É habitual ouvir-se “diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és”. É um lema que raramente desilude e que, aplicado a Trump, parece uma verdade matemática. Ainda estou para ver o Trump a elogiar alguém que se consiga ouvir, enquanto se janta, sem vomitar. No último texto que escrevi aqui no PÁGINA UM, a propósito de um encontro de líderes da extrema-direita em Madrid, referi-me a Maria Corina Machado como a senhora da Venezuela que apareceu por lá em vídeo.
Estava longe de imaginar que, umas semanas depois, a mesma senhora seria Nobel da Paz. Mesmo sabendo que o Nobel da Paz foi perdendo o seu sentido ao longo dos anos — pensemos que já foi entregue a personalidades como Kofi Annan, Malala, Ximenes Belo, Arafat, Rabin, Mandela, Gorbatchov, Dalai Lama, Desmond Tutu ou Lech Walesa —, ainda estou para perceber como é que foi parar a um Guaidó 2.0.
Maria Corina Machado (MCM) está a representar aquele papel, tantas vezes repetido na História, do fantoche útil ao serviço de uma potência externa. Não é um exclusivo americano, obviamente; russos e chineses usam e abusam da mesma estratégia, mas os Estados Unidos já andam nesta vida há pelo menos cem anos.
Pahlavi no Irão, Suharto na Indonésia, Pinochet no Chile, Videla na Argentina, Somoza na Nicarágua, Trujillo na República Dominicana ou Batista em Cuba são alguns dos exemplos que me ocorrem assim de repente.
O caso da Venezuela é, obviamente, mais aborrecido porque tem as maiores reservas de petróleo do mundo e não há maneira de se arranjar um governo que agrade às sucessivas administrações americanas. Ou seja, por outras palavras, é um país em absoluto desespero para que lhe sirvam uma dose de democracia a sério. Ah, e que os libertem. Democracia e liberdade são, normalmente, as coisas de que os países que não partilham os seus recursos como as potências querem… mais precisam. Se forem países sem recursos naturais, bom, por norma já estão bem servidos de democracia e de todas as comodidades que fazem as pessoas sentirem-se livres.
MCM nem sequer se aproxima da população venezuelana com rodeios ou grandes argumentações. Diz mesmo ao que vai e, entre juras de amor a Trump, já prometeu a partilha das reservas de petróleo e o bar aberto para as multinacionais americanas. Pelo caminho, ainda aplaude e incentiva os ataques a embarcações venezuelanas, alegadamente na luta americana contra o tráfico de droga. É, aliás, um tema caricato.
Os Estados Unidos já mataram quase quarenta pessoas em ataques fora das suas águas territoriais, sem qualquer prova, acusação e muito menos julgamento. Não é preciso aqui dizer que isto é um acto ilegal de um país que mata habitantes de outro, sem estar em guerra com eles ou ter qualquer acusação fundamentada. É uma reversão do direito internacional e, claro está, uma imposição unilateral de regras que resulta na morte de civis acusados de nada. Que a administração Trump não respeite seja o que for na ordem instituída pelas Nações ao longo das décadas já é o novo normal; que Maria Corina Machado, a Nobel da Paz, aprove isto, é que é mais macabro.
Como é que alguém que está, descaradamente, ao serviço de interesses estrangeiros, por muito má que seja a situação interna, pode ser considerada uma pacifista?
A lista de países que são considerados ditaduras ou regimes híbridos (autocracias com bases democráticas) tem quase noventa candidatos — pouco menos de metade do globo. Para lá da Venezuela e de Cuba, os clássicos para onde me costumam mandar, aparecem nomes como os Emirados Árabes Unidos, o Azerbaijão (que é o novo amigão do gás da Von der Leyen), o Qatar, o Bahrain, a Ucrânia, a quem doamos boa parte dos impostos, a Tailândia, onde fazemos aquelas fotos porreiras para o Instagram, a Rússia, a Índia e, obviamente, a Arábia Saudita, estimado aliado do Ocidente e que manda barris em quantidade suficiente para não precisar de Marias Corinas de serviço.
Ou seja… não é verdadeiramente o regime político que nos importa, mas sim a forma como deixam meter a pata em cima. Durante décadas chamava-se a isto golpe de Estado, guerra fria, interesses geo-estratégicos, realpolitik e mais uma série de nomes óptimos para livros de lombada grossa. Em 2025 passou a chamar-se Prémio Nobel da Paz.
Consumada a débâcle da ditadura militar, expressa principalmente com a moratória da dívida externa em 1984, o Colégio Eleitoral elegera de maneira indireta o primeiro presidente civil desde a vitória de Jânio Quadros, em 1960. Um dia antes de tomar posse, Tancredo Neves foi internado no Hospital de Base, em Brasília. Em seu lugar, assumiria o cargo máximo da Nação José Ribamar Ferreira Araújo da Costa (mais conhecido pela alcunha “José Sarney”).
A posse do vice no lugar do cabeça da chapa era completamente inconstitucional, pois o substituto só adquiriria essa condição depois de o próprio presidente prestar o juramento de posse, coisa que Tancredo, por imperativo médico, estava impossibilitado de fazer. Após uma longa agonia de quarenta dias, Tancredo faleceria no dia 21 de Abril, feriado nacional em homenagem a Tiradentes, o mártir da Independência do Brasil.
José Sarney. Foto: Jane de Araújo / Agência Senado.
Lugar-tenente da ditadura que saíra pela porta dos fundos do Palácio do Planalto junto com seu último general-ditador, João Figueiredo, Sarney pelo menos cumpriu o guião desenhado por Tancredo. Completou a transição democrática ao nomear o ministério indicado pelo falecido presidente, tentou promover a estabilização económica através de dois planos malogrados (Cruzado I e Cruzado II) e, o que é mais importante, convocou para o ano seguinte uma Assembleia Nacional Constituinte, destinada a entregar ao país uma carta democrática, em oposição ao entulho autoritário herdado dos militares.
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A Constituinte
Assim como a Assembleia de 1945, a Constituinte de 1987/1988 não seria exclusiva. Ela funcionaria simultaneamente ao Congresso regular, com Câmara e Senado. Deputados e senadores deixariam seus afazeres ordinários de lado para, de acordo com o trabalho paralelo, escreverem uma nova Constituição para o país.
Instalada a 1 de Fevereiro de 1987, a Assembleia Constituinte teria como presidente o então presidente da Câmara dos Deputados: o “Sr. Diretas” – em alusão à sua liderança na campanha pelas Diretas, já! – Ulysses Guimarães. No discurso de instalação da Assembleia, Ulysses decretou: “A Nação quer mudar, a Nação deve mudar, a Nação vai mudar”.
Um ano e meio depois, estavam finalizados os trabalhos da nova Carta. Restava, contudo, a promulgação do documento. Marcou-se, então, a data para o dia era 5 de Outubro de 1988. Em um discurso que entraria para a História, o Sr. Diretas lamentaria os ainda “30.401.000 analfabetos, afrontosos 25% da população”. A nova Constituição não era perfeita, afirmava Ulysses, ao lembrar que “ela própria o confessa, ao admitir a reforma”. Se era possível divergir dela, “descumprir, jamais”. Numa sentença lapidar, ele decretou: “traidor da Constituição é traidor da Pátria!”. E terminava uma frase que resumia o sentimento do país diante de seu passado autoritário: “Temos ódio à ditadura; ódio e nojo!”
O dia seguinte
No dia seguinte, nada mudara. Para além dos “afrontosos 25% da população” ainda analfabetos, o Brasil convivia com uma inflação pornográfica – herança do descalabro económico legado pelos militares. Naquele mês, o índice de preços ao consumidor subira 25,62% e terminaria aquele ano em inacreditáveis 933%. Na capital de França, os membros do chamado “Clube de Paris” e bancos comerciais tratavam com negociadores brasileiros a renegociação da dívida externa do país, em moratória desde 1984. Sem acordo, o Brasil continuou sem acesso ao mercado internacional de crédito.
Como desgraça pouca é bobagem, o baixo nível dos reservatórios das hidrelétricas e a falta de investimentos em distribuição de energia generalizaram os “apagões” pelo país. No campo, trabalhadores rurais foram assassinados em um conflito fundiário no Pará. Na Saúde, uma (nova) epidemia de dengue assolava as capitais. E, last but not least, uma greve de petroleiros ameaçava desabastecimento e causava longas filas de automóveis nos postos de combustível. Para onde quer que se olhasse, não havia uma só razão para otimismo.
Nas rádios, entretanto, uma nova canção tocava. Tratava-se de mais um hit de Lulu Santos. Nos versos de A Cura, o cantor carioca dizia:
Existirá
Em todo porto tremulará
A velha bandeira da vida
Acenderá
Todo farol iluminará
Uma ponta de esperança…
O julgamento de Bolsonaro
Fast forward. O ano, agora, é 2025.
