suas opiniões» na página 83, e «a situação raia a esquizofrenia» na página 114. Não podes estar a…

    — Sim. Estou a anotar tudo.

    — Mas percebes?

    — Percebo. Não era minha intenção ofender…

    blue green yellow and red plastic toy

    — Não interessa! Isso ofende. Não sabes o que é…

    — Ei! O meu irmão tem trissomia 21.

    — Isso não te dá propriamente lugar de fala. Além disso, não quer dizer que não tenhas preconceitos inconscientemente.

    — Inconscientemente? Tu é que sabes? Nem o meu psicanalista ao fim de seis anos me apresentou cabalmente ao meu inconsciente.  

    — Sabias que um museu alemão criou um horário para pessoas não brancas? O museu Zeche Zollern, em Dortmund, reservou quatro horas aos sábados para criar um «espaço seguro» para pessoas racializadas, indígenas e outras que queiram visitar a exposição This Is Colonial [Isto É colonial]. Os responsáveis pelo museu defendem que o horário específico permitiria que essas pessoas pudessem explorar a exposição sem «ainda mais discriminação (mesmo que inconsciente)». Mesmo que inconsciente, ouviste bem?

    — Se não é consciente, é inconsciente. Já se nasce com culpa, é o que é. Deixa-me lá ver o que assinalaste no texto.

    — Vê tudo o que está em vermelho. Não assinalei nada de gramática ou de ortografia, só assinalei palavras e expressões ofensivas.

    — Estava à espera de que assinalasses isso e conselhos estilísticos… Sinal dos tempos. Bem, isto é só vermelhos! Olha lá, não assinalaste «cegueira» e «surdez»?

    a man walking a dog on a leash down a sidewalk

    — Foram usadas metaforicamente.

    — «Autista», «bipolar» e «esquizofrenia» também.

    — Não é a mesma coisa, não se referem à saúde mental, mas deixa-me assinalar essas também.

    — «Argumento deficiente» na página 127? Já sei, já sei. Altero também. É muito engraçado, pagas mal como o caraças, não tens nenhum negro ou trans na tua editora… mas siga. Bem, se virmos bem as coisas, até tens muitos negros e alguns trans… mas só nas fotografias das redes sociais. E se te preocupasses em contratar pessoas com essas características todas, em lugar de censurar palavras?

    — Não estou a censurar, porque não estou a excluir ninguém. Estou a usar linguagem que inclua todos.

    — «Todos» já não exclui?

    — «Todes» é mais inclusivo, de facto, mas ainda não me habituei.

    — Deves ter preconceitos… mesmo que inconscientes.

    — Mas eu admito que os tenho, ao contrário de ti. Estou num processo de desconstrução…

    — Para mim, é simples: «todos» abrange mesmo «todos». É a gramática.

    — A gramática pode ser muito opressora.

    — Tu és mais opressora do que a gramática. Escuta uma coisa: esta da página 139 não pode ficar?

    — É mais prudente não ficar.

    — Diz-me uma coisa: quem se sentirá melindrado com isto?

    — Deixa ver… «Tratado abaixo de cão». Não pode ser, porque passa a ideia de que os cães podem ser maltratados.

    adult chocolate Labrador retriever

    — Sou vegetariano, penso que tenho lugar de fala, ou se calhar não: só os cães é que terão lugar de fala. Vamos ter de decifrar como ladram perante essas expressões. Altero essas também. Já vi entretanto que assinalaste «maluco» e «palhaço»… também não posso usar «maluco» e «palhaço».

    — Se te informasses, saberias que hoje se diz «neurodivergente».

    — Mas isso é um grande saco em que cabe muita coisa, pelo que não saberemos do que estamos a falar…

    — Quanto a «palhaço», não podemos usar profissões para ofender.

    — Já te ouvi usar «azeiteiro» para desqualificar outras pessoas…  Nunca usaste «peixeira», «peixeirada»?

    — Teria de pensar nisso. Isto é todo um longo processo de desconstrução…

    — Não é longo, é infinito. Também marcaste que a «Europa é um anão militar»? É para não ofender os anões?

    — Claro. Além disso, são pessoas com nanismo. «Verticalmente desafiados» na língua inglesa.

    — Já reparaste que usaste «claro»? O Bloco de Esquerda tinha um cartaz com a frase «razões fortes, compromissos claros». A Joacine Katar Moreira escreveu: «A dicotomia claro/escuro no discurso político já mudava.» Lá está… deves ter preconceitos… mesmo que inconscientes.

    — Isto é todo um processo de…

    — … desconstrução, já sei. Mas porque tens de me desconstruir a mim também? A Branca de Neve e os Sete verticalmente Desafiados… Havia de ser bonito. Sabes que, para não ofender os anões, para não os estigmatizar, já propuseram a remoção dos anões do próximo filme da Disney? Curioso é que os actores anões, que têm lugar de fala, estão contra por uma estranhíssima razão: se isso for avante, perderão a oportunidade de representar. Parece que o ganha-pão é mais importante do que o putativo estigma.

    man in red and black robe

    — Continua a ver os vermelhos, por favor.

    — Assinalaste «prostituta» na página 240?

    — É trabalhadora do sexo que se diz.

    — Que verbo e substantivo usarás para exprimir a ideia de alguém se prostituiu. No sentido sexual ou não, «prostituir» e «prostituição» ficam como?

    — Isto é toda uma longa estrada de…

    — … desconstrução! Já sei, já sei. Se eu usar «comportamento nobre», estarei a ser classista? Quando dizes «oxalá», estás a promover o islamismo? Se eu disser que ele é um porco, um camelo, um urso, estou a pressupor que esses animais são usados para ofender, pelo que estarei a ser especista. Já nem digo «vaca» ou «cabra», porque são certamente expressões do patriarcado. Fu… Eu altero isto tudo, deixa. Continuemos.

    — O que tu não percebes é que não tens lugar de falar em todos os aspectos de que reclamas.

    — Se tivesse, poderia usar?

    — Talvez, não sei.

    — Eu pensava que tinha autoridade de usar as palavras que quero.

    — Não tens.

    — E quem te investiu dessa autoridade? O Espírito Santo? Já que falas em lugar de fala, ouço-te falar do que se deve fazer pelos pobres, desempregados, Negros, trans, mas tu não tens lugar de fala nenhum senão ser mulher! Olha que esse argumento se vira contra todos, a não ser que encontres um anão autista, racializado, cego, surdo e trans. Que é isto na página 350: «sem-abrigo»?

    woman in black tank top wearing silver chain necklace

    — É «pessoa em situação de sem-abrigo» que tem de estar.

    — Altero essa também, mas deixa-me que te diga uma coisa: devias mergulhar no proletariado para ver como se fala. Ficarias horrorizada. E mais: são muitas as situações em que não são essas minorias quem reclama, mas antes uma minoria ruidosa dentro dessas minorias que faz passar a ideia de que são a maioria dentro da minoria.

    — Continua a ver o que assinalei.

    — «Mercado negro»?

    — Nem de propósito. Lê este artigo aqui no Ciberdúvidas. Ouve bem: «Não podemos, todavia, esquecer que aqueles adeptos [os adeptos que insultaram Marega com base na cor da pele] não são os inventores da linguagem do ódio. Eles apenas usam o que já se encontra à disposição. É a própria sociedade que guarda, mantém e perpetua as expressões que veiculam o preconceito. Termos como “mercado negro”, “dinheiro negro”, “magia negra”, “lista negra” ou “humor negro” denunciam um preconceito associado à cor da pele, cuja origem se perde no tempo.»

    — Ah, os energúmenos racistas são vítimas destas expressões. Coitados… A culpa afinal nem é bem deles. É da malta que usa «mercado negro», «humor negro» e «magia negra». Espantoso. Imagino o neonazi a falar com o juiz: «Meritíssimo, tenha misericórdia de mim: eu ouvia muito “judiar”, “judiaria”, “mercado negro”, “futuro negro”, “cenário negro”, “humor negro”, e dei por mim a espancar negros e judeus.

