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  • Trump visto pelos profetas do caos e mercadores das catástrofes

    Trump visto pelos profetas do caos e mercadores das catástrofes


    Deliciam-me mais os profetas da desgraça do que os arautos da esperança. Há algo de magnético em quem, armado de pena ou verbo, anuncia o caos como um comerciante de banha da cobra no meu Mercado de São José ou um vendilhão de quinquilharias na vossa Feira da Ladra. Não é que me falte simpatia por um Bloch, mais as suas utopias de um amanhã ideal; por um Rousseau, mais o seu contrato social que redime o homem moderno; ou por um Marcel, e mais o seu amor humano como antídoto contra o desespero – mas há uma certa majestade sombria em Hobbes, com o seu Leviatã a triturar liberdades; uma certa gravidade lúgubre em Schopenhauer, que fez das cegas vontades o motor do sofrimento universal; ou mesmo uma certa altivez tenebrosa em Nietzsche, que, proclamando a morte de Deus, nos legou a necessidade de criar sentido num universo vazio.

    A verdade, minhas graciosas leitoras e veneráveis cavalheiros, o pessimismo é mais convincente do que o optimismo. Afinal, o desgraçado que tropeça, e cai, tem a gravidade como aliada; já o esperançoso que tenta voar, desafia Newton e os seus dogmas, e ademais se escaqueira, volta e meia, qual Ícaro, no empedrado da realidade. Se, na História, os arautos do colapso anunciaram catástrofes – muitas vezes concretizadas –, na Filosofia ofereceram-nos sempre uma doce melancolia, um antídoto contra o excesso de alegria que, amiúde, turva os olhos da razão.

    Porém, ah!, sublime ironia, os profetas da desgraça raras vezes se revelam derrotistas em absoluto. Há, em si, intrinsecamente, nos seus lúgubres presságios uma oculta centelha de esperança. Por exemplo, quando Hobbes pintava, de forma austera, o homem como um lobo, murmurava uma redenção pelo contrato social. Quando Marx previa a luta de classes, vislumbrava também, a despontar no horizonte, um paraíso do proletariado. Quando Hannah Arendt, traçava um diagnóstico implacável sobre os totalitarismos, desvendando a banalidade do mal, sonhava com a resistência como redenção da Humanidade contra a apatia moral.

    Destarte, os melancólicos visionários resguardam no bolso um sonho envergonhado de salvação – como quem, prevendo tempestades, secretamente leva um guarda-chuva na esperança de, enfim, poder dar conta do recado.

    Ora, se até os filósofos, nos seus extensos e densos tratados, revelam essa dualidade entre a desgraça e a redenção, o que diremos dos jornalistas? Esses modernos agoureiros que, com teclados em riste, anunciam o juízo final em directo, embora escondendo um brilhozinho nos olhos, porque, para eles, o apocalipse é uma mercadoria.

    Os jornalistas são, nos tempos hodiernos, as Cassandras de antanho, mas escrevendo agora textos escatológicos, cheios de metáforas vulcânicas e de previsões de derrocadas iminentes. Porém, ao pintar o caos, buscam redenção nas vendas de assinaturas ou nos gráficos de audiência, e sem o peso trágico de qualquer maldição. Enquanto Cassandra era ignorada na sua clarividência, os jornalistas da calamidade são amplificados por cliques, partilhas e manchetes. Não é a verdade que os move; é a economia do pânico.

    Mas – ah, ironia das ironias! –, no fundo do seu ser, eles não desejam o fim do mundo. Não, nanja, nunca! Eles querem, sim, o mundo à beira do abismo, suspenso, sem cair. Que proveito lhe daria um apocalipse consumado? O fim das receitas publicitárias, das transmissões urgentes, dos likes e das partilhas que alimentam o seu pecúlio. Convenhamos, uma ruína universal lenta e documentada é bem mais proveitosa do que um esvaziamento cósmico vertiginoso e sem papel.

    O agora subdirector do jornal Expresso, Pedro Candeias, mostrou-se por estes dias, em letras, um belíssimo exemplar dessa nova linhagem de Tirésias contemporâneos. Não, não me refiro à cegueira literal, mas àquela outra, mais sofisticada, que, pré-anunciando um desastre – iminente ou improvável, indiferente lhe é –, logo congemina a oportunidade de o transformar em manchete.

    Escreveu ele – e logo ele, que até há pouco andava a narrar pontapés na bola e os meandros de suas transações comerciais – uma pungente ode ao alarmismo apocalíptico internacional! Confesso que, ao lê-lo, senti-me transportado para uma assembleia medieval de oráculos vaticinando a queda iminente do céu.

    E que espectáculo, este seu texto! Uma verdadeira sinfonia de exageros que faria o meu saudoso Quincas Borba gargalhar ao ponto de quase sufocar na própria filosofia. Imagino-o, ao ler tal peça, a exclamar triunfante: “Ao vencedor, as batatas… e ao Candeias, o pânico!” Sim, porque ali não há lugar para o tom sereno do cronista ponderado, somente para a verve inflamável de um fervoroso profeta..

    Ora, garantiu-nos o Candeias – com a solenidade de quem descobre a pólvora explodida há séculos – que bastará Trump ser empossado na segunda-feira para que, vejam bem, “o mundo que acordar na terça-feira pouco terá a ver com o que se deitou no domingo anterior.” Um “facto”, segundo ele!

    Ah, e que magnífica obra do engenho humano é a sua capacidade de se anunciar uma “nova ordem mundial”! Não importa que a História, essa senhora teimosa e sarcástica, já tenha discorrido com séculos de caos perfeitamente ordenado: cruzadas, colonizações, revoluções industriais, mundiais e digitais; sempre a mesma orquestra, de homens explorando homens, apenas com novos instrumentos a desfiar e a desafinar.

    Nada que o cândido Candeias subverta e descubra no senhor Trump o inédito protagonista de uma ópera bufa onde o protecionismo é o prelúdio, o aquecimento global o refrão e as ameaças geopolíticas a batida do tambor. “Nova era”, diz-nos. Oh, e já não ouvimos antes variações desta sinfonia? Quando os Habsburgos dominaram meio mundo com a subtileza de um rinoceronte num salão de porcelanas? Quando Napoleão, em delírios cartográficos, decidiu que um mapa não era mais do que um rascunho à espera da sua assinatura, caneta numa mão, baioneta na outra? E Hitler? Ah, o que me faz o Candeias: descambei no desgraçado reductio ad Hitlerum. Pronto: vejamos então o Tio Sam, já um tanto pançudo e cheio de corantes, fast food e diabetes. Bem antes de Trump, não singrou o Tio Sam por mares nem calcorreou continentes para ajustar umas tacadas entre um embargo e outro, umas pancadas entre uma invasão e outra.

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    Para o Candeias, de que serve olhar para Woodrow Wilson, para Franklin Roosevelt e até para Ronald Reagan, que alternavam entre o escudo do isolacionismo e o florete do protecionismo, qual mosqueteiros indecisos? Ah, esses, claro, não eram magnatas imobiliários de frases curtas, mínimos substantivos e tweets bombásticos. E não havia, para lhes acender as chamas do ego, um Musk, essa figura que é o sonho húmido tanto dos capitalistas aventureiros como dos jornalistas paladinos na luta contra a desinformação que, amiúde, alimentam.

    Mas Candeias, esse santo observador, acredita que cada nova fanfarra trumpiana inaugura um concerto jamais ouvido. E ignora, coitado, que, per saecula saeculorum, se têm tocado as mesmas melodias, somente variando os arranjos. O mundo, sei bem, não é senão um velho teatro, com actores renovados e cenários gastos.

    Para o Candeias, tudo lhe é novo. A Gronelândia, coitada, diz ele, uma vítima trágica de “insinuações musculadas”. Já não bastava a Rússia, agora surge a ameaça norte-americana? A base aérea de Thule caiu de para-quedas em 1951, presumo. Imagino agora os fiordes em polvorosa a preparar discursos de boas-vindas com tradutores simultâneos para o peculiar dialecto trumpiano, porque encontrar lá uma população equivalente à da Póvoa de Varzim disseminada em território vinte e quatro vezes maior do que Portugal não será tarefa fácil para os marines.

    Ah, e o Canadá, tão ordeiro, deve estar a polir as suas folhas de ácer por antecipação à suposta – que digo!, garantida! – invasão dos vizinhos norte-americanos. Quanto ao Canal do Panamá, se o Candeias diz que vai suceder, porque não? Nem sei como se esqueceu de nomear a intenção do Trump de cambiar o Golfo do México para Golfo da América. Acho uma excelente ideia para quem já teve um casino chamado Taj Mahal em Atlantic City e o vendeu depois ao Hard Rock Café…

    Candeias é um ingénuo. Se Trump tossir, ele anunciará um surto pandémico de proporções bíblicas. Se Trump sorrir, ele verá nesse singelo gesto o prelúdio de uma nova praxis diplomática. Se Trump elevar a mão para compor a cabeleira ou coçar a cabeça, ele vislumbrará uma conspiração, talvez envolvendo piolhos radioactivos. Se Trump cruzar os braços, ele descortinará o arquétipo de embargos económicos que nem pastel de nata e o queijo de Nisa pouparão. Se Trump bocejar, ele proclamará o despontar de uma era de desmotivação global, um fenómeno tão profundo que Nietzsche, da tumba, virá denunciar. Se Trump errar o caminho para o quarto na Casa Branca, ele afirmará que o mapa dos Estados Unidos se redesenhou durante a madrugada pela secreta tinta de um cartógrafo mefistofélico. Se Trump, enfim…

    Candeias, pobre Candeias, viverá da crença inabalável de que cada gesto de Trump será um decreto; cada palavra um édito; e cada silêncio, ah, cada silêncio, minhas esclarecidas leitoras e doutos leitores, a mais temível das estratégias. Se Trump um dia decidir ficar quieto, Candeias talvez venha anunciar o fim do mundo.

    Na certeza do seu cataclismo, Candeias lançou, porém uma trágica pergunta de ouro: “O que aí vem?” Ninguém sabe”, respondeu, o tonto. Que candura, depois de tudo o que antes postulara. Que leveza de espírito, que irresponsável abertura ao desconhecido! Como se não estivesse estado, neste mesmo texto, a traçar cenários dignos de um Nostradamus em delírio. Ora, afinal acaba a dizer que ninguém sabe o que vem, quando garantiu antes que seria terrível. É a eterna arte do jornalismo sensacionalista: criar um vácuo de incerteza para ali semear o medo e regado a ansiedade.

    Trump e Musk, na narrativa de Candeias, serão, neste cenário de efabulação e de especulação, os monstros míticos que habitarão o seu Olimpo editorial. E então, com a altiva pose de quem carrega a tocha da verdade, Candeias e o seu Expresso vão “oferecer contexto” aos leitores. Enquanto o fim dos tempos não chega ao mundo, aproveita-se o tempo para fazer negócio sobre o fim do mundo.