Derrotado nas eleições de 2022, Jair Bolsonaro tornou-se exemplar único da espécie. De todos os presidentes eleitos no Brasil desde que o instituto da reeleição foi implementado, apenas ele deixou de conseguir novo sucesso nas urnas. Mesmo a impopular Dilma Rousseff, deposta por impeachment em 2016, alcançara a reeleição em 2014.
Trancado em seus rancores no Palácio da Alvorada, Bolsonaro não deixou de conspirar sequer por um segundo. Como se veio a descobrir depois, o planejamento do golpe em caso de derrota vinha desde Setembro de 2021, quando, numa Avenida Paulista apinhada de gente, Bolsonaro xingou Alexandre de Moraes de “canalha” e ameaçou não cumprir mais suas decisões. Depois de consumada a derrota, a conspiração golpista apenas se acelerou.
Após o fatídico 8 de Janeiro, a destruição das sedes dos três poderes em Brasília extinguiu qualquer margem para uma composição política. Contrariando a tradição brasileira de apaziguamento – no pior sentido chamberlainiano do termo –, a Polícia Federal investigou e o novo Procurador-Geral da República, Paulo Gonet, teve a coragem de fazer o que seu passivo e inoperante antecessor Augusto Aras foi incapaz em quatro anos de mandato: denunciar Jair Bolsonaro.
Palácio da Alvorada, em Brasília.
As provas da tentativa de golpe
A certeza dos golpistas na vitória era tamanha que eles aparentemente não se preocuparam sequer em esconder as provas dos seus ilícitos. Poucas vezes um processo judicial revelou-se tão repleto de evidências das atividades criminosas. Como o ministro Flávio Dino fez questão de citar ironicamente durante o julgamento da trama golpista, só faltou aos bandidos registar atas das reuniões da conspiração. Todo o resto já estava nos autos.
Vejamos, apenas a título de exemplo, as principais provas a demonstrar a existência de uma organização criminosa que visava a instalar uma nova ditadura no país:
1 – Reunião de julho de 2022:
Numa reunião presidencial ocorrida em 5 de Julho de 2022, Bolsonaro e seus ministros já falavam abertamente em como atuar em caso de derrota nas urnas. Com as pesquisas a indicar vantagem do seu oponente, Lula da Silva, o ex-presidente perguntou a seus ministros o que seria possível fazer. Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional e general da reserva, falou abertamente que, “se tiver que virar a mesa, tem que ser antes das eleições”. Para bom entendedor…
Imagens da invasão em Brasília.
2 – Minuta do golpe:
Há um ditado popular no país segundo o qual “papel aguenta tudo”. Tal é a conclusão a que se chega para quem perpassa os olhos pela famosa “minuta do golpe”. Elaborada por supostos juristas a serviço da conspirata, essa minuta previa a decretação de Estado de Defesa, a anulação das eleições, a deposição dos ministros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e sua substituição por uma “Comissão de Regularidade Eleitoral”. Não por acaso, essa comissão seria inteiramente escolhida pelo Presidente.
Embora travestido de roupagem jurídica, nada havia de legal ou constitucional nesse ato. Não só não havia as condições materiais para a decretação do Estado de Defesa – aplicável somente a casos de calamidade ou instabilidade institucional –, como também, ainda que decretada, tal medida jamais autorizaria anular as eleições, cassar as prerrogativas do TSE e substituí-lo por uma comissão ad hoc, composta em sua maioria por militares escolhidos a dedo.
Essa minuta foi encontrada na casa do ex-ministro da Justiça, Anderson Torres, e no escritório de Jair Bolsonaro, na sede do Partido Liberal. Ao lado dela, havia o “discurso do golpe”, preparado para ser utilizado como um daqueles típicos pronunciamientos latinoamericanos após a consumação do golpe de Estado. Tratava-se, portanto, de uma tragédia com começo, meio e fim.
3 – O plano “Punhal Verde-Amarelo”:
Os bolsonaristas passaram quatro anos a vociferar contra as inexpugnáveis urnas electrónicas do país. Seu pedido era por voto “impresso e auditável”. Curiosamente, o episódio mais grotesco do planejamento do golpe foi impresso e era perfeitamente auditável: o plano “Punhal Verde-Amarelo”.
Concebido pelo general Mário Fernandes, número 2 da Secretaria-Geral da Presidência, o plano previa a prisão e o assassinato do presidente eleito (Lula), do seu vice (Alckmin) e do presidente do TSE (Alexandre de Moraes). O plano foi escrito dentro do Palácio do Planalto e, graças aos mecanismos de rastreabilidade dos sistemas de informática, foi possível verificar que fora impresso pelo próprio Mário Fernandes.
Em seu interrogatório, Mário Fernandes disse que o plano não passava de “ideias digitalizadas”. Por que a impressão, então? “Porque gosto de revisar em papel”, respondeu o general. Ninguém perguntou ao general por qual razão ele precisaria de três vias para revisar suas “ideias digitalizadas”, mas o rastreamento de seu telemóvel e os registos de entrada na residência presidencial podem explicar o porquê.
Quarenta minutos depois de imprimi-lo, Mário Fernandes levou o plano ao Palácio da Alvorada. E quem estava lá? Jair Bolsonaro. Uma hora depois, Mário Fernandes enviou um áudio por WhatsApp a Mauro Cid, ajudante de ordens do então presidente, a informar que Bolsonaro aquiescera com o plano. Parte dele chegou até a ser colocada em marcha, mas o sequestro de Alexandre de Moraes acabou frustrado por uma mudança de última hora na agenda de sessões do STF.
4 – A reuniões com os chefes militares:
De todas as provas contra os golpistas, nenhuma é mais eloquente do que as reuniões com os comandantes da Marinha, do Exército e da Força Aérea. Nos dias 7 e 14 de Dezembro, Bolsonaro mandou seu ministro da defesa, Paulo Sérgio Oliveira, convocar os chefes das Forças Armadas ao Alvorada. Segundo os depoimentos de todos os presentes, inclusive do próprio Jair Bolsonaro, a minuta golpista foi apresentada aos militares. A ideia era saber quais deles estavam dispostos a levar a cabo um golpe à la 1964, com tanques nas ruas e tutti quanti. De acordo com os depoimentos do comandante do Exército, General Freire Gomes, e da Força Aérea, Brigadeiro Baptista Jr., apenas o comandante da Marinha, Almir Garnier, colocou suas tropas “à disposição” de Bolsonaro. Exército e Força Aérea ficariam de fora da quartelada. Sem o apoio unânime das três Armas, qualquer golpe estaria à partida fadado ao fracasso.
Se havia alguma dúvida sobre a materialização da tentativa de golpe, com esses depoimentos não há mais. O tipo penal previsto no art. 359-M do Código Penal estabelece ser crime “tentar depor o governo legitimamente constituído”. Embora à primeira vista o tipo penal possa parecer estranho, não é necessário grande tirocínio para entender a razão do legislador. Afinal, consumado o golpe, estará instalada uma nova ordem. E, por conseguinte, a punição dos envolvidos será impossível. Por isso mesmo, pune-se a mera tentativa como se golpe consumado fosse.
Imagens da invasão em Brasília.
No caso da intentona bolsonarista, encontram-se reunidas todas as elementares do tipo. Como os depoimentos das testemunhas mostram, o Brasil esteve a um monossílabo de um golpe de Estado completamente materializado. Se os comandantes do Exército e da Força Aérea tivessem dito “sim”, o golpe estaria consumado. Não haveria força capaz de sobrepujar os militares das três Armas. Se o golpe não aconteceu, foi unicamente por circunstâncias alheia à vontade do agente (Bolsonaro). E essa, aliás, é a própria definição legal de tentativa (art. 14 do Código Penal).
O voto de Luiz Fux
Como em toda grande orquestra, sempre há algum músico que destoa dos demais. No caso do STF, quem desafinou foi o ministro Luiz Fux. Em um voto que entrará nos anais do Supremo Tribunal Federal como talvez o mais vergonhoso da história da Corte, Fux resolveu não só ignorar as provas colhidas durante as investigações e as próprias confissões dos envolvidos. Para Fux, não houve sequer crime.
De acordo com o seu raciocínio, digamos, “peculiar”, Bolsonaro não poderia ser acusado de golpe de Estado porque ele ainda era o presidente quando a conspirata fora posta em curso. Para Fux, portanto, “autogolpes” não podem ser enquadrados como golpes de Estado. Resta saber se Fux também deixaria impunes, por exemplo, Getúlio Vargas em 1937 (golpe do Estado Novo) e Alberto Fujimori (autogolpe de 1992).