    — Continuas preso a um paradigma cultural que está a ser abolido.

    — Eu altero o «mercado negro», descansa.

    two mannequins with black Sale graphic crew-neck t-shirts

    — Não revelas empatia, é o que é.

    — Poupa-me a isso, por favor. Sabes que a maior parte dos Negros que foi consultada nos Estados Unidos se revelou contra a substituição de black por «afro-americano», e que foi, contudo, este último que vingou na altura da transição dos conceitos? Espera, espera, espera… página 402, assinalaste «denegrir»?

    — Essa é claramente racista.

    — Nossa Senhora da Agrela! E «branquear» não é? Olha, sabes uma coisa? Mudei de opinião. Não vou alterar nada. Nada de nada. Não publiques o livro. Desisto.

    Manuel Matos Monteiro é escritor e director da Escola da Língua


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  • Migrações

    Migrações


    O problema imigrante é um problema que se mete no bolso alheio. Eu coloco-te um pico nas calças que te pica a nádega e te dói o rabo quando te sentas. É o “pico pico serenico” que te enfio na ganga. O problema imigrante é uma estratégia da política gargarejo. O político mete uns sumos bons e faz “gru gru” de pescoço erguido, mas não bebe, não assume, não emborracha.

    Assim se perpétua o problema imigrante. Vejamos os discursos dos demagogos: “As migrações devem-se todas aos países ricos. São os lugares onde vivem os culpados, pois são eles que obrigam as pessoas ao fluxo, porque sobretudo ganham dinheiro com os botes afundados e os corpos afogados”. Ora tende juízo!

    Mais discursos demagógicos: “A culpa nunca é dos políticos miseráveis que se abarbatam com o dinheiro dos povos, não é dos boçais demagogos que conduzem países inteiros à miséria. Nunca se escreve em grande o nome dos donos dos regimes de partida. Fala-se de Itália que recebe, mas omite-se a Somália, o Sudão, a Nigéria, a Etiópia”. Haja tino!

    Os picos sul-americanos, africanos e asiáticos que se enfiam no bolso alheio, brotam de faunas violentas, de regimes cancerosos, de poderes malignos onde alguns arlequins e pierrots se perpetuam há décadas infligindo morte, perseguição e miséria. São os regimes sustentados no narcotráfico, solidamente apoiados em negócios petrolíferos, associáveis a radicais religiosos, regimes de muitos matizes que murmulham miséria, que semeiam atrocidades.  Os fanáticos querem politizar o que é apenas do domínio do humano insano: os pecados mais óbvios. Regimes de gananciosos, ou psicopatas, ou vaidosos. Não me importa a cor política destes vermes! As guerras infindas que criam fugas massivas de população são outra origem das imigrações.

    As migrações causam problemas? – Causam!

    Que a procrastinação no destino aumenta as mortes? – Aumenta!

    Que a chegada de milhões de homens à Europa e à América é um risco?  – É!

    A mistura de culturas radicais acarreta tensões. Se as sociedades facilitam as entradas em volumes impossíveis de registar, volumes sem definição estratégica, constroem margens inseguras, lugares de alta voltagem.

    O Governo anterior deixou quatrocentos mil picos nos bolsos do Governo actual. Havia um enorme problema que se escondia sob o manto ideológico dos demagogos. Vivemos oito anos de ausência de soluções e agora temos um problema para resolver. Como este Governo vem com a genica toda, passámos dos oito aos oitenta, e agora é tudo a trouxe-mouxe. Intenções não faltam, estonteante poder executivo num lamaçal perigoso. Gosto de soluções muito mais que de problemas e admiro quem quer fazer caminho, mas não esqueço a importância de reflectir, delinear, construir objectivo e por fim criar a logística.

    A Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA), que sucedeu ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) estava de pantanas e apostou-se numa reforma que era suportada nesta estrutura. Sucumbiu à primeira vaga. Era um super-tubo a cair sobre funcionários que só sabiam chapinhar.

    Mas agora o tal do Chega tinha razão: havia um problema! Os fluxos de pessoas são inevitáveis e ninguém desmente os seus lados bons. O que não queremos é uma realidade adulterada por uma onda insurfável. 

    Diogo Cabrita é médico


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Jornalismo: quatro notas sobre o pântano

    Jornalismo: quatro notas sobre o pântano


    Primeira nota

    Domingos de Andrade que, como administrador da Global Media estabelecida contratos comercias para os jornais e rádios onde tinha funções editoriais, acabou há um ano por ser multado em 1.000 euros pela inútil Comissão da Carteira Profissional do Jornalista (CCPJ), que nem sequer lhe cassou a certeira. Regressou há um par de meses como uma espécie de ‘salvador’ de alguns dos títulos da Global Media depois da fugaz e tempestuosa passagem do fundo das Bahamas – uma das histórias mais ‘mal-contadas’ da imprensa portuguesa e dos ‘estranhos’ negócios de Marco Galinha.

    Enquanto decorrerem as movimentações para uma perfeita negociata, cuja factura vai ser paga pelos contribuintes, em que títulos ainda lucrativos da Global Media passam para ‘especuladores da imprensa’, onde Domingos de Andrade surge como cabecilha e sócio, eis que se confirmam, através de notícias do Correio da Manhã, que o dito, segundo escutas do Ministério Público, mercadejava os cargos editoriais e mexia os cordelinhos para notícias favoráveis para certas individualidades. Depois disto, Domingos de Andrade mantém-se em silêncio. Os Conselhos de Redacção dos títulos da Global Notícias, onde ele é director, estão caladinhos que nem um fuso – dizem-me que há lá jornalistas, mas eu duvido; há sim pessoas com carteira profissional mas o hábito não faz o monge. A ERC nem um ai. A CCPJ nem um ui, mas também ‘isto’ não conta porque aparenta agora só existir para a sua presidente andar a passear pelo país em fúteis palestras enquanto tudo arde.

    Mistério ainda maior é haver leitores que compram jornais ou ouvintes que sintonizam a rádio onde Domingos de Andrade dita as linhas editoriais…

    Domingos de Andrade: e não se demite? E a ERC e a CCPJ nada dizem? E os Conselhos de Redacção da Global Media, ainda existem?

    Segunda nota

    Com uma pequenina referência no canto superior direito a informar o co-financiamento pela União Europeia, mas sem grafismo distinto do restante conteúdo noticioso, o Correio da Manhã dedica hoje uma página inteira em ditirambos à… União Europeia.

    Parece piada, mas não é: meteram uma jornalista recém-formada (Filipa Novais, CP 8511) a elogiar, também pela voz da comissária europeia Elisa Ferreira, a maravilha que foi aumentar a impressão de moeda para, entre outras coisas, encher os bolsos dos accionistas das farmacêuticas e fazer disparar a inflação e depreciar as poupanças e os rendimentos (que é o que sucede quando o BCE estimula a dívida pública como se não houvesse amanhã).

    Hoje também, mas no Diário de Notícias, a mesma Elisa Ferreira tem direito a uma longa entrevista onde vende o seu ‘peixe’ – neste caso, António Costa para o Conselho Europeu. Procurei, mas não encontrei em nenhum canto, qualquer referência, como no Correio da Manhã, de ter esta conversa sido também co-financiada pela União Europeia. Mostra-se assim legítimo questionar se houve e não foi metido, ou se a Global Notícias anda a ser totó, não fazendo o que o Correio da Manhã, e porventura outros fazem: publicar notícias co-financiadas.

    Aliás, espero a toda o momento que as páginas dos jornais, ou os conteúdos dos outros meios de comunicação social, passem a ostentar o devido (e merecido) patrocínio da própria entidade que é abordada. Até para clarificar o regabofe.

    Notícias co-financiadas pela União Europeia a elogiar a acção da União Europeia. Para quando notícias co-financiadas pelo Governo a elogiar a actividade do Governo? Ou, porque não, partidos políticos ou empresas? Ou isso já se faz sem declarar?