    Eis, pois, a verdade nua e crua: os jornalistas da desgraça, como Pedro Candeias, têm um segredo quase freudiano. Na sua alma, não são arúspices do fim dos tempos; são gestores da calamidade. Querem o caos, mas que seja um caos lucrativo, como uma girândola em chamas perpétuas que atrai curiosos e vende bilhetes à entrada. Deles se pode dizer que são como Ícaros invertidos: não alçam voo rumo ao sol, descem à escuridão, como garimpeiros malabaristas explorando as profundezas da vertigem até ao tutano. Afinal, é do precipício que vivem, nunca da queda.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM registou-o como marca nacional no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.


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  • Robert F. Kennedy Jr. e a cura para a hesitação vacinal

    Robert F. Kennedy Jr. e a cura para a hesitação vacinal


    A única maneira de restaurar a confiança do público na vacinação – que sofreu um grande abalo por causa das mentiras associadas ao lançamento da vacina contra a covid-19 – é colocar um conhecido céptico no comando da agenda de pesquisa de vacinas. A figura ideal para liderar esse processo é Robert F. Kennedy Jr. (RFK), que foi indicado para dirigir o Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos.

    Ao mesmo tempo, temos de encarregar cientistas rigorosos, com um historial comprovado em Medicina Baseada na Evidência, de determinar o tipo de modelos de estudo a adoptar. Dois cientistas ideais para isso são o Dr. Jay Bhattacharya e o Dr. Marty Makary, que foram nomeados para liderar o NIH [National Institutes of Health] e a FDA [Food and Drug Administration], respectivamente.

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    As vacinas são – juntamente com antibióticos, anestesia e saneamento – uma das invenções médicas mais relevantes da História. Concebida pela primeira vez em 1774 por Benjamin Jesty, um agricultor em Dorsetshire, Inglaterra, só a vacina contra a varíola salvou milhões de vidas. A Operação Warp Speed, que rapidamente desenvolveu as vacinas contra a covid-19, salvou muitos americanos mais velhos. Apesar disso, assistimos a um aumento marcante da hesitação vacinal. Cientistas de vacinas e autoridades de saúde pública que não conduziram testes devidamente randomizados fizeram alegações falsas sobre a eficácia e segurança da vacina e estabeleceram mandados para pessoas que não precisavam das vacinas, semeando suspeitas e prejudicando a confiança do público na vacinação.

    O que correu mal? O objectivo das vacinas contra a covid-19 era reduzir a mortalidade e hospitalização, mas os ensaios  randomizados foram projectados apenas para demonstrar a redução a curto prazo nos sintomas de covid-19, o que não é de grande importância para a Saúde Pública. Uma vez que os grupos placebo foram prontamente vacinados após a aprovação de emergência, eles também não forneceram informações confiáveis sobre reacções adversas. Apesar dessas falhas, foi falsamente alegado que a imunidade conferida pela vacina é superior à imunidade natural adquirida pela infecção e que as vacinas evitariam a infecção e a transmissão.

    Governos e universidades então obrigariam a vacinação de indivíduos já imunizados naturalmente [por terem tido a doença], que era superior [à da vacina], e para jovens com risco de mortalidade muito baixo. Esses mandados não eram apenas anticientíficos; com um fornecimento limitado de vacinas, era anti-ético vacinar pessoas de baixo risco de mortalidade quando as vacinas eram necessárias para pessoas mais velhas de alto risco em todo o Mundo.

    Como os Governos e as empresas farmacêuticas mentiram sobre a vacina contra a covid-19, também estão a mentir sobre outras vacinas? O cepticismo agora espalhou-se para vacinas testadas e verdadeiras, que comprovadamente funcionam.

    E há questões genuínas ainda não respondidas sobre a segurança das vacinas em geral. Um estudo pioneiro realizado na Dinamarca mostrou que as vacinas podem ter efeitos inespecíficos positivos e negativos  em doenças não-alvo, e isso é algo que deve ser explorado com maior profundidade. Os cientistas do Vaccine Safety Datalink (VSD) que estudam vacinas contra asma e alumínio  concluíram que, embora as suas “descobertas não constituam fortes evidências para questionar a segurança do alumínio em vacinas (…) um exame adicional desta hipótese parece justificado.”

    Enquanto o VSD e outros cientistas devem continuar a fazer estudos observacionais, também devemos conduzir ensaios randomizados de vacinas controlados por placebo, como RFK tem defendido. Uma vez que temos imunidade de grupo para muitas doenças, como o sarampo, os ensaios podem ser conduzidos eticamente aleatorizando a idade de vacinação para, por exemplo, um ano versus três anos de idade, enquanto distribuímos o ensaio por uma grande área geográfica para que os não-vacinados não vivam todos perto uns dos outros.

    Estou confiante de que a maioria das vacinas continuará a ser considerada segura e eficaz. Embora alguns problemas possam ser encontrados, é mais provável que isso aumente em vez de diminuir a confiança na vacina. Por exemplo, verificou-se que a vacina contra o sarampo-papeira-rubéola-varicela [N.D. denominada MMRV ou tetraviral, sendo que em Portugal geralmente se exclui a varicela] causa convulsões febris em excesso em crianças dos 12 aos 23 meses de idade. A MMRV agora é administrada apenas como uma segunda dose para crianças mais velhas, enquanto as crianças mais novas recebem vacinas separadas contra a tríplice viral e varicela, resultando em menos convulsões induzidas pela vacina que assustavam os pais. Embora os estudos de segurança tenham sido inconclusivos, também foi sensato remover o mercúrio das vacinas. Mesmo que acabemos com menos vacinas no esquema vacinal recomendado, isso não é necessariamente uma coisa terrível. A Escandinâvia [N.D. Kulldorf é sueco] tem uma população muito saudável, com menos vacinas nos seus programas de vacinação.

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    Não vamos restaurar a confiança na vacina pregando ao coro. Após o desastre da covid-19, o objectivo declarado de Kennedy é retornar à Medicina Baseada na Evidências livre de conflitos de interesse. Deixá-lo fazer isso é a única maneira de os cépticos voltarem a confiar nas vacinas, e aqueles que confiam nas vacinas não têm motivos para ter medo disso.

    As tentativas das instituições de saúde pública e farmacêuticas de inviabilizar as nomeações de RFK, Bhattacharya e Makary são a maneira mais segura de agravar ainda mais a hesitação vacinal nos Estados Unidos. A escolha é gritante. Não podemos deixar que os “cientistas pró-vacinas” desequilibrados, que apertam as mãos sobre as orelhas nas perguntas mais brandas, causem mais danos à confiança nas vacinas. Como cientista pró-vacina e, na verdade, a única pessoa a ser demitida pelo CDC por ser muito pró-vacina, a escolha é clara. Para restaurar a confiança nas vacinas para os níveis anteriores [à pandemia da covid-19], devemos apoiar as nomeações de Kennedy, Bhattacharya e Makary.

    Martin Kulldorff é membro fundador da Academia para a Ciência e a Liberdade. Foi professor na Harvard Medical School até ser demitido por não tomar a vacina contra a covid-19, apesar de ter imunidade natural superior. Ele estuda vacinas há mais de duas décadas, ajudando a desenvolver partes dos sistemas de vigilância de segurança de vacinas do CDC e da FDA. Tem um h-index de 67 no Scopus, um valor bem acima dos requisitos de investigadores seniores.

    Este texto foi originalmente publicado no site RealClear Politics sob o título The Cure for Vaccine Skepticism. O PÁGINA UM agradece a Martin Kulldorff a permissão para a sua tradução e publicação em português.


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • O ocaso de Fábio Fausto

    O ocaso de Fábio Fausto


    Fábio Fausto não criava nada havia anos. Durante bastante tempo, para não ficar ancorado no vácuo, dedicou-se à contemplação do êxito pretérito, e isso funcionara como uma poderosíssima droga — passara dois terços do tempo a escutar a sua voz e a examinar-se em vídeos, e o outro terço a esquadrinhar o que haviam dito sobre Fábio Fausto e a sua obra: quilómetros e quilómetros e quilómetros de elogios que não conseguira ler e ouvir no pináculo da fama. Talvez tivesse ouvido mil e quinhentas vezes (mil?, duas mil?) os segundos em que um excelso crítico estrangeiro declarara ter Fábio Fausto «expandido e redefinido os limites da arte como ninguém», e lido cerca de quatrocentas vezes o influenciador que sentenciara: «A sua persona reinventou a própria ideia de carisma.» 

    Triturado sob a pletora de novos artistas de pechisbeque, sentia-se, dia após dia, crescentemente apartado do mundo. A revolta e a solidão ardiam dentro de si — o paladar amestrado pela tirania do oco evanescente perdera a capacidade de distinguir a futilidade mais óbvia da genialidade que ocorria duas ou três vezes num século.

                                               

    Procurava acreditar que o tempo depuraria tudo, mas a glória póstuma não o sossegava, e nem dela estava seguro. A própria ideia de o tempo ser o grande juiz da arte assentava no dogma de que, no futuro longínquo, continuaria sempre a haver respeitáveis criaturas que fossem escutadas por outras em número suficiente — algo de que já tinha muitas dúvidas.

    Fábio Fausto não queria apenas cravar uma faca no futuro longínquo. Almejava a eternidade. Sabia, sem grânulo de dúvida, que a merecia.

    O tempo movia-se, e a obra de Fábio Fausto crescia em esquecimento e indiferença. A ansiedade deslizava para a angústia: estaria o Sol eternamente condenado a viver escondido nas trevas?

    As suas últimas criações, que tinha a certeza de serem as melhores, não haviam comovido o público nem a crítica.

    Fábio Fausto temia ainda que não sobreviesse nenhum resplendor ao que já apresentara ao mundo — muito provavelmente, nunca faria nada tão bom como outrora, pelo que preferia não fazer nada. Os concertos e pedidos de entrevistas eram cada vez mais esparsos. A crítica de «servir sempre o mesmo prato requentado» era um pedregulho no esófago quando estava no palco.

    Não tinha luxos nem singulares ambições materiais — o dinheiro que acumulara chegava para muito mais vidas. O seu maior lucro era a vaidade. O terror de o seu génio não ter por onde se manifestar, o horrífico medo de que não se lembrassem dele com a intensidade exclusiva que desejava e merecia, o vazio de não ter espelhos que lhe mostrassem a glória reflectida… tudo isso era algo que não conseguia suportar.

    Precisava de ter uma razão para acordar, tomar banho e calçar os sapatos. Num período de noites insones, descobriu um canal no mundo digital e começou a retrabalhar a sua persona de outrora, ainda que já não produzisse quase nada no domínio da música.

    Ao fim de pouco tempo, publicava algo todos os dias. Não tardou a que publicasse uma dúzia de vezes por dia. Sentindo a temperatura, foi-se moldando em busca do maior número de seguidores. Antes, na música, dava o melhor de si sem contorcionismos mercantis (pelo menos, acreditava nisso), sem pensar nos outros, e conseguira reunir qualidade e êxito comercial apenas com base no seu estro. Agora, na persona digital, não dava um passo sem calcular o que colheria maior aceitação. Talvez não fosse tão sincero, mas não era certamente um exercício menos fechado ao Outro, pensava: era preciso farejar bem o Outro e pressentir as tendências no éter.