Quanto à tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, o entendimento parece ainda mais bizarro. De acordo com Fux, o crime só se perfaz quando os criminosos pretendem uma abolição completa de “TODAS” – a ênfase é do próprio Fux – as instituições do Estado. Como Bolsonaro e sua trupe golpista queriam derrubar “apenas” o TSE e o STF, não poderia haver a caracterização do delito. Levando-se o voto do ministro a cabo, o golpe de 1964 também não poderia ser punido, pois Congresso e Supremo continuaram existindo depois de 31 de Março. A menos que os golpistas organizassem uma falange do tipo Talibã, quase nenhum dos golpes registados na historiografia mundial caracterizaria abolição violenta do Estado Democrático de Direito, segundo o pensamento de Luiz Fux.
Luiz Fux.
E isso não foi sequer o pior. Numa espécie de salto triplo carpado hermenêutico, Fux – depois de absolver quase toda a camarilha golpista – resolveu condenar Mauro Cid e Braga Netto pelo crime de abolição violenta do Estado Democrático de Direito. Tal posição coloca o ministro numa posição completamente esquizofrénica. Ou bem ele acredita que não houve o crime e absolve todos os acusados; ou bem ele entende que o crime ocorreu e condena no mesmo rol Jair Bolsonaro. A menos que se conceba o crime do “golpe sem cabeça”, é difícil admitir é que toda a conspirata teve como líderes Mauro Cid (ajudante de ordens) e Braga Netto (vice da chapa), mas o beneficiário direto do golpe, Jair Bolsonaro, nada teve a ver com a história.
Felizmente, o voto de Fux foi apenas um acorde desafinado numa turma que, a tocar de ouvido, condenou por 4×1 todos os integrantes do núcleo duro da conspiração golpista. O 11 de Setembro – data da proclamação do resultado – entra para a história do país. Não com o aspeto trágico do seu par norte-americano, mas, sim, com um carácter alegre, alvissareiro, de vida nova que renasce a cada manhã.
A dimensão histórica do julgamento
“Histórico” é um adjetivo que, por batido, já foi completamente banalizado na análise política brasileira. Nesse caso, porém, a qualificação é mais do que merecida. O Brasil passou por quarteladas e tentativas de golpe desde quando a República foi instaurada, em 1889. Foram pelo menos quatorze oportunidades em que os militares saíram às ruas para, pela força das baionetas, depor o poder civil. Quando conseguiam, tornavam-se vitoriosos e davam início a uma nova ordem. Quando perdiam, eram anistiados e não sofriam mal algum. Não por acaso, a cada tentativa anistiada se seguia outra, na qual os golpistas perdoados tinham sucesso. Foi assim em 1922 e 1924 (venceram em 1930). Foi assim em 1955, 1956, 1959 e 1961 (venceram em 1964). E quase foi assim agora, pois a anistia de 1979 foi o convite perfeito para que as viúvas da ditadura militar voltassem a conspirar contra um governo legitimamente eleito.
Pela primeira vez na história do Brasil, dentro de um regime democrático, militares e civis envolvidos na deposição da ordem constitucional foram levados às barras da Justiça. Processados, foram condenados em um julgamento limpo, com todas as garantias que uma democracia pode oferecer. Mesmo diante da pressão alucinada de Donald Trump – que chegou ao cúmulo de sancionar o país com tarifas comerciais e aplicar a Lei Magnitsky contra o ministro Alexandre de Moraes para travar o julgamento do seu avatar brasileiro –, a corrente de impunidade enfim foi quebrada. A carta do apaziguamento foi tirada do baralho. Doravante, golpistas terão de pensar duas vezes se pretendem arriscar tudo numa mão de cartas. Caso a tentativa de golpe malogre, o risco de ir para a cadeia tornou-se concreto. Em um país que sempre mostrou dificuldade em punir poderosos – e, dentro desse conjunto, também militares de alto coturno – é impossível negar a dimensão histórica do julgamento.
Brasil, 6 de Outubro de 1988
Com o julgamento da tentativa de golpe de Estado arquitetada por Jair Bolsonaro e seus acólitos, o Brasil finalmente termina a sua transição democrática. Se o preceito básico de qualquer democracia é a noção de que todos devem ser iguais perante a lei, a condenação de políticos e militares graduados por atentarem contra o Estado Democrático de Direito representa o desabrochar tardio de uma semente plantada há exatos quarenta anos. Deixamos oficialmente de ser uma República de Bananas para afirmar, em alto e bom som, numa quadra histórica na qual a democracia sofre um processo contínuo de erosão mundo afora, que aqui, sob o sol inclemente do Equador, golpista não se cria.
Para quem acorda de madrugada, toma dois autocarros até o trabalho, nele fica doze horas por dia e, no final do mês, recebe por salário apenas o mínimo legal, pode parecer pouco. Afinal, a taxa básica de juros está em 15% ao ano. A dívida pública alcançará no ano que vem 90% do PIB. Miséria e violência ainda são cores tristes de uma paisagem que consterna o país e envergonha-nos perante o mundo. Há razões, contudo, para estar otimista.
Da mesma forma que o cidadão brasileiro que caminhava pelas ruas no dia seguinte à promulgação da Constituição de 1988, o sujeito de agora tampouco consegue compreender a dimensão histórica do que aconteceu. No dia 6 de Outubro de 1988, nada mudara. O sentimento de liberdade oferecido pela democracia ainda era algo abstrato. Agora, no dia 12 de Setembro de 2025, quase nada mudou.
Há qualquer coisa no ar além dos aviões de carreira
Algo no ar, porém, parece diferente. Não é nada concreto. Talvez não seja possível sequer ouvi-lo, senão como sussurro tímido em meio à brisa tropical. Com o tempo, porém, esse mesmo cidadão distraído começará a perceber a mudança. E, caso seja um pouco mais velho, ele irá se lembrar do grande humorista mexicano Cantinflas: “Antes estávamos bem, mas era mentira”; agora, “estamos mal, mas é verdade”.
Com esse pensamento na cabeça, o cidadão vai distrair-se a ouvir música. Na rádio, toca um som familiar. Trata-se de um antigo sucesso dos anos 1980:
Não nos custa insistir na questão do desejo,
Não deixar se extinguir.
Desafiando de vez a noção
Na qual se crê que o inferno é aqui.
Subitamente, o sujeito sorri. É quando ele escuta a última estrofe:
Existirá
E toda raça, então, experimentará
Para todo o mal, há cura
Arthur Maximus é advogado no Brasil e doutorado pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Os portugueses que votam no Chega serão fascistas? Serão xenófobos e racistas? Serão broncos de extrema-direita?
Garantidamente, os portugueses que votam no Chega têm problemas; problemas gravíssimos.
Ganham salários inferiores a 1.000€ (mais de metade dos jovens adultos, entre os 18 e os 35 anos); ganham reformas inferiores a 500€ (cerca de metade dos pensionistas); não conseguem comprar casa; não conseguem arrendar casa; trabalham em situação de precariedade (uma percentagem assustadora dos jovens adultos a trabalhar com contratos a prazo e, portanto, sujeitos à ‘montanha russa’ do ‘emprego-desemprego-emprego-desemprego’).
Continuando: os portugueses que votam no Chega não conseguem encontrar em Portugal condições de vida que lhes proporcionem estabilidade profissional, autonomia residencial, capacidade financeira para sustentar filhos, e então… emigram.
Os portugueses que votam no Chega têm filhos, jovens adultos, que não conseguem arranjar trabalho nem conseguem comprar casa; ou têm filhos, jovens adultos, que compraram uma casa com muita dificuldade (o valor da entrada, as despesas no dia da escritura, a prestação ao Banco) e que trabalham contratados a prazo, com um salário baixo; mas ao mesmo tempo sabem que há uns felizardos, membros da comunidade de etnia cigana, que não trabalham porque não querem trabalhar, que recebem subsídios e que, de vez em quando, fazem cursos profissionais para continuarem a não trabalhar, e que têm direito a uma casa, sem nada pagarem, apenas porque são uns coitadinhos.
Coitadinhos? Curiosamente, quem se cruza com eles aqui e acolá, porque os tem como vizinhos, vota no Chega. Talvez porque os que votam no Chega são uns sociopatas sem um pingo de amor pelo próximo?
Por falar em sociopatas, e por muito que nos custe acreditar, há portugueses que fazem licenciaturas e mestrados em Serviço Social, que, com dificuldade, conseguem arranjar trabalho, lidando no dia-a-dia com ‘famílias carenciadas’ em termos de ‘inclusão social’, e que, a dada altura, constatam que têm um rendimento, proveniente do trabalho, inferior ao rendimento dessas famílias que são apoiadas pelos nossos impostos. Ora, estes portugueses, que estudaram, que trabalham e que ganham menos que os ‘carenciados’, votam em quem?
Os portugueses que votam no Chega, na sua maioria, pertencem a uma classe média empobrecida e a uma classe média-baixa revoltada.