    Terceira nota

    Por momentos, na quinta-feira passada, fiquei preocupado com o departamento de marketing da Media Capital. Anunciava-se na TVI, para o dia seguinte, uma investigação sobre os efeitos adversos das vacinas. Camandro: então querem ver que chateiam a Pfizer que financia nesta próxima terça-feira um ‘summit’ da CNN Portugal no Hotel Pestana com quatro jornalistas ‘mestres-de-cerimónia’? Ah!, não se preocupem: afinal, o Exclusivo da jornalista Sandra Felgueiras só encontrou o caso português de uma infeliz senhora que teve “um azar de 0,0004%” em ficar de cadeira de rodas com mielite. Nada mais.

    Não há crise e salvaram-se 20 milhões de pessoas, garantem-nos. E, aliás, como publicita – no sentido de publicidade – no Correio da Manhã, tudo graças à Comissão Europeia, mais os contratos secretos, combinados por WhatsApp, da senhora Ursula von der Leyen…

    Não há miocardites, nem pericardites, nem trombocitopenias imunológicas, nem AVC, nem mortes fetais, síndrome de Guillain Barré ou outras doenças autoimunes, nem herpes zooster aos pontapés, nem processos judiciais a correrem no Reino Unido, nem artigos científicos a associarem (como hipótese muito plausível) os programas massivos de vacinação ao excesso de mortalidade, nem a constatação de um ex-bastonário da Ordem dos Médicos ter escondido um parecer que não aconselhava a vacinação de crianças e adolescentes saudáveis, nem a contabilização das mortes suspeitas que constam na base de dados da Agência Europeia do Medicamento..

    Este é o jornalismo de investigação que qualquer departamento de marketing dos grupos de media adora: parece que vai morder, mas afinal afaga.

    Avancemos, pois, descansados, para o ‘summit’ da Pfizer no Hotel Pestana: os croquetes by CNN Portugal devem ser excelentes. Ali é que se faz política de Saúde da boa.

    Afinal, não passa tudo de “um azar de 0,0004%”. Está tudo bem. Pode avançar o ‘summir’ da CNN Portugal patrocinado pela Pfizer.

    Quarta nota

    Anuncia-se para o fim do mês a MediaCon, que se apresenta como “um encontro de jornalismo organizado por dezasseis órgãos de comunicação social portugueses que querem discutir, em conjunto a comunidade, o presente e futuro do jornalismo e da democracia”. E dizem que representam a comunicação social não-tradicional, deduzindo-se assim que o PÁGINA UM ao não ter sido sequer convidado ou sondado, e não integrando (acho) o ‘legacy media’, não pertence a este ‘clubinho’ que, entre outros, inclui órgãos de comunicação social subsídio-dependentes de fundações internacionais que balizam ‘temas queridos’ ou mesmo uma secção de um jornal mainstream (o Azul, do Público), que já mostrou ser um ‘pronto-a-vestir’ de notícias.

    Quando o PÁGINA UM – um projecto independente, sem ideologia nas abordagens temáticas, de acesso livre e apenas financiado pelos leitores –, e ainda por cima com maior visibilidade real do que os auto-intitulados media não-tradicionais, é tratado assim, apetece chamar Cristo para desancar nestes vendilhões do templo. O jornalismo está ‘sequestrado’ de alto a baixo.    

    Indicadores de tráfego do PÁGINA UM em Maio deste ano em comparação com o Mensagem de Lisboa, o Fumaça, o Gerador e o Coimbra Coolectiva. Ver AQUI em tamanho maior.

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  • Omeprazol

    Omeprazol

    Algumas pessoas conseguem ver a chuva. Todas as outras apenas se molham.

    Bon Marley


    Aqui no Largo há poucas pessoas tão simpáticas, tão dedicadas ao seu trabalho, e tão inteiramente dignas da nossa confiança como o Samuel Ameixoal. Por trás da portinha modesta que lhe serve de recepção e secretaria, a sua mulher chamada Celina, em homenagem à Céline Dion, vigia ao mesmo tempo todo o Largo e o comportamento dos três Yorkshires sempre muito bem lavados e primorosamente escovados que se aninham sobre o balcão[1], recebe os pedidos dos condutores, regista os seus desejos até ao mais ínfimo pormenor, consulta o calendário e tudo o que lá tem marcado, estabelece imediatamente uma data de entrega que nunca falha, o cliente entrega-lhe a chave do carro, ela guia-o cuidadosamente pela rua estreitinha até estar de frente diante do portão enorme de trás[2], carrega no comando, o portão desliza, ela arruma o veiculo no lugar mais indicado por data de chegada e promessa de entrega, deixa lá dentro preso ao espelho do lado do condutor uma folha de apontamentos num código que mais ninguém consegue decifrar a não ser o marido, e volta a saltar para o seu lugar atrás do balcão onde deixou a meio a contabilidade desse mês. Os automóveis, os camiões, as motos – todos conhecem o mesmo destino. Entram para ali num autêntico nojo, e saem tão brilhantes e escovados que parecem figurantes de uma série sobre a dinastia Windsor.

    O Samuel tem a chave do meu carro: sempre que se apercebe da abertura de um lugar verdadeiramente legal, vai tirá-lo do lugar para onde o despejei à balda e proporciona-lhe um estacionamento verdadeiramente digno desse nome. Foi a Celina quem cortou as guias ao Jeremias[3] para ele poder passear-se em paz e sossego pelo terraço, e é ela quem rega as plantas na minha ausência.

    Não podiam ser melhores pessoas, nem vizinhos mais convenientes.

    Ontem cheguei de Lisboa depois de uma grande maratona na Feira do Livro, e bem podia carregar no botão da televisão que ela não acendia nem por nada. Não era a box, que estava perfeitamente nos conformes. Eram a porcaria da imagem e a gaita do som, mesmo – e eu cansadíssima, acabada de sair do Expresso e ainda sem o meu Sebastiãozinho. Não estando a ver outra solução, fui à janela e chamei pelo Samuel. De um lado da rua para o outro, expus-lhe o problema da televisão que não acendia. Ele subiu a minha escada com várias chaves de fendas na mão, já a dizer que disso de televisões é que não percebia grande coisa – mas a verdade é que encontrou logo o fiozinho amarelo que estava solto, voltou a ligá-lo, o botão recomeçou a piscar, e num segundo o monitor já estava todo iluminado, num enredo devidamente falado.

    Eu nem sabia como é que havia de agradecer-lhe.

    Deixe lá isso, Clarinha,” disse-me ele, com os seus olhos azuis enormes iluminados num sorriso franco. “A gente precisamos da televisão, ora é ou não é? Ó Clarinha, a gente sem a televisão não samos nada. Não samos nada mesmo. Então já vê. Eu ia agora deixar a Clarinha aqui sozinha, sem o Sebastião e sem televisão.


    Há anos que eu ando a protestar que a televisão tem vindo a tornar-se, mais e mais e mais à medida que o tempo passa, numa máquina infernal de estupidificar as pessoas – e de conseguir ir-se transformando num vício que lhes degrada de tal maneira os neurónios que, a partir de um certo ponto, “a gente sem a televisão não samos nada.” Quanto mais estúpidas as pessoas ficam, mais fácil é mandar nelas, menos provável é que ainda lhes reste alguma espécie de curiosidade, e, em consequência, nestas alturas ouvem-se cada mais vez mais argumentos a favor do voto em partidos vestigiais de verdadeiras intenções absolutamente opacas, como por exemplo a Nova Direita baseados em vácuos totais como o já estafadérrimo “foda-se, pá, mas é que aquela preta é mesmo, mesmo bonita.[4]

    É evidente que, quanto mais televisão as pessoas veem, menos interesse sentem em votar.

    Se não fosse porque, infelizmente, é mesmo verdade que “a gente sem televisão não samos nada”, a taxa de abstenção teria – obviamente – sido muitíssimo inferior a 60%.

