A Impresa, o grupo de media fundado por Pinto Balsemão recomprou, discretamente, no final de 2022, o seu edifício-sede, em Oeiras, que vendera ao Novo Banco, há seis anos, por 24,2 milhões de euros. A opção, que implicava o posterior arrendamento á instituição bancária, justificava-se então por problemas graves de liquidez da Impresa. A situação financeira da Impresa não se modificou, e por isso a recompra somente foi possível porque o Novo Banco, como vendedor, financiou a aquisição do edifício pela Impresa, aparentemente com uma menos-valia, porque a hipoteca registada é de apenas 19 milhões de euros, conforme o PÁGINA UM apurou. A CMVM entende não haver necessidade de os investidores e a concorrência terem sido informados desta estranha operação em que a Impresa terá obtido, de mão-beijada, cerca de 4,6 milhões de euros de um banco intervencionado pelo Estado.
Quando, em 2018, a Impresa vendeu o edifício-sede do grupo, situado em Paço de Arcos, ao Novo Banco, o negócio foi anunciado ao mercado através de um comunicado, e foi notícia na maioria dos órgãos de comunicação social. A venda, através de uma operação ‘sale e leaseback’ garantiu à dona do jornal Expresso e da SIC um encaixe de 24,2 milhões de euros, com a Impresa a ficar com o direito de arrendar o imóvel por 10 anos.
Contudo, no final de 2022, a Imprensa comprou o mesmo edifício ao Novo Banco, através de um negócio executado de forma discreta, sem comunicação ao mercado e sem qualquer comunicado de imprensa. A discrição em torno do negócio compreende-se. Afinal, a Impresa comprou o edifício ao Novo Banco, mas como não tinha recursos financeiros próprios suficientes foi o banco que financiou o negócio. Para aumentar a estranheza, o Novo Banco não só emprestou o dinheiro para lhe ser comprado um activo, como ainda por cima terá perdido dinheiro pela transacção do imóvel. E não foi pouco.
Francisco Pinto Balsemão, presidente do conselho de administração da Impresa, e Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República, na inauguração da expansão do edifício-sede da Impresa, em 2019, quando passou a ser também a ‘casa’ da SIC. Foto: Captura a partir de vídeo da SIC.
O PÁGINA UM consultou a Certidão Permanente da matriz do edifício-sede da Impresa, tendo constatado que a venda do imóvel pelo Novo Banco à Impresa Office & Service Share – Gestão de Imóveis e Serviços se efectuou em 23 de Dezembro de 2022. Simultaneamente, foi registada uma hipoteca sobre o edifício em nome do Novo Banco.
Os detalhes do negócio não foram divulgados publicamente, mas o valor da hipoteca foi de 19.607.540,03 euros de capital – ou seja, bem abaixo dos 24,2 milhões de euros da transacção de 2018. No registo surge ainda que o Novo Banco garantiu um financiamento máximo de até 27.450.556,04 euros, o que pode indiciar que houve outros compromissos assumidos entre as duas partes. Sabe-se, aliás, que a Impresa, apesar de ter ‘recuperado’ a posse efectiva da sede, não vai ter a vida fácil, porque a taxa de juro anual aplicada ao empréstimo será de 9%, a que acresce 3% de juros de mora em caso de atraso no pagamento de mensalidades.
O PÁGINA UM questionou a Impresa e o Novo Banco sobre este estranho negócio, mas o grupo de media remeteu todos os esclarecimentos para os seus relatórios e contas, que nada explicam sobre esta matéria, enquanto o banco se escusou a responder. Já o Fundo de Resolução, que é acionista minoritário do Novo Banco e foi o veículo para as injecções de capital no banco, indicou ao PÁGINA UM que “não foi, nem tinha que ser, nos termos dos contratos, consultado” sobre a compra do edifício à Impresa em 2018, nem dispõe de informação sobre a operação agora ocorrida.
Registo predial do edifício da Impresa. Em quatro ano, a Impresa recuperou a sua sede com um empréstimo do vendedor, que ainda fez um ‘desconto’ (ou uma assumida menos-valia) de 4,6 milhões de euros.
Recorde-se que no momento em que o edifício da Impresa foi vendido ao Novo Banco, o grupo dono da SIC e do Expresso passava enormes dificuldades e precisava de liquidez financeira. Foi, aliás, no mesmo ano, em 2018, que o grupo de Pinto Balsemão vendeu os seus ‘activos tóxicos’ da imprensa escrita – nomeadamente as revistas Visão e Exame – à empresa unipessoal de Luís Delgado, a Trust in News, que está actualmente com um Processo Especial de Revitalização (PER) a aguardar conclusão. (Recorde-se que a compra das revistas à Impresa também foi financiada pelo Novo Banco, que arrisca agora ‘ficar a ver navios’ em relação ao dinheiro emprestado, reclamando um valor de créditos no PER da Trust in News de 3.557.280,58 euros).
A solução de venda do edifício em 2018 foi a escapatória depois de a Impresa ter falhado, no ano anterior, uma emissão de obrigações. Com BPI, o banco com ligação histórica ao grupo de Balsemão, a preferir ficar ‘ao largo’ de novos financiamentos, e com a Caixa Geral de Depósitos a receber ajudas estatais, a dona do Expresso encontrou ‘refúgio’ num ‘novo amigo’ (Novo Banco), que estava então a receber injecções de capital dos contribuintes, depois do colapso do BES.
A compra do edifício-sede da Impresa pelo Novo Banco foi feita quando a instituição era liderada por António Ramalho, que não respondeu às questões do PÁGINA UM. Já a venda do imóvel à Impresa e o financiamento da tomada do edifício por parte do grupo de media, ocorreram meses depois de Ramalho ter saído da presidência.
Saliente-se que, ao contrário do anúncio de venda do imóvel ao Novo Banco, em 2018, o qual foi divulgado como ‘Informação Privilegiada’ aos investidores, a compra do edifício pela Impresa, em 2022, não mereceu qualquer comunicado ao mercado.
Em 2018, a Imprensa emitiu uma informação ao mercado, informando os investidores da venda do seu edifício-sede. Mas, em 2022, nenhum comunicado foi feito ao mercado. Para a CMVM, o mercado não precisava saber deste negócio e do novo empréstimo da Impresa através de um comunicado. A Impresa remeteu informações para os seus Relatórios e Contas, mas não se encontra nenhuma referência ou nota a explicar a operação de compra do seu edifício ao Novo Banco.
Apesar de ser uma empresa cotada em Bolsa, a Impresa não informou os investidores, através de um comunicado formal, sobre a alteração da propriedade do seu edifício-sede nem sobre o novo empréstimo de longo prazo contratado com o Novo Banco.
Sobre esta omissão da Impresa, enquanto emitente no mercado de capitais português, e a diferença de actuação face às duas transacções em questão, a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) considerou não ser necessário actuar, não impondo a obrigatoriedade de divulgação de ‘Informação Privilegiada’ ao mercado através de um comunicado formal similar ao que foi publicado no site do polícia da Bolsa nacional em 2018 pelo grupo liderado por Balsemão. Um privilégio que nem todos recebem.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.
Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.
O Município de Mafra pagou 125 mil euros a uma empresa para organizar uma prova de surf, mas, na verdade, este evento desportivo integra o circuito da Liga Mundial de Surf e tem associada uma empresa de cerveja espanhola, uma marca de roupa desportiva norte-americana e a EDP. O ajuste directo para uma falsa prestação de serviços é assim, em concreto, um ‘subsídio’ a uma empresa privada dado pela Câmara de Mafra é justificado, pela autarquia com o facto de os municípios poderem apoiar eventos “que contribuam para a promoção da saúde e prevenção das doenças”. Desde 2018, a autarquia social-democrata já ‘lançou ao mar’ 750 mil euros. porque tem boas ondas…
A Câmara Municipal de Mafra assinou um contrato por ajuste dirrecto para a “produção” em concreto da prova internacional de surf, mas, na verdade, trata-se de um apoioà organização deve ser visto com um patrocínio. Denominada “EDP Vissla Ericeira 2024”, a prova decorrerá na praia de Ribeira d’Ilhas, entre os próximos dias 29 de Setembro e 6 de Outubro, e integra o circuito internacional de Liga Mundial de Surf, sendo que a organização está associada a uma empresa espanholsa de cerveja (Estrella Galicia) e tem como ‘naming’ (principais patrocinadores) uma marca de roupa desportiva da Califórnia (Vissla) e a EDP.
A autarquia do distrito de Lisboa tem, aliás, desembolsado anualmente sempre a mesma verba de 125 mil euros para pagar a organização da prova autorizada pela Liga Mundial de Surf, tanto directamente, como através de uma empresa municipal. Desde 2018, foram gastos 750 mil euros de dinheiros públicos para suportar gastos com a organização desta prova, que, em quase todas as edições, tem tido o ‘naming‘ da EDP, com a excepção do evento de 2021, que foi patrocinada pela MEO.
Autarquia assume em contrato que uma empresa organiza para si um evento que é afinal da responsabilidade da Liga Mundial de Surf, estando associada a uma emprsa espanhola de cerveja e tem a Vissla e a EDP como patrocinadores com direito a ‘naming’.
Este ano, o contrato assinado pelo presidente social-democrata da autarquia, Hugo Moreira Luís, em 3 de Setembro passado e registado no Portal Base na mesma data, beneficiou a empresa 3Sports Events e explicita que o objecto é a “Produção do Evento Desportivo – EDP Vissla Pro Ericeira 2024”. Porém, apesar de o contrato estipular que faz parte integrante o caderno de encargos, este documento não se encontra disponibilizado no Portal Base, como deveria. Deste modo, pouco se sabe sobre as tarefas a executar pela empresa contratada, inferindo-se, sem ser evidente, nas cláusulas do contrato que envolverá montagens e desmeontagens de estruturas e também limpeza de espaços. Este procedimento, através de ajuste directo, contrasta com apoios atribuídos por outras autarquias a provas desportivas, mesmo quando sob a forma de patrocínio, onde as contrapartidas estão definidas em detalhe.
No único documento disponível no Portal Base, que se resume às sucintas cláusulas do contrato, apenas é mencionado que prazo para a prestação do serviço é de 19 dias e corresponde não só ao período em que decorre o evento, de 29 de Setembro a 6 de Outubro, incluindo um período para montagem de infraestruturas e posterior desmontagem e limpeza dos espaços. Mas não diz explicitamente que a emprsa adjudicatária seja quem executa essas tarefas.
Em resposta a perguntas do PÁGINA UM, a autarquia de Mafra afirmou apenas que, “nos termos do caderno de encargos [que não enviou], a prestação de serviços é referente à ‘Produção do Evento Desportivo – EDP Vissla Pro Ericeira 2024’, a realizar, previsivelmente, de 29 de Setembro a 6 de Outubro do corrente ano, com período inicial de preparação e montagem das infraestruturas, e final onde será contemplada a desmontagem e limpeza dos espaços, prazo este com início a 22 de Setembro e término a 10 de Outubro do corrente ano”. Em suma, repetiu o que consta no contrato.
O evento “subsidiado” pela Câmara Municipal de Mafra tem como patrocinador de destaque a EDP, que dá mesmo o nome ao evento. (Foto: D.R.)
A mesma fonte oficial da autarquia adiantou ainda que esta prestação de serviços contempla a “apresentação de licença para realização da prova; produção do evento (gestão de atletas; viagens; refeições), gestão logística; montagem de infraestruturas e equipamentos; desenvolvimento de plano de comunicação; [e] gestão da atividade desportiva”. Ora, esta parte não consta nas breves cláusulas do contrato.
Sobre o facto de a autarquia assumir os custos de produção de um um evento onde não é formalmente a organizadora – nem o seu nome consta na divulgação da prova no site da Liga Mundial de Surf –, e cujo ‘naming’ é de duas empresas privadas, a Câmara argumenta que “ainda que o município de Mafra não tenha o seu nome do evento, do mesmo faz parte a referência à Ericeira, que é uma localidade deste município e que, numa perspectiva de marketing territorial, se pretende promover”. E conclui ainda que “a referência do Município de Mafra, através do seu brasão, faz parte dos diversos materiais de comunicação da prova”. O PÁGINA UM consultou vários materiais e diversos vídeos de anteriores edições desta prova na Ribeira d’Ilhas, como a do ano passado, e apenas surgem referências à EPD, Vissla e Estrella Galicia.
Para explicar a entrega deste ‘apoio’ à prova internacional através de um ajuste directo, a autarquia alegou a ncessidade de “proteger direitos exclusivos, incluindo direitos de propriedade intelectual”, o que torna estranho este contrato de prestação de serviços se estivesse em causa a simples montagem ou desmontagem de instalações e limpeza de espaços.