Não são fascistas, não são racistas, não são broncos, nem são sociopatas.
E depois há os portugueses que têm medo de passear à noite e que dizem às filhas que estão proibidas de chamar um UBER. E estes também votam no Chega.
E há ainda aqueles portugueses, que também votam no Chega, que, em certas regiões do país e em certos setores de atividade, não conseguem arranjar trabalho com um salário digno porque há imigrantes que aceitam trabalhar, sem recibo, auferindo salários de miséria.
Há finalmente portugueses que levam muito a sério a problemática da ética e da moralidade na vida política. Estes portugueses acham que os políticos deveriam cuidar dos cidadãos e do país, em vez de cuidarem de si próprios e dos interesses que, às escondidas, representam. E ficam irritadíssimos com os casos eticamente vergonhosos e com os escândalos moralmente deprimentes que se vão sucedendo, impunemente alimentados por uma classe política que não tem vergonha.
Querem que vos diga como é que estes portugueses votam?
Há entretanto uns partidos políticos que andam com um lenço palestino ao pescoço, que falam de multiculturalidade e inclusão, que pugnam, em abstrato, pelos direitos das mulheres (o que é altamente contraditório com o lenço palestino), dos mais vulneráveis (confundindo vulnerabilidade com recusa de integração) e dos LGBT+, que desculpam os bandidos e achincalham os polícias, que se propõem combater, sempre em abstrato, as desigualdades sociais… em suma, que defendem os palestinianos, os imigrantes, os transsexuais, os criminosos, mais a diversidade cultural e a integração a todo o custo.
E há portugueses que ficam de boca aberta; que perguntam a si próprios em que país é que estes partidos políticos vivem; que se interrogam acerca do conhecimento que estes partidos políticos têm da realidade em que, em Portugal, estamos todos mergulhados.
E estes portugueses votam no Chega.
Há também uns partidos políticos que governam Portugal há várias décadas e que, objetivamente, são responsáveis por aquilo que antes se retratou.
E há portugueses que dizem… basta!
E estes portugueses votam no Chega.
Os intelectuais da esquerda e os espertalhões do poder instalado vão algum dia conseguir perceber porque é que há portugueses a votar no Chega?
Claro que não!
Vão continuar a dizer que quem escreveu estas linhas mete no mesmo saco transsexuais e criminosos, inclusão e recusa de integração, e assim por diante, quando a verdade é que o autor destas linhas, longe de meter tudo isto no mesmo saco, está simplesmente a afirmar que estas não são as causas relevantes para muitos e muitos portugueses – o sofrimento do povo palestiniano, o respeito pelos LGBT+ e o bem-estar dos imigrantes, não são as questões que mais atormentam uma parte não despicienda da população portuguesa.
Os intelectuais da esquerda e os espertalhões do poder instalado vão continuar a dizer que é preciso proteger as minorias, uns, e que é preciso fazer reformas, os outros, quando a verdade é que há muitos e muitos portugueses convencidos de que é preciso cuidar da maioria e que não acreditam na conversa estafada das reformas.
Mais confrangedor ainda: vão continuar a dizer que os jovens adultos votam no Chega por causa das redes sociais; e que os pais dos jovens adultos votam no Chega porque têm fracas habilitações literárias; e que os reformados votam no Chega porque estão esclerosados; e que aqueles que conhecem os ciganos de ginjeira votam no Chega porque são racistas e porque querem incitar ao ódio; e que os emigrantes votam no Chega sabe-se lá porquê, quando a verdade é que…
Enfim, já chega!
Adenda: Como nota final, à luz do que ficou escrito neste artigo, serei seguramente considerado, por uns quantos, um protofascista e um bronco iletrado, que não consegue ler um parágrafo com mais de duas linhas, nem consegue articular uma ideia que seja compatível com o politicamente correto, e neste ponto, pasme-se, estão carregados de razão.
Francisco Abreu é gestor, consultor e editor, doutorado em Filosofia das Ciências pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, tendo sido docente do ensino superior.
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
Que absoluta maravilha foi o encontro de Madrid, onde se reuniu a fina flor do fascismo europeu. Ou, como diria um qualquer colunista do Observador, da direita mais conservadora.
Desde a página de internet (“Patriots”) até ao lema “hacer Europa grande outra vez“, todo um nacionalismo de bater no peito, sem um invasor mais escuro que se aproximasse do palco (a não ser que estivesse a servir os canapés). Nota máxima para a cópia do slogan trumpista, adaptado ao nosso continente e dito em espanhol. Sim, porque a conferência pode reunir líderes racistas de vários países mas, convenhamos, se o cidadão espanhol comum já se vê aflito a entender-se com o inglês, quanto mais os nacionalistas.
Santiago Abascal, ao centro, líder do Vox, com André Ventura, à esquerda. Foto: D.R.
Cada um dos aspirantes a ditador discursou na sua língua ou em inglês. O nosso Ventura foi a excepção, tecendo loas à caça aos imigrantes ou sugerindo a prisão de Pedro Sánchez, em castelhano. Ou vá, em portunhol, daquele género que faria o Jorge Jesus corar de vergonha.
Falou-se pouco de hambúrgueres, e foi uma pena, mas não faltaram referências aos cidadãos europeus que apoiam esta malta. E é justo que se assuma que são muitos ou, como disse Geert Wilders, o lunático que manda nos nacionalistas da Holanda, “estamos a ganhar eleições por toda a Europa”. É um facto. Há milhões de pessoas da minha geração que dormiram nas aulas de História do 8.º ano e agora todos pagamos com a repetição dos factos ocorridos na década de 30 do século passado. Repetição, para alguns, claro. Para quem vota nesta gente, fazendo fé na sua ignorância, tudo isto é novidade.
Escusado será dizer que ouvi os discursos e, portanto, não vou ficar a sofrer sozinho com eles. Tenho que estragar o dia a mais alguém. Em princípio, não será a uma apoiante do Chega, porque isto já vai com mais do que um parágrafo.
O meu favorito foi o concorrente da Estónia. Vou tratá-los como participantes do Festival da Canção, está bem? Vocês depois logo vão ao Google ver os nomes. Dizia ele que não bastava parar com a imigração, era necessário mandá-los de volta para as suas terras. Ora… isto no sul de França, Andaluzia, Portimão, ainda tem algum impacto. Ainda se consegue um “preto vai para a tua terra” ou algo do género.
Agora, na Estónia? Um país com 1,3 milhões de habitantes, onde 96% da população é formada por estonianos (70%), russos (20%) e ucranianos (6%)? Vão mandar quem para casa? Espero que arranjem por lá uns ciganos ou dez nepaleses, porque, se a ideia for deportar russos, é natural que os estonianos acabem por ganhar um passaporte novo, feito na loja do cidadão de Moscovo. Acho pouco eficaz ser-se nacionalista num país cheio de neve e gente branca. É esquisito.
Também gostei bastante do concorrente da Polónia. Não deve ser fácil tentar formar uma oposição nacionalista quando o governo já é formado por nacionalistas. É como tomar banho de mangueira em dia de chuva. Uma pessoa pensaria que, de todos os países europeus, os polacos seriam aqueles que teriam mais asco a pessoas desta laia, mas não. É vê-los crescer quais cogumelos. Estes movimentos que rejeitam as alterações climáticas, casamentos entre pessoas do mesmo sexo, imigração ou tolerância religiosa.
Eurodeputados do grupo Patriots for Europe.
O nosso Ventura foi o primeiro a chamar por Milei (Mariana, nem a motosserra vão deixar para ti). Abriu o esgoto e parecia que estava no nosso Parlamento. O homem tem carisma, é um facto. E ali, entre os seus, não se fez rogado, pedindo a prisão do actual primeiro-ministro de Espanha. Tudo bem que foi dito dentro de um pavilhão onde ninguém acredita na democracia, mas, assim de repente, a frase tinha tudo para criar um incidente diplomático. Pelo menos enquanto Portugal e Espanha ainda tiverem governos democráticos.
Falando em governos democráticos, a estrela da companhia foi, sem dúvida, Orbán, que fez um discurso emotivo sobre os seus quase 20 anos como primeiro-ministro. Santiago Abascal, o Ventura espanhol, elogiou o ancião húngaro e disse como era um exemplo para todos os outros. Esperei pela parte em que Orbán explicava as mudanças da Constituição no seu primeiro mandato para transformar a Hungria numa autocracia, mas… não aconteceu. Foi uma pena. O melhor da história fica sempre para a temporada seguinte.
O senhor da Áustria esteve muito bem também. Os austríacos deviam ter presença permanente nestes arraiais de fachos. Ouvir alemão e uma voz anasalada, em discursos contra imigrantes, é sempre refrescante.
Viktor Orbán (Hungria) e Geert Wilders (Holanda). Foto: D. R.