    Segue uma história exemplarmente ilustrativa do nível de analfabetismo funcional que se abateu sobre as pessoas da minha geração – e, como toda a gente sabe, os idosos são uma das maiores fatias da população portuguesa. Acontece num dia em que se conclui um feriado com tolerância de ponte que, nestas circunstâncias, pega com um fim de semana. Ou seja, quatro dias de férias. O pessoal devia andar feliz, bem-disposto, carregado de energia e, por que não, cheio de gratidão também.

    Por um grande carrocel de acontecimentos que levam a outros e a seguir é inevitável virem de lá outros, daqueles que sobem e descem e que tornam a minha vida tão emocionante, eu estava – pessoal, eu juro que estava mesmo, pela alma dos meus filhos, OK? – eu estava a passar uns dias num T1 minúsculo situado na Amadora. Não estou a gozar. Foi mesmo assim que tudo isto aconteceu, e, ao terceiro dia, com uma necessidade terrível de sair sozinha de casa para ir à rua tomar café, fechei a porta do 12º D[5] com muito jeitinho para ver se não acordava ninguém e chamei o elevador.

    Quando o elevador chegou já vinha a descer desde o 16º, e estavam três velhas lá dentro.

    Estou-me bem nas tintas para os meus 64 anos. EU tenho 64 anos. Aquelas senhoras eram umas VELHAS. É muito diferente.

    Eu fiz-lhes um grande sorriso e dei-lhes os bons dias, mas elas não me ligaram nenhuma. Vinham entretidas numa espécie de competição de suspiros, uns mais tristes, outros mais sentidos, outros mais demorados, e assim. E, para cada suspiro, havia uma conclusão: “Bem, não é, tem que ser.” – “Pois, pois é, lá temos nós que ir trabalhar outra vez” – “Enfim, parece que ao menos não vai estar tanto calor” – “Ai, deixe-me cá, o que eles dizem é que vai chover” – “Ai, credo, a chover em Junho.”

    Então e já decidiram em quem vão votar?

    Olharam para mim como se eu fosse de Marte.

    woman in black long sleeve shirt hugging white and black siberian husky

    Eu não acredito em político absolutamente nenhum.”

    Eu também não. Votar para quê? Para vir mais um novo vigarista apropinquar-se com o nosso dinheiro?”

    Tínhamos chegado ao rés-do-chão. O elevador range e dá um saltinho, anunciando o fim da viagem. A terceira velha põe de imediato a mão sobre o lugar onde é possível que se situe a boca do estômago. E solta um suspiro tão grande, tão grande, tão grande, que faz abrir algumas portas e ganha logo o concurso.

    Ai, Santo Deus. Não vejo a hora de o meu Omeprazol começar a fazer efeito, para eu ao menos me ver livre de todo este fogo que vem até cá acima!”

    Foi por um triz que não a puxei pelo braço e não lhe gritei, numa grande aflição clínica,

    Ó minha rica senhora, por favor não faça isso! Olhe que o Omeprazol não é assim que se toma!”

    Depois imaginei-me cercada de velhas que me retinham na entrada com uma torrente inesgotável de perguntas sobre a toma de todos os seus imensos comprimidos e calei-me mas foi muito caladinha, corri para o café onde não tomei um, nem dois, tomei três com um pastel de nata, e tratei de deixar para trás a Amadora no Expresso das 15 horas.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Pode ser uma imagem extremamente desagradável para quem, como eu, detesta cãezinhos; mas que lá estão sempre limpinhos e escovadinhos, isso é indiscutível que estão.

    [2] Note-se que este “veiculo” tanto pode ser um pequeníssimo Smart como um colossal camião de caixa aberta todo pingado das obras. Não há volante que a Celina não maneje.

    [3] O meu galo de briga da Malásia, e melhor amigo do Sebastião.

    [4] Quando as pessoas se preparam para votar num Partido ao qual desconhecem o nome da Cabeça de Cartaz, digam-me se as coisas podiam estar piores.

    [5] Liberdades poéticas, claro.


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  • Ricardo Araújo Pereira ‘on the rocks’: parte I

    Ricardo Araújo Pereira ‘on the rocks’: parte I

    (PRIMEIRA PARTE)

    Nos tempos que correm, não é fácil falar de pessoas muito menos para dizer bem. As redes sociais deturparam as relações que já não eram famosas antes do planeta Google. 

    Nada parece credível, soa sempre a ressabiamento. “Se ele está a escrever aquilo é porque deve ter alguma coisa contra” pensarão alguns. “Se está a dizer bem, está a engraxar”.

    Não!!!

    A crispação ganhou o campeonato e qualquer opinião irá sempre parecer uma arma de guerrilha ou uma vingança. A desconfiança é o novo mapa-mundo num contexto em que os socialistas e comunistas acham que vivemos num sistema neoliberal, e os neoliberais acham que vivemos num mundo comunista ou socialista.

    É culpa das pessoas também.

    Mas vou tentar escrever sobre o Ricardo Araújo Pereira sem entrar nesse campeonato desolador.

    Às vezes pergunto-me, o que não pensaria o provocador e magnífico Thomas Bernhard acerca destes tempos extremados em que o norte anda a sul!

    Sabemos que, para invocar aquilo que de melhor os humanos têm pressupõe haver valores e, ainda para mais aqui tratando-se do cómico mais proeminente e com mais (aparente) piada do país, não se vislumbra tarefa fácil criticá-lo estando num mundo em que todas as pessoas já devem ter uma opinião generalizada, (na maior parte das vezes, aferindo-se basicamente pelo gosto, o que é normal, não se tratando de especialistas), e também porque não sou especialista em esventrar cómicos.

    A minha única especialidade são as amêijoas à Bulhão Pato (confirmado pela TripAdvisor de Chelas).

    E, tendo em conta também o difícil que é pôr as pessoas a pensar numa opinião divergente ou simplesmente diferente da sua, já formulada e reforçada pelo algoritmo humano, ainda se torna mais tramado, porque a fronteira é ténue entre a opinião e a piadola, e talvez seja essa a genialidade dos bons cómicos: fazer uma envolver-se na outra da forma mais natural possível.

    Apesar de todos os ventos contrários, sinto-me preparado para a batalha interna que aí vem ao ter de olhar para o herói. 

    Comecemos com uma nota didática.

    Os portugueses dizem comediante que vem do inglês comedian, mas eu gosto da escola francesa em que comédien não é necessariamente ser cómico. É mais vasto, é ser actor.

    É representar, e essa velha escola ainda tem glamour mesmo que a França esteja a perder o perfume. Por isso nunca me referirei a RAP como comediante. No entanto, entre a cultura estadunidense e francesa, ganha obviamente a primeira no poder de influência. No Ocidente já não se fala francês.

    Indo ao assunto:

    O entertainer tem características favoráveis: a capacidade de trabalho é um exemplo; tratar do olho cuidadosamente para, em terra de egos, continuar a ser rei será outro; não misturar a vida pública com a privada ou a capacidade de dizer os textos sem se enganar, mostrando uma boa coordenação motora e rítmica; estar no Governo Sombra (que tem outro nome) há bastante tempo e continuar a fazer rir os colegas de painel com análises sobre a actualidade, sobretudo a de manter alegre o risonho e deslumbrado moderador do programa que continua, ao fim de tantos anos, embevecido com as capacidades intelectuais do matulão, será também de sublinhar.

    Contrariamente é facto não tão abonatório, não conseguir arrasar o Presidente da República que bem merece, ainda que se perceba.

    Quem andar atento sabe que está sentado ao lado de um dos seus guardiões, o homem transparente, impoliticamente correcto: o assessor Pedro Mexia.

    O cómico, às vezes parece que chateia não chateando (técnica tradicional da sociedade do espectáculo e que vem em todos os manuais), com a cumplicidade do próprio presidente que é insuportável e que já só se contenta em testemunhar os afectos e os sentidos torpes que ainda representa. Há quem diga que está maluco. Politicamente maluco, se é que não o foi sempre, mas com a simpatia dos media em geral para quem era uma raridade em inteligência e intuição.

    Absurdo.