O município de Mafra tem patrocinado o evento de surf pelo menos desde 2018, incluindo através da empresa municipal GIATUL. Fonte: Portal Base.
A explicação para esta “aquisição de serviços” por parte da autarquia de Mafra também se mostra ‘sui generis’. O município liderado pelo social-demcrata Hugo Moreira Luís refere que o regime jurídico das autarquias locais lhe que confere competências para “apoiar actividades de natureza social, cultural, educativa, desportiva, recreativa ou outra de interesse para o município, incluindo aquelas que contribuam para a promoção da saúde e prevenção das doenças”. Fica por explicar como uma prova internacional privada de surf, já apoiada por empresas privadas, pode promover a saúde e prevenir doenças da população do concelho de Mafra.
Segundo o contrato, o procedimento por ajuste directo foi autorizado por despacho do presidente da autarquia social-democrata, Hugo Moreira Luís, assinado pelo autarca a 11 de Julho deste ano. A prestação de serviços contemplada no contrato foi adjudicada pelo autarca a 26 de Julho.
Este contrato está isento de fiscalização pelo Tribunal de Contas ao abrigo do artigo 48º da Lei 98/97 que refere que “ficam dispensados de fiscalização prévia os contratos referidos nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 46.º de valor inferior a 750 000 (euro), com exclusão do montante do imposto sobre o valor acrescentado que for devido”.
Câmara de Mafra alega que o seu brasão está em todos os materiais de divulgação do evento internacional.
Saliente-se que este procedimento tem sido seguido em anos anteriores, embora por vezes em moldes distintos. Já o anterior presidente da autarquia, o social-democrata Hélder Sousa Silva, que saiu do cargo este ano, para assumir funções como eurodeputado, usou a mesma estratégia para conceder este “apoio”. No entanto, para o ano de 2022 e 2023, a autarquia fez contratos de “aquisição de serviços”, também no valor de 125 mil euros, à empresa Oceanptevents, para patrocinar o mesmo evento de surf na Ericeira.
No entanto, nos três anos anteriores os contratos, por ajuste directo e pelo mesmo valor, foram suportados pela GIATUL, a empresa municipal que gere as actividades lúdicas, infraestruturas e rodovias deste concelho, mas neste caso o patrocínio, embora não explicitamente assumido, tornava-se mais evidente. Resta saber se, nos próximos anos, o município vai continuar a ‘surfar esta onda de águas turvas’, concedendo um apoio ou subsídio, justificando tudo através de um contrato de “aquisição de serviços”, aproveitando-se também do facto de não ser, aparentemente, exigido visto prévio do Tribunal de Contas.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.
Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.
Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem de Rui Araújo, publicada na revista Grande Reportagem, em Maio de 1985.
Na Serra de Santo António, os proprietários organizam-se e armam-se para combater os ladrões de gado, porque, dizem, “as autoridades nada fazem”.
Uma milícia privada ou um ‘Far West’ português?
Foto: Rui Araújo
“A paz orvalhada que há pouco cobria a aldeia enxugava agora ao claro sol que rompia. Todas as chaminés fumegavam, todas as casas estavam abertas, todos os mistérios desabrochavam e perdiam insensivelmente a graça da virgindade”, Torga mal podia imaginar e, no entanto,…
— Foi quando a filha do Prudêncio casou! É verdade, os roubos começaram no dia do casamento, há uns cinco anos atrás…
Aníbal morde o beiço e põe-se a meditar. Aí, os fregueses do Café do Agostinho param de jogar às cartas, pedem mais uma rodada e ficam a ouvir. Sentem-se obrigados a comparticipar — atentamente — na conversa. Aníbal sabe falar.
— A coisa repetiu-se há uns dois anos e o ano passado tentaram fazer mais três desvios. Só de uma vez queriam levar 14 bois de engorda… Em cinco anos roubaram-nos dezenas de cabeças de gado.
Sem dar conta, temos um grupo de velhotes à volta da nossa mesa. A mirar e a inventariar. João Louro, jovem proprietário e guardador de vacas, continua a história.
— O homem comprou os animais em Santarém e volvidos poucos dias os ladrões tentaram levá-los. Como estava a chover muito, o carro deles afundou-se. Foi por isso que tiveram de soltá-los todos para fora. Um Mercedes é que veio puxar o carro da lama. Eles costumam tirar os animais dos cerrados [zonas vedadas por muros de pedra] e depois forçam-nos a entrar nas camionetas mesmo à porrada. Uma vaca chegou a vomitar o bucho. Ela já devia ir morta ou perto disso…
Um velhote despega-se do grupo e diz que não se deve esconder nenhum bocado da história. As características da região impõem que o gado ande à solta, pelo menos, nove meses por ano e esteja, assim, mais à mercê dos ladrões. Mas há outros ladrões. Os caçadores não roubam, mas destroem muita coisa a pretexto de darem uns tiritos aos tordos: “cortam pinheiros a tiro, furam bidons de água para o gado, deitam muros de pedra abaixo e dão cabo da calma e da vida das gentes das serranias“.
Serra de Santo António.
Montes, muitos montes, trilhos, veredas e meia dúzia de casas dispersas. Uma paisagem de pedregulhos alvos e de erva bem verde. Ali vivem 1.000 almas e 3.000 cabeças de gado que produzem uns 15.000 litros de leite por dia, mais alguma carne. A edificação de quatro moradias afrancesadas e as manobras nocturnas dos 60 homens da milícia armada para combater os ladrões de gado — face ao aparente sonambulismo das autoridades — são os primeiros sinais palpáveis da vida que por ali corre.
Aníbal Agostinho e João Louro acompanham-me à Junta de Freguesia. O presidente, Lourenço Rosa, manda-nos entrar. Enquanto trocamos as primeiras palavras aparece um latagão que se abeira do guichet e se queda a escutar. Lourenço Rosa faz o ponto da situação:
— As rondas vão prolongar-se, pelo menos, até ao final do Verão. Depois, logo se verá. A GNR não tem capacidade para fazer mais. Foi essa a razão que levou os proprietários a fazer a sua própria segurança, formando uma escala de serviço para guardar o gado. Vai ser preciso um desastre para que as autoridades comecem a preocupar-se com isto. Mas nessa altura, quando isso vier a suceder, não virão cá fazer nada. Já será tarde… Os ânimos estão exaltados. Já lá vão umas dezenas de cabeças de gado roubadas na área e isto é muito grave. Com as pessoas a terem que guardar os seus bens, estamos no Far West…
A segurança é efectuada diariamente por dois grupos armados com dois homens cada um. As rondas começam depois do pôr do Sol. A escala de serviço (secreta, se faz favor!) obriga cada homem válido a patrulhar todos os 15 ou 19 dias, faça o tempo que fizer.
Foto: Rui Araújo
Esta noite estão de guarda o João Louro e Aníbal Agostinho numa zona, e dois homens da serra, noutra. Decido acompanhar os primeiros. A patrulha começa com uma ´bica´ na tasca do Agostinho. Depois, cada grupo segue o seu caminho. Levamos umas latas de atum e uma garrafa de bagaço. Os outros, um pedaço de carne assada. O regresso só está previsto para as 05:00 da manhã, hora em que começam a circular os “carros do comércio”.
Faz frio. Do sítio elevado onde nos encontramos controlam estradas e atalhos. A carrinha está escondida atrás de um muro de pedra. Os dois homens encostam-se ao pára-choques e puxam das caçadeiras. Mil e um ruídos surdos invadem a serrania. É altura de meter conversa.
— Isto é um bocado chato…
— Pois é, mas se ninguém o faz há roubos. — conta João.
— Eu gostava mais de estar na cama ou ir até ao café, mas temos de salvaguardar os nossos interesses.
Ouvimos passos que se aproximam. Os dois homens levantam as caçadeiras. O ruído cessa. Uma voz áspera grita que ali vai “gente de paz“. Sorrimos. O outro grupo decidiu visitar-nos. E ainda bem. A noite estava a tornar-se longa.
Sentamo-nos ao lado de uma casota de pedra. Pergunto quais foram as últimas peripécias da “força armada” da serra. Os cowboys começam por nada dizer, mas quando Aníbal se decide a abrir a boca para contar a história do cunhado (que atirou um tiro para o ar quando um forasteiro saiu do carro para urinar de noite e acabou por fugir a sete pés) a língua solta-se a todos os outros.
João Costa Gaspar, 68 anos, 34 vacas, é o veterano do corpo de intervenção da serra. O homem fala pelos cotovelos. Diz que antigamente tinham o gado à toa. Passavam dois ou três dias sem o ver, mas andavam descansados. Agora, quando lhes falta uma rez, pensam logo que foi roubada. E as aventuras?
João Louro aproveita a deixa para contar. Uma vez, alguns rapazes de fora da serra foram de noite para uma gruta e um dos homens da patrulha ouviu um deles dizer aos outros para mandarem a corda, “que esta já está“. Eles queriam dizer a pedra, mas o guarda entendeu que era uma vaca. “Veio cá acima chamar a gente enquanto o outro ficou lá em baixo de espingarda apontada. Só não foi parar dentro da gruta com um tiro porque houve controlo…”
O velhote volta ao ataque. Uma outra noite, viu a luz de uma camioneta com taipais altos. Mandou-a parar. O condutor respondeu-lhe que não era ladrão de vacas. Transportava azeite. Ora, para o senhor Gaspar, “transportar azeite em Setembro é uma mentira“. Além disso, o veículo circulava numa estrada intransitável. “Se ele não tivesse com mau sofisma ia pela estrada directa. Em seguida, até mudou de residência. Era uma forma de declarar que deve mesmo ser ele, porque não se sente bem ao pé da gente.“
Arménio Santos Duque, 32 anos (e co-autor das listas de ronda) conclui que “é ingrato e grave” terem de fazer justiça. O ancião dá-lhe uma cotovelada sorrateira e adianta que se vir alguém a andar com vacas atira “como aos coelhos, tal e qual, igualzinho. Atiro, decidido, logo. Ou mato ou morro. Mesmo se, como agora, ando um bocado destreinado…“
Bebemos um trago, damos uma última volta pelas propriedades vizinhas e voltamos à aldeia. O dia não vai tardar em nascer. Na estrada aparecem os primeiros comerciantes. Os cowboys da serra têm de despachar-se. Mudar de roupa e de ofício. Amanhar a terra, ordenhar as vacas e trabalhar na fábrica.
Uma fonte próxima do posto da GNR de Alcanena (do qual depende a Serra de Santo António) limita-se a confirmar que “há poucos efectivos” para a região e nada se pode fazer para impedir patrulhas privadas. Os roubos de gado assolam o país de Norte a Sul. A iniciativa dos homens da Serra de Santo António, ao tomarem nas suas mãos a defesa das suas manadas, pode ser eficaz. Mas também pode ser que um dia destes algum inocente acabe por apanhar com os ricochetes.
Reportagem originalmente publicada na revista Grande Reportagem, na edição de 10 a 16 de Maio de 1985, Lisboa.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.
Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.
Começam agora a desvendar-se os verdadeiros motivos para o Infarmed – e sobretudo o seu presidente Rui Santos Ivo, com a conivência do Ministério da Saúde – ter lutado 30 meses para evitar o acesso legal do PÁGINA UM ao Portal RAM, onde constam as notificações das reacções adversas às vacinas contra a covid-19. Mesmo estando a esconder ainda um vasto conjunto de dados (não surgem reacções adversas em crianças dos 5 aos 12 anos) e diversas variáveis, em incumprimento de um acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul, o PÁGINA UM já detectou mais de 225 casos graves afectando menores de 25 anos, incluindo adolescentes e mesmo recém-nascidos, cuja evolução não teve qualquer acompanhamento pelo Infarmed, desconhecendo-se assim se recuperaram ou se houve um desfecho fatal. Ou seja, o Infarmed regista os casos, mas não faz qualquer monitorização, minando assim a confiança na farmacovigilância. Há reacções com evolução ignorada em casos gravíssimos, incluindo trombocitose, tromboembolismo, miocardite e pericardite, embolia pulmonar, trombose venosa cerebral, trombocitopenia imune e acidente vascular cerebral. O Infarmed e o Ministério da Saúde, confiantes num (quase certo) impacte nulo desta investigação na imprensa ‘mainstream’, nem sequer reagiram quando confrontados para comentar as falhas da farmacovigilância que desvirtua uma avaliação da segurança das vacinas sempre ‘vendidas’ como seguras e eficazes.