Entre elogios a Trump, apareceu também a senhora venezuelana que faz sombra ao governo de Maduro, para justificar os recentes ataques da marinha norte-americana. Excelente cabelo para o rapaz da Holanda, que jurou que o seu bom amigo, “Santaigo Escabal”, seria o próximo primeiro-ministro de Espanha. Avisou que o multiculturalismo tinha acabado na Europa. Não sei se inclui a Holanda, um país com 17 milhões de habitantes, entre os quais 5 milhões de origens de outras paragens. Não é fácil andar a saquear ilhas nas Caraíbas ou na costa da América do Sul e depois querer um país cheio de louros.
Le Pen e Salvini participaram no concurso: “Quem expulsa mais africanos?”, arrancando palmas eufóricas aos congressistas delirantes. Foram os mais estatistas entre os alucinados, com críticas constantes às políticas da UE. Bruxelas foi um dos alvos, curiosamente o mesmo alvo que Le Pen usou para desviar fundos europeus. Mas quem é que quer saber disso? É preciso repetir que os senegaleses roubam, seja lá o que for, aos franceses.
Quando cheguei ao discurso do espanhol do Vox já estava farto de ouvir estes gajos todos. A palavra mais repetida foi “reconquista”, porque, como se percebe, a Europa está a ser invadida. Não se sabe bem por quem, mas, uma vez mais, não nos percamos nos detalhes. Entre os oradores passava uma música ao estilo Vangelis, para puxar pelo heroísmo da situação, a coragem do movimento e a epopeia em curso.
André Ventura (Portugal), Geert Wilders (Holanda), Marine Le Pen (França), Santiago Abascal (Espanha), Viktor Orbán (Hungria) e Matteo Salvini (Itália) em encontro anterior do Patriots for Europe. Foto: D. R.
Não tenho a menor dúvida de que boa parte dos que ali estavam serão líderes nos respectivos países, desde logo o nosso mente-sempre-que-respira Ventura. Salvini e Orbán já o são. Putin, que não estando presente é o fundador do movimento, e Le Pen, entre tribunais e Bardellas, cedo ou tarde terá os nacionalistas a governar França.
Avizinham-se tempos negros para a Europa. Aproxima-se a terceira década do século e, tal como há 100 anos, os nacionalismos crescem e a corrida às armas é real. Contar-vos-ia o fim, uma vez que já vi este filme, mas não quero ser um desmancha-prazeres. Aproveitem bem o vosso voto. Ainda é coisa para dar uma chatice ou duas.
Alterações Mediáticas, podcast da jornalista Elisabete Tavares sobre os estranhos comportamentos e fenómenos que afectam o ‘mundo’ anteriormente conhecido como Jornalismo.
No 23º episódio, analisa-se a cobertura que a imprensa fez (ou não fez) de dois crimes que resultaram em duas mortes nos Estados Unidos: um jovem conservador e cristão devoto; uma jovem refugiada ucraniana.
No caso da jovem, que era branca, a imprensa fez um blackout enquanto pôde. Sobre o assassinato do jovem conservador, a imprensa colou-o erradamente à extrema-direita ou tratou de quase justificar a sua morte, optando por destacar apenas algumas das suas posições mais controversas.
Neste episódio do podcast Acta Diurna abordam-se três temas:
1) Os incêndios rurais ocorrem todos os anos em Portugal. Mas as autoridades são, aparentemente, sempre ‘apanhadas’ de surpresa. A dispersão de meios abunda e a forma como é feita a prevenção e o combate às chamas precisa de ser repensada.
2) A ministra do Trabalho causou polémica com declarações sobre as mulheres trabalhadoras que amamentam os filhos, algumas até os filhos entrarem na escola. Além de as declarações de Maria do Rosário Palma Ramalho serem absolutamente condenáveis, também são demonstrativas de que em 2025 ainda se assistem a políticas retrógradas em matéria de maternidade e protecção da família.
3) Vem aí o primeiro livro do PÁGINA UM e a estreia não podia ser melhor, já que a obra contém crónicas do nosso Brás Cubas. Pedro Almeida Vieira levanta o véu a esta obra que estará disponível dentro de poucos meses.
Inspirado no conceito ancestral de noticiar os factos do dia, o PÁGINA UM decidiu registar a marca Acta Diurna no INPI (não é apenas o Almirante Gouveia e Melo que a usa), com o intuito de lançar um podcast de comentário regular sobre a actualidade e temas que orbitam em torno das nossas abordagens.
Subscreva gratuitamente o canal do YouTube do PÁGINA UM AQUI.
A Acta Diurnafoi, muito provavelmente, o primeiro jornal da História. Criado na Roma Antiga, no ano 59 a.C., por ordem de Júlio César, tratava-se de uma folha de informação pública onde eram registados e divulgados acontecimentos políticos, decisões judiciais, anúncios e até mexericos. Afixada em locais de grande circulação, a Acta Diurna tinha como propósito dar conta do quotidiano, funcionando como um instrumento de transparência – ou, ao que tudo indica, de propaganda e controlo da informação.
Inspirado neste conceito ancestral de noticiar os factos do dia, o PÁGINA UM decidiu registar a marca Acta Diurna, para lançar um podcast de comentário regular sobre a actualidade e temas que orbitam em torno das abordagens do próprio jornal. Mas não só. Também haverá espaço para outros assuntos que, por diversas circunstâncias acabam por não ser desenvolvidos em formato escrito.
O Acta Diurna será conduzido por Pedro Almeida Vieira e Elisabete Tavares, podendo contar, pontualmente, com convidados externos que tragam outras perspetivas ao debate. Não é um podcast de entrevistas, é um espaço de análise crítica, com o selo do jornalismo livre do PÁGINA UM.
O Acta Diurnaserá um espaço para quem quer pensar além das narrativas dominantes. E o novo episódio já está disponível.
O panorama político e económico brasileiro foi sacudido na segunda semana de Julho por um meteoro oriundo directamente de Washington. Numa “carta” publicada em sua própria rede social (a Truth Social), o presidente norte-americano, Donald Trump, impôs, de forma unilateral e indiscriminada, uma tarifa de 50% sobre todo e qualquer produto exportado pelo Brasil aos Estados Unidos.
Para justificar tão brutal imposição, Trump – cujo bronzeado artificial, associado à pesada maquilhagem, confere à sua pele um curioso aspeto laranja– fez uso de três “argumentos”:
1 – Existiria uma perseguição política ao ex-presidente Jair Bolsonaro, réu no Supremo Tribunal Federal por tentativa de golpe de Estado. Essa seria uma “caça às bruxas” que deveria parar “IMEDIATAMENTE” (a ênfase da caixa alta é do próprio Trump);
2 – As redes sociais no país, controladas em sua maior parte por Big Techs norte-americanas, estariam a ser alvo de “censura” por parte do STF, o que violaria o direito à “liberdade de expressão dos americanos”;
3 – “Défices comerciais insustentáveis” entre os dois países estariam a pôr em causa a “segurança nacional” dos Estados Unidos.
Autoexilado nos Estados Unidos, o filho mais novo de Bolsonaro, Eduardo, comemorou a medida nas redes sociais. Não satisfeito, o “Filho 03” do ex-presidente chegou a pedir aos brasileiros através de um tweet que “agradecessem” a Trump pelas tarifas impostas aos produtos nacionais.
“Sanções” é o nome do jogo
Quando surge um imbróglio qualquer, seja a nível nacional, seja a nível global, o primeiro passo para compreendê-lo é respeitar o bom vernáculo. Chamando as coisas pelos seus próprios nomes, é mais fácil identificar do que se está a tratar e, a partir daí, começar a pensar em soluções. Por isso mesmo, será erro dar o nome de “aumento de tarifas” ao ataque perpetrado por Donald Trump ao maior país ao sul do Equador. O que houve foi a imposição de sanções.
Para cogitar-se de uma possível guerra comercial, o pressuposto fundamental seria acreditar que verdadeiramente existe uma base factual para as alegações de comércio desigual formuladas pelo Nero dos nossos tempos. É essa disparidade, aliás, que justifica – ao menos em tese – a imposição de tarifas através de ordem executiva do Presidente dos Estados Unidos, de modo a contornar a autoridade constitucional outorgada ao Congresso norte-americano para impor semelhante tributo a importações estrangeiras.
O argumento de “segurança nacional” baseado na suposição de um “imenso défice comercial” – de legalidade duvidosa desde sempre – adquire ares de realismo fantástico no caso brasileiro. Sim, pois enquanto os Estados Unidos mantêm uma balança comercial cronicamente deficitária com o resto do mundo, o Brasil é um dos poucos países com os quais os estadunidenses ostentam superávit nas trocas de bens e serviços. De 2009 para cá, não houve um único ano em que os Estados Unidos tivessem défice comercial com o Brasil. Ao contrário. No acumulado, já são quase US$ 90 mil milhões de saldo favorável aos americanos em quinze anos.