    RAP habita também esse programa para fazer o contraponto ao direitolas de esquerda, João Miguel, que parece apreciar a vida em todo o seu esplendor e bem na minha opinião, ainda que ligeirinho demais. Mas não resulta muito bem. Aquilo parece um coro gregoriano de meia-idade.

    Enfim, globalismo à la carte, mas disfarçado de não-sei-quê, é-nos oferecido semanalmente por estes governantes-sombra.

    Mas esta é só a minha verdade possível de um mundo onde nada é estável, no qual tudo é fluxo.

    Destaco ainda a capacidade que mostrou por ter conquistado estatuto inabalável, viajando anos a fio pelo centro mediático a ofender quem quiser, (desde que sejam os de baixo), não ficando sujeito ao ricochete, mantendo até o status sem qualquer efeito boomerang, mesmo que nada tenha a acrescentar intelectualmente digno de nota, como o próprio afirma repetidamente com muita leveza no género auto-depreciativo como mandam as regras do humor inteligente.

    Acha-se palhaço. Percebe-se a esperteza.

    Faz o trabalho sujo ao fim de semana e lava daí as suas mãos no Expresso e nos livros.

    Sujo porque foge a confrontos e bate no senhor do acordeão vezes demais.

    Puxa a corda para os dois lados e o status vai legitimando a corda.

    Parece o sobe-e-desce dos jardins infantis que estão sempre no mesmo lugar ainda que em movimento quando humanizados. 

    E não será difícil a IA inventar um clone do herói deste texto, porque o Ricardo é sempre o Ricardo. Não há um Ricardinho fora do sítio, não há um copo a mais, um texto que rasgue, nunca se viu publicamente pôr o pé fora da argola.

    Nunca não pôs a máscara. Nunca foi ofuscado pela “realidade”.

    Nunca fez humor sem querer… que eu saiba.

    O sistema gosta. É previsível.

    O sistema do humor quando pensa a sério, não gosta tanto. Os pares quando analisam são sempre fodidos, assim como o amor.

    A técnica é o azeite dos humoristas, vem sempre ao de cima, quando já não são engraçados. Em televisão há que estar sempre bem oleado… E bronzeado. A televisão tem sempre a garantia da técnica. É uma máquina desumana.

    Nisso o Herman é sábio, mas como cresceu sobretudo nos anos 80 com a CEE, perdoa-se mais. A ironia, o sarcasmo, o absurdo e a sátira penetravam melhor na realidade, não havia Internet.

    Não era humorista qualquer um. Mas também havia Badarós que inevitavelmente só podiam acabar mal.

    Os anos 80 eram o próprio ácido. As televisões alcalinavam, fazendo o contraponto.

    A MTV cresceu com o Herman. Vídeo killed The Radio Star e por isso perdoa-se o Herman e a sua lavagem de políticas cavaquistas com o Parabéns.

    Hoje o Herman pode ser impoliticamente incorrecto.

    Tiro a isso o chapéu (que não uso).

    Ele é VHS, o Gato Fedorento DVD. O Herman não precisa de menus, e como todo o bom retro resiste ao tempo. Esperemos que o Gato Fedorento também. Mas os DVDs afinal não duram assim tanto como se anunciava, estragam-se e desaparece o código sem deixar rasto, enquanto os VHS deteriorando-se, ainda têm o fantasma lá bem arrumado, aparecendo com uns saltos, chuva e umas linhas esverdeadas que até ficam bem no mundo digital. Dá excelentes remixes.

    A parte chata, é que por todas estas razões este género de pessoas como o matulão, podem representar perigo. São eles, que em sistemas mais musculados e apertados podem dar cabo dos dissidentes… Ou não.

    A História não é muda.

    Escrevem bem como se costuma dizer, e trazem credibilidade por se instalar no inconsciente colectivo a ideia de que são muito inteligentes, mas não me parece que tragam um pensamento gangster na possibilidade do pensável e risível.

    Mas neste sobe-e-desce o Ricardo, como é também esperto, sabe bem que os parques infantis são feitos por adultos. E Portugal muitas vezes parece um parque infantil cheio de carrosséis.

    Quanto às suas crónicas, não as leio assiduamente, mas do que conheço, é menino para desancar os do costume com umas piadas sempre originais e a desafiar o cliché das más políticas, coisa que poucos sabem fazer como ele.

    Imaginemos que só escrevia crónicas e artigos, certamente este texto não faria sentido.

    Mas tudo é um todo.

    Sem dúvida que agrada em geral, e para o comprovar, um dia no Frutalmeidas na Avenida de Roma, lugar de muita betalhada, ouvi uma rapariga dizer à sua mãe enquanto o lia no Expresso, que o Ricardo era muito engraçado e que era bom em tudo o que fazia, vendia bem electrodomésticos, fazia rir, gozava com os políticos e era sobretudo muito sério nas análises do quotidiano,  mas sempre com a sua graça e muita acutilância no humor de observação. A mãe enquanto lia outra parte do Expresso, confirmava a opinião e ainda acrescentava que gostava muito dos Gato Fedorento e que revolucionaram o humor em Portugal, rematando que escrevia muito bem. Acrescentou ainda que todas as mães do Frutalmeidas gostavam de ter um genro assim. Enfim, acordar e ter logo, uma manhã cheia de superlativos, só naquele lugar. Ali o mundo funciona regado a fruta, mas funciona, ainda se vislumbrando tenuemente o charme discreto da burguesia.

    No Frutalmeidas é muito comum dividir-se o Expresso ao sábado de manhã enquanto se bebe um delicioso sumo e se come um pastel de massa tenra.

    Concluí então que o Araújo era aquilo, um sumo fresquinho com fruta misturada e um pastel de massa tenra divinal, mas que deixa as suas inevitáveis consequências no estômago.

    Ele tem a cara da Avenida de Roma. Ele é o beto perfeito. É como o antigo cinema Londres que também estava localizado nessa avenida, onde os filmes que lá passavam não eram os melhores, entretinham, ganhavam o seu Oscar de vez em quando, mas não chateavam ninguém. Eram sempre para toda a família. Vinham etiquetados muitas vezes de comédias dramáticas e tanto podiam ser americanas como francesas.

    De quando em vez, lá aparecia um filme exótico para desenjoar.

    Será a vida do RAP assim?

    Hoje o Cinema Londres é uma loja do chinês.

    Um amigo reforça que ele é como o Monte Velho, faça sol ou faça chuva é sempre vinho da mesma uva.

    Neste tempo desolador e delirante, a desobediência quer dizer obediência, desde que disfarçada com humor.

    Quem sabe, sabe.

    E o rapaz, observa muito bem como realçou a rapariga do sumo de ananás com pitaia à mãe. O que o RAP observa os outros alcançam. É certo, mas o humor é muito mais que isso. O Seinfeld, por exemplo tem alma e podemos ver, sentir, cheirar, abominar Nova Iorque num simples diálogo, para além de fazer rir, mesmo que o estúdio da série Seinfeld seja em L.A.

    Assim como em Larry David que com o humor negro nos faz apreciar a vida.

    Julgo que às vezes os humoristas são mais poetas que cómicos.

    Mas no Ricardo, instalou-se uma vulgar loja do chinês e podemos sentir a falsa porcelana, aquela que o Herman destruía com tiros.

    O Herman deve andar desejoso de partir o RAP. 

    Mas apesar disto tudo não estamos a falar aqui das ordinarices do Fernando Rocha que já nem é ser cancelado, é ter-se tornado na própria cancela e esperar que os automóveis eléctricos que vêm da esquerda o abalroem sem dó.

    Para quem é branco, hétero e do PCP (ou foi), o cómico de Alfragide tem-se safado bem. Teve de encontrar certamente muitos artefactos retóricos e linguísticos para passar pelos pingos da chuva que vai escasseando por aqui pela Península. Mas nunca choveu tanto como neste ano.

    Por falar em sol, o RAP sabe o que é um solário, pelo menos parece sempre bronzeado de Inverno.