Uma coisa é a teoria; outra a prática. A farmacovigilância – como dirão, por certo, a ministra da Saúde, Ana Paula Martins, que foi professora universitária na Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa, ou mesmo o presidente do Infarmed, Rui Ivo – é uma ciência relacionada com a recolha, detecção, avaliação, monitorização e prevenção de efeitos adversos com produtos farmacêuticos. Vem nos manuais, consta das normas legais e procedimentos – é uma imposição, já padronizada após alguns escândalos passados, que surge quando os medicamentos, depois de aprovados seguindo os ensaios clínicos, são colocados no mercado.
E é aí que está em jogo muita coisa: há a perspectiva de um negócio lucrativo legítimo assente na confirmação da eficácia no tratamento ou prevenção de alguma doença ou maleita, mas também o risco de, através dos procedimentos de farmacovigilância, serem detectados efeitos adversos graves que obriguem a limitar o seu uso ou, pior ainda, obriguem à sua retirada pelo facto de os eventuais benefícios não compensarem os riscos.
Não é fenómeno frequente, mas também não é raro. Há quatro anos, num artigo científico publicado na revista Current Drug Safety, quatro investigadores portugueses apresentam uma resenha sobre o processo de decisão, baseado em dados, que tinham levado à retirada do mercado de medicamentos por razões de segurança, sustentando que muitos dos problemas não tinham sido detectados nos processos de pesquisa e desenvolvimento, até porque muitas reacções adversas têm uma incidência que não permite o seu conhecimento em ensaios clínicos que usam poucos milhares de pessoas.
O artigo destes investigadores – e existem centenas de artigos similares – chama sobretudo a atenção para o reforço da monitorização – mesmo nos dias de hoje em que a Ciência assume um papel de dogma apenas acessível a ‘peritos’ reconhecidos. Os problemas com medicamentos podem já ter sido piores – por exemplo, 10,2% das novas substâncias activas moleculares introduzidas nos Estados Unidos entre 1975 e 1999 foram retiradas ou levaram a restrições de uso por razões de segurança. Mas continuam a ser reais, e difíceis de assumir, porque há muito a perder.
Por um lado, as farmacêuticas não apenas perdem lucros futuros como podem sofrer elevados pedidos de indemnização. Por outro lado, em casos de escândalo, as autoridades políticas e administrativas tendem a não reconhecer de imediato os erros – porque a farmacovigilância é da sua responsabilidade – e prolongam a tomada de uma posição mais radical. O atraso entre a introdução do medicamento e a sua retirada por razões de segurança, bem como as metodologias usadas para identificar riscos anteriormente desconhecidos.
Diversos estudos mostraram que entre 82% e 90% dos problemas de segurança identificados em medicamentos retirados do mercado foram reconhecidos através de relatos de casos das reacções adversas de medicamentos (RAM). Mas, globalmente, o tempo médio até à retirada é de 20,3 anos, como se destaca no artigo dos quatro investigadores portugueses.
Antes da pandemia da covid-19, que veio introduzir um programa de vacinação maciço jamais visto, mesmo as vacinas eram alvo de uma atenção especial da farmacovigilância. E são conhecidos diversos casos mais ou menos recentes de retirada total ou parcial na Europa e/ ou em outras partes do Mundo por razões de segurança, como a vacina Pandemrix fabricada pela GlaxoSmithKline durante a pandemia de gripe suína de 2009-2010, a da vacina LYMERrix, fabricada contra a doença de Lyme pela actual GSK. Num relatório da Organização Mundial da Saúde relativo ao período 2010-2018 intitulado “Restrictions in use and availability of pharmaceuticals” surgem referidas nove vacinas sobre as quais penderam retiradas ou restrições de uso.
Mas apesar das vacinas contra a covid-19 terem sido o fármaco mais administrado num curto espaço de tempo, incluindo a grupos etários de baixíssimo risco e a pessoas já com imunidade adquirida, as autoridades e os ‘peritos’ sempre recusaram admitir a dimensão das reacções adversas, apontando sempre com a sua alegada eficácia no controlo da pandemia. Mesmo nos relatórios de farmacovigilância dedicados exclusivamente às vacinas contra a covid-19, o Infarmed – seguindo a filosofia das suas congéneres – relativizava os números e os efeitos adversos. Por exemplo, invariavelmente, nos seus relatórios de farmacovigilância – que deveriam ser neutros, prudentes e equidistantes –, o regulador do medicamento português assumia, à partida, que “diversos estudos comprovam que as vacinas contra a covid-19 são seguras e efectivas”. E a partir daí a sua análise estava logo comprometida por um enviesamento ’ideológico’.
Aliás, tal como a Agência Europeia do Medicamento, também o Infarmed sempre menorizou a catadupa de reacções adversas que foram sendo encaminhadas para os sistemas de farmacovigilância por causa das vacinas contra a covid-19, que passaram a ser, de muto longe, o fármaco com maior número de notificações. Num recente, e bastante simplificado relatório, com apenas 20 páginas, o Infarmed apresenta um gráfico bastante elucidativo sobre o ‘impacte’ das vacinas contra a covid-19. Apesar da tendência de crescimento desde 2011 das notificações de reacções adversas às centenas de medicamentos ‘controlados’ pelo Infarmed, a média anual no triénio anterior à pandemia (2017-2019) situou-se em 9.503.
Rui Santos Ivo, presidente do Infarmed: uma farmacovigilância que abandona o desfecho de reacções adversas graves em centenas em jovens.
No primeiro ano da pandemia, em 2020, e sabendo-se que as vacinas contra a covid-19 somente começaram a ser administradas em 27 de Dezembro, as notificações de reacções a todos os medicamentos até foi ligeiramente inferior: 8.801. Mas depois saltaram para as 39.267 notificações em 2021, descendo para 26.932 no ano seguinte. Em 2023, reflectindo a fraca adesão aos boosters da vacina contra a covid-19, o total de notificações para todos os fármacos desceu para níveis dos anos pré-pandemia, tendo sido contabilizadas 11.153.
Porém, neste relatório de qualidade bastante sofrível, pela ausência de detalhe, o Infarmed nem sequer discrimina os fármacos associados às reacções adversas nem tão-pouco a sua gravidade de forma explícita. Em todo o caso, induz-se que as vacinas contra a covid-19 foram o principal grupo de fármacos a dar problemas nos últimos anos, porque o número total de reacções adversas classificadas como graves mais que duplicou em 2021, no auge do programa de vacinação, face aos anos anteriores. Assim, se em 2019 o Infarmed contabilizara 5.511 reacções graves e 4.482 no ano seguinte, em 2021 foram registadas 11.435, descendo depois para 6.086 em 2022 e para 5.043 no ano passado.
Se se considerar que sensivelmente metade das cerca de 28 mil mortes associadas à covid-19 ocorreram antes do processo de vacinação, a existência de tantos milhares de casos graves deveria merecer, subentende-se, uma análise atenta da entidade responsável pela farmacovigilância em Portugal, o Infarmed.
Mas isso, infelizmente, não sucedeu.
Evolução do número de notificações de reacções adversas em Portugal para todos os medicamentos. Fonte: Infarmed.
E pior: além de uma incompreensível atitude obscurantista, negando ceder a informação do Portal RAM – que somente foi desbloqueada por um acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul (TCAS) –, o Infarmed acaba por demonstrar que não faz farmacovigilância, e abandona à sua sorte as vítimas de reacções adversas às vacinas, contribuindo também para confundir uma avaliação correcta de custo-benefício.
Com efeito, apesar de o Infarmed insistir na recusa de revelar os dados do Portal RAM posteriores a 6 de Dezembro de 2021 – sabendo-se que o TCAS concedeu o direito de acesso, pela primeira vez, em Junho de 2024 –, e ter apagado variáveis (entre as quais a causalidade) e agregado as idades das vítimas, o PÁGINA UM analisou os casos de reacções adversas que atingiram crianças, adolescentes e jovens adultos. Uma ponta do icebergue, uma vez que, sobretudo no caso das crianças com menos de 12 anos, a vacinação ocorreu sobretudo a partir de Dezembro de 2021.
E os dados são aterradores – também muito pela inqualificável negligência do Infarmed, que, de forma despudorada e intencional, descura as suas funções básicas.
A partir da análise do PÁGINA UM ao Portal RAM até 6 de Dezembro de 2021, de entre as 27.220 reacções adversas, 513 foram de menores de 25 anos em que o Infarmed deu a classificação de grave. Destas, seis foram recém-nascidos (não vacinados), que sofreram diversas desordens (gastrointestinais, nervosas, endócrinas e de pele) por via do leite materno; 99 eram de adolescentes dos 12 aos 17 anos; e 408 eram de jovens adultos com menos de 25 anos. Este número é já em si muito significativo, atendendo à baixíssima taxa de mortalidade da covid-19 nos grupos etários jovens. Note-se que, segundo dados do INE, em três anos (2020-2022) morreram 29 pessoas com menos de 25 anos cuja causa foi atribuída à covid-19, um valor substancialmente mais baixo do que as mortes provocadas por pneumonias nessa faixa etária.
Ana Paula Martins: a ministra da Saúde é uma farmacêutica que tutela um regulador do medicamento que não aplica nem a transparência nem os princípios básicos da farmacovigilância.
Mas a questão essencial a colocar quando se observam 513 reacções adversas graves em grupos etários tão jovens – e não esquecer que não estão incluídas as crianças dos 5 aos 12 anos, nem outros casos detectados posteriormente a 6 de Dezembro de 2021 –, a pergunta que se deve colocar de imediato é se houve mortes. E de que tipo foram e como evoluíram os casos graves? Evoluíram favoravelmente, tiveram um desfecho trágico, ficaram sequelas?
E é aqui que se nota que o Infarmed não faz farmacovigilância.
Com efeito, e fazendo nota que estes dados são oficiais e emanados após decisão de um tribunal administrativo superior – ou seja, não são ‘inventados’ pelo PÁGINA UM –, contabilizam-se 225 casos cujo desfecho é desconhecido pelo Infarmed. Ou, dizendo de outra forma, o Infarmed não quis fazer o acompanhamento – também conhecido por monitorização –, não fosse dar-se o caso de haver muitas mortes a registar por causa das ‘seguras’ vacinas.
Assim, por exemplo, o que sucedeu a um lactente, identificado como caso 23506, que chegou a ser hospitalizado com uma trombocitose suspeita de advir do leite materno, dado a sua mãe ter sido vacinada com a AstraZeneca? O Infarmed regista “Desconhecido” na base de dados, apesar de a notificação ter ocorrido em 7 de Outubro de 2021.
De igual modo, o que sucedeu à adolescente do sexo feminino (caso 19645) que teve um tromboembolismo após a toma da vacina da Pfizer em Agosto de 2021? Sabe-se que foi hospitalizada, mas apesar de esta ser uma das afectações mais graves e conhecidas associadas à vacina contra a covid-19, o Infarmed achou que não valia a pena saber como evoluiu.
E as famigeradas miocardites e pericardites? Há 10 situações classificadas como graves, entre Agosto e Outubro de 2021, cujo desfecho o Infarmed desconhece, havendo situações de registo com a mera indicação de a vítima estar “em recuperação”. Mas são casos já passados há cerca de três anos. Destes, cinco são de adolescentes (casos 19951; 22118; 22269; 22467; e 23415) e outros cinco de jovens adultos até aos 24 anos (casos 18193; 22581; 23267; 23208; e 26223).
Também surge registada a situação de uma adolescente com síndrome inflamatória multissistémica pediátrica (MIS-C) associada à vacina contra a covid-19 (caso 20713), mas apesar de ter ocorrido em Agosto de 2021, com hospitalização, surge a referência “desconhecido” no campo a evolução da reacção adversa. O Infarmed considerou que não se mostra necessário saber como evoluíram estas infecções do coração, se ficaram sequelas, se houve mortes. Nada importou para se manter o selo das vacinas seguras.
Também dúvidas ficam sobre a qualidade da farmacovigilância da entidade liderada por Rui Santos Ivo quando se observam outras situações de elevadíssima gravidade com grande risco de sequelas ou mortes. O PÁGINA UM detectou, por exemplo, registos de embolia pulmonar (caso 10215, uma jovem mulher que tomou a AstraZeneca, em Maio de 2021), de trombose venosa cerebral (caso 18886, uma jovem mulher que tomou a vacina Moderna, em Agosto de 2021), de trombocitopenia imune (caso 19516, outra jovem mulher que tomou a Moderna, em Agosto de 2021), de acidente vascular cerebral (caso 20843, um jovem adulto que tomou a vacina da Janssen, em Setembro de 2021).