Para além do défice comercial inexistente, o ataque de Trump ao Brasil não pode ser chamado de “guerra comercial” porque ele mesmo enumera dois outros argumentos para justificar a imposição unilateral de tarifas: 1) a suposta “caça às bruxas” contra o ex-presidente Jair Bolsonaro; 2) a “censura” imposta às Big Techs americanas pelo Supremo Tribunal Federal.
“Caça às bruxas”?
Réu no STF por tentativa de golpe de Estado, Jair Bolsonaro sempre se prestou, mesmo enquanto presidente, à submissão vassalar frente ao seu “ídolo”. Bolsonaro chegou ao cúmulo de dizer, em 2019, I love you para Trump mesmo depois que o presidente norte-americano impusera uma taxação às exportações de aço brasileiras para a terra do Tio Sam. Tudo para receber em troca apenas um embaraçoso Nice to see you again.
Bolsonaro não é vítima de perseguição política. É um criminoso que está a ser julgado por tentar impedir a posse de um presidente legitimamente eleito. Trata-se de um julgamento limpo, no qual já se carreou um caminhão de provas, inclusive os depoimentos do ex-comandante do Exército e do ex-comandante da Aeronáutica, a confirmar que o ex-presidente e parte de seus generais pretendiam usar as Forças Armadas para permanecer ilegalmente no poder. Bolsonaro recebe da democracia toda a cortesia que a garantia de um devido processo legal pode conferir. A mesma cortesia que foi negada aos presos políticos da ditadura que ele tanto exaltou durante toda a sua carreira política.
O nó da questão
O segundo ponto levantado por Donald Trump diz respeito à suposta “censura” aplicada pelo Supremo Tribunal Federal às redes sociais norte-americanas. Trata-se de assunto já abordado aqui nesta coluna (https://www.paginaum.pt/2024/09/19/elon-musk-vs-alexandre-de-moraes-uma-visao-brasileira). Não existe censura. O que existe é uma tentativa tímida de responsabilizá-las pelo conteúdo que veiculam.
Fora isso, revela-se formidável hipocrisia ver o Nero Laranja falar em “liberdade de expressão” quando seu governo revogou o visto de 300 estudantes que se manifestaram em universidades a favor da causa palestina; cassou as credenciais da Associated Press por recusar-se a chamar o Golfo do México de “Golfo da América”; e, agora, ameaça tirar a cidadania da jornalista Rosie O’Donnel (nascida em Nova Iorque) por criticar sua agenda ambiental. So much for free speech defense.
Um ataque sem precedentes
Do ponto de vista histórico e diplomático, o ataque de Donald Trump às instituições brasileiras é sem precedentes. Nunca houve nada sequer semelhante ao que se está a passar agora. É verdade que, durante o governo do general Ernesto Geisel, o Brasil sofreu pressão do governo Jimmy Carter pela abertura do regime. Já havia mais de dez anos do golpe de 1964 e as denúncias de violações aos direitos humanos tinham atingido patamar insustentável. Tais pressões, porém, deram-se nos bastidores e em momento algum o governo Carter publicou uma nota desaforada para contestar os crimes cometidos pelos agentes da ditadura.
O máximo de constrangimento imposto por Carter ao governo brasileiro foi obrigar Geisel a receber sua mulher, Rosalynn. Geisel entendia que, como presidente, só lhe competia discutir questões de Estado com seu par americano, não com a primeira-dama, que não fora eleita para coisa alguma. O episódio calou tão fundo na alma do general que, anos depois, já com ambos fora dos respetivos cargos, Geisel negou-se a receber Carter em sua residência. A questão “resolveu-se” depois que o Brasil denunciou o acordo de cooperação técnico-militar com o exército dos Estados Unidos.
O sequestro e o resgate
Do ponto de vista jurídico e político, a “carta” enviada pelo Nero Laranja não faz o menor sentido. A começar pelo facto de que seu destinatário, o Presidente Luís Inácio Lula da Silva, não dispõe de qualquer autoridade para fazer o que Trump exige. Por mais que o país seja desconhecido em grande parte das redes de poder em Washington – por vezes referenciado de forma jocosa como “México do Sul”, cuja capital é a cidade de Buenos Aires –, mesmo um governo de ignorantes como o de Trump é capaz de saber o Brasil não é uma Banana Republic, onde o Presidente manda suspender um processo da Suprema Corte (contra Bolsonaro) ou desfazer-lhe um julgamento (contra as Big Techs).
Ao contrário do que Trump expôs em sua missiva, no Brasil não vigora qualquer regime de exceção. Na verdade, pela primeira vez em sua história, o país tem a oportunidade de consolidar à vera a sua democracia, levando ao banco dos réus civis e militares que conspiraram pela derrubada do regime democrático. Bolsonaro não é vítima de uma “caça às bruxas”. É um liberticida mimado, que passou a vida inteira sem responder pelos seus atos. Agora, com a perspetiva de enfim ser preso, resolveu “sequestrar” o país com a ajuda de uma potência estrangeira para tentar livrar-se do cárcere.
Bolsonaro, de facto, importa?
Mas até que ponto Bolsonaro, de facto, importa nessa equação?
Na mesma carta em que ataca as instituições brasileiras, Trump afirma que, caso as empresas brasileiras decidam “construir ou fabricar produtos dentro dos Estados Unidos”, a tarifa não será implementada. O presidente norte-americano dispõe-se até a fazer o serviço de despachante “para aprovar rapidamente” os investimentos brasileiros. A gentileza é tamanha que ele se propõe a aprovar “em questão de semanas” o desembaraço burocrático. É dizer: se os empresários nacionais resolverem investir nos Estados Unidos, dane-se Jair Bolsonaro.
A ser verdade que Bolsonaro seria elemento-chave dessa medida, por que ele mesmo não veio a público pedir a revogação da medida? Dado o imenso prejuízo causado à economia brasileira, Bolsonaro poderia capitalizar politicamente a questão, “sacrificando-se” pelo bem da Nação e apresentando-se como “salvador da pátria”.
Das duas, uma: ou Bolsonaro não dispõe qualquer poder de ingerência para pedir a revogação das tarifas a Donald Trump; ou ele não foi o principal motivo para que elas fossem impostas. Não há como entender que ele tenha sido a principal motivação do troço e, ao mesmo tempo, não seja capaz de pelo menos advogar pela revogação da medida.
Freud explica?
Há sempre o risco de que tudo isso não tenha passado de um TACO Trade. O acrónimo Trump Always Chickens Out (“Trump sempre amarela”), formulado jocosamente por alguns operadores financeiros de Wall Street, indica uma fórmula através da qual, toda vez que o Nero Laranja apresenta alguma medida estapafúrdia, ele termina por recuar depois de algumas semanas. Seja por conta das pressões dos setores envolvidos, seja por conta da repercussão negativa, Trump acaba por dar o dito pelo não dito e ainda sai por aí a anunciar vitória. Esse, porém, pode não ser o caso das sanções aplicadas ao Brasil.
Como toda a gente sabe, Donald Trump foi processado por sedição depois do infame episódio do 6 de Janeiro. Uma multidão ensandecida, incensada por um comício incendiário do próprio Nero dos nossos tempos, tentou impedir a certificação da vitória de seu oponente democrata, Joe Biden. A alegação? “Fraude” nas eleições. Graças à incapacidade do sistema judicial norte-americano de levar a cabo a denúncia por golpe de Estado, Donald Trump pôde concorrer e vencer novamente a corrida para a Casa Branca.
Durante todo o tempo em que foi processado, Trump alegou ser vítima de uma “caça às bruxas”. A mesma “caça às bruxas” que ele agora acusa o governo brasileiro e o STF de praticarem contra Jair Bolsonaro. Ninguém sabe até que ponto o caso de Bolsonaro detona algum “gatilho” mental na cabeça do Nero Laranja. O mais provável, porém, é que a pressão exercida por ele seja motivada não por qualquer espécie de sentimento de solidariedade, mas, sim, para evitar o “exemplo” contra pretendentes a autocratas que a Justiça brasileira está a dar. Não será mera coincidência, portanto, que Trump tenha feito ameaça semelhante a Israel pela “perseguição” a Benjamin Netanyahu, réu em um rumoroso caso de corrupção.
Não é por acaso, portanto, que o Brasil foi “premiado” com o maior percentual dessa nova rodada de tarifações imposta por Donald Trump. Há, sem sombra de dúvida, uma componente política nesse ato.
Isso explica, ademais, por que ambos os argumentos – “perseguição” a Bolsonaro e “censura” às Big Techs – estão situados topograficamente acima do “argumento comercial” na malcriada “carta” enviada pelo Nero da nova Roma. Esse trecho, a propósito, reproduz na base do “Ctrl+C – Ctrl+V” o conteúdo de cartas enviadas a outros países por Trump. Isso indica não só a aparente preguiça dos redatores na revisão do texto, como também a irrelevância do “argumento comercial” para a imposição indiscriminada de uma tarifa de 50% sobre toda a pauta de exportação brasileira ao país.
E agora?
Ainda que o Brasil fosse uma República de Bananas, qualquer criatura minimamente familiarizada com relações diplomáticas sabe que um país não pode ceder a tais termos sob chantagem. Seria um desastre político a nível interno e uma humilhação vexatória a nível internacional. Churchill ensinava que não se pode negociar com um tigre quando sua cabeça está dentro da boca dele. O que Trump está a pedir, em suma, é que, para não serem assassinados, Lula e o STF cometam suicídio. Parece óbvio que nenhum dos dois cometerá tal despautério.
O ataque deliberado do Nero Laranja às instituições brasileiras detonou uma onda de nacionalismo poucas vezes vista no território brasileiro. Mesmo quem não morre de amores pela esquerda sabe identificar quando seu país está a ser injustamente atacado por uma nação estrangeira. Sequestrada pelo bolsonarismo desde 2018, a bandeira do patriotismo foi transferida de mão beijada para Lula. Com a popularidade em baixa e uma gestão questionada até mesmo por aliados, o babalorixá petista conseguiu tirar seu governo das cordas e parece reenergizado para uma disputa presidencial que promete ser renhida ano que vem.
Danos colaterais
Como se isso não bastasse, a tarifação indiscriminada dos produtos brasileiros abortou o projecto de amnistia aos golpistas de 8 de Janeiro. Ambicionado por Bolsonaro e seus generais golpistas, o projecto tramitava na surdina no Congresso Nacional. Embora nada do texto tenha vindo a público, havia lideranças que defendiam até que se votasse a amnistia antes do recesso parlamentar, em 17 de Julho. Agora, toda essa programação foi por água abaixo.
Para piorar, a péssima repercussão do tarifaço trumpista atingiu a base económica do bolsonarismo, como o agronegócio e alguns setores industriais. Fortemente exportadores, esses setores estão entre os mais prejudicados pelas tarifas de Donald Trump. Sem saber de que lado se posicionar, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas – encarnação daquilo que parte do mainstream mediático alcunha de “bolsonarismo moderado” (como se tal coisa pudesse existir) – ficou na linha de tiro.
Preferido do chamado “Centrão” e do mercado financeiro para substituir o inelegível Bolsonaro na próxima contenda presidencial, Tarcísio de Freitas deparou-se com uma encruzilhada. Se defendesse os empresários atingidos pela medida, compraria briga com seu padrinho político. Se defendesse Bolsonaro, compraria briga com os potenciais patrocinadores de sua campanha. Resultado: Tarcísio não defendeu nem um nem outro. Acabou, assim, por apanhar dos dois lados.
Em resumo:
O episódio das tarifas contra os produtos brasileiros, portanto, é um caso a ser estudado no futuro. Numa só tacada, Donald Trump conseguiu: 1) enterrar o projecto de amnistia aos golpistas de 8 de Janeiro; 2) enfraquecer politicamente seu protégé; 3) alvejar gravemente seu potencial substituto na corrida;e, finalmente, 4) encorajar o atual presidente para as próximas eleições.
Quanto ao Supremo, a ameaça de Trump de nada adiantará para suspender o processo contra Bolsonaro. Na verdade, deve resultar no exato oposto: seu julgamento deve ser acelerado. Quem não conhecesse as personagens, seria capaz de jurar que Trump é lulista de carteirinha.
Diante de tudo isso, resta apenas concluir ironicamente: “Parabéns aos envolvidos”.
Arthur Maximus é advogado no Brasil e doutorado pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Neste episódio do podcast Acta Diurna abordam-se quatro temas da actualidade:
1) Subida das temperaturas e mortalidade
A Direcção-Geral da Saúde (DGS) divulgou, através da agência Lusa, os dados com os óbitos em excesso no mais recente período em que as temperaturas subiram em Portugal Continental. Uma análise ao dados divulgados permite retirar várias conclusões e a DGS ‘não sai bem’ no retrato.
2) America Party: novo partido nos Estados Unidos?
O milionário Elon Musk anunciou a criação de um novo partido nos Estados Unidos. O America Party visa fazer frente ao bi-partidarismo que tem reinado no país e terá como ‘bandeiras’ uma maior eficiência dos gastos públicos e o combate ao aumento da despesa pública, que têm sido batalhas de Musk.
3) As trágicas mortes de Diogo Jota e André Silva
Em análise, a cobertura mediática desta tragédia, o jornalismo abutre e a necessária investigação aos múltiplos factores que poderão ter sido decisivos para causar o acidente que tirou a vida aos dois jogadores.
4) Novo marco de Djokovic
O lendário tenista obteve a sua 100ª vitória em Wimbledon e mostrou, mais uma vez, que se apresenta em excelente forma física nos seus 38 anos.
Inspirado no conceito ancestral de noticiar os factos do dia, o PÁGINA UM decidiu registar a marca Acta Diurna no INPI (não é apenas o Almirante Gouveia e Melo que a usa), com o intuito de lançar um podcast de comentário regular sobre a actualidade e temas que orbitam em torno das nossas abordagens.
Subscreva gratuitamente o canal do YouTube do PÁGINA UM AQUI.
A Acta Diurnafoi, muito provavelmente, o primeiro jornal da História. Criado na Roma Antiga, no ano 59 a.C., por ordem de Júlio César, tratava-se de uma folha de informação pública onde eram registados e divulgados acontecimentos políticos, decisões judiciais, anúncios e até mexericos. Afixada em locais de grande circulação, a Acta Diurna tinha como propósito dar conta do quotidiano, funcionando como um instrumento de transparência – ou, ao que tudo indica, de propaganda e controlo da informação.
Inspirado neste conceito ancestral de noticiar os factos do dia, o PÁGINA UM decidiu registar a marca Acta Diurna, para lançar um podcast de comentário regular sobre a actualidade e temas que orbitam em torno das abordagens do próprio jornal. Mas não só. Também haverá espaço para outros assuntos que, por diversas circunstâncias acabam por não ser desenvolvidos em formato escrito.
O Acta Diurna será conduzido por Pedro Almeida Vieira e Elisabete Tavares, podendo contar, pontualmente, com convidados externos que tragam outras perspetivas ao debate. Não é um podcast de entrevistas, é um espaço de análise crítica, com o selo do jornalismo livre do PÁGINA UM.
O Acta Diurnaserá um espaço para quem quer pensar além das narrativas dominantes. E o novo episódio já está disponível.
Alterações Mediáticas, podcast da jornalista Elisabete Tavares sobre os estranhos comportamentos e fenómenos que afectam o ‘mundo’ anteriormente conhecido como Jornalismo.
No 22º episódio, analisa-se o caso do jornalismo abutre que se está a aproveitar das trágicas mortes de Diogo Jota e André Silva. Também se analisa o sensacionalismo atroz que ‘pintou’ de vermelho e negro o mapa de Portugal nas previsões meteorológicas.
Ainda se analisam dois fenómenos estranhos que afectaram a BBC e um estudo (mais um) divulgado pela Lusa, desta vez da autoria de uma investigadora do ISCTE.
Em 29 de maio, Gouveia e Melo (GM) anunciou que é candidato a Presidente da República (PR). A apresentação da candidatura teve o modelo de “alocução às tropas em parada”: o tom e o semblante severos, o conteúdo do discurso, a aprovação dos aplausos, a audiência sob a direção do mestre de cerimónias, tudo sustentou a imagem de (mais) um D. Sebastião. E as “tropas”, “em parada” ou através dos media, arrebatadas, aclamaram o “Messias”. No fim, a encenação com jovens não dissipou o tom grisalho, e varonil, da audiência, nem a vanguarda de despeitados dos partidos e perdedores militantes (confirmada no dia seguinte).
Ninguém se surpreendeu com o anúncio. A ideia foi lançada em 2021 numa TV, e os media, sobretudo o Diário de Notícias e as TVs (com muitas “sondagens”), alimentaram-na, dando-lhe palco mediático semanalmente ou mais. Os media garantiram-lhe a notoriedade nestes 4 anos, sem a qual o seu protagonismo na crise pandémica se teria diluído nas mentes das massas.
A Procura
A observação e a análise dos apoiantes de GM, nas redes sociais e por aí, tem valor sociológico e político: diz-me com quem andas e digo-te quem és, diz o povo com razão. Há procura pelo “diferente” (de quê?) e há uma elite de apoiantes, os elogiantes, que a corporiza. GM disse na alocução que foram os apoiantes que o convenceram – então não foi a vitória de Trump? Logo, não é independente deles, é a sua figura de proa, o que merece escrutínio. Disse que não depende de partidos; mas isso só é um trunfo se GM não se endividar face a particulares – quem paga os €2 milhões? As dívidas a partidos são mais transparentes.
Pouco une os apoiantes de GM, mesmo entre os elogiantes. Há até quem diga votará em Pedro Passos Coelho (PPC), se este for candidato – ninguém explicou o que aproxima GM de PPC, exceto na vaga perceção que os coloca à direita… De resto, pouco mais dizem do que “Força Almirante!” ou “O Almirante vai ganhar!”. Mas destaco 3 pontos observados nos apoiantes:
cidadãs menos jovens que dizem que o acham bonito, e que dizem que votam nele;
“pôs em ordem” a vacinação contra o SARS-COV-2, logo vai ser um bom PR, porque só ele pode “pôr o país na ordem”, obrigando os partidos a fazer o que ele manda;
e, por ser militar, vai ser como Ramalho Eanes, uma referência de sisudez, de integridade e de autoridade, para ser diferente do atual PR.
Registo, sem mais, a superficialidade da avaliação de algumas cidadãs.
Poucos sabem destes factos, porque a maioria dos editores e dos jornalistas escolheu não os escrutinar e noticiar e, muito menos, “martelar”. E muitos apoiantes de GM nem querem saber.
Além disso, “fogem como o diabo foge da cruz” a explicar como é que GM, notado por uma função executiva e sem bagagem política, vai ser bom numa função não-executiva e na função mais política do regime. Só emitem juízos conclusivos à volta da “ordem”; e ataques ad hominem ao mensageiro, como se fosse este o candidato. (Devo notar que não sou candidato; não vou ser; e decido em quem votar quando estiver formado o boletim de voto.)
Poucos elogiantes caem no ridículo de dizer que GM pode ser o “novo” Eanes. Os que imaginam que todos os militares são iguais acham que, por ser militar, GM tem as virtudes e a sisudez de Eanes. Ignoram a diversidade dos militares, que incluem António de Spínola, Vasco Lourenço, Santos Costa, Rosa Coutinho, Américo Tomás, Costa Gomes, Pereira Crespo, Vasco Gonçalves, Alpoim Calvão, Otelo Saraiva de Carvalho, Galvão de Melo, Mário Tomé, Kaúlza de Arriaga, Melo Antunes, e tantos outros.
A fé em que GM imporá “a ordem” será abordada abaixo; parece ser decisiva para os apoiantes e aponta para o essencial: o caráter de GM.
Realço a superficialidade – sim, a superficialidade – com que tantos cidadãos parecem escolher os políticos em que votam. E é inquietante: até pessoas diferenciadas, por vezes académicos respeitados, expressam posições superficiais, mesmo que não as publiquem.
A ordem, o belicismo e o autoritarismo
A imagem que as pessoas em geral têm de GM é consistente: autoritário. GM e os elogiantes tentam disfarçar, só por propaganda; mas sabem que esse é o maior trunfo para as massas de apoiantes, que têm fé de que GM vai “pôr o país na ordem”. GM alimenta essa imagem, às claras quando é espontâneo, e subtilmente quando está comprometido com o teleponto.
Todos os PR estiveram acima de disputas partidárias; mas as palavras “acima” e, mais adiante, “árbitro” inspiram e animam quem busca a “ordem”. É nesta ideia de “ordem”, de mandar e dar ordens aos demais atores sociais e políticos (sobretudo, aos partidos), que a larga maioria de apoiantes se revê, e que se revela a personalidade autoritária de GM neste domínio.
Neste contexto, é de destacar a sua afirmação belicista sobre distribuir injeções contra o SARS-COV-2: “Para mim isto é uma guerra.” GM concretizou esta ideia com o uso de uniforme militar camuflado durante aqueles 8 meses de 2021. (Que os órgãos de soberania tivessem aceite essa prática de um funcionário público numa função civil, é uma das bizarrias então vividas.)
A ideia de “ordem”, tão apreciada pelos seus apoiantes, já tinha sido expressa numa entrevista em 2021, quando afirmou: “Este país eram anos para endireitar”.
O colapso do processo disciplinar sobre militares do NRP Mondego, por decisão do Supremo Tribunal Administrativo, por violações graves da Constituição e da lei (2025), é mais uma prova de que GM se acha acima, também, das normas do Estado de Direito.
A sua ideia de o PR ser um árbitro – uma autoridade para mandar em todos os demais – não é compatível com a Constituição, que o PR jura e que está vinculado a cumprir e a defender.
Numa cerimónia do Dia de Portugal (2025), GM disse a um cidadão “Cale-se!”. Contra o autor, e para o “calar”, já promoveu três processos judiciais – com a ineficácia que se vê, e que deixa os apoiantes desconsolados. Se foi assim até agora, será mais suave com os poderes de PR?
A vaidade e o narcisismo
Curiosamente, nunca vi um/a apoiante de GM negar a sua vaidade e o seu narcisismo. O que é bizarro, já que estes apoiantes apontam esses defeitos a Marcelo Rebelo de Sousa (MRS), e é um dos motivos que invocam para quererem um PR “diferente”.
Nada no seu passado, nada mesmo, fundamenta a ideia de que vai unir os portugueses. Até no seu curso de oficiais da Escola Naval, por se meter em questões pessoais a que era alheio, GM criou divisões entre camaradas, com consequências muito nefastas.
A expressão “um presidente […] fiel ao povo que o elegeu” merece ser analisada: nem sequer ambiciona ser o PR de todos os portugueses, mas só de quem votar nele. Quiçá não queriam que tivesse dito isto; mas foi isto que disse.
Claro que “o povo” tinha de vir na alocução, pois é uma enzima emocional crucial nas narrativas populistas – de quem exige aos partidos que apresentem “propostas, sem demagogias”…
O caráter de GM
Um traço de personalidade que muitos apreciamos, pelo valor moral que tem, é a consistência, e mais quando os custos superam os benefícios. Neste âmbito, importa rever algumas posições e declarações de GM ao longo de 3 anos:
GM também disse na alocução que o PR não governa. Mas há 3 meses indicou um programa de Governo, vago e bem-sonante, do estilo “Miss Universo”; e na alocução repetiu sons no mesmo estilo, embora com as palavras “acima” e “árbitro” pelo meio: “Precisamos de uma economia centrada nas pessoas, mais forte, mais competitiva, mais produtiva”; “Também precisamos de reformar a Administração Pública e a Justiça. […] De olhar para as ilhas, para o interior e para a diáspora. Importa garantir saúde a todos, em tempo e qualidade”; e “Encontrar soluções para a habitação”. Nunca disse que ia ajudar o Governo a conduzir a política geral do país, nem a concretizar as políticas públicas – mas é isso que cabe nas competências do PR.
Muito notadas foram ainda as declarações contraditórias, com intervalo de dias:
Muitos apoiantes de GM criticam os políticos, por estes dizerem uma coisa e fazerem outra. Por isso, também, querem um PR “diferente”. Todavia, os mesmos toleram, justificam e alguns até aplaudem as contradições de GM. Talvez saibam que para chegar ao poder tem de dizer coisas para agradar ao centrão; já no poder pode fazer outra, como mandar nos partidos e agradar ao “povo que o elegeu”. Vale tudo para alcançar o poder? Em que atos e factos mostrou GM ser diferente dos maus políticos?
Com estes factos da sua conduta no passado, como saber se GM vai cumprir amanhã o que diz hoje? Como confiar em GM, se ele muda de posição ao sabor do “vento”? Como pode GM unir algum grupo, sem ser pela imposição, senão mesmo pela coação?
Usualmente, o caráter é um critério de avaliação para qualquer cargo. E é crucial para avaliar um candidato a um órgão unipessoal, político e não-executivo, com uma apreciável margem de apreciação dos factos, a qual depende diretamente do caráter e da experiência de vida.
Por isso, é preocupante o receio evidente de editores e jornalistas em escrutinarem o passado de GM, e em analisarem a sua conduta e o seu caráter. Só querem saber do que GM diz agora; quiçá para apagar a vaidade e a espontaneidade que prevalecem sem teleponto, e que diferem da versão oficial.
De facto, a imagem generalizada entre os portugueses, de pessoa autoritária e vaidosa, assenta justamente em avaliações de caráter, baseadas na observação da conduta de GM. Os apoiantes desejam o autoritarismo de GM. Até por isso, o caráter de GM é um elemento nuclear da sua candidatura, e é bizarro que jornalistas e editores, sempre tão ágeis a esmiuçar o passado de tantos outros, fujam a observar e a escrutinar todo o passado e o caráter de GM.
Jorge Silva Paulo é doutorado em Políticas Públicas
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