    Um solário, vistas bem as coisas, é uma boa imagem do actual humor mainstream. Queima, mas não torra, aquece, mas não consola, pinta, mas não borra.

    Non sense.

    É certo que o clima tem direito ao seu non sense, que também sofre de alterações.

    skeches absurdos dos Monty Phyton que hoje parecem realismo, por exemplo.

    Este humorista embora seja um profissional da opinião, parece não a ter quando é preciso. Não basta ser Charlie de vez em quando.

     

    Queriam comédia para falar de comédia?

    Para quem não sabe, oitenta por cento tem a ver com a técnica. Há livros no mercado e pdfs na Net a ensinar a ser-se um cómico. Há quem diga que é noventa por cento. Por isso o GPT pode hoje substituir uma parte dos cómicos na boa. O raio do algoritmo também já sabe dizer piadas.

    Quero lá saber. Para mim ou tem piada ou não tem. Não sou especialista. A minha única especialidade é editar casamentos no Premiére.

    O cérebro pode ser um órgão sempre aberto a correntes de ar, mas o RAP  vai ficando preso ao tempo, e depois não há vacina que o salve. Nem o fantástico Herman, o actor do big-bang televisivo português, com a sua terapia germânica lhe valeria na luta de voltar a apanhar o transporte.

    Mas não sei se o rapaz dos Gato Fedorento alguma vez quis apanhar o comboio, não deixando, porém, de ser verdade que em tempos velozes, o TGV passa a grande velocidade. E depois com o passar dos anos vem o comboio do esquecimento. Como o Herman sabia ser ácido e alcalino e nos seus piores momentos, os dois ao mesmo tempo, nunca deixou de ter o bilhete em dia.

    O Humor é uma arte para alguns, porque pode dar-nos a radiografia do Tempo, mas a cores e invertida.

    As Tragédias nos gregos e na sua origem, tornavam as personagens melhores que aquilo que eram na verdade. 

    A Comédia, tornava-as piores.

    Imagino que o Ricardo tenha lido os gregos e deve ser essa a sua tragédia interior.

    O humor pode simplesmente ser um trabalho sobre a Linguagem.

    O Gato Fedorento fazia-o bastantes vezes, uma vez que consumiu Monty Phyton ao pequeno almoço e gostou do que não viu.

    Fazer rir dá trabalho.

    Fazer rir de quem trabalha, não dá assim tanto porque uma pessoa que trabalha expõe-se muito. O trabalho não liberta como escreviam os nazis à porta de Auschwitz. O trabalho dá trabalho.

    Contudo há excepções.

    E o Araújo Pereira também dá trabalho aos argumentistas por exemplo, aos técnicos, aos políticos, mantendo a máquina em ebulição,  que assim vai lavando mais branco como um bom detergente.

    Ter um humorista do seu lado é ouro para a política.

    Aos humoristas e aos jornalistas mainstream paga-se para que não escrevam. É uma indústria, um enlatado com as próprias gargalhadas já incluídas. Apanha-se as canas e faz-se a festa e como se vê, os políticos andam sempre por lá. O guião é sempre o mesmo.

    Na indústria do humor nem sempre há trabalho porque às vezes a realidade já tem humor que chegue.

    Na pandemia não houve muito, nem realidade, nem humor, nem trabalho e poucos se queixaram.

    O raio do morcego não devia ter comido o pangolim. 

    Há assuntos interditos, por isso talvez não o vemos crescer. Mas crescer para onde?

    Perguntaria João César Monteiro.

    Nos jornais há um vazio critico ao qual já nos habituámos. Os jornais mataram os jornais.

    Um haraquíri pouco simpático com consequências avassaladoras. Um tiro na própria equipa, uma dentada no próprio cão.

    Mas entre Joanas Marques e Araújos Pereiras, a diferença ainda assim é grande. Os Araújos têm cultura. As Joanas têm receitas.

    Haters há muitos, assim como os chapéus que hoje os humoristas têm de usar para se protegerem do sol que quando nasce afinal já não é para todes.

    Mas há solários em que só se queima quem quer.

    O Ricky Gervais é muito mais branco, muito mais hétero e muito mais cómico e quando se queima, queima-se nos Golden Globe. 

    O Ricardo queima-se na SIC do Balsemão.

    Isto não é dizer mal. 

    Tragam o Halibute.   

    (CONTINUA)

    Este texto é inspirado por este aqui da magnífica jornalista Elisabete Tavares.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações de ©Ruy Otero com colaboração de Nuno Bettencourt


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  • PÁGINA UM: um jornalismo com ‘delírios de grandeza’ sem sequer ter ‘meia dúzia de gatos pingados’

    PÁGINA UM: um jornalismo com ‘delírios de grandeza’ sem sequer ter ‘meia dúzia de gatos pingados’


    Há uns dias, um jornalista da revista Visão – que, por sinal, foi identificado no ano passado pela ERC como um dos ‘jornalistas comerciais’ que faziam notícias patrocinadas – zurzia no X, onde tem uma legião de seguidores, contra o PÁGINA UM a pretexto de uma opinião de que não gostara: “Não passa de um bloque para vomitar todos os ódios, mas com delírios de grandeza” e “eles são muito ruidosos, mas não passam de meia dúzia de gatos pingados”, foram alguns dos mimos.

    Comecemos por descontar o elucidativo facto do Luís Ribeiro, o dito jornalista, trabalhar para uma empresa que não tem “delírios de grandeza”: tanto assim que a dita, a Trust in News, achou que bastaria um capital social de 10 mil euros (igual ao do PÁGINA UM) para gerir 17 títulos, entre os quais a revista Visão, e conseguiu isso durante meia dúzia de anos, apenas com o singelo pormenor de não encerrar falida, mesmo se se encontra com um passivo a rondar os 30 milhões de euros e dívidas ao Estado e à Segurança Social superiores a 11 milhões de euros. Está em processo especial de revitalização (PER) para saber se o Estado lhe concede perdão pelas manigâncias.

    Mas, de facto, Luís Ribeiro tem, involuntariamente, razão, mesmo se exagerando. Nos últimos dois anos e meio, o PÁGINA UM fez um jornal não com “meia dúzia de gatos pingados”, mas com metade disso. Actualmente, somos apenas dois jornalistas seniores (eu e a Elisabete Tavares). Coordenamos (e editamos e paginamos), para além disso, uma dezena de colunistas que nos honram com a sua opinião – e julgamos que essa honra é recíproca.

    E temos tido, de facto, “delírios de grandeza”. Ao longo destes dois anos e meio, temos investigado e denunciado muitos assuntos, tornando-as evidentes ‘cachas’, que só não têm mais eco na imprensa mainstream (fora aquelas notícias que nos plagiam sem dar cavaco), muito pelo incómodo das revelações que temos feito sobre as promiscuidades entre grupo de media e grupos económicos.

    Entre notícias, entrevistas, opinião e recensões de livros, publicámos 2.537 artigos, num jornal digital de acesso aberto, sem publicidade e sem parcerias comerciais – e apenas com os donativos dos leitores.

    Apesar de sermos agora nem metade de “meia dúzia de gatos pingados”, fomos o único órgão de comunicação social a propor, em duas eleições deste ano, entrevistar todos os partidos (nas legislativas) e todos os cabeças-de-lista (nas europeias). No total, fizemos 33 entrevistas – e honrámos o Jornalismo com esta iniciativa, apesar dos quatro partidos e três cabeças-de-lista que recusaram a entrevistas (talvez por terem a mesma opinião do Luís Ribeiro sobre o PÁGINA UM).

    Talvez por “delírios de grandeza”, e mesmo com menos do que “meia dúzia de gatos pingados”, o PÁGINA UM tem sido um bastião da luta para o acesso à informação em tempos cada vez mais obscuros numa democracia que, embora longe de uma ditadura, já parece mais de lapela, exactamente por a imprensa mainstream, decadente e falida, se presta a servir de ‘regulador da opinião pública’. Ao longo de dois anos e meio intentámos 22 intimações junto dos tribunais administrativos, não poupando ninguém que nos recuse ilegitimamente documentos por razões de obscurantismo, a começar por entidades do Ministério da Saúde, mas também incluindo até o Conselho Superior da Magistratura e a Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Já agora, com estas duas entidades, ganhámos em duas instâncias. Tudo, porventura, por causa dos nosso “delírios de grandeza”, e também por causa dos nossos leitores que insistem em apoiar esta contínua campanha através do FUNDO JURÍDICO.