E, de resto, há um significativo número de sintomas genéricos do aparelho endócrino, do sistema nervoso e da pele, incluindo também doenças ou perturbações raras (como paralisia facial ou síndrome de Parsonage-Turner), que quer ponham ou não em risco a vítima, deveriam merecer atenção do Infarmed. Até para fazer sentido, em português, a palavra ‘monitorização’. Na base de dados analisada pelo PÁGINA UM, há também diversos casos graves de perturbações do ciclo menstrual em jovens mulheres. Aliás, se incluirmos as mulheres de todas as idades, o Portal RAM registou, até início de Dezembro de 2021, cerca de duas centenas de alterações menstruais associadas às vacinas contra a covid-19.
Miguel Guimarães (à direita), urologista, ex-bastonário da Ordem dos Médicos, é um dos principais responsáveis pela vacinação em massa contra a covid-19 de crianças e adolescentes, tendo escondido um parecer do Colégio de Pediatria que recomendava que se administrassem doses apenas em casos de vulnerabilidade à doença. A sua postura de ‘perseguidor de médicos’ que contestavam a gestão da pandemia catapultou-o para voos políticos: hoje, é vice-presidente da bancada parlamentar do PSD na Assembleia da República.
Saliente-se também que o Infarmed decidiu manipular a base de dados que o Tribunal Administrativo Central do Sul ordenou que fosse disponibilizada ao PÁGINA UM, uma vez que apagou a variável que, para cada caso, indicasse o grau de causalidade (definitiva, provável, possível e improvável). A probabilidade de ter sido um acaso é definitivamente improvável – ou seja, houve intenção deliberada do Infarmed em esconder informação vital.
O PÁGINA UM confrontou o Infarmed, através do seu presidente Rui Santos Ivo, e a ministra da Saúde, Ana Paula Martins, com os resultados desta análise. Certamente confiantes de que esta notícia do PÁGINA UM não tenha impacte público, mesmo face à gravidade comportamental do Infarmed, nem Rui Santos Ivo nem Ana Paula Martins se dignaram reagir, confiantes na sua impunidade. Na verdade, em Portugal, para o medicamento que mais reacções adversas apresentou na moderna História da Farmacologia, vai ficar tudo bem – excepto para os ‘azarados’ que tomaram as vacinas “seguras e eficazes” e ficaram entrevados. Ou mortos. Mesmo se, desses, para as autoridades, nem um pio se quer que a História dê.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.
Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.
A Santa Casa da Misericórdia do Porto (SCMP) acumula quase 30 milhões de euros de prejuízos nos últimos nove anos, apesar de os seus dois hospitais (Prelada e Conde Ferreira) terem recebido 484 milhões de euros do Estado desde 2008. E perdeu 40% dos seus fundos patrimoniais em apenas 12 anos. O sufoco financeiro é mais do que evidente nas contas desta instituição controlada por homens do aparelho social-democrata, que tem um antigo deputado do PSD, António Tavares, como provedor desde 2011, e que agora também preside à Assembleia Geral do Futebol Clube do Porto. Talvez por coincidência, porque a instituição nega a sua participação, Eurico Castro Alves – membro da ‘task force’ do Plano de Emergência da Saúde, mentor da criação dos centros de atendimentos clínico (CAC) e anfitrião de Luís Montenegro nas suas recentes férias de Verão no Brasil – também integra os órgãos sociais da SCMP, como suplente da Mesa Administrativa. Com funções executivas está outro social-democrata de peso: Manuel Pinto Teixeira foi colega da ministra da Saúde, Ana Paula Martins, e do ministro das Finanças, Joaquim Miranda Sarmento, na Comissão Política do PSD nos tempos de Rui Rio. Tudo misturado, e contas feitas, à boleia da criação do CAC no Hospital da Prelada, para receber doentes não-urgentes dos hospitais públicos do Porto, o Governo vai dar um ‘bónus’ à Misericórdia do Porto que atingirá, em termos líquidos, cerca de seis milhões de euros apenas este ano, permitindo assim ‘tapar’ uma gestão ruinosa, onde as subcontrações dispararam nos últimos anos.
Tal como de boas intenções está o inferno cheio, de coincidências está também cheia a vida política, social e empresarial em Portugal. No dia em que foi publicada, no passado dia 21 de Agosto, uma Resolução de Conselho de Ministros que atribuía um reforço de verbas públicas a transferir para o Hospital da Prelada, propriedade da Santa Casa da Misericórdia do Porto (SCMP), por causa da criação de um centro de atendimento clínico (CAC), Luís Montenegro passava férias numa casa no Brasil de Eurico Castro Alves, que fora coordenador da task force do Plano de Emergência da Saúde.
Por coincidência, Eurico Castro Alves, que preside à Secção Regional de Norte da Ordem dos Médicos, integra os órgãos sociais da Misericórdia do Porto, sendo suplente da Mesa Administrativa, equivalente a um Conselho de Administração. Apesar de não exercer, por agora, um cargo executivo, este médico saberá por certo que a instituição de solidariedade social se encontra em situação pouco desafogada.
Hospital da Prelada, a principal unidade de saúde da Misericórdia do Porto, recebeu um reforço de dinheiros públicos por atender doentes não-urgentes dos hospitais do São João e do Santo António. Foto: SCMP.
Além disto – por certo mais uma coincidência –, Eurico Castro Alves compartilhou uma conta bancária pessoal com Ana Paula Martins, ministra da Saúde, e o actual deputado social-democrata Miguel Guimarães, para gerirem um ‘bolo financeiro’ de mais de 1,4 milhões de euros, vindos sobretudo de farmacêuticas, durante a pandemia. Castro Alves esteve assim directamente envolvido na polémica campanha de solidariedade (‘Todos por quem cuida’), revelada pelo PÁGINA UM, que incluiu facturas falsas, fuga ao Fisco e declarações falsas, mas sobre a qual, ao longo dos últimos meses, a Procuradoria-Geral da República recusa revelar se está sob investigação.
O único pormenor desta campanha de solidariedade sob investigação judicial será o pagamento de cerca de 25 mil euros ao Hospital das Forças Armadas, cuja transferência tem o cunho da actual ministra da Saúde, para a vacinação de médicos não-prioritários, após o envio ao Ministério Público de um processo de esclarecimento realizado pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde. Porém, este caso não inclui qualquer investigação a Gouveia e Melo por ter permitido a vacinação de médicos não-prioritários em violação de uma norma então em vigor da Direcção-Geral da Saúde.
Mas se Eurico Castro Alves tem indubitável e simultaneamente ligações directas à SCMP e ao poder político social-democrata – aliás, até chegou a ser secretário de Estado da Saúde no curto segundo mandato de Pedro Passos Coelho em 2015 –, mais ainda as tem Manuel Pinto Teixeira, um dos membros efectivos da Mesa Administrativa, e que, no relatório e contas de 2023, surge associado à tutela do Hospital da Prelada [vd. página 7]. Antigo chefe de gabinete de Rui Rio na autarquia portuense (2003-2013), Pinto Teixeira foi jornalista e tem um passado ligado de gestão em empresas de comunicação, ocupando nos anos mais recentes funções relevantes no PSD. Até Julho de 2022 foi membro da Comissão Política Nacional, a convite de Rui Rio. E quem eram dois dos seus colegas? Pois bem, Ana Paula Martins, actual ministra da Saúde, e também Joaquim Miranda Sarmento, actual ministro das Finanças.
Mesa Administrativa da Santa Casa da Misericórdia do Porto, integra dois homens relevantes do PSD local: Manuel Pinto Teixeira (primeiro à esquerda, no topo) e o provedor António Tavares (segundo à direita, em baixo), que lidera a instituição desde 2011. Eurico Castro Alves é suplente da Mesa Administrativa. Fonte: SCMP.
Por similar coincidência, por ‘feliz’ evolução socio-política nacional e regional, a Misericórdia do Porto tem agora interlocutores mais amigáveis, pois o seu quasi-perpétuo provedor – tomou posse em Janeiro de 2011 – é o antigo deputado do PSD António Tavares, que recentemente assumiu um papel de maior relevância social na Cidade Invicta, mesmo se simbólico, por ser agora o actual presidente da Assembleia Geral do Futebol Clube do Porto, tendo integrado a lista de André Villas-Boas que ‘apeou’ Pinto da Costa.
Mas, depois de listar as ‘coincidências’, passemos agora aos factos. Ao contrário da sua congénere lisboeta, a SCMP não tem qualquer tutela governamental, funcionando como uma mera instituição privada de solidariedade social associada à Igreja Católica. Mas sem receitas dos jogos, que permitem à congénere lisboeta todos os ‘desvarios’, a Misericórdia do Porto não se pode dar ao luxo de erros de gestão – e se os tem, e tem mesmo, paga-os caro. E, com efeito, a situação financeira da Misericórdia do Porto, apesar de pouco falada, mostra-se avassaladoramente preocupante desde 2015, e por isso, independentemente das ‘coincidências’ envolvendo figuras gradas, a integração do Hospital da Prelada como CAC do Porto veio, mais do que aliviar as urgências dos hospitais do São João e do Santo António, conceder um ‘balão de oxigénio’ à tesouraria da Misericórdia do Porto, evitando, ou adiando pelo menos, um desastre financeiro que se avizinhava. Mas já se vai ao ‘osso’.
Detentora de um vasto património imobiliário, a Misericórdia do Porto tem uma intensa actividade social e mesmo cultural, agregando ainda três lares de idosos e dois colégios, e também gerindo até uma quinta agrícola e, em co-gestão, a prisão de Santa Cruz do Bispo. Mas é no Hospital da Prelada e no Centro Hospitalar Conde Ferreira que reside a sua principal actividade empresarial, empregando, só aí, quase 670 pessoas, mais de metade dos seus recursos humanos. O Hospital da Prelada – que agora é um dos CAC para receber doentes não urgentes do Porto – é mesmo a principal fonte de receitas da Santa Casa da Misericórdia do Porto (34 milhões de euros no ano passado), mas muito graças ao Estado.
Governo de Montenegro defendeu criação do centro de atendimento no Hospital da Prelada para desanuviar as urgências dos hospitais públicos de São João e de Santo António, mas, na verdade, as verbas a transferir para a Misericórdia do Porto são um autêntico ‘balão de oxigénio financeiro’.
Através de acordos com o Ministério da Saúde, a SCMP já recebeu, desde 2008, quase 484 milhões de euros do Estado. Não é pouco, mas já foi mais. Entre 2008 e 2015, os apoios anuais foram sempre superiores a 30 milhões de euros – atingindo quase 35 milhões em 2008, em 2010 e em 2012 –, mas durante os Governos de António Costa os montantes reduziram-se. Em 2019 quedaram-se nos 25,7 milhões de euros. O antigo ministro socialista Manuel Pizarro ainda conseguiu, antes da queda do Governo, a promessa para o ano de 2024 de uma transferência de cerca de 30,3 milhões de euros.
Apesar destas elevadas maquias, o sector da Saúde da Misericórdia do Porto acabou por ser uma fonte de despesa. No conjunto, a gestão do Hospital da Prelada (com valências sobretudo nas áreas da Medicina Física e na Cirurgia Plástica e Reconstrutiva) e do Centro Hospitalar Conde Ferreira (na área da Psiquiatria) têm estado sempre no ‘vermelho’, quando seria expectável darem lucro para depois financiar as actividade sociais. Somente no último quinquénio (2019-2013), tiveram prejuízos líquidos de 11,4 milhões de euros, apesar da entrega pelo Estado de 132,8 milhões de euros no mesmo período.
Mas esses 11,4 milhões de euros são apenas uma parte dos resultados financeiros da SCMP. Segundo a análise do PÁGINA UM, nos últimos cinco anos a Misericórdia do Porto perdeu, em todas as suas actividades, quase 21,5 milhões de euros. E desde 2014 não sabe o que é ter contas positivas. É certo que os dois primeiros anos da pandemia (2020 e 2021) foram francamente maus, sobretudo por causa da decisão governamental de ‘abrandar’ as actividades hospitalares não-covid, contribuindo para prejuízos de quase sete milhões de euros só na actividade hospitalar. Porém, os problemas financeiros provêm de um período anterior.
António Tavares é provedor da Misericórdia do Porto desde 2011. Só em dois anos apresentou resultados positivos e ‘viu’ os fundos patrimoniais da instituição encolherem quase 95 milhões de euros. Foto: SCMP.