    Certas práticas provocavam amolgadelas e fissuras dentro de Fábio Fausto, mas a busca do cintilante número um era mais forte. O vício foi aumentando, até que todo o tempo de que dispunha era para acompanhar o canal. Era um espaço malsão, pensava nos interstícios. E daí? Que espaço concorrencial não produzia aberrações?

    Havia um urso imobilizado em que pugilistas davam socos, numa competição com muitos adeptos, havia um homem muito rico que dava gorjetas no valor de muitos salários e que testava os empregados atirando a comida para o chão e obrigando-os a apanhá-la — «Se queres a gorjeta, apanha!», «Agora, rebola no chão… Não rebolas, não tens gorjeta», «Faz o som de um porco a guinchar», tudo acompanhado das mais fortes gargalhadas e da mensagem final: «E mais uma vez… VENCEU O DINHEIRO!»

    E quando, volvidos poucos meses, era o número um do canal, todas as suas reflexões se extinguiram. Voltara a ser grande, e o labor da manutenção do número um não dava espaço para interrogações de espécie alguma.

    Deixara de sair de casa, estando sempre a alimentar o seu canto concorrido. Ia emagrecendo por não comer, alargando as olheiras, afogando-se no álcool. O Fábio Fausto exibido era, contudo, cada vez mais belo, cada vez mais viajado, cada vez mais dotado de vida singularmente colorida — uma vida que era em si uma obra de arte. O hiato era cada vez maior, exigindo-lhe um esforço sobre-humano para extrair do seu ser mortiço algo vivificante.

    Um dia, caiu inesperadamente para número dois, o mais enervante de todos os números, ultrapassado pelas Tropelias da Girafa Que Lava os Dentes. Estudou bem o inimigo. Pensou em inúmeras tácticas. Fez todo o tipo de concessões. Desatou a criar cenários fictícios, a fazer montagens, a exibir viagens que não realizava.

    Numa noite de álcool e desespero, deixou escapar um desabafo «NA MERDA, FINGINDO ESTAR NO PARAÍSO», que depressa apagou, mas que alguns não deixaram escapar.

    Lutando desesperadamente por ganhar lugares na competição, divulgou pretensos encontros com celebridades de prestígio — ou popularidade, era-lhe indiferente, tão-pouco enxergava diferença entre ambas — mundial. Uma denunciou a fraude. Outras seguiram-lhe os passos. Começou a ser alvo de campanhas de ódio. O seu telefone tocava com pedidos de entrevistas, que recusava. Ao ver a primeira página de um conhecido jornal, viu o seu nome e encharcou-se de álcool e calmantes, o que o convidou a uma estada num hospital. Uma criatura fotografara-o na cama de hospital e vendera a relíquia. Por mais que se tentasse isolar, as notícias entravam-lhe pelas paredes de casa. A conspurcada reputação de Fábio Fausto propagava-se por cada vez mais países, e ninguém, nas esferas privada ou pública, lhe concedia um átomo de solidariedade.

    Fábio Fausto dedicou-se a fazer listas: listas de todos aqueles que lhe deviam fama, dinheiro, contactos e que nunca lhe haviam sequer agradecido, listas de todos os que dera a conhecer ao mundo e que promovera tenazmente a troco de nada senão a crença no seu talento, listas de todos os que entravam em contacto com o celebérrimo artista quando este ganhava um prémio.

    Aqueles que haviam trabalhado com ele, aqueles que o haviam bajulado, aqueles que lhe deviam inúmeros favores: todos se calavam. E os que não se calavam faziam-no para transformar uma nanoagressão numa macroagressão, havendo quem inventasse histórias cruéis que deixavam Fábio Fausto atónito, enquanto os pedidos de cancelamento do seu espaço digital cresciam numa proporção geométrica.      

    Fábio Fausto lembrou-se do único amigo que considerava amigo, mas a chamada desaguou no correio de voz. Levou o carro para muito, muito longe e gaseou-se. Antes disso, activou e programou um mecanismo que continuaria a gerar publicações ad aeternum. No dia a seguir à sua morte, ainda desconhecida do público, subiu dez lugares com a primeira publicação criada pelo programa que comprara pouco antes de morrer. Os Gatinhos Mais Bonitinhos do Mundo caíam de primeiro para quinto, e as recém-chegadas Primeiras Fraldas do Bebé Felipe ocupavam agora o primeiro lugar.

    Manuel Matos Monteiro é escritor e director da Escola da Língua


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  • Brasil: Esquerda, volver ou Os riscos de um ‘cenário Biden’ em 2026

    Brasil: Esquerda, volver ou Os riscos de um ‘cenário Biden’ em 2026


    O ano é 2023. O começo de um sonho.

    Lula da Silva acaba de assumir, pela terceira vez, a Presidência da República. Eleito numa disputa acirradíssima contra o incumbente, Jair Bolsonaro, Lula dá-se conta do recado que as urnas mandaram-lhe. Sem se preocupar com a reeleição e desprezando as picuinhas típicas do ofidiário brasiliense, o babalorixá petista resolve governar com os olhos voltados para a História. Ao invés de promover um “governo do PT”, Lula coordena um governo de união nacional, refletindo a “frente ampla” responsável pela derrota da máquina bolsonarista. O troféu de “Getúlio Vargas do Séc. XXI” encontra-se ao alcance da mão.

    O ano é 2025. Deu tudo errado.

    Ao contrário do que se desenhava, desde quando assumiu, Lula e seu inner circle parecem ter acreditado que a esquerda – mais especificamente, a esquerda representada pelo PT – ganhou sozinha a eleição. Disso resultou um governo mais à sinistra do que os votos que o elegeram. Ao invés de Fernando Haddad e Simone Tebet, Gleisi Hoffman e Lindenberg Farias. Ao invés de moderação, confronto. Ao invés de Henrique Meirelles, sinais inquietantes de que os erros da tal “nova matriz macroeconómica” (que levaram à débâcle econômica de 2015-2016) não foram assimilados. Ao contrário de tornar-se o Vargas do Séc. XXI, Lula arrisca a tornar-se “Dilma II”.

    Lula da Silva

    O que aconteceu nesse intervalo de tempo?

    Vencedor do pleito mais disputado da nossa breve história democrática, Lula estava careca de saber que iria assumir um país fraturado até a medula. Não só porque o antipetismo – presente desde sempre em todas as eleições presidenciais de 1989 até 2022 – estava lá novamente, mas porque o seu antípoda – o bolsonarismo – havia cupinizado as instituições da República, a ponto de tornar possível uma tosca tentativa de golpe no dia 8 de Janeiro de 2023. Lula sabia que precisava de uma “frente ampla” para derrotar Bolsonaro. O que ele parece não ter entendido, contudo, é que ele também precisava de uma frente ampla para governar o país após tomar posse.

    Em 2003, quando assumiu o governo pela primeira vez, a esquerda não era tão minoritária no Congresso como é agora. Além disso, com o centrão da época, espelhado no velho PMDB, era possível negociar em termos razoáveis, na antiga base do “toma-lá, dá-cá” das emendas parlamentares. Hoje, além de a esquerda estar reduzida a menos de 1/3 do parlamento, o centrão de hoje esbaldou-se nos dinheiros do orçamento que foram sequestrados durante o desgoverno Bolsonaro. Como a Jair não interessava outra coisa senão passear de moto, jet ski e tentar organizar um golpe de Estado, o centrão vendeu os seus serviços em troca do assenhoramento de praticamente toda a verba discricionária existente no orçamento da União.

    Sem maioria congressual e com instrumentos reduzidíssimos para cooptar algo que se pudesse assemelhar a uma “base de apoio”, a Lula restava manter os compromissos que firmara durante a eleição, ou seja, trazer para seu barco toda a gente que se dispusesse a reconstruir o país, de modo a garantir a democracia tão duramente conquistada pela geração anterior. Ao invés de fazer isso, Lula loteou os principais centros de distribuição de poder entre petistas e empalhou duas de suas maiores estrelas (Marina Silva e Simone Tebet) em ministérios que, se não se pode dizer que sejam irrelevantes, possuem pouca ou nenhuma expressão real de poder.

    national congress, brasilia, building

    Em um cenário ideal, Lula viajaria o mundo, vendendo o país com a ajuda de sua extraordinária história política, e deixaria a um preposto (Geraldo Alckmin?) o papel de ser o “primeiro-ministro” na sua falta. Desse modo, a roda continuaria a girar por aqui e Lula seguiria a fazer aquilo que mais gosta: posar de líder global frente à mediocridade geral das lideranças dos países ricos. O que ocorreu, ao contrário, foi que Lula continuou a viajar e, na sua ausência, ninguém ficou empoderado para resolver as divergências políticas do dia-a-dia. Resultado: crises e paralisia da máquina, tudo à espera dos retornos do Presidente para arbitrar os conflitos entre os seus ministros.

    Como se isso não bastasse, ao caos administrativo somam-se agora dúvidas quanto à saúde de Lula. Pela segunda vez em dois meses, o Presidente foi internado para tratar de uma lesão sofrida na cabeça. Ninguém até agora entendeu direito como foi a dinâmica do acidente, mas é certo que ele atingiu a região occipital do crânio, mais popularmente conhecida como nuca. Da queda resultaram cinco pontos e uma cicatriz na cabeça.

    Se Lula fosse apenas mais um velhinho de 79 anos, não seria nada de mais. Infelizmente, as quedas em idosos dessa idade são bastante comuns e, tanto quanto problemas respiratórios ou gastrointestinais, são as maiores responsáveis pela morte nessa idade. Quando não matam directamente, por vezes as sequelas acabam resultando em agravamento posterior do quadro. É o que ocorre, por exemplo, com lesões que fraturam a cabeça do fémur, de cujo pós-operatório muitos idosos não retornam.

    Mas Lula não é somente mais um octogenário. Ele é o Presidente da República. E não qualquer Presidente da República, senão um sujeito que foi eleito três vezes para o cargo e encarna como nenhum outro a idéia de esquerda no país. Sabendo disso, parece no mínimo temerário o modo com o qual governo tratou essa segunda internação de Lula. Nesse tipo de situação, jogar aberto é sempre a melhor alternativa. Voluntariamente, escondeu-se o quadro de saúde do Presidente até que vazasse a informação de que ele havia sido transferido para o Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo.

    Para piorar, depois de terem avisado que tudo correra bem na cirurgia de emergência, o país descobriu sobressaltado que Lula faria uma nova cirurgia. Dessa vez, para cauterizar uma artéria e impedir a recidiva de sangramento na região em que ocorrera a lesão. Segundo os próprios médicos, tal procedimento já estava previsto e não implica maiores riscos para o paciente.

    Se é assim, por que não foi informado isso logo após a primeira cirurgia? E por que, com o Presidente internado na UTI, o cargo não foi transmitido ao seu vice, Geraldo Alckmin?

    Lula da Silva com Geraldo Alckmin durante a campanha eleitoral de 2022.

    A forma atabalhoada com a qual tudo foi feito dá margem à interpretação de que o governo não confia no seu vice. Isso seria uma rematada tolice. Ainda que possa existir algum trauma pela forma através da qual Michel Temer operou para derrubar Dilma Rousseff, Alckmin definitivamente não é Temer. É um político leal, absolutamente cioso das responsabilidades que lhe incubem como substituto do titular. A última coisa que se esperaria dele seria aproveitar esse episódio para destronar Lula do posto.

    Esse episódio, todavia, força a antecipação do debate sobre o destino do país nas próximas eleições presidenciais. Se no pleito de 2022 a grande briga era garantir que Bolsonaro perdesse e que seu sucessor assumisse o cargo, em 2026 a luta vai ser impedir que vença um candidato apoiado pelos Bolsonaro ou, ainda que não seja apoiado diretamente por eles, esteja disposto a anistiar os golpistas todos em prol de uma suposta “pacificação” do país.

    Nesse sentido, o exemplo que vem dos Estados Unidos não poderia ser mais claro. Joe Biden foi, em 2020, o que Lula foi para nós em 2022. Mesmo assim, quatro anos depois, com um governo impopular e com suas faculdades mentais sob questionamento, Biden foi defenestrado da corrida presidencial na undécima hora. Sua substituta, Kamala Harris, não teve tempo hábil para construir uma plataforma de campanha que impedisse a vitória de Donald Trump.

    Lula não é Biden, nem em termos de popularidade, nem em termos de capacidade mental. Entretanto, não parece ser um risco negligenciável chegarmos a 2026 com uma economia em frangalhos – cortesia da absurda alta dos juros no ano passado -, talvez em recessão, certamente com desemprego em alta. São factores que detonam o potencial eleitoral de qualquer incumbente. Se somarmos a isso eventuais questionamentos sobre a saúde do candidato, teremos uma reprise do “cenário Biden”, por mais que Bolsonaro permaneça inelegível.

    O pior que pode acontecer nesse cenário seria Lula continuar no cargo e começar a experimentar um declínio na sua saúde, tanto física quanto mental. Por mais que se queira esconder essa circunstância, uma hora a verdade vem à tona, como aconteceu após o primeiro debate de Trump contra Biden. E aí poderá ser tarde demais para construir uma alternativa eleitoralmente viável para impedir o retorno da extrema-direita ao Planalto.

    man in black jacket standing in front of glass building

    Sabendo disso, o pessoal da cozinha do Planalto deveria começar a vacinar-se contra essa possibilidade. Caso Lula esteja de facto com a saúde em dia e as consequências da sua queda limitem-se a essa última internação, muito bem; vida que segue. Mas, se houver dúvidas sinceras sobre a evolução do seu estado de saúde daqui até 2026, a hipótese de ele renunciar em prol do seu vice deve começar a ser tomada a sério.

    Um eventual acordo de bastidores poderia girar em torno da promessa de Alckmin cumprir apenas um mandato e apoiar Fernando Haddad em 2030. Saindo de cena, Lula ainda permaneceria como grande “guru” político do seu campo, aquele a quem todos acorrem nas piores crises, mas sem carregar o ónus e o desgaste da labuta presidencial. Em suma, Lula só participaria dos lucros, não dos prejuízos.

    Evidentemente, também esse cenário envolve riscos. Ninguém sabe ao certo como seria um eventual governo Alckmin, nem muito menos como ele iria tourear os diversos interesses em conflito no governo, inclusive dentro do próprio PT. Ainda assim, esse cenário parece menos arriscado do que o cenário Biden, ainda mais se o país chegar em crise económica em 2026, como está a desenhar-se.

    an american flag flying in the wind on a cloudy day

    Seja como for, o que se coloca agora são basicamente três hipóteses:

    1) Fica tudo bem, Lula parte para a reeleição e ganha um quarto mandato do povo. Lula torna-se definitivamente o maior político brasileiro de toda a história republicana;

    2) Bem ou mal, Lula renuncia e deixa Alckmin na linha de frente do governo, passando a atuar nos bastidores pela vitória em 2026. Lula será eternamente lembrado como o sujeito com desprendimento suficiente para colocar o futuro do país acima de seus interesses pessoais;

    ou

    3) Lula permanece no governo, com a saúde física e mental deteriorada. Nessas condições, perde a eleição para um Bolsonaro ou um proxy dele. Nesse caso, Lula ficará para a posteridade como um Biden brasileiro, que permitiu o retorno do neofascismo por ego ou por mero apego ao poder.

    Aconteça o que acontecer, Lula terá garantido seu lugar na História. A questão, agora, é saber qual será esse lugar.

    Arthur Maximus é advogado no Brasil e doutorado pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa


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  • John Locke: o pai do liberalismo?

    John Locke: o pai do liberalismo?


    Na visão de muitos, John Locke é a figura seminal do liberalismo, o pensador que delineou os princípios fundamentais de uma sociedade baseada na liberdade individual, nos direitos naturais e na propriedade privada. A sua filosofia, frequentemente exaltada como a base das democracias modernas, parece estar envolta numa aura de racionalidade inquestionável e virtude universal. No entanto, um exame mais detalhado das suas ideias revela as influências profundas do protestantismo da época, e, com elas, algumas contradições marcantes.

    Para Locke, a propriedade é o ponto de partida da sua filosofia política, começando pelo direito inalienável que cada indivíduo tem sobre o próprio corpo. Este princípio, que ele considerava derivado da lei divina, estendia-se à apropriação dos recursos naturais por meio do trabalho: ao misturar o esforço humano com os bens da terra, o indivíduo conferia legitimidade à propriedade privada.

    John Locke (1632-1704)

    Os direitos naturais, segundo Locke, são inalienáveis e precedem qualquer instituição política. Incluem o direito à vida, protegido contra qualquer interferência – inclusive a própria. Para Locke, a vida é uma dádiva divina, e a liberdade, embora fundamental, deve ser limitada pelo respeito aos direitos dos outros, especialmente no que toca à propriedade.

    Por fim, o contrato social surge como a solução para o dilema do estado de natureza, onde os homens são “livres”, mas vulneráveis à arbitrariedade alheia. A formação de um governo, segundo Locke, é um acto racional e consensual, concebido para proteger os direitos naturais e garantir a ordem.

    Um exame mais atento revela que muitas das suas ideias já tinham sido profundamente exploradas pelos escolásticos católicos, particularmente pelos membros das Universidades de Salamanca, Coimbra e Évora. Estes pensadores, séculos antes de Locke, abordaram questões sobre liberdade, propriedade e organização política de maneira sistemática. Ou seja, o liberalismo nasceu na Igreja Católica.

    A ideia de que cada indivíduo tem soberania sobre o próprio corpo, central no pensamento de Locke, encontra paralelos claros no trabalho de Francisco de Vitoria. Este escolástico afirmou que todos os homens são naturalmente livres e que ninguém pode ser privado dessa liberdade sem uma causa justa. Nas suas palavras: “O direito natural é aquele que procede da dignidade da natureza humana, pelo qual todo o homem possui um domínio pleno da sua liberdade e da sua pessoa” (Relectio de Indis, 1539). Esta formulação, que enraíza a liberdade individual na dignidade intrínseca do ser humano, já contém o germe da concepção lockeana de que o corpo é propriedade do próprio indivíduo, um fundamento inalienável dos direitos naturais.

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    Outro pilar central do pensamento de Locke, a noção de que o trabalho legitima a apropriação de bens naturais, também foi claramente antecipado pelos escolásticos. Luis de Molina, ao abordar a justiça económica, argumentava que o esforço humano conferia legitimidade à posse: “Quando o homem, com o suor do seu rosto, cultiva o solo ou transforma recursos em algo útil, a propriedade desses bens é sua por direito” (De Iustitia et Iure, 1593). Aqui, Molina não apenas reconhece o trabalho como uma extensão do uso legítimo do corpo, mas também como um mecanismo que transforma recursos comuns em propriedade privada, um princípio que Locke posteriormente sistematizaria como a “mistura do trabalho com os bens naturais”.

    A noção de contrato social, que Locke popularizou como a solução para os desafios do estado de natureza, também tem profundas raízes escolásticas. Domingo de Soto, nas suas reflexões sobre a lei natural, afirmava que os homens, embora livres e iguais por natureza, necessitavam de pactos mútuos para garantir a convivência pacífica e a justiça; escreveu: “O contrato entre os homens nasce da necessidade de garantir a justiça e proteger os direitos que todos possuem por natureza” (De Iustitia et Iure, 1553). Este raciocínio reflecte o mesmo princípio de Locke de que o contrato social é essencial para proteger os direitos naturais e estabelecer uma ordem política legítima.

    Francisco de Vitoria foi ainda mais longe, ao afirmar que o governo deriva do consentimento dos governados, e não de uma imposição divina directa. “O poder político é estabelecido pelo consenso dos homens, para assegurar a justiça e o bem comum” (De Potestate Civili, 1528), estabelecendo uma base teórica que Locke ecoaria nas suas defesas do governo como uma instituição criada para preservar os direitos naturais.

    Luis de Molina complementava essa visão ao argumentar que o pacto social é uma expressão da racionalidade humana, que reconhece a necessidade de acordos para evitar a arbitrariedade do estado de natureza. Para ele, “sem um acordo entre os homens, os direitos e deveres tornam-se incertos” (De Iustitia et Iure, 1593). Esta visão, que coloca a racionalidade e a cooperação humana no centro da organização política, ressoa directamente com o pensamento de Locke, mostrando que o filósofo inglês não estava a inventar conceitos.

    Apesar da obra “De Justitia et Jure“, de Luis de Molina (1535-1600) ter sido escrita no século XVI, somente foi impressa em 1733.

    Assim, o que muitas vezes é celebrado como a originalidade de Locke deve ser entendido, em grande parte, como uma continuação e adaptação das ideias escolásticas. Os pensadores ibéricos, ao articular a soberania individual, a legitimidade da propriedade pelo trabalho e a necessidade de pactos sociais, estabeleceram os alicerces de uma filosofia política que transcendeu as fronteiras do seu tempo.

    Locke, apesar da sua aparente genialidade, fundamentou grande parte do seu pensamento político numa ficção: o estado de natureza. Essa aberração teórica, onde os homens seriam livres, iguais e independentes, ignora a realidade evidente de que os seres humanos vivem em hierarquias naturais desde o início da sua existência – algo inaceitável para os protestantes, que recusavam a autoridade papal. A relação entre pai e filho, general e soldado, ou sábio e aluno ilustra claramente que a liberdade absoluta nunca foi, nem poderia ser, a condição humana. Há sempre relações de autoridade e dependência que moldam a convivência. O próprio Locke, ao tentar escapar ao caos deste estado hipotético, recorreu ao contrato social como uma solução, mas aqui também tropeçou em contradições.

    A ideia de Locke de que o Estado existe para proteger os direitos naturais é um princípio perigoso, que abriu caminho para o que hoje conhecemos como o fascismo estatal. Um governo que se apresenta como guardião da vida, da liberdade e da propriedade não tarda a transformar-se no maior violador desses mesmos direitos. A tributação, elemento central de qualquer Estado, é em si mesma uma violação do direito à propriedade.

    O Estado não produz riqueza; apenas a extrai, usando sempre a força e a coerção, sob o pretexto de proteger os cidadãos. A liberdade defendida por Locke acaba subjugada a um Leviatã moderno, que, sob a capa de justiça e ordem, se torna o maior predador dos recursos individuais.

    Quanto ao contrato social, a maior ironia é que ele nunca existiu de facto. Nenhum cidadão o assinou, nenhum juiz supervisiona a sua aplicação e nenhum mecanismo foi criado para que seja renovado pelas gerações que nascem sob a sua pretensa autoridade. É uma ficção conveniente, usada para legitimar a existência de uma organização parasitária que se impõe aos indivíduos como se fosse um bem universal. Este “contrato” é, na realidade, um instrumento de dominação, uma imposição unilateral que não reflecte a vontade de nenhum indivíduo específico.

    O que Locke nos oferece, portanto, não é a liberdade, mas a legitimação de uma estrutura que mascara o controlo e a exploração com o véu de uma suposta protecção dos direitos naturais. A crítica a Locke é, assim, inevitável. Não nos deu as bases para a liberdade individual, mas sim os fundamentos filosóficos para a aceitação de um poder centralizado, disfarçado de protector dos direitos. A sua filosofia é um exemplo claro de como uma “boa teoria”, construída sobre premissas erradas, pode ser usada para justificar um sistema que perpetua desigualdades e violações em nome da ordem e da justiça.

    Em conclusão, as ideias de Locke não eram inovadoras, pois já os escolásticos católicos as tinham antecipado com profundidade e rigor. No entanto, as suas inovações – nomeadamente a criação do grande Leviatã para nos proteger, legitimado por um contrato social fictício – são um exemplo perverso da mentalidade protestante. Aqueles que abominavam a autoridade da Igreja e clamavam pela liberdade espiritual pareciam não ter qualquer problema em aceitar a expansão de um Estado totalitário, sob o pretexto de proteger os nossos direitos, que se tornou no maior inimigo da liberdade individual dos tempos modernos.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


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  • Conto de Natal da Segunda Circular

    Conto de Natal da Segunda Circular


    A esperança da Humanidade concentra-se no bondoso coração dos seres humanos que, apesar das alterações climáticas e do ruído dos aviões, ainda acreditam no Pai Natal.

    Eu acardito! – ensinou o criativo neolinguista Jorge, de apelido Jesus, numa conferência de imprensa bíblica e babilónica, no sentido babado do termo.

    Ainda hoje tal ensinamento guia os espíritos eleitos e escolhidos para enfrentar as agruras diárias do futebol profissional.

    – Acredito que vamos passar o Natal no primeiro lugar! – proclamou “mister” Bruno Lage para reanimar os 26 jogadores do plantel principal, cansados de correr em vão o ano inteiro, fardados de vermelho.

    Eu também acredito! – ecoou a mesma mensagem, num português tão impoluto que até parecia latim, Rui Costa aos ouvidos dos 298.948 sócios que sobreviveram a Roger Schmidt e dos seis milhões de fiéis do Benfica, vivos e mortos, ávidos e desesperados pela luz da boa nova.  

    E assim nasceu um conto de Natal nunca passível de ser sonhado por Shakespeare. O único escritor inglês mais famoso do que José Mourinho era temente a Deus e escrupuloso quanto baste para repudiar o enredo que ora vos venho apresentar. O “Conto de Natal da Segunda Circular” deverá antes ser creditado em desconto dos pecados do velhaco poeta António Ribeiro Chiado, por alguns autores considerado o mais remoto adepto encarnado a passar-se para o glorioso mundo espiritual e das estátuas.

    Acredita, homem mortal:

    Que lês? Que queres saber?

    Aqui jaz quem has de ser.

    No início de Dezembro, um remetente anónimo como os OVNI estrelados que, armados aos cucos, ou em águias, andam a sobrevoar o Pentágono e a Fonte da Telha enviou ao sr. presidente do Benfica um misterioso presente.  Vinha o dito cujo empacotado em papel de prata dourado, atado, de ponta a ponta e de par em par, por duas fitas pretas de licra, presas por colchetes, a recordar os espartilhos que nos velhos tempos decidiam campeonatos.

    Assim que descerrou o embrulho, os olhos de menino da Damaia brilharam como estrelas, só de avaliar os valores, facial e simbólico, da inusitada oferta: uma jarra da Vista Alegre, colecção especial de Natal/2024, assinada pelo promissor designer Inocêncio C. B. O departamento de scouting apurou tratar-se de um atleta já observado num treino de captação, em Évora, e referenciado como sobrinho-neto do lendário artista da inolvidável e quase gloriosa tarde de 22 de Março de 1959, vivida e passada no antigo estádio.

    Qual lâmpada de Aladino, do precioso bibelot vieram à luz um, dois, três, santa vaca do Presépio, um bando! de figurinhas de chocolate, de fabrico Ferrero Rocher: o Malheiro, o Melo, um Manso, outro Nobre, um Narciso, dois Freire, um Ferreira e o Manso repetido, entre outros, mais do que as mães, todos com nomes de reis magos prontos a satisfazer apetites e saciar desejos.

    Estátua do poeta António Ribeiro, conhecido por Chiado, no largo lisboeta com o seu nome.

    O maestro ficou tão comovido! Não logrou, sequer, reprimir lágrimas loucas de felicidade. Enxugou-as no seu lencinho branco de seda, oferecido por uma admiradora nos gloriosos anos de San Siro. Para ter subido aos altares, o santo bispo de Pavia tinha-a porventura mais comprida do que o Sérgio Conceição, que dois mil anos depois lhe vai seguir os passos. Aproxima-os o facto de ambos reverenciarem o Papa. Se o novo treinador do AC Milan lhe ofereceu muitas taças, San Siro é famoso por fornecer pães e peixes ao apóstolo Pedro. 

    Rui Costa sempre olhou para este episódio como a pedra fundadora de uma corrente de virtudes. De lenço encharcado nas mãos e olhos perdidos nas bancadas vazias, deu-se conta do perturbador paralelismo histórico. Pela primeira vez, pôs a hipótese de o mesmo estar na origem do pecado da multiplicação de pontos.

    Com o cuidado de um carregador de andores de relíquias, o menino-presidente pendurou as figurinhas, uma a uma, olhos nos olhos, no pinheirinho do seu espaçoso escritório de vistas amplas para o terceiro anel, com ar condicionado da marca Vitória e casa de banho revestida a mármores Carrara a azulejos grená. E rezou a todos a mesma oração, respeitosamente personalizada pelo evocativo.  

    – São Manso, deposito em ti toda a minha fé, como em todos os árbitros mártires e sacrificados VAR, entrados e saídos desta jarra abençoada. Amém e Aleluia.

    Santinho Malheiro, deposito em ti toda a minha fé, como em todos os árbitros mártires e sacrificados VAR, entrados e saídos desta jarra abençoada. Amém e Aleluia.

    Os VAR, para as leitoras do Benfica que detestam futebol, mas abençoam o entretenimento dos maridos, são uma novel espécie de árbitros, da família dos OVNI, razão para as ostensivas letras maiúsculas. Constituem o produto mal acabado, em permanente evolução, ou degenerescência, de uma inesperada conspiração entre as novas tecnologias e as velhas baixezas da condição humana. Usam muitas ferramentas, como imagens de alta definição, drones, sensores, animações 3D, “câmaras de curtos” (sic) e outras ainda mais esclarecedoras e por isso protegidas do olhar devasso do grande público. Quanto às deficiências físicas, tiveram origem em pandemias investigadas, para arquivamento jurídico-sanitário, nos anos oitenta do século XX: cegueira oblíqua, escoliose vertebral e balanite dos apêndices.

    Quando surgiram, no princípio deste século, os VAR pareceram aos incautos “lufadas de ar fresco”, curiosa expressão de grande riqueza semântica nos balneários e prostíbulos. De auscultadores e microfone, pareciam relatadores de futebol isentos e lavadinhos, imunes a tão decadentes doenças. Desgraçadamente, com o passar do tempo, esse juiz de todos nós, foram superando pruridos e preconceitos. Tal e qual como esperado pelos peritos mais experientes no campeonato nacional, tornaram-se umas verdadeiras máquinas de fazer e desfazer golos, muito jeitosas na violação de campeonatos e no abuso das almas inocentes.

    – Creio nos anjos que andam pelo Mundo – cantou a poeta Natália Correia, que tanta falta nos faz para conhecermos, verdadeiramente, o outro “mundo” que nos rodeia. Em todas as áreas, até no futebol, os mais virtuosos portugueses levam este maravilhoso verso à letra. 

    Eu acredito neste Conselho de Arbitragem! discursouo dr. Varandas, que é maior e vacinado, na consoada do clube.

    E tenho uma grande fezada no João Pereira! – confidenciou, neste caso em privado, a um apreensivo Hugo Viana.

    Esta solene profissão de fé cozinhou o mais generoso bodo aos pobres de que há memória na Segunda Circular. Foram sete jogos e 45 noites a esvaziar a despensa para engorda do adversário, à velocidade do Airton Senna às curvas no Mónaco. Quando se sentiu a bater num muro, o dr. Varandas desligou a Netflix e deixou a orgulhosa devoção masoquista cair morta na cama.

    – Peço muita desculpa pelo presente envenenado.

    Visionário declarado, como o Grande Chefe Passaláqua, num instante lambeu as feridas e no seguinte desembainhou a solução com recurso às mesmas armas.

    Há mais de um ano que Rui Borges estava no meu radar.

    De Carnide a Buenos Aires, os jogadores do Benfica continuaram a passar o Natal felizes e descansados, indiferentes a manobras militares e sem especiais preocupações de organização defensiva. À hora marcada para o jogo, levantaram-se do colchão de neve do primeiro lugar do campeonato e subiram ao relvado de Alvalade como renas da Lapónia, a dar toques de calcanhar com botifarras de marca.

    – Acardita, Ángel!

    Enquanto teve voz, “mister”Lage puxou pelos seus campeões do mundo de garrafinha na mão, a ver se aos golinhos de água lhes mostrava com cristalina transparência o caminho para o golo.

    Atira-te a ele, Nicolás!

    Só parou de gritar quando àqueles dois falharam as pernas e a ele estoirou na garganta a última corda vocal de barítono do Teatro Luísa Todi.

    Do outro lado, um treinador da temperança dos cavalos criados nas fráguas, preparou o jogo com a astúcia dos lobos da serra do Alvão.

    Creide que sodes la meyor equipa del campeonato!

    Disposto a acatar a mensagem, a estrela da equipa passou três dias e três noites a ler um dicionário bilingue sueco-mirandês, entremeado com o bestiário de Miguel Torga. E assim Viktor Gyökeres chegou à brutal iluminação táctica de que representa em campo a força indomável do Gävlebocken, bode com mais de 13 metros de altura, exibido em Dezembro no centro da sua terra Natal.

    Du kan inte stoppa mig så!

    Bem-dito, melhor traduzido em campo. Aos 29 minutos, deixou para trás as oito chuteiras dos defesas e fugiu com as canelas para a linha de fundo. Eles ainda torceram o pescoço para ver, como no cinema, uma bola amarela e redondinha como o milho cruzar a capoeira que juraram defender, de mão no peito e cabeça na conta bancária.

    Génio do Catano treinou nas tradicionais “corridas à galinha” dos natais da sua infância para ser o primeiro a chegar a estes cruzamentos com a história.  

    Cocorococóoo-cóoooohhh! – cantou a bola, ao sentir a pancada viril do atacante moçambicano.

    Estava manifestamente com saudades e desejos daquela inesquecível jogada nocturna que fechou o derby e as contas quanto ao campeão da época passada. A expensas e penas do velho e querido rival, o leão do Delta do Zambeze tornou a abrir a juba para a eternidade.

     – Que seja um bom Natal, para todos vós!

    O Natal de 2024 vestiu-se de vermelho por seis dias e uma solitária jornada. O Chiado passou essa semana a decretar alerta vermelho à saída do metropolitano, mas ninguém o quis ouvir.

    Tudo passa n’um momento,

    como bem se manifesta.

    Tudo não tem fundamento,

    tudo acaba, tudo é vento,

    (…)

    tudo é de pouca dura,

    o tempo tudo despeja.

    Antes de se despedir, o aliviado autor desta crónica agradece as leituras e pede, envergonhado, um desagravo por ter dito nas vésperas do jogo que não acredita no Pai Natal. Felizmente, como merecia, foi desmentido a tempo pelo sr. secretário de Estado das Infraestruturas.

    Vamos inaugurar o Aeroporto Luís de Camões com uma pista para o Pai Natal aterrar e um hangar para as renas – anunciou o dr. Hugo Espírito Santo, na mensagem oficial de boas-festas do ministério, inclusiva de pessoas e animais.

    A julgar pelo nome, este divertido e bem-humorado governante deve ser adepto do Sporting. Depois do derby, ainda na tribuna reservada aos jornalistas, compreendi finalmente os seus planos para a expansão aeroportuária de Lisboa. Não passam, afinal, de um caminho ardiloso para viciar o campeonato.

    – Como poderão Di María e Otamendi, sempre que forem passar o Natal à Argentina, aterrar a cinquenta quilómetros do estádio – e ainda assim chegar a tempo às jogadas?

    Foi pena nenhum deles ter comparecido na sala de imprensa. A pergunta passa a ser retórica e deixo aos leitores a resposta.


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  • Os ossos do Eça, seguido de estudo taxonómico

    Os ossos do Eça, seguido de estudo taxonómico

    Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. O PÁGINA UM solicitou o registo da marca para Portugal ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), cujo longo processo foi já concluído. No contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas regulares pareceu-nos não somente conveniente como necessário. Nesta vigésima segunda edição, a pretexto da trasladação de Eça de Queirós para o Panteão Nacional, o piparote de Brás Cubas desanca os ‘homenageadores’, dissecando uma taxonomia.


    Dizia alguém com vivaz conhecimento, com aquela filosofia que somente a contemplação do túmulo inspira, que os mortos são o espelho mais cruel das vaidades humanas. Concordo, e sem pesar, antes sim com a serenidade de quem, do outro lado da vida, já alcançou a verdade sem as véstias do interesse ou do temor. Sim, minhas dilectas leitoras e meus ilustres leitores, os mortos têm a única qualidade que os vivos não podem jamais ostentar: a paciência infinita. Eles não protestam, não se queixam, não corrigem as palavras pomposas que lhes dedicam. São, portanto, os alvos perfeitos para a celebração tardia e o reconhecimento póstumo, essas moedas de pequeno valor com que os vivos compram a absolvição das suas omissões e negligências.

    Vejo-os, a esses vivos, debruçados sobre lápides, declamando discursos solenes, regados às lágrimas mais dramáticas que o teatro jamais ousou representar. Vejo-os encomendando bustos, erigindo monumentos, publicando panegíricos e elegias que celebram as virtudes dos mortos com uma efusão que, em vida, se restringia a frias reverências ou, pior ainda, a silêncios calculados. E porquê? Porque é mais fácil amar o que não pode mais competir, mais fácil exaltar o que já não desafia, e mais cómodo honrar o que, debaixo da terra, bem calcado pelo tempo, sequer pedirá contas.

    Caixão com as ossadas de Eça de Queirós, em Tormes.

    Talvez seja essa, sim, a verdadeira utilidade dos mortos: alimentar o teatro dos vivos, essa encenação contínua de grandeza e moralidade que esconde, sob as cortinas de veludo, os fios de egoísmo e conveniência que realmente movem os actores. Não pensem, porém, que os condeno; até mesmo na cova reconheço que, sem esses fingimentos, a vida seria um palco vazio, e o homem (ou mulher), um actor (ou actriz) sem papel.

    Eu, Brás Cubas, observo estas manobras com o regozijo de quem está definitivamente morto – e, ainda melhor, fictício. Por exemplo, não tenho ossadas que possam ser trasladadas de um lado para o outro, nem jazigos que possam ser reabertos para ajustes protocolares. A minha inexistência física protege-me das agruras póstumas que esta semana recaíram sobre Eça de Queirós, esse meu contemporâneo lusitano, que em vida foi mais incómodo do que celebrado, e que, depois, na morte se tornou um ícone nacional, passível de ser transportado como se os seus ossos tivessem adquirido poderes mágicos. Coitado do homem que só soube que ‘Os Maias’, essa celebrada epopeia doméstica com incesto à mistura, tinham tido segunda edição uns 13 anos depois da primeira, já ele andava a comer capim pela raiz há um ano no cemitério do Alto do São João, desagradado por não o terem metido em Verdemilho, nos arrabaldes de Aveiro.

    E coitado depois, porque em 1989, os vivos decidiram retirá-lo de Lisboa e levá-lo para Tormes, junto à quinta que ele imortalizou n’A Cidade e as Serras. Parecia um destino apropriado, poético até, para um escritor que tanto exaltou a simplicidade e a ligação à terra. Mas a paz dos mortos é algo que os vivos não conseguem respeitar. Agora, metem as ossadas de Eça de Queirós, ou o que resta, na fria igreja de Santa Engrácia, de novo em Lisboa, a que chamam Panteão Nacional, depois de uma quezília familiar ter sido dirimida pelo Supremo Tribunal Administrativo que foi chamado a resolver o que fazer aos (poucos) restos (já) mortais do “Escritor GG”, conforme consta no acórdão divulgado publicamente.

    GG, meu caro Eça! Que dirias tu!

    E que dirias tu, também, dos 75 mil euros doados pelo Ministério da Cultura à fundação com o teu nome, convenientemente oficializado pela ministra Dalila Rodrigues, quando te foram buscar os fémures e a caveira a Tormes? Presumindo que, ao fim de 125 anos, te restem das relíquias calcárias uns cinco quilos, convenhamos que o preço do teu cacareco anatómico está bem valorizado…

    Enfim, esta tua nova trasladação é tudo menos um evento cultural; é uma oportunidade, como tantas outras, para os vivos se enaltecerem enquanto fingem enaltecer os mortos. E, por isso, que melhor momento para reflectir sobre a tipologia dos políticos e outras vivas aventesmas e abutres que se dedicam a tais empreitadas? Sim, porque os mestres das vaidades têm estilos bem distintos de homenagear, dependendo do estado físico do homenageado.

    E é assim com prazer que vos apresento, esclarecidas leitoras e nobres leitores, a minha taxonomia do Politicus Homenagiator.

    1. Politicus Salutatus, o louvaminheiro do efémero

    Comecemos pelo tipo mais previsível: o político que adora homenagear os vivos, desde que estejam de boa saúde e ainda possam retribuir com um sorriso ou, melhor ainda, com apoio público. O Salutatus é o rei das medalhas, dos convites para conferências e dos discursos em que mistura banalidades com frases atribuídas erroneamente ao homenageado.

    Mas há um detalhe crucial: este tipo só homenageia quem pode retribuir – com um sorriso, um aperto de mão, ou, melhor ainda, com votos e apoio público. Não esperem que se aproxime de um moribundo ou de um defunto; para ele, a morte é demasiado deprimente e, pior, não rende boas selfies.

    Se há algo que caracteriza o Salutatus é a incapacidade de lidar com a finitude. Ele é o político da celebração fácil e do instante. Por isso, raramente lê as obras dos escritores que enaltece ou reflecte sobre a profundidade das suas contribuições. Não, para ele basta um nome conhecido e a certeza de que a homenagem será bem recebida.

    Se tivesse tido a oportunidade de lidar com Eça, ainda vivo, talvez o Salutatus o tivesse chamado para um evento literário onde proclamaria: “É um orgulho homenagear o autor de ‘Os Maias’, essa obra que tão bem descreve o amor de Pedro e Inês.”

    Nos tempos modernos, certos Salutatus adaptaram-se às redes sociais. Agora, em vez de salões, preferem selfies. Publicam fotografias ao lado de celebridades ou de monumentos que nunca visitaram antes, legendando com hashtags como #Gratidão #Patriotismo #EuSouOMaior. Para ele, a homenagem é um espectáculo digital onde o número de likes substitui os aplausos.

    2. Politicus Moribundis Praeparator, o exaltador crepuscular

    Mais subtil, o Moribundis Praeparator espera que um fruto maduro esteja quase a cair da árvore para aparecer. Prefere agir quando o homenageado está em fase próxima dos pés para a cova. Este tipo tem um sentido apurado de timing: o moribundo ainda está vivo, mas já frágil o suficiente para não rejeitar a homenagem, mesmo que esta seja tardia.

    Estamos perante o político que entrega medalhas e faz discursos emocionados com frases como: “Reconhecemos em vida o que a história eternizará na morte.” Ou então dos júris que entregam prémios literários ou comendas quando o homenageado já se entregou à tremida abnegação do senhor Parkinson ou à ternura distraída da dona Alzheimer. É sempre comovente ver a emoção fingida perante a a grandeza alheia, sobretudo quando esta já foi devidamente reduzida a uma sombra trémula ou a uma memória esfarrapada.

    No fundo, o Moribundis Praeparator faz um investimento de risco zero: celebra-se um génio que já não pode protestar pela hipocrisia do tributo ou recusar a honraria por falta de estima ao emissor. Afinal, nada como o declínio físico ou mental para tornar qualquer talento ainda mais palatável aos discursos engravatados e às ovações bem-comportadas.

    3. Politicus Cadavericus Calidus, o abutre oportunista

    Este é o abutre mais ágil, que se atira à vítima mal o coração pára de bater. Assim que o último suspiro é dado, o Cadavericus Calidus entra em acção. Não perde tempo, porque sabe que a memória dos mortos tem prazo de validade e deve ser explorada enquanto ainda está fresca na mente do público. Por isso, corre a vigílias e a cerimónias fúnebres, encomenda flores, esboça elogios póstumos e, entre soluços ensaiados, ainda encontra tempo para sugerir um busto ou uma rua com o nome do falecido. Para ele, a morte é uma oportunidade que não pode ser desperdiçada.

    Mas não vos deixeis enganar: por trás do sorriso contrito e da voz embargada, há um estratega. O Cadavericus Calidus sabe que um tributo no momento certo é ouro em relações públicas, pois quem ousaria criticar um homem que presta honras a um defunto? Melhor ainda se o homenageado tiver sido, em vida, um opositor ou um crítico: nada como a clemência póstuma para encerrar contendas ou pavimentar a própria imagem com as lágrimas dos outros.

    E se o morto for uma figura ilustre? Ah, então é uma festa! Discursos inflamados sobre “legados eternos”, promessas vagas de “não deixar a memória apagar-se” e, claro, a inevitável foto ao lado do caixão, com aquele olhar perdido que mistura saudade e ambição. No fundo, a morte não é o fim; é o princípio de uma excelente oportunidade.

    4. Politicus Trendycus Funeraris, o caçador evocativo

    Este tipo é o camaleão das homenagens. O Trendycus Funeraris não escolhe os mortos pelo seu legado ou importância, mas pela popularidade que granjeiam em determinada época. Ao perceber que alguém já esquecido se tornou novamente relevante – seja por um filme, uma reedição de obras ou um centenário –, rapidamente associa o seu nome àquele vulto.

    O Trendycus Funeraris é um leitor ávido… de resumos. Por exemplo, nunca leu ‘Os Maias’, mas adora citar “Portugal é um país admirável!”, mesmo se tal frase nunca tenha sido escrita pelo Eça. Ele aparece em cerimónias culturais com um ar reflexivo, segura livros para as câmaras e, em discursos, fala de “imortalidade” com a desenvoltura de quem confunde eternidade com um mandato de quatro anos.

    Por vezes, promete uma placa, uma rua, um busto – e quando a poeira da relevância se assenta, os mortos retornam à penumbra do esquecimento, enquanto o Trendycus Funeraris segue em busca de outro defunto que possa lustrar a sua própria glória. Se por um acaso, a placa, a rua e o busto se concretizam, o dinheiro vem do povo, mas o seu nome é que surge associado – não como um mecenas, mas como o grande benfeitor que “jamais esquece os grandes nomes da nossa História”.

    Não vos espanteis, por isso, se o encontrardes a exaltar um autor de quem nunca ouviu falar ou a defender a “importância da cultura” enquanto tropeça num verso de Camões. Para ele, o acto de homenagear é um palanque, uma vitrine, um trampolim. E assim, transforma os mortos em degraus para sua própria imortalidade pública. Por vezes, espatifa-se no ridículo, podendo até enviar votos pessoais de sucesso editorial a escritores fenecidos há uma centúria.

    5. Politicus Ossiphagus, o profanador cerimonial

    Finalmente, o mais perigoso: o Politicus Ossiphagus. Este não se contenta com homenagens simbólicas; ele precisa de mexer, literalmente, nos ossos. Não está interessado em monumentos, discursos ou memórias; ele quer ossos. Abre covas, parte lajes, escancara jazigos, e tudo com ânimo solene de grande obra cívica. Para ele, desbravar os esconsos esconderijos onde repousam os restos de um morto ilustre é como picaretar uma mina de ouro – ou, pelo menos, assim parece.

    Assim, no caso do Eça, os ossos são como uma relíquia sagrada, mas não no sentido espiritual – são uma oportunidade de brilhar no palco da política nacional. Ele não se importa que as relíquias do escritor até tenham encontrado repouso em Tormes, junto à Natureza que tanto exaltou, ou que melhor ficariam em Verdemilho, como era seu desejo. Para o Ossiphagus, os quereres ou a paz dos mortos é secundária ou terciária; o que importa é a pompa, o desfile, a oportunidade de pronunciar discursos vazios sobre a “grandeza nacional”. Se os ossos fossem capazes de protestar, o Ossiphagus ainda assim os moveria – e chamaria a isso “dever cívico”.

    Ah, o Politicus Ossiphagus! Que bela ironia encarnada: aquele que, na tentativa de elevar os mortos, acaba por descer à mais grotesca das vaidades. Não basta, para ele, transferir o crânio, a mandíbula, as vértebras, as clavículas, as escápulas, o esterno, as costelas, os úmeros, os rádios, as ulnas, a pélvis, os fémures, as tíbias, as fíbulas, as falanges, das mãos e dos pés, os metacarpos e os metatarsos – ou o que restar. É preciso transportar também o peso do seu próprio ego, embalado, em mil cuidados, por enternecedores discursos e poses para a posteridade. Afinal, que outro gesto mais simbólico do que o de remexer nas entranhas do passado para assegurar o futuro da sua própria reputação? Enquanto proclama que “a História o exigia”, ou que “o Eça é do país inteiro“, não percebe que o único exigente ali é o espelho onde contempla a sua glória, e os ossos que traslada são meras marionetes neste teatro de farsas grandiosas.

    E assim termino esta galeria de figurinhas e figurões que tanto lutam para celebrar os mortos, mas raramente para os compreender. Felizmente, sendo eu um morto fictício, não corro o risco de cair nas mãos de nenhum destes tipos. Quanto ao Eça… bem, sempre foi homem pacífico; de contrário, pegaria numa das suas tíbias e seria o primeiro defunto a descer do pedestal literário para ajustar contas com esses aduladores tardios. Imaginem a cena: Eça, elegante mesmo na sua ossada, brandindo a tíbia como um espadachim, a pôr em fuga políticos e oportunistas que, sob o pretexto de o homenagearem, usam-no como trampolim para suas próprias vaidades. Seria, sem dúvida, um momento digno: o duelo póstumo entre o autor e os arautos do elogio vazio.

    Até breve, e um piparote.

    Brás Cubas


    N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM registado no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.


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  • O Correio da Manhã e o milagre da meia-noite (ou a aldrabice)

    O Correio da Manhã e o milagre da meia-noite (ou a aldrabice)


    Não caminho para novo e, mesmo com sete vidas, já por aqui ando há tempo suficiente para 17 passagens de ano. E, se muitas absurdas coisas no mundo dos humanos já eu vi, mais ainda costumo ver nas páginas do Correio da Manhã, em particular em cada 1 de Janeiro. Pois bem, em 2024, como de costume, andou-se pelos hospitais, à caça de recém-nascidos. Ou melhor, dos primeiros recém-nascidos.

    Fossem os humanos como os gatos e, a cada paridela, seriam sempre mais do que as mães. No meu caso, nasci só eu e um pequeno irmão, no longínquo ano de 2008, mas não me recordo se teremos saído no mesmo minuto. Em todo o caso, presumo que outras gatas tenham parido, em Portugal, à mesma hora e ao mesmo minuto que a minha saudosa mãe. Não vos sei dizer, porque não sei quantos gatos nascem por ano em Portugal. Mas, no caso dos humanos, sei quantos nascem em Portugal e, em particular, em Janeiro.

    feet, baby, birth

    E, portanto, quatro bebés a nascerem no mesmo minuto, às 00h00, conforme anunciou o Correio da Manhã? A sério? Vamos lá com calma, com contas um bocadinho mais complicadas do que somar as latas de comida que despacho numa semana, e que implicam cálculos de probabilidade e a utilização de modelos de distribuição estatística.

    Ora, consultando as proezas aritméticas humanas e os nascimentos em anos anteriores no mês de Janeiro (cerca de 7.100), descobri que a probabilidade de quatro bebés nascerem no exacto minuto em que não sei quantos milhões de lusitanos e quejandos trincavam as passas, ao som de fogo-de-artifício, é de 0,00228%. Traduzindo para linguagem felina: seria mais provável eu aprender (ainda) a tocar piano do que essa coincidência absurda suceder em Portugal, porque, basicamente, a hipótese de ocorrer é de uma vez em cada 43.860 anos.

    Mas, claro, é sempre brindemos e deliremos, não com um, não com dois, não com três, mas logo com quatro “primeiros bebés do ano”. Eu até entendo o fascínio. Os humanos adoram competições ridículas. Mas, por amor a um prato de sardinhas – eu prefiro fiambre –, será que ninguém se questionou na redacção do Correio da Manhã sobre o rigor desta coisa? Ou melhor, sobre o ridículo de quatro bebés nascerem no mesmo minuto: na Guarda, em Castelo Branco, em Coimbra e em Vila Franca de Xira?

    Em vez de se preocuparem com a saúde dos miúdos ou com o apoio às famílias, o Correio da Manhã andou a cronometrar partos como se fosse a final dos 100 metros nos Jogos Olímpicos. A única diferença é que, em vez do Usain Bolt, temos o Guilherme, o Gonçalo, a Adelina e o Théo. Só fiquei com uma dúvida: será que, nesta corrida ao minuto, o photo finish deu a vitória ao Guilherme, da Guarda? É que só este teve direito a ser revelado como filho da Cláudia e do Luís…

    Muito gostaria eu de saber quem certifica estes nascimentos. Será o relógio da maternidade, ajustado com precisão suíça e calibrado com uns copos de tinto pelo obstetra de serviço? Ou será o tio distraído, a olhar para o telemóvel enquanto come as passas e grita: “Já nasceu! Às 00h00, de certeza!”?

    Portanto, ou assistimos ao maior alinhamento cósmico da História dos nascimentos, a rivalizar com o Big Bang, ou andou alguém a ‘ajeitar’ os minutos para caber tudo no espectáculo de jornalismo…


    Serafim é o Mascot do PÁGINA UM, conveniente e legalmente identificado na Ficha Técnica e na parte da Direcção Editorial, possível pela douta interpretação da Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Qualquer semelhança entre os assuntos relatados e a realidade é pura factualidade.


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  • Como o Estado nos roubou o dinheiro

    Como o Estado nos roubou o dinheiro


    Desde os primórdios da civilização, o dinheiro emergiu como uma solução natural para os problemas da troca directa. O ouro e a prata foram escolhidos não por decreto, mas pela sua capacidade de preservar valor, facilidade de transporte, divisibilidade e aceitação geral. Era um fenómeno de mercado, fruto da selecção natural dos bens mais adequados para servir como intermediário universal das trocas. Contudo, como sempre, onde há valor, há parasitas. O maior deles, o Estado, foi rápido em compreender que controlar o dinheiro seria uma forma eficaz de roubo sistemático.

    Na Roma republicana, as transacções eram feitas com barras de metal pesadas e avaliadas em cada troca, atrasando consideravelmente o comércio. Com o Império, os Césares centralizaram a cunhagem, monopolizando a produção monetária sob o pretexto de “garantir” a qualidade. O Denário, uma moeda de prata que deu origem à palavra dinheiro, foi progressivamente adulterado. Reduziram o seu conteúdo de prata e adicionaram metais inferiores, como o latão. Não era apenas uma manipulação, mas um roubo flagrante. Os imperadores financiaram guerras e luxúrias, empobrecendo a população ao desvalorizar o meio de troca que oleava a economia.

    Tal como hoje, os criminosos culpam sempre os homens de negócios pela subida dos preços. Em 301 d.C., o imperador Diocleciano decretou um édito de preços máximos (Edictum de Pretiis Rerum Venalium), ameaçando com severos castigos quem praticasse preços superiores. É como se o bandido não desejasse aceitar as consequências do seu roubo. Veja-se a recente nota de culpa lançada à guerra da Ucrânia, depois dos Bancos Centrais terem andado a imprimir biliões durante a falsa pandemia.   

    Na Idade Média, Portugal seguiu o mesmo caminho. D. Dinis centralizou a cunhagem, eliminando as experiências descentralizadas que, em países como a França medieval, permitiam a vários privados cunhar moeda. Esse monopólio prometia “simplificar” as transacções, eliminando a necessidade de verificar o peso e a pureza em cada troca – existiam várias moedas em circulação –, mas abriu as portas aos abusos. Com D. Fernando, o reino conheceu o desastre. Para financiar as guerras contra Castela, o rei emitiu moedas de fraca qualidade. A falta de lastro permitiu uma inundação de moeda falsa no mercado, arruinando a economia. Depois de um bandido de tal calibre, não foi uma surpresa a crise dinástica que se seguiu.

    Na Idade Média, surgiu outro esquema brilhante – ou fraudulento – que transformou os banqueiros em comparsas do poder estatal. Os ourives, que armazenavam ouro para comerciantes, emitiam recibos representando os valores depositados. Esses recibos circularam como substitutos do ouro. Mas, percebendo que os depositantes raramente retiravam todo o ouro ao mesmo tempo, os banqueiros começaram a emitir mais recibos do que o ouro guardado. Criaram dinheiro do nada. Essa prática, denominada de reservas fraccionadas, foi a origem do que hoje chamamos de sistema bancário “moderno”. Quem melhor para se aproveitar dela do que os bandidos ao leme do Estado?

    As reservas fraccionadas foram rapidamente apropriadas pelos Estados. As guerras são dispendiosas e os reis preferiam evitar revoltas populares causados por um aumento de impostos. Nada melhor que recorrer à inflação monetária, um imposto silencioso e quase invisível. Quando o povo percebia, era tarde demais. Na Barcelona medieval, as fraudes bancárias eram punidas severamente. Banqueiros falidos tinham um ano para restituir os depósitos. Caso não conseguissem, perdiam não apenas os bens, mas também a cabeça. Era uma época de maior responsabilidade, pelo menos comparada ao que viria depois.

    O golpe de génio dos banqueiros foi legalizar a fraude. Para isso, recorreram ao Direito Romano, que diferenciava o depósito de bens fungíveis (como dinheiro) do depósito de bens não fungíveis (como um quadro ou uma jóia). No caso dos bens fungíveis, o depositário podia utilizar os bens, desde que devolvesse um equivalente. Assim, o depósito virou um contrato de mútuo, permitindo que os bancos especulassem com o dinheiro dos depositantes. Era uma distorção completa do conceito original de depósito, transformando tal legalização num instrumento de roubo institucionalizado.

    Com os Bancos Centrais, essa fraude foi escalada para um nível global e sem precedentes. Fundado em 1694, o Banco de Inglaterra foi criado para financiar a guerra contra a França, emitindo títulos de dívida que podiam ser convertidos em moeda. Era a primeira vez que a inflação era centralizada e controlada directamente por um governo. John Law, na França do início do século XVIII, refinou o esquema. Convenceu o regente a emitir papel-moeda sem lastro, prometendo riqueza infinita com base na especulação. O resultado foi a bolha do Mississippi, um colapso que arruinou milhares de franceses. John Law fugiu, mas as suas ideias persistem nos Bancos Centrais modernos. Enfim, deixara-nos um grandiloquente legado.

    Para justificar tudo isso, o Estado precisava de intelectuais dispostos a transformar a fraude em “ciência”. Milton Friedman, o pai do monetarismo e do perverso esquema de extorsão conhecido por retenção na fonte, afirmou que a Grande Depressão foi culpa da Reserva Federal norte-americana, o Banco Central dos EUA, por não emitir dinheiro suficiente! A sua solução? Imprimir. Economistas como Paul Krugman continuam hoje a defender que a criação de moeda é necessária para “estimular” a economia, ignorando os efeitos destrutivos a longo prazo. Esses “cientistas” são os apóstolos de um sistema que enriquece elites financeiras e empobrece as massas.

    A inflação, frequentemente definida como a “subida generalizada de um índice de preços”, não é nada mais que o aumento da oferta monetária. Quando os Bancos Centrais criam dinheiro do nada, não criam riqueza; apenas diluem o poder de compra da moeda existente. Quem recebe o dinheiro em primeiro lugar, como as grandes empresas fornecedoras do Estado, compra os bens e serviços antes que os preços subam. Quem recebe por último – os mais pobres – paga os preços inflacionados. É um sistema de redistribuição ao contrário, que tira dos mais vulneráveis para dar aos privilegiados.

    A bolha imobiliária de 2008 foi um exemplo claro. Taxas de juros artificialmente baixas, manipuladas pelos Bancos Centrais, incentivaram investimentos insustentáveis no sector imobiliário. Quando a bolha estourou, o capital acumulado foi destruído e milhões perderam as suas casas. Na Argentina, onde a inflação fora crónica até à chegada de Javier Milei, o poder de compra evaporava diariamente, deixando a população presa a um ciclo de pobreza interminável.

    O sistema monetário actual é uma fraude institucionalizada. Os Bancos Centrais, longe de protegerem a economia, são instrumentos de roubo. O Estado age como um parasita, transferindo riqueza das massas para plutocratas e burocratas. O dinheiro precisa de ser devolvido ao mercado, onde pertence. Ouro, prata e, agora, o Bitcoin são as únicas formas verdadeiras de preservar riqueza, livres das manipulações do Leviatã estatal.

    Enquanto continuarmos a aceitar o papel-moeda e os sistemas de crédito desenfreado, perpetuaremos um ciclo de exploração, onde os Bancos Centrais e os seus comparsas devoram o que resta do nosso poder de compra. O Estado e a máfia organizada em partidos que o lidera, como sempre, continuará a viver às nossas custas, um parasita que se alimenta incessantemente do trabalho alheio.

    Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


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  • Os pobres

    Os pobres

    Aquele jornalista era sem dúvida o mais cão-de-fila de toda a cáfila jornalística que pululava pelas principais redacções de televisão.

    Tinha uma postura agressiva sempre que o seu entrevistado parecesse estar numa posição antagónica à sua. Se estivesse então conotado, ou fizesse mesmo parte daquilo que é hoje considerada a nova direita, mordia.

    Era agressivo, mal-educado, interrompia, sentia-se a vontade insolente de cuspir para cima do interlocutor e isso verificava-se num franzir de olhos bastante nervoso, sendo mesmo acometido por esse movimento muscular frequentemente, sobretudo defronte de entrevistados alvo.

    Mas o jornalista era baixinho e parecia não ter físico que garantisse em caso de luta, uma vitória fácil, mesmo que se tratasse de uma mulher.

    Para estes feministas de estúdio, ser mulher não interessa se não partilharem das mesmas ideias. Nesse caso o universo feminino não é para defender.

    Imaginava-se até que fosse medroso e provocador tipo “Ò Evaristo tens cá disto?” 

    Um toca-e-foge sempre que não tivesse as costas quentes de um estúdio ou de uma voz gélida a dar ordens no seu auricular.

    Mas desta vez a entrevistada vinha do Partido Socialista e era Presidente de Câmara de uma pequena cidade. A realização da entrevista devia-se à senhora ter gerado alguma polémica por ter proferido na rádio local da sua cidade que existiam muitas pessoas dessa região a usufruírem de subsídio, quando se sabia que algumas ostentavam casas com piscina, ou vivendas caras, ou mesmo carros de luxo, incluindo Teslas e Audis.

    A Presidente da Câmara denunciava-o de uma forma até convencional, pausada e calma, sem grandes oscilações térmicas tanto na voz como nas expressões faciais. Parecia querer aproveitar o facto de estar na televisão para apelar a que se resolvessem este tipo de situações que muito prejudicavam os verdadeiros pobres. Não denunciava nenhuma etnia em particular e embora fosse uma política ligada a um partido do Poder, parecia querer mostrar alguma sensibilidade para com o problema e queria torná-lo público.

    Queixava-se também de certa forma do pouco orçamento que a sua autarquia tinha para poder ajudar a resolver o assunto.

    Queria apenas que se investigassem essas pessoas, de forma que a investigação se certificasse de onde provinham os sinais de riqueza dos suspeitos para que se pudesse fazer justiça e uma outra redistribuição mais equitativa e justa pelos mais necessitados.

    Pelo que parecia, era uma socialista convicta.

    Mas o jornalista não estava a gostar da conversa. Interrompia constantemente e alegava com razão eventualmente, não fosse o seu tom, que as pessoas podiam ter smartphones e serem pobres. Não estava a perceber muito bem onde a Presidente queria chegar. Será que a senhora pretendia denunciar alguma etnia em particular?

    No entanto percebia-se que a senhora queria sobretudo alertar os espectadores para essa situação anómala e desprestigiante para o ser humano. Isso era claro.

    Infortúnio que o jornalista se recusava a aceitar como sendo prática comum e até parecia duvidar se alguma vez isso poderia vir a ocorrer, chegando mesmo a evocar a possibilidade caso acontecesse, de ser uma excepção com a qual não nos devíamos preocupar para assim se confirmar a regra da não existência desse tipo de abusos. O Estado é hoje um dos grandes financiadores das televisões.

    Percebe-se.

    Mas, no entanto, não deixa de ser absurdo.

    No meio da entrevista sob o fundo verde-croma, a senhora entrevistada respondeu a uma pergunta idiota e ainda acrescentou:

    —… Até lhe digo mais… Há por lá pela cidade um caso muito conhecido de um cidadão que aufere desse subsidio, mas que no entanto ostenta um Audi, eléctrico e tudo. Portanto é até um cidadão com cuidados ecológicos por sinal.

    —Mas não pode, é?

    Perguntou o jornalista cão-de-fila, mal ouviu falar em ecologia.

    —Nada disso. Apenas estou a dizer que normalmente esses carros são mais caros e que pessoas muito necessitadas nem sequer se podem dar ao luxo de ter prioridades ecológicas por muito que o queiram.

    Por momentos parecia até que o jornalista estava a deixar passar a ideia de que não gostava de pobres, tendo nesse caso uma doença chamada aparofobia, e é sabido que hoje muita gente padece dessa patologia. Até pobres.

    Aparecia o reino do nonsense mais uma vez para pautar uma entrevista grotesca. Coisa comum hoje em dia nos canais televisivos cheios de estagiários, embora não fosse este o caso. Este jornalista já se arrastava há uns anos pelas cadeiras de pivot.

    —Mas então como é que a senhora sabe que o carro não é emprestado?

    Perguntou o jornalista convicto de estar a fazer a melhor pergunta de sempre.

    A Presidente fez uma cara de espanto não querendo acreditar naquilo que acabara de ouvir e antes que pudesse responder, houve um apagão geral. Uma parte do mundo ficou sem energia. Podia ser um simulacro também.

    Um Cyber Polygon.

    Assim de um momento para o outro.

    Trássss!! Puffff!!!

    Vários sons estridentes e desconhecidos potenciaram o frenesim generalizado das pessoas que se encontravam na redacção e no estúdio.

    Mas mesmo depois de o jornalista constatar que já não estavam no ar, começando a sentir-se o caos associado a um apagão de grande extensão, com quase tudo às escuras, em off ainda insistiu com a senhora autarca:

    —Sim, responda-me. Como é que a senhora sabe que o Audi do cigano não é emprestado?

    Hum!!!

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações de Ruy Otero


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