    Vista da nova redacção do PÁGINA UM para as inspiradoras ‘ruínas’ do antigo Hospital Miguel Bombarda, em Lisboa.

    Porém, é de facto verdade: o PÁGINA UM, ao fim de dois anos e meio, é um jornal cheio de “delírios de grandeza”, mas não aqueles que o ‘jornalista comercial’ da Visão sugere, mas sim porque consideramos que aquilo que hoje parece uma quimera – um jornalismo dos três Is: isento, independente e incómodo –, afinal é possível.

    Parece-me cada vez mais evidente que, por agora, não é. Se hoje o PÁGINA UM consegue fazer um jornalismo isento, independente e incómodo, com acesso aberto, sem publicidade nem parcerias comerciais (e muito menos partidárias ou estatais), tal permite fazer apenas um jornal de pequeníssima dimensão, e facilmente ignorado.

    Desde o seu início, o PÁGINA UM tem vivido – como foi planeado – apenas com o apoio dos seus leitores, e no sentido desse apoio servir para pagar esse serviço de jornalismo independente e também o acesso aos leitores menos favorecidos. Actualmente, com variações, temos cerca de cinco centenas de apoiantes regulares e pontuais, com montante de donativos muito distintos, sobre os quais sempre estaremos gratos.

    Tem sido esse apoio – e o entusiasmo dessa comunidade – que tem permitido o ‘milagre’ do PÁGINA UM, ao mesmo tempo que temos contas limpas: não temos dívidas nem atrasos de pagamentos.

    Mas ter esse meio milhar de apoios – que resulta numa receita mensal de pouco mais de quatro mil euros – mostra-se completamente insuficiente para dar o salto qualitativo e quantitativo que ambicionávamos nos nossos “delírios de grandeza”, tendo em conta também os custos de gestão e do arrendamento da nova redacção do PÁGINA UM. E, infelizmente, há cada vez mais notícias e investigações que acabam manifestamente ‘encalhadas’ por essa incapacidade de contratar (a pagar a) mais jornalistas. Isto sem prejuízo do enorme esforço pessoal que me tenho imposto. Estamos presos por estar a fazer um jornal que, para não ter dívidas nem dependências externas, acaba feito por menos de “meia dúzia de gatos pingados”.

    Vista parcial da nova redacção do PÁGINA UM.

    O PÁGINA UM não vai desistir, fiquem descansados (ou, no caso, dos nossos ‘inimigos’, não descansem): embora não estando a crescer em termos de receitas (pelo contrário), não temos dívidas e estamos (ainda) muito longe de atirar a toalha ao chão, tanto mais que mudámos recentemente de redacção. Na verdade, este editorial, simbolicamente escrito do Dia de Portugal, constitui sim um apelo (e não aos que já nos apoiam financeiramente): ajudem-nos a criar condições para recuperar o conceito do jornalismo de serviço público, independente, isento e incómodo. Estamos mesmo a estender-vos a (nossa) mão, para que possamos retribuir, para retribuir jornalismo no estado puro. Sempre nos parece mais nobre do que aquilo que a imprensa mainstream, com jornalistas engravatados e com ares de muito respeitáveis, tem procurado fazer: mendigar apoios ao próprio Estado ou ‘vender a alma’ com as constantes parcerias empresariais envolvendo jornalistas da casa, porque se endividaram e deram calotes fiscais como se não houvesse amanhã. Na verdade, querem viver ‘à conta’ dos contribuintes; enquanto o PÁGINA UM quer viver à conta dos seus leitores. Parecendo igual, não é.


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  • O modelo de governo europeu, ou a indigência sob a forma de jornalista

    O modelo de governo europeu, ou a indigência sob a forma de jornalista


    Chateia-me a ignorância. A directora-adjunta do Público Marta Moitinho Oliveira não estará no lote dos ignorantes – acredito, ou tenho fé, pelos seus ininterruptos 25 anos de jornalismo, com passagens pelo Euronotícias, Diário Económico, Jornal de Negócios, Diário Económico, Sol, Lusa, novamente Diário Económico, Jornal de negócios, ECO e Público, onde está desde 2020, tendo cargos de chefia desde 2021.

    Deduzo que tenha aprendido, ao longo destes tempos, alguma coisa sobre o funcionamento da União Europeia e sobretudo para o esvaziamento das funções do Parlamento Europeu. E, se assim foi, o seu editorial de hoje é uma lamentável indigência e uma grosseira manipulação, ainda mais dando um péssimo exemplo que, ao invés de conceder confiança institucional na União Europeia, nos demonstra estarmos reféns de uma elite anti-democrática, na fronteira da oligarquia.  

    Hoje, todos devemos saber, o Parlamento Europeu – perante a Comissão Europeia, o Conselho Europeu e o Conselho da União Europeia – é uma espécie de ‘Rainha da Inglaterra’. Adopta legislação, mas juntamente com o Conselho da União Europeia, com base em propostas da Comissão Europeia, decide sobre os acordos internacionais, alargamentos, analisa o programa de trabalho da Comissão, fazendo propostas, e tem poderes (limitados) de supervisão, elege (e pode destituir) o presidente da Comissão (serão agora 720 eurodeputados, portanto o peso de um país é quase nulo) e aprova a sua equipa, concede a quitação ao orçamento e aprova o quadro financeiro plurianual. É o único órgão eleito, mas o poder efectivo é quase nulo – e mais ainda para um país pequeno como Portugal, que elege apenas 21 dos 720 eurodeputados (2,9% do total), ainda mais de forças políticas que agendas acopladas às suas ‘famílias’ políticas europeias. Não surpreende que, somente por esse motivo, a abstenção esteja elevada – e devia ser visto sobretudo um ‘recado’ dos cidadãos europeus sobre um sufrágio que anda a brincar com a democracia.

    Hoje, todos devemos saber, quem verdadeiramente determina a política europeia é a Comissão Europeia e o Conselho Europeu, onde a Alemanha (sobretudo) e a França mais do que pretenderem alimentar um espírito de coesão de um continente em contínuas convulsões e conflitos em séculos precedentes, desejam criar artificialmente um modelo federal ao arrepio da História e rumo das distintas nações e culturas. Esquecem que sempre que houve tentativas de criação de impérios ou federações, os resultados foram nefastos.

    Ora, mas Marta Moitinho Oliveira – que, na verdade, representa uma ‘linha’ instruída no jornalismo – para tentar demonstrar, no seu editorial de hoje no Público, as vantagens de se votar nas eleições para o Parlamento Europeu dá, como exemplo, “a compra conjunta de vacinas para a covid-19, conseguindo assim pôr em prática uma das mais importantes recomendações médicas dadas durante a pandemia”.

    blue and yellow flag on pole

    Podiam as vacinas contra a covid-19 ser a mais importante recomendação médica durante a pandemia – concedo até, como hipótese académica, a ser ‘testada’, a começar pela imprensa –, mas já é absurdo e de uma atroz manipulação (ou ignorância, mas eu tenho fé de não ser essa a causa) associar a eleição para o Parlamento Europeu com o modus operandi das vacinas (e também de outros fármacos, como o remdesivir, da AstraZeneca, e o Paxlovid, da Pfizer), que é porventura um dos eventos mais obscuros e antidemocráticos que temos assistidos nos últimos anos na União Europeia.