Em 2017, por exemplo, a instituição já registou um prejuízo de 5,4 milhões de euros. O pico de prejuízos ocorreu em 2020, com as contas no ‘vermelho’ a atingirem os 6,5 milhões de euros. Mesmo com o desanuviamento da pandemia, a Misericórdia do Porto ainda não conseguiu, sob a direcção de António Tavares, inverter os prejuízos: em 2022 foram mais 3,5 milhões de euros, e no ano passado mais 2,4 milhões. Aliás, sob sua gestão, o antigo deputado social-democrata só viu dois anos de resultados no ‘verde’, e já em tempos longínquos: no ano de 2011, que terminou com um lucro de 1,6 milhões de euros, e no ano de 2014, com lucros de cerca de 940 mil euros.
O reflexo destes sucessivos desastres financeiros surge também na evolução do fundo patrimonial, equivalente ao capital próprio de uma empresa. No primeiro ano da gestão de António Tavares, em 2011, a SCMP contabilizava fundos patrimoniais no valor de 234,8 milhões de euros; agora valem apenas 140 milhões de euros. São quase 95 milhões de euros que se eclipsaram, ou seja, a Misericórdia do Porto tem agora 60% dos fundos que António Tavares ‘herdou’ do seu antecessor.
Os activos não correntes da instituição – que incluem sobretudo o património edificado e propriedades de investimento – valiam em 2011 quase 225 milhões de hoje; 12 anos depois diminuíram 72 milhões de euros, cifrando-se agora em um pouco menos de 153 milhões. Uma parte desta descida deveu-se a uma revalorização para baixo do valor do património edificado, contabilisticamente feita em 2013. Curiosamente, o PÁGINA UM consegiu obter, através de consultas on-line, todos os relatórios da Misericórdia do Porto entre 2012 e 2023, com execpção do de 2013, onde se procedeu à tal revaloriação dos activos.
Resultados líquidos (em euros) da Santa Casa da Misericórdia do Porto. Fonte: Relatórios e contas de 2012 a 2023 (que contêm indicadores do ano transacto).
Em todo o caso, se essa revalorização foi uma mera operação contabilística sem relação com a gestão, já os resultados sistematicamente negativos dizem respeito directo à Mesa Administrativa. Aliás, mostra-se surpreendente que o actual provedor António Tavares tenha ‘herdado’ em 2011 resultados transitados – ou seja, lucros de anteriores administrações – da ordem dos 34 milhões de euros. Em 12 anos de gestão, essas ‘reservas’ mais que desapareceram: os resultados transitados (incluindo aqui o prejuízo de 2023) são agora negativos em cerca de três milhões de euros. Ou seja, a provedoria de António Tavares é responsável por um período em que se perdeu cerca de 37 milhões de euros.
Mas quem olhar para os gastos da Misericórdia do Porto não diria que se está em tempo de ‘vacas magras’ nem de contenção de despesas. Uma das rubricas que mais tem aumentado, mesmo com uma estabilização das receitas, é a dos fornecedores e serviços externos. Quando António Tavares entrou em 2011, estes gastos cifravam-se em 13,2 milhões de euros, e até desceram para 11,9 milhões em 2013. Porém, no ano passado ultrapassaram os 19,5 milhões de euros. A subrubrica mais relevante é a dos subcontratos, que rondavam os cinco milhões por ano entre 2011 e 2014, mas em 2023 ultrapassaram os nove milhões de euros.
O PÁGINA UM pediu ao provedor da Santa Casa da Misericórdia do Porto, António Tavares, um comentário sobre a situação financeira da instituição e que apontasse os principais motivos para esse desempenho, mas a resposta veio lacónica: “Entendemos que não nos devemos pronunciar a este propósito”.
Eurico Castro Alves, preside ao Conselho Regional do Norte da Ordem dos Médicos e também à Convenção Nacional da Saúde, e foi escolhido pela ministra da Saúde para coordenador do Plano de Emergência da Saúde, sendo também membro suplente da Mesa Administrativa da Misericórdia do Porto. Foto tirada numa acção de sensibilização dos ensaios clínicos promovida pela Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (Apifarma).
Também sucintas foram as respostas, apesar de diversas insistências, sobre as negociações em redor da criação do CAC do Porto como destino dos doentes não-urgentes. A SCMP garante que Eurico Castro Alves – que não respondeu às perguntas do PÁGINA UM – “não participou no processo de articulação para a implementação do CAC do Hospital da Prelada”. E também diz que não houve qualquer intervenção do Ministério das Finanças nem de Manuel Pinto Teixeira. A instituição diz que este seu mesário (administrador) não é gestor do Hospital da Prelada, embora no relatório e contas de 2023 essa unidade hospitalar esteja junto ao seu nome, indiciando encontrar-se sob sua tutela.
De igual forma, e apesar de a Resolução do Conselho de Ministros que redefine as verbas a transferir para a Santa Casa da Misericórdia do Porto fazer referência ao CAC, esta instituição não quis adiantar pormenores do acordo nem dizer se haverá um acerto nas verbas a transferir pelo Governo em função dos doentes efectivamente atendidos no Hospital da Prelada.
Em resposta ao PÁGINA UM, fonte oficial desta instituição afirmou apenas que “foi contratualizado pelo Governo um número diário de doentes a serem encaminhados para esta resposta via SNS, estando assim a nossa operação montada e preparada para diariamente assegurar este volume de atendimentos”. A Misericórdia do Porto adianta, em todo o caso, que entre 19 e 31 de Agosto foram atendidos 751 doentes não-urgentes, o que dá uma média diária de 58 atendimentos.
Evolução dos fundos patrimoniais (em euros) da Santa Casa da Misericórdia do Porto. Fonte: Relatórios e contas de 2012 a 2023 (que contêm indicadores do ano transacto).
Ora, se essa média se mantiver até ao fim do ano, e atendendo ao custo unitário anunciado pelo Governo para os CAC (45 euros por atendimento), a Resolução de Conselho de Ministros assinada por Luís Montenegro traz efectivamente um significativo ‘balão de oxigénio’ para as contas da Misericórdia do Porto, que se estima em mais de seis milhões de euros só para este ano. Isto porque o reforço da verba relativa a 2024, em comparação com a anterior decisão do Governo socialista, é da ordem dos 6,4 milhões de euros, uma vez que se passou de 30,3 milhões para 36,7 milhões de euros em 2023. Se se considerar que a média de atendimentos em Agosto (58 pessoas por dia) se manterá até Dezembro, o custo do CAC no Hospital da Prelada seria apenas de cerca de 350 mil euros. Mas mesmo que seja considerada uma média de 100 pessoas por dia, o reforço concedido por Luís Montenegro à Misericórdia do Porto por ‘obra e graça do Espírito Santo’, ou pelas tais ‘coincidências’, superará, ‘limpos’, mais de cinco milhões de euros.
Uma coisa parece certa, depois da Resolução do Conselho de Ministros assinada por Luís Montenegro antes das férias brasileiras em casa do mesário-suplente da Misericórdia do Porto: com este bónus, a instituição nortenha deverá apresentar lucros pela primeira vez desde 2014. Mas não será pelo facto de os membros da Mesa Administrativa se terem tornado, de repente, bons gestores, mas sim por uma ‘ajuda de secretaria’. Excepto, claro, se se considerar que ser-se bom gestor é deter também capacidade de influência para receber dinheiros públicos sem prestar boas contas do seu uso.
O PÁGINA UM pediu comentários ao primeiro-ministro Luís Montenegro sobre esta matéria, mas do seu gabinete não houve qualquer reacção.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.
Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.
Uma associação criada pelo cantor Dino D’Santiago em Dezembro passado, mas que só se deu a conhecer em Maio deste ano, não teve de andar muito, e muitos menos até Santiago de Compostela, para receber uma ‘prenda’ da autarquia de Lisboa. Em vez de ser obrigada ao incómodo de apresentar candidatura aos apoios municipais, com um projecto concreto, como as demais associações, à Mundu Nôbu, presidida pelo músico, bastou convencer a empresa municipal EGEAC a dar-lhe 130 mil euros por troca de uma tertúlia e um concerto de Dino d’Santiago e uns poucos convidados. O concerto está agendado para próximo dia 28 de Setembro, duas semanas depois de um outro concerto deste músico em Lisboa, contratado por 21.500 euros pela Junta de Freguesia de Santa Maria Maior. A EGEAC nega que se esteja perante um ‘subsídio encapotado0 e que tenha havido pressões para contratar a associação, cuja apresentação oficial foi apadrinhada por Carlos Moedas e Marcelo Rebelo de Sousa, que se ‘desunharam’ em elogios ao músico. A Mundu Nôbu não respondeu ao PÁGINA UM nem tem, no seu site, a lista dos órgãos sociais nem qualquer programa de actividades.
Será um ‘milagre’ de D’ Santiago. A associação Mundu Nôbu, fundada há apenas nove meses pelo cantor e compositor Dino D’ Santiago, aparenta ter caído nas ‘boas graças’ da empresa municipal que gere os eventos culturais da capital. De uma assentada e sem grandes burocracias, e dois meses após a apresentação pública da Mundu Nôbu com a presença de Marcelo Rebelo de Sousa e Carlos Moedas, a EGEAC decidiu contratá-la por 130 mil euros, através de um contrato por ajuste directo, para a co-organização de uma tertúlia e um concerto a realizar ainda este mês, na Praça do Município. O ‘prato especial’ é, aparentemente, o próprio Dino D’Santiago himself, que é o presidente desta associação que, no site, nem sequer apresenta os órgãos sociais nem tão-pouco um plano de actividades.
Segundo o contrato disponível no Portal Base, a Mundu Nôbu foi contratada para conceber, coproduzir e apresentar o ‘Festival Mundo Nôbu 2024 – a interculturalidade portuguesa no top do Spotify, no âmbito da programação Festas na Rua 2024’, a ter lugar no dia 28 de Setembro, em Lisboa. A EGEAC também garante a instalação do palco na Praça do Município e toda a logística do concerto, incluindo a sua divulgação, que em circunstâncias normais ‘vale’ pelo menos cerca de 10 mil euros.
Carlos Moedas (à esquerda) e Marcelo Rebelo de Sousa (ao centro), ‘apadrinharam’ a sessão de apresentação oficial da associação de Dino D’ Santiago (segundo a contar da direita), com sede na casa de Liliana Valente (segunda a contar da esquerda). Foto: D.R./MN.
O valor do contrato serve assim apenas para a execução de uma simples conferência nos Paços do Concelho, com a presença de Dino D’ Santiago e convidados (não especificados) e dos eventuais cachets e acomodação dos artistas do concerto na Praça do Município, “com nomes como: Irma, Soluna, Criolo, Maro, Bateu Matou” [sic]. O concerto terá a duração de três horas, com acesso livre, mas pela leitura do contrato não se mostra claro se contará com Dino D’Santiago. No contrato, o seu nome apenas consta explicitamente na conferência vespertina na Sala de Arquivo dos Paços do Concelho, com início às 17h45, com convidados não especificados e sobre um tema ignoto.
Mesmo se Dino D’Santiago participar no concerto de fim de tarde, a verba em causa está muito acima dos valores de mercado, incluindo os seus convidados. O músico algarvio de ascendência cabo-verdiana costuma cobrar, geralmente, entre 15 mil euros e um pouco acima dos 20 mil euros. Aliás, duas semanas antes deste espectáculo na Praça do Município, Dino D’Santiago vai estar no Largo José Saramago, junto ao Campo das Cebolas, como um dos cabeças de cartaz do festival Portas do Mar, organizado pela Junta de Freguesia de Santa Maria Maior. Por esse concerto, a agência que representa Dino D’Santiago, a Arruada, vai receber 21.500 euros. De acordo com alguns contratos no Portal Base e consultores do mercado de espectáculos consultados pelo PÁGINA UM, os cachets habituais dos nomes indicados pela Mundu Nôbu rondam os cinco mil euros. Ou seja, quem quisesse fazer um contrato com os nomes indicados no contrato assinado por Dino D’Santiago – ou melh0r dizendo, por Claudino de Jesus Borges Pereira – nunca gastaria mais de 30 mil euros. Com Dino D’Santiago, a ‘coisa’ ficaria, no máximo, por 50 mil euros.
Aliás, o valor pago pela EGEAC à Mundu Nôbu aproxima-se do valor que Dino D’ Santiago já facturou em 10 contratos públicos em 2024. Até agora, entre Janeiro e Setembro deste ano, sem incluir este contrato com a sua associação, o artista de ascendência cabo-verdiana custou ao erário público 137.799 euros pela realização de 10 concertos pelo país. Há seis anos, Dino d’Santiago era bem mais baratinho: um concerto contratado pela autarquia de Lisboa custou apenas seis mil euros.
(Foto: D.R./MN)
O sucesso da associação de Dino D ‘Santiago – que a fundou em parceria com Liliana Valpaços, antiga directora de operações da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD), em cuja casa, em Lisboa, se encontra a sede – advém muito da sua popularidade entre políticos de todos os quadrantes. Na sessão oficial de apresentação ao público da Mundu Nôbu, em finais de Maio, no Hub Criativo do Beato, Dino D’Santiago deu e recebeu elogios de Carlos Moedas, presidente da Câmara Municipal de Lisboa, e do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.
Mas, afinal, porque decidiu a EGEAC entregar 130 mil euros a uma associação através de um ajuste directo e não pelos habituais procedimentos de apoio a este tipo de organizações de génese cultural e social? A pergunta pode ser indirectamente respondida pela consulta do regulamento de atribuição de apoios pelo município de Lisboa aos projectos associativos de vária índole, incluindo os relativos aos direitos humanos e sociais. Por um lado, estão, neste momento, a decorrer já os processos de avaliação das candidaturas para o próximo ano, onde se exigem projectos em concreto, e há um limite de 70 mil euros por associação.
Questionada sobre se existem outros casos de associações de índole socio-cultural que tenham conseguido contratos desta natureza em tão pouco tempo, uma porta-voz da empresa municipal indicou que ao PÁGINA UM que, “de facto, a EGEAC realiza vários contratos com associações, promotores culturais e demais entidades para concretizar a sua atividade cultural ao longo do ano”, sem especificar quais. Mais adiantou que “a relação com a Associação [Mundu Nôbu] não é uma parceria, mas [fruto de] um contrato de aquisição de serviços de concepção, coprodução e apresentação ao público do Festival Mundu Nôbu”. Para a associação de Dino D’Santiago, a EGEAC surge classificada, porém, como parceira, ao lado de entidades privadas, e também da própria autarquia de Lisboa e de outra empresa municipal, a Gebalis.
Duas semanas antes do evento pelo qual a EGEAC pagou 130 mil euros à novel associação presidida por Dino D’Santiago, o músico vai actuar num festival da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior (Lisboa). A agência que o representa cobrou 21.500 euros.
A EGEAC também descartou que tenha havido uma indicação expressa da autarquia para a realização da adjudicação à Mundu Nôbu, que anunciu também para este mês um programa de intervenção comunitária intitulado “O teu lugar no mundo“, envolvendo 160 jovens, nesta fase exclusivamente para residentes em bairros sociais. Mas esta iniciativa é uma incógnita. No site da associação apenas consta a ligação para inscrições (já terminadas) onde se diz haver formação (não especificada) duas horas por semana, em grupo, além de contacto com artistas, atletas e profissionais de sucesso, da realização de estágios, visitas a empresas e universidades, e também organização de espectáculos, prometendo-se “monitores disponíveis 24/7”.
Apesar desta benesse recebida por uma empresa municipal da capital, as ligações a eventos da autarquia alfacinha têm trazido alguns dissabores a Dino D’Santiago, colocando-o no centro de polémicas. Por exemplo, quando Fernando Medina, um seu admirador, presidia à autarquia, dois eventos em que D’ Santiago participou foram alvo de notícias críticas. Não se sabe se este novo apoio da autarquia à novel associação do artista se irá transformar numa maldição, ou se vai ficar-se pelo milagre. Para já, os tempos são de bonança para a jovem organização, já ‘crismada’ com dinheiros da EGEAC, depois da benção, à laia de padrinhos, de Carlos Moedas e Marcelo Rebelo de Sousa.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.
Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.
Foram duas das empresas acusadas pela Autoridade da Concorrência no ‘cartel das cantinas’, há 13 anos. Mas só com o município de Sintra, o consórcio constituído pelas sociedades ICA e Nordigal tem enchido o tabuleiro em contratos por concurso público mas misturados com ajustes directos com vista ao fornecimento de refeições escolares. No município liderado por Basílio Horta já se tornou mesmo um hábito vencer-se um concurso público mas, no mesmo mês, conseguir um ajuste directo milionário para o mesmo tipo de serviço. A autarquia garantiu ao PÁGINA UM que nunca os dois contratos ficam activos em simultâneo. Sem fiscalização, fica sem se saber se há facturação dupla e duplo pagamento. Além disso, a inflação das refeições escolares disparou: comparando com o contrato que vigorou até ao ano lectivo de 2023/2024, o preço de cada lanche cobrado pelo consórcio quase duplicou para os próximos três anos, enquanto cada almoço sofreu um aumento de 30%. Globalmente, desde 2015, a Câmara de Sintra já gastou mais de 87,6 milhões de euros na compra de refeições escolares à ICA/Nordigal.
Neste mês de Setembro, começa um novo ano lectivo para a generalidade dos níveis de ensino, e recomeça também um dos mais apetecíveis negócios do país que movimentam milhões: o fornecimento de refeições escolares pagas pelas autarquia. Mas Sintra, o concelho do país com mais jovens em idade escolar, destaca-se por uma particularidade, que não se resume apenas ao (elevado) valor do contrato, mas sim ao estranho facto de, em Setembro, ter o fornecimento de refeições ‘suportado’ por dois contratos: um por concurso público com três anos de duração e outro por ajuste directo com a duração de apenas um mês. Ambos beneficiaram a mesmo consórcio, constituído por duas das principais empresas do sector, a ICA e a Nordigal.
Comecemos pelo concurso público. Num negócio com direito a prato principal e sobremesa, este agrupamento empresarial ganhou, em Agosto passado, o contrato do município de Sintra, com uma duração de três anos por 35.471.520 euros com vista ao fornecimento de refeições nas escolas do primeiro ciclo e pré-escolar. No contrato surge especificamente que a data prevista de início é 1 de Setembro (domingo passado), mas como está dependente de visto para ser válido, a autarquia liderada por Basílio Horta foi a correr fazer um ajuste directo de mais de 921.300 milhões de euros para o mesmo mês. Em teoria, o mês de Setembro pode vir a ter dois contratos em vigor para o mesmo serviço.
Sintra: um poço sem fundo de recursos financeiros para o pouco transparente negócio das refeições escolares. (Foto: D.R.)
A duplicação de contratos que se ‘atropelam’ no tempo não é uma novidade em Sintra. O consórcio ICA/Nordigal já em 2021 tinha beneficiado do mesmo menu por parte da autarquia de Basílio Horta: ganhou concurso e teve direito a um ajuste directo extra, mesmo sabendo-se que o município teve ‘todo o tempo do mundo’ (três anos) para preparar um concurso público com adjudicação a tempo de receber visto do Tribunal de Contas. Ignora-se como se processaram os pagamentos.
No caso dos dois contratos agora adjudicados, o município de Sintra lançou um concurso público para contratação do serviço de fornecimento de refeições escolares nas escolas do primeiro ciclo do ensino básico e pré-escolar da rede pública do concelho. Este contrato de quase 35,5 milhões de euros, sem IVA, adjudicado ao agrupamento constituído pela ICA – Indústria e Comércio Alimentar e pela Nordigal – Indústria de Transformação Alimentar, foi assinado a 13 de Agosto, sendo válido por 12 meses, mas prorrogável, em condições normais, até 36 meses. Os gastos máximos estipulados são de 4.598.160 euros em 2024, de 11.823.840 euros em 2025, de 11.823.840 euros em 2026 e de 7.225.680 em 2027.
O preço fixado contratualmente é de 75 cêntimos por cada lanche da manhã e da tarde (0,85 euros, com IVA), de 2,97 euros por cada almoço (3,36 euros com IVA a 13%) e de 3,60 euros por cada refeição fora do período regular (4,07 euros com IVA).
(Foto: D.R.)
Ora, 10 dias depois da assinatura deste contrato, o município assinou um novo contrato com o ICA/Nordigal, mas por ajuste directo. O segundo contrato visa a prestação do serviço nos exactos moldes do contrato por concurso público, mas apenas por um período de quatro semanas, a começar a 1 de Setembro e envolvendo a quantia de até 921.300 euros, o que, com IVA, totaliza 1,o4 milhões de euros. Note-se que em grande parte das escolas a actividade lectiva inicia-se apenas entre os dias 12 e 16 de Setembro.
Ao PÁGINA UM, o município de Sintra justificou o ajuste directo com um dos expedientes mais recorrentes: “urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis pela entidade adjudicante, […] e desde que as circunstâncias invocadas não sejam, em caso algum, imputáveis à entidade adjudicante”. No entanto, é difícil compreender como não se possa imputar à entidade adjudicante (autarquia de Sintra) a responsabilidade por inexistência de visto do Tribunal de Contas para um contrato que saiu de um concurso público que teve três anos para ser preparado.
Mas o município garantiu que “em situação alguma os dois contratos estão ativos em simultâneo, pelo que está garantida a impossibilidade de poder haver duplicação de faturação”. Segundo a autarquia, “o contrato relativo ao ajuste direto contém uma cláusula que o faz cessar assim que é obtido o visto do Tribunal de Contas relativo ao contrato resultante do concurso público internacional”. Assim que “o contrato de ajuste direto cessa, procede-se ao pagamento das faturas relativas aos consumos realizados no seu âmbito, seguindo-se o seu encerramento e o descabimento do saldo remanescente”. Adiantou que “o contrato resultante do concurso público internacional só se torna eficaz após o encerramento do contrato do ajuste direto, pelo que nunca poderá haver duplicação de faturação” e que “o contrato resultante do concurso público internacional se torna eficaz o seu cabimento é reduzido, sendo-lhe deduzido o valor gasto com o ajuste direto”.
(Foto: D.R.)
Na verdade, em termos práticos, além de ter garantido que vai fornecer uma boa fatia do mercado de refeições escolares na rede pública de escolas em Sintra por mais 1095 dias, o consórcio ICA/Nordigal ainda contabiliza uma ‘borla’: a possibilidade de ‘engolir’ mais 1,04 milhões de euros de dinheiro dos contribuintes sem enfrentar concorrência.
Para justificar este ajuste directo, o município adiantou ao PÁGINA UM que “o contrato no valor de 35,471 milhões de euros, publicado a 16 de agosto, diz respeito à abertura de concurso público internacional lançado pela segunda vez”, na sequência de um primeiro ter ficado deserto por “ausência de propostas”. E acrescenta que “tal facto levou o município de Sintra a lançar um segundo concurso, cujo contrato foi publicado no dia 16 de Agosto, mas que ainda não se encontra eficaz, uma vez que ainda decorre a apreciação do mesmo por parte do Tribunal de Contas para atribuição do respetivo visto”.
Por esse motivo, o município diz que para garantir o fornecimento de refeições escolares neste mês de Setembro, “e numa situação em tudo similar com a ocorrida em 2021, tornou-se necessário proceder ao ajuste direto, conforme previsto na lei, também remetido ao Tribunal de Contas, e que permite assegurar a resposta em tempo até à emissão do referido visto por parte do Tribunal de Contas ao concurso público”.
(Foto: D.R.)
Em 2021, o município de Sintra adjudicou a este consórcio, em 13 de Outubro, um contrato para “fornecimento de refeições em estabelecimentos escolares da rede pública do concelho de Sintra, em regime de fornecimento contínuo”, através de concurso público, no valor de 21.526.230 euros, sem IVA. Mas acompanhou o ‘prato principal’ com uma ‘entrada’: um ajuste directo firmado a 6 de Outubro de 2021 com a empresa ICA para o mesmo serviço, no valor de 923.616 euros, sem IVA, para o prazo de 40 dias. Também na altura, a “urgência imperiosa” explicou a entrega de mais de um milhão de euros de mão beijada a uma empresa.
Em ambos os contratos, o valor do lanche era então de quase metade do praticado agora: 40 cêntimos, sem IVA. Já cada almoço registou um aumento de 30%. Em 2021, o consórcio cobrou ao município de Sintra 2,28 euros por almoço, menos 69 cêntimos do preço cobrado praticado agora. A inflação destas refeições subiu muito mais do que o índice de preços ao consumidor (IPC).
Certo é que em dois contratos por concurso, e mais dois ajustes directos, o ICA/Nordigal facturou 58,9 milhões de euros com o município de Sintra, garantindo negócios por 2.190 dias à conta de dinheiros públicos.
Mas não fica por aqui a facturação deste consórcio com a Câmara de Sintra. Ainda em 2021, a ICA garantiu o recebimento de 1.231.520,4 euros, sem IVA, por seis contratos firmados com o município, cinco dos quais por ajuste directo e um por consulta prévia.
(Foto: D.R.)
Já a Nordigal tinha facturado, três anos antes, quase 14,2 milhões de euros por via de um contrato assinado em 9 de Julho de 2018, válido por um período de um ano e prorrogável até três anos. Este contrato, ao abrigo de um acordo-quadro, visou a “aquisição de serviços para fornecimento de refeições escolares para o ano lectivo 2018/2019”, além do “fornecimento diário de refeições em estabelecimentos escolares do 1º ciclo de ensino básico e pré-escolar da rede pública no Concelho de Sintra, assim como da Escola Profissional de Recuperação do Património de Sintra”.
Tudo somado, desde 2018, no global, a Câmara de Sintra entregou a farta quantia de 74,3 milhões de euros em contratos às duas empresas que agora voltaram a ser contratadas pelo município. Se forem contabilizados contratos anteriores, feitos por ajuste directo ou ao abrigo de acordo-quadro, a soma eleva-se para cima dos 87,6 milhões de euros.
De resto, segundo os dados constantes do Portal Base, o município de Sintra tem entregue contratos de fornecimento de refeições escolares a outras empresas, mas os valores estão aquém dos montantes entregues ao ICA/Nordigal.
Foto: D.R.)
Por exemplo, em Julho deste ano, o município firmou um contrato com a espanhola Mediterranea de Catering, envolvendo 12.879.972 euros, neste caso para “aquisição de serviços de fornecimento de refeições em estabelecimentos escolares da rede pública do Concelho de Sintra e na Escola Profissional de Recuperação do Património de Sintra”.
O contrato assinado em 12 de Julho foi depois ‘acrescentado’, no mês seguinte, a 29 de Agosto, de um ajuste directo no valor de 921.580 euros para prestar, durante dois meses, o serviço de… “fornecimento e distribuição de refeições escolares em estabelecimentos escolares do 2.º, 3.º ciclo e secundária da rede pública do Concelho de Sintra e Escola Profissional de Recuperação do Património de Sintra”.
Por coincidência, o primeiro contrato adjudicado pelo município de Sintra a este consórcio foi por ajuste directo em 15 de Julho de 2015, quatro meses depois do Tribunal da Relação ter decretado a prescrição da acusação da Autoridade da Concorrência contra o ‘cartel das cantinas’, que tinha entre os acusados o agrupamento ICA/Nordigal, o qual foi condenado pelo Tribunal da Concorrência a pagar 600 mil euros por ter trocado informação comercial com concorrentes.
Saliente-se que um dos nomes mencionados na acusação do ‘cartel das cantinas’ surge, ‘preto no branco’, nos dois contratos agora assinados entre o ICA/Nordigal e a Câmara Municipal de Sintra: Nuno Perdigão, em representação do agrupamento empresarial. Na altura do ‘cartel das cantinas, entre a documentação, foi ‘apanhado’ um e-mail recebido por Perdigão, na qualidade de inspector de vendas da ICA, que comprovou a existência de troca de informação comercial entre as empresas do cartel.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.
Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.
Nos últimos dois meses, o arquipélago norueguês de Svalbard derreteu cinco vezes mais rápido do que o normal. Nesta reportagem, o jornalista Boštjan Videmšek detalha a transformação por que está a passar toda a região, não só devido aos efeitos do degelo, mas também aos impactos das tensões entre o Ocidente e a Rússia, que colocaram a zona na linha da frente de um xadrez geopolítico.
O convés superior do navio de exploração MS Polar Girl, com 60 anos de idade, mas maravilhosamente preservado, oferecia uma vista fantástica dos glaciares azuis e brancos. Estávamos a navegar para Barentsburgo, uma cidade mineira de propriedade da empresa estatal russa Arktikugol Trust… O que significava que estávamos a caminho para um novo campo de batalha geopolítico importante e em direção à linha de frente de nosso clima em mudança.
Nos últimos dois meses, o arquipélago norueguês de Svalbard derreteu cinco vezes mais rápido do que o normal, de acordo com as últimas imagens de satélite da NASA.
É bastante aterrorizador como se pode observar a massa gelada a descer lentamente para o oceano. Durante a minha visita, o degelo foi ainda mais acelerado pelo facto de que o sol do meio-dia tinha adquirido uma presença quase mediterrânea. Pelo segundo dia consecutivo, as leituras do termómetro ultrapassaram os 20 graus Celsius.
Barentsburgo, localizada no Alto Ártico, começa a acostumar-se à quebra de recordes de temperatura. “Poderia ser descrita como Alterações Climáticas ao Vivo (Climate Change Live)”, disse um guia chamado Masha, com uma expressão de reprovação, no convés superior da MS Polar Girl.
(Foto: Boštjan Videmšek)
Vindo de Omsk, nos Urais, Masha chegou a Barentsburgo em 2021. O seu domínio das línguas inglesa e norueguesa, obtido através dos seus estudos em Moscovo, obrigou alguns “caçadores de cabeças” a oferecerem-lhe um emprego em Svalbard.
“Agarrei a oportunidade”, Masha explicou. “Em parte, porque isso significava que eu poderia ajudar financeiramente a sustentar os meus pais. O primeiro ano em Barentsburgo foi ótimo! Fui completamente afastado de qualquer tipo de política. Estávamos simplesmente a viver as nossas vidas. Senti-me muito mais livre … Mas depois tudo começou a mudar.”
Masha fez uma breve pausa no seu relato para apontar um amontoado de morsas a absorver o sol. “É por isso que amo tanto Svalbard!” exclamou.
Masha deixou Barentsburgo há dois anos – pouco depois do início da invasão russa da Ucrânia, que teve um efeito gravemente negativo na vida quotidiana da cidade mineira do Ártico. Antes da guerra, Barentsburgo abrigava cerca de 700 habitantes. Hoje em dia, não restam mais de 400.
(Foto: Boštjan Videmšek)
“O turismo viu um declínio acentuado”, contou Masha durante a nossa viagem a Barentsburgo. “Muitas pessoas decidiram sair. Eu fui uma delas.”
Ela decidiu ir para Longyearbyen, cidade mineira norueguesa e o maior assentamento em Svalbard. Encontrou imediatamente um emprego no navio em que navegávamos a caminho para o reduto russo em Svalbard.
Agora, Masha vive e trabalha no barco. “Cresci a amar este modo de vida. Como guia, posso fazer quatro vezes o que fiz em Barentsburgo. E gosto muito de trabalhar com pessoas. Excepto, claro, aqueles que me julgam pela minha nacionalidade, culpando-me por tudo o que está a acontecer só por causa da minha nacionalidade! Mas sabe, tornei-me muito seletiva quanto a permitir que essas pessoas ditem o meu humor.”
Barentsburgo. (Foto: Boštjan Videmšek)
A jovem russa passa metade do ano a trabalhar no navio e a outra metade a viajar pelo mundo. Ela gosta especialmente da Ásia, onde na maioria das vezes não precisa de visto.
“Olhe!”, gritou pouco antes de o navio entrar no porto de Barentsburgo. A poucos passos de distância, dois grupos de baleias brancas beluga brincavam sob o brilho do sol.
Tudo o que podíamos fazer era ficar em silêncio.
Um reduto russo em Svalbard
Ao chegar ao porto, fomos recebidos por uma estrela desenhada na face de uma colina, ao lado de um slogan que dizia “Миру-мир!‘ (‘Paz para o Mundo!“)
Equipas de trabalhadores preparavam carregamentos de carvão negro para o transporte. Uma densa fumaça branca subia da chaminé de uma central térmica azul. Camiões pesados russos continuaram a fazer as rondas ao longo da estrada de cascalho fortemente revestida de cinzas negras. A antiga sede da empresa estatal russa de mineração ostentava as bandeiras russa e soviética.
Parecia que estávamos prestes a entrar em um museu ao ar livre.
(Foto: Boštjan Videmšek)
Barentsburgo foi baptizada em homenagem ao explorador holandês do Ártico Willem Barentzs. No dia 7 de Março deste ano, a cidade comemorou 100 anos de existência. A partir de 1932, tem sido propriedade da então empresa de mineração soviética, e agora controlada pelo Estado russo, Arktikugol Trust.
De acordo com o Tratado de Svalbard de 1920, o arquipélago ártico está sob jurisdição e soberania norueguesa. No entanto, todos os países signatários (46) podem exercer livremente actividades económicas. No auge da onda de mineração, cerca de 4000 pessoas das ex-repúblicas soviéticas viviam em Svalbard. Agora, restam apenas cerca de 400, a maioria russos.
Enquanto subia os íngremes degraus de madeira que levavam ao porto, vistas deslumbrantes de glaciares ao meu redor contrastavam nitidamente com imagens de outra época.
Em cada passo, podia ver bandeiras russas e soviéticas a ondular na brisa. Em frente a um complexo de apartamentos de muitos tons típico das cidades satélites comunistas, uma alta estátua de bronze de Lenine resistiu em toda a sua serenidade benéfica. O slogan do homem “Comunismo – o nosso objetivo!” foi inscrito em letras enormes no prédio de apartamentos atrás da estátua.
Vestígios de um passado soviético “glorioso” são omnipresentes nesta cidade, onde a maior parte da acção ocorre no subsolo profundo – até 1000 metros abaixo da superfície do mar, onde está localizada a galeria mais distante da mina.
Apesar da falta de rentabilidade, a mina opera 24 horas por dia, todos os dias.
(Foto: Boštjan Videmšek)
As coisas são estranhamente semelhantes na outra cidade mineira russa na região, a há muito abandonada Pyramiden.
Em 21 de junho, uma enorme bandeira soviética apareceu na montanha acima da cidade. Antes disso, as autoridades locais russas ergueram uma cruz ortodoxa considerável nos arredores da cidade. “A nossa tradição foi renovada e assim vai continuar viva”, declarou a direção da Arktikugol. No estilo de um soldado de infantaria soviético a libertar uma fortaleza nazi, a bandeira soviética no topo da montanha vizinha foi plantada pelo CEO da Arktikugol, Ildar Neverov.
O provocador hasteamento de bandeiras parece ter sido transformado num desporto amado pelo Ártico russo. Durante o desfile da vitória do ano passado, em 9 de Maio, Arktikugol chegou a hastear a bandeira da autoproclamada República Popular de Donetsk. A bandeira foi pendurada em Pyramiden. Durante o desfile deste ano, a rua principal de Barentsburgo foi tomada por uma procissão de trenós de neve replectos de pessoas vestidas com uniformes do exército russo e a agitar bandeiras russas.
Perto do lendário pub Red Bear, notei alguns veículos militares noruegueses BV206 com bandeiras russas.
No entanto, o papel principal da grande proliferação de símbolos russos e soviéticos em Barentsburgo e Pyramiden não é a preservação da história. Longe disso: a ubiquidade dos símbolos nacionais e ideológicos é uma questão da atual geopolitik real russa.
(Foto: Boštjan Videmšek)
Dadas as consequências das alterações climáticas – que, em Svalbard, podem ser observadas a olho nu – a relevância geopolítica do Arquipélago Ártico é agora maior do que mesmo durante a Guerra Fria. Especialmente, depois do rápido desaparecimento do gelo marinho ter começado a abrir novas rotas marítimas, ligando a região do Pacífico Extremo Oriente ao Oceano Atlântico.
O papel geopolítico e de segurança do Ártico também se acentuou devido às graves tensões entre a Rússia e o mundo ocidental. Essas relações estão atualmente piores do que nunca, disseram-me entrevistado após entrevistado.
Na sequência da agressão russa à Ucrânia e da adopção de sanções ocidentais, as relações diplomáticas historicamente bastante sólidas entre a Rússia e a Noruega também sofreram um golpe. A Frota do Norte da Rússia está ancorada na península de Kola, a oeste de Svalbard, onde um grande número de ogivas nucleares também estão estacionadas. Ao mesmo tempo, a NATO está a exercer uma pressão crescente sobre a Noruega para reforçar a sua presença militar no Ártico. Há um ano, o Ministério dos Negócios Estrangeiros russo chegou mesmo a recategorizar a Noruega de país “hostil” para “muito hostil”.
(Foto: Boštjan Videmšek)
Em 2019, Vladimir Putin criou um “comité Svalbard” especial. Em discursos anteriores, o líder russo salientou frequentemente a importância estratégica do Ártico e as suas benesses naturais para o crescimento económico da Rússia. Para que não nos esqueçamos: em 2007, a Rússia optou por hastear a sua bandeira no Polo Norte – um gesto simbolicamente profundamente agressivo.
Sobre Svalbard, também se mostrou haver apetites crescentes por parte de alguns dos outros países signatários do Tratado de Svalbard de 1920. Por exemplo, a China, que agora deseja abertamente renomear-se como “um país ártico”. Em Julho, o governo norueguês suspendeu a venda do último grande pedaço de propriedade privada em Svalbard (Søre Fagerfjord) a um comprador chinês desconhecido. O governo norueguês pretende agora comprar a propriedade por cerca de 350 milhões de euros.
Na opinião da China, o bloqueio da venda representou uma violação do tratado de Svalbard, especialmente da disposição que concede direitos iguais em relação às actividades económicas no arquipélago para cada um dos países signatários.
De acordo com praticamente todas as pessoas com quem falei sobre Svalbard, todos estes desenvolvimentos só podem e devem ser interpretados no contexto geopolítico mais amplo.
(Foto: Boštjan Videmšek)
A Rússia não reforçou a sua presença em Svalbard apenas para hastear bandeiras. Pretende também abrir um novo centro de exploração científica na cidade abandonada de Pyramiden. Moscovo já convidou oficialmente a China, a Índia e a África do Sul a participar – bem como o Irão, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos.
Uma das instituições que colaboram para a criação do novo centro científico russo é o Instituto Biológico Marinho de Murmansk.
“Em 2022, a cooperação com países hostis parou, embora antes disso estivesse a desenvolver activamente. Agora que o vector se virou para o Oriente, estamos a desenvolver a cooperação com os nossos colegas chineses”, disse, há algumas semanas, Denis Moissev, adjunto do diretor do Instituto Murmansk, ao jornal russo Komsomolskaya Pravda.
A Rússia anunciou os seus planos para a abertura do centro científico logo após a Noruega ter declarado que o Centro Universitário UNIS, sediado em Longyearbyen, era a única instituição de ensino superior autorizada no arquipélago.
Sem surpresa, a Noruega vê a introdução do novo centro científico como uma mudança territorial. “Queremos reforçar o controlo nacional e reforçar a presença norueguesa no arquipélago”, revelou recentemente a ministra da Justiça da Noruega, Emilie Enger Mehl.
(Foto: Boštjan Videmšek)
Aquando da minha visita, Barentsburgo parecia uma cidade tranquila e quase vazia. Apenas algumas pessoas podiam ser vistas a passear pela rua principal, a maioria delas turistas. E os blocos de apartamentos também não estavam exactamente repletos de vida.
“Aldeia de Potemkin! (que simboliza uma imagem de fachada)’ foi a minha primeira associação espontânea.
A pequena e bela capela ortodoxa de madeira construída para homenagear os mineiros mortos num acidente de avião em 1996 também parecia deserta. Apenas o já mencionado pub Red Bear ainda evidenciava sinais de antiga glória.
Quatro anos e meio de paralisação contínua – primeiro induzida pelo coronavírus, depois devido à guerra – cobraram um alto preço à cidade mineira russa, onde a qualidade de vida costumava superar a da norueguesa Longyearbyen, localizada do outro lado do fiorde.
Não resta muito carvão abaixo de Barentsburgo. E o pouco que resta é cada vez mais caro e difícil de extrair. Os mineiros, trabalhando ininterruptamente em quatro turnos, precisam de uma hora para chegar à galeria mais distante.
A cidade foi mantida à tona através de injecções financeiras substanciais do Estado russo. As autoridades russas compreendem, naturalmente, que Barentsburgo não pode continuar a ser uma cidade mineira por muito mais tempo. É por isso que a empresa estatal Arktikugol decidiu empreender uma grande mudança na direção do turismo. Mas a pandemia eclodiu, seguida de guerra e sanções.
Barentsburgo está agora a considerar seriamente a construção de uma fábrica de processamento de peixe. É imperativo que a Rússia mantenha uma presença em Svalbard, custe o que custar.
Relações cortadas
A antropóloga Dina Brode Roger é uma estudante contínua do Ártico. Regressa a Svalbard desde 2016. Em média, passa 6 meses por ano no arquipélago ártico. Antes disso, explorou a Gronelândia, o Alasca e a Islândia.
Nos últimos oito anos, ela observou uma tremenda mudança em Svalbard. Especialmente relacionadas com as alterações climáticas, cujas consequências não são provavelmente mais óbvias do que aqui. No entanto, as consequências sociais e económicas do aumento das tensões geopolíticas também tiveram um enorme impacto.
Dina Brode Roger. (Foto: Boštjan Videmšek)
Brode Roger partilhou que desde 24 de fevereiro de 2022 – data que marca o início da agressão russa na Ucrânia – nunca visitou Barentsburgo. “Foi uma decisão pessoal.” Ela recusou-se a cooperar no projeto de propaganda que acreditava que o regime russo estava a conduzir na pequena cidade mineira.
Antes disso, costumava fazer visitas regulares a Barentsburgo e Pyramiden.
“Costumava haver bons contactos entre o lado norueguês e o lado russo”, disse-me Dina Brode Roger em Longyearbyen. “Especialmente através dos intercâmbios culturais e desportivos. Foi o mesmo no auge da Guerra Fria. Nessa altura, a Noruega envidou muitos esforços para que a situação em Svalbard se mantivesse o mais estável possível. E a União Soviética também evitou conflitos. Houve muita cooperação e assistência mútua. Veja, as pessoas precisavam umas das outras naquela época, quando os mineiros viviam e trabalhavam de ambos os lados. E agora… Bem, agora as coisas são muito diferentes. Especialmente por conta da invasão russa da Ucrânia. E por conta de como as coisas estão a ir na Rússia.”
Brode Roger fez uma breve pausa e continuou: “Muitas pessoas vieram de Barentsburgo para Longyearbyen nos últimos dois anos. Estou a falar de ucranianos e russos que tiveram de sair. A sua experiência ajudou a moldar as opiniões dos moradores de Longyearbyen sobre o que estava a acontecer em Barentsburgo. E também sobre a guerra na Ucrânia. As actuais autoridades de Barentsburgo estão muito mais próximas de Moscovo do que nunca. Simplesmente fazem o que lhes é dito. A administração russa não está interessada em comunicar com a Europa. O isolamento parece estar na ordem do dia. Foi diferente durante a Guerra Fria. Muita coisa mudou. O mundo é um lugar muito diferente agora.”
Outra pessoa que se sentiu obrigada a deixar Barentsburgo após a invasão russa da Ucrânia foi Timofei Rogozhin, ex-chefe do ramo de turismo da Arktikugol.
Rogozhin disse, recentemente, ao jornal Barentsburg Observer que todos os funcionários receberam ordens para parar de publicar as suas opiniões sobre a guerra ou corriam o risco de serem demitidos. “O ano passado transformou uma aldeia moderna civilizada, com uma sociedade aberta e amigável, numa espécie de pântano cinzento, fechado e agressivo”, acrescentou Rogozhin, depois de se mudar para o norte da Noruega.
Longyearbyen. (Foto: Boštjan Videmšek)
Apesar de tudo, alguns dos moradores de Longyearbyen estão determinados a manter relações. Especialmente durante o inverno, quando a viagem entre as duas cidades mineiras é possível com a ajuda de trenós de neve. Ao contrário das oficiais, as relações privadas ainda não tinham sido proibidas.
“A Rússia é extremamente hábil em reconhecer os pontos fracos de diferentes países, especialmente os vizinhos”, disse Dina Brode Roger. “Os russos sabem muito bem que botões apertar. Estão sempre a ‘verificar a temperatura’, à procura de vulnerabilidades. A Noruega está a colocar uma grande ênfase na sua presença no Ártico. O projeto de mineração em alto mar é muito importante para o nosso governo. E a Rússia sabe disso muito bem, pelo que continua a enviar sinais claros através das suas acções políticas em Barentsburgo. Estão principalmente a enviar provocações na linha de: ‘Nós também podemos fazer isso!’ A instalação da enorme cruz ortodoxa, o desfile militar… Querem claramente que respondamos a estas provocações e sabem fazer muito com muito pouco dinheiro investido!”
(Foto: Boštjan Videmšek)
Um dos que ainda tenta manter pelo menos relações indiretas com seus colegas russos é Torgeir Mork, o principal meteorologista do aeroporto de Longyearbyen nos últimos 20 anos.
Mork lamenta o facto de todos os contactos com cientistas russos baseados no Ártico terem sido cortados após a guerra. “Todas as manhãs, ainda envio as minhas leituras e previsões para Barentsburgo – assim como sempre fiz”, disse-me. “Nunca recebo uma resposta da estação meteorológica lá.”
O meteorologista de longa data está convencido de que, para obter compreensão sobre as mudanças assustadoras que varrem a região do Ártico, a cooperação internacional deve ser primordial.
“Antes da guerra, costumávamos nos visitar. Jogávamos xadrez e futebol. Divertimo-nos muito juntos. Só posso esperar que esta guerra miserável acabe o mais depressa possível… E essa história não está prestes a acabar”, relatou Mork no seu posto, ao lado da pista de aterragem de Longyearbyen.
Torgeir Mork. (Foto: Boštjan Videmšek)
A visão de uma escritora
A escritora russa Dina Gusein-Zade, de 36 anos, chegou a Barentsburgo após o fim dos confinamentos do coronavírus, quando praticamente todo o Ártico ainda estava isolado do resto do mundo. Ela chegou a Svalbard logo após a Rússia ter lançado a sua ofensiva contra a Ucrânia.
Vinda de Moscovo, Gusein-Zade foi atraída para o Ártico a fim de encontrar paz, abrigo e inspiração artística. O seu domínio de línguas estrangeiras valeu-lhe um emprego como guia turística e decidiu encarar o trabalho como uma excelente oportunidade para explorar o Ártico.
“Tanto como escritora como como ser humano, sigo os meus próprios desejos e expectativas, não as expectativas dos outros,” afirmou Gusein-Zade. “A maior parte do que escrevo é escritora para mim, não para qualquer outra pessoa. Acho que poderia dizer que escrever é a minha forma de terapia. As condições para esse tipo de coisa são ótimas aqui, com toda a paz e tranquilidade e o afastamento geral. Ao mesmo tempo, posso misturar-me com algumas pessoas muito interessantes sempre que quiser. Toda a gente que aqui vem tem uma história interessante para contar.”
A jovem escritora russa está actualmente a escrever o seu segundo livro.
“Não posso ficar no mesmo lugar por muito tempo”, prosseguiu ela. “Passei vários anos a viajar à boleia por todo o mundo. Assim que a temporada turística começa aqui, eu voltei para a estrada. Gosto da Ásia, da África, do Cáucaso… Acho que sou basicamente uma nómada!”
(Foto: Boštjan Videmšek)
Dina Gusein Zade pode ser uma nómada, mas também acredita firmemente na conectividade.
“Os seres humanos não devem ser separados à força!” afirmou, protestando contra o estado atual das coisas. “Todos nós que vivemos no Ártico devemos cooperar. Precisamos uns dos outros. Especialmente os cientistas. A política é outra história – ou melhor, outra dimensão, cheia de zonas cinzentas. Só posso esperar que os tempos difíceis acabem logo.”
Apressou-se a acrescentar: “Nem todos são iguais. Não é justo que as pessoas comuns tenham de pagar o preço das decisões políticas desta forma. É injusto sermos tratados como criminosos e inimigos apenas com base na nossa nacionalidade. Nenhum país e nenhuma nação são intrinsecamente maus!”
A jovem escritora-viajante russa fez uma pausa para procurar no horizonte as suas próximas palavras.
“Demorei muito tempo a lidar com a minha humanidade”, contou ela. “Aceitar as minhas limitações. E o facto de que tenho pouco ou nenhum controlo sobre as coisas más que podem ser impostas às pessoas a partir de cima. Posso sofrer, mas isso não vai ajudar em nada a causa da paz. Especialmente quando é o seu próprio país que está a fazer algo de mau. Por isso, estou a concentrar-me no meu papel dentro da minha família e do meu círculo de amigos, e também no meu trabalho de escrita. Esta tornou-se a minha linha da frente.”
Cemitério. (Foto: Boštjan Videmšek)
Juntamente com o marido, um programador informático com quem se casou recentemente em Barentsburgo, Gusein-Zade está actualmente a planear mudar-se para a Turquia. A Rússia já perdeu um grande número dos seus melhores jovens. O mesmo se pode dizer de Barentsburgo, onde as terríveis consequências das sanções internacionais podem ser testemunhadas a cada passo.
As lojas estão meio vazias. Os preços dos alimentos são excepcionalmente elevados. De vez em quando, as mercadorias destinadas a Barentsburgo ficam retidas no porto de Longyearbyen durante bastante tempo. Todos confirmam que a vida se tornou muito