    Eu acredito que Marta Moitinho Oliveira estejam ‘amestrados’, e perdido a capacidade crítica durante a pandemia, e tenham alguma dificuldade de ‘acordar’. Mas, caramba! Não leu o The New York Times sobre o affair entre Ursula von der Leyen e Albert Bourla, CEO da Pfizer, que andaram a negociar por WhatsApp, sendo as mensagens entretanto escondidas? Não sabe Marta Moitinho Oliveira que o The New York Times processou a Comissão Europeia como parte de um pedido de liberdade de informação – e é triste que isso seja feito por um jornal não europeu –, estando o processo judicial pendente no Tribunal Europeu?

    Não sabe também Marta Moitinho Oliveira que não só os contratos conjuntos negociados pela comissão von der Leyen (que desoneraram as farmacêuticas de responsabilidades) como também os contratos nacionais – no caso português, assinados pela Direcção-Geral da Saúde e as farmacêuticas – estão a ser escondidos, estando em curso, no segundo caso, um penoso e vagaroso processo intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa intentado pelo PÁGINA UM desde Dezembro de 2022? E que existe o risco de ser considerado que os tribunais nacionais sejam incompetentes para decidir sobre contratos secretos assumidos pela Comissão Europeia?

    a bunch of flags that are in front of a building

    Isto é uma democracia? Isto é um modelo de transparência sadia?

    É esta a União Europeia que Marta Moitinho Oliveira – e outros que comungam deste modelo – quer para si como cidadã portuguesa? Se sim, que tome essa posição clara, não usando a ‘pele de jornalista’ que nos quer evangelizar, dizendo, de modo manipulatório, que temos de votar no Parlamento Europeu porque o secretismo de uma elite não-democrática é bom para a saúde.


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  • A Guerra da Ucrânia: uma perspectiva libertária

    A Guerra da Ucrânia: uma perspectiva libertária


    A contenda que assola o cenário mundial actualmente é entre a Rússia, de um lado, e o líder da NATO, os Estados Unidos, do outro, acompanhado dos seus estados suseranos: as nações europeias, incluindo a Ucrânia.

    Pela negativa, dois Estados vassalos em destaque: a Alemanha, que arca com a maior parcela dos auxílios financeiros e provê uma parte substancial dos recursos bélicos, enquanto é sujeita a terrorismo económico, como foi o caso da destruição do gasoduto Nordstream, cujo autor da façanha permanece envolto em mistério até os dias de hoje.

    O segundo, e sem dúvida o mais lamentável, é reservado ao Estado ucraniano, que se ergue como uma testa-de-ferro dos interesses norte-americanos perante a Rússia, detendo como único activo os seus cidadãos a desempenhar o papel de peões sacrificiais.

    É importante ressaltar que os Estados se constituem como entidades parasitárias, destituídas de qualquer produção benéfica à sociedade; são, de facto, organizações criminosas cuja estrutura se assemelha à Máfia. Nos seus domínios, extorquem os cidadãos produtivos, não tolerando qualquer concorrência, privando-os, na maioria das vezes, de quaisquer meios de defesa, como armas. Além disso, os Estados detêm o monopólio da arbitragem de conflitos entre os membros da sociedade, inclusive quando estão envolvidos, seja como acusadores ou réus. Os seus tribunais e juízes têm sempre a palavra final. Nas guerras, podem fazer recair todos os custos sobre a população: recursos financeiros e jovens para a matança.

    Assim, temos uma quadrilha comandada por Putin e outra por Zelensky, sendo esta última respaldada pela quadrilha mais poderosa do mundo, os Estados Unidos da América; estes encaram a Rússia e a China como as únicas quadrilhas rivais à sua altura, representando verdadeiros obstáculos à sua ambição de hegemonia global: a liderança de um governo mundial, com o Dólar norte-americano a desempenhar o papel incontestável de moeda reserva do mundo.

    Em 2014, a máfia norte-americana instalou um bando de criminosos da sua confiança na Ucrânia, concedendo-lhes carta-branca para bombardear, intimidar e subjugar a população de cultura russa, relegando-a ao estatuto de cidadãos de segunda. Posteriormente, abriram-se as portas da NATO, apesar das promessas feitas há décadas de que tal expansão jamais aconteceria. Até tentaram encenar uma farsa de paz com os acordos de Minsk, os quais, na verdade, serviram apenas para armar a quadrilha ucraniana para a guerra que se previa, tal como posteriormente confirmado por Angela Merkel.

    Em circunstâncias normais, seria expectável que a sinistra quadrilha liderada por Putin eliminasse a bandidagem de Zelensky, instalando no poder uma quadrilha fantoche e aliada em Kiev. No entanto, tal desfecho não se concretizou, uma vez que a quadrilha de Zelensky desfruta de vastos recursos materiais e financeiros – a impressora é infinita –, provenientes da quadrilha dos EUA e dos seus subjugados estados europeus.

    Além disso, a quadrilha de Zelensky tem por trás a máquina global de propaganda controlada pelos EUA: os eventos na Ucrânia não são retratados como uma disputa regional entre grupos mafiosos em busca de poder e território, mas sim como um confronto épico entre o bem e o mal: uma Ucrânia virtuosa, onde todos os ucranianos são vítimas dos vilões russos, e, portanto, qualquer apoio oferecido à Ucrânia é visto como um acto do bem!

    A quadrilha liderada por Zelensky desempenha um único papel: enviar a juventude do território sob o seu controlo a servir de carne para canhão, nada mais. É digno de nota que a quadrilha Zelensky tentou desesperadamente restringir a saída de homens ucranianos entre 18 e 60 anos do país, resultando em milhões de desertores.

    Os custos derivados da fuga da população não são suportados pela quadrilha Zelensky; recaem sobre os cidadãos produtivos dos estados vassalos europeus, mediante o seu confisco tributário; arcam com todas as despesas: alimentação, assistência financeira, alojamento e demais despesas. Ao contrário da quadrilha Zelensky, a quadrilha Putin foi obrigada a impor à população do seu território o ónus de custear três milhões de refugiados.

    Qual é a razão por trás do uso dos peões sacrificiais ucranianos? A quadrilha dos Estados Unidos compreende que a quadrilha Putin não é um Iraque ou Afeganistão qualquer. Pelo contrário, encontra-se fortemente armada, possuindo, inclusive, tantas ou mais ogivas nucleares que a quadrilha dos Estados Unidos. Por esta razão, recorreu às sanções económicas, numa tentativa de arruinar economicamente o território sob o domínio da quadrilha Putin e entregou os jovens ucranianos ao sacrifício no altar da guerra.

    Para a população ucraniana, a situação é profundamente angustiante: testemunhar uma guerra entre duas facções rivais, enfrentando a possibilidade iminente de perder toda a sua propriedade privada e ter as suas vidas devastadas. De um lado, a facção liderada por Zelensky tem o poder de recrutar à força, e até mesmo de perpetrar assassinatos, confiscar propriedades e congelar contas em nome da defesa nacional. Por outro lado, a facção liderada por Putin tem a capacidade de capturar, assassinar e apossar-se de propriedades, ou até mesmo destruí-las, sob o pretexto da libertação nacional. É uma realidade verdadeiramente aterradora.

    Os Estados Unidos não demonstram o mínimo interesse pelo país denominado Ucrânia, apenas a utilizam como um verdadeiro “idiota útil” na sua estratégia de dominação global. A Ucrânia tornou-se um peão nas mãos dos norte-americanos, sendo manipulada e explorada para servir os interesses geopolíticos dos norte-americanos, enquanto estes permanecem indiferentes às consequências devastadoras das suas políticas. Com tudo pago pela impressora do Banco Central norte-americano, o complexo militar-industrial norte-americano está a lucrar exorbitantemente com as ajudas enviadas à Ucrânia, pelo que tem todo o interesse em prolongar este conflito.

    A tragédia que se desenrola na Ucrânia expõe de forma contundente a cruel realidade de uma população, tanto ucraniana como russa, a ser usada como peões num jogo de xadrez geopolítico, à mercê dos caprichos de facções rivais que buscam apenas os seus próprios interesses egoístas, sem se importar com as vidas humanas que destroem. Na verdade, não são mais que guerras entre grupos criminosos a que chamamos estados.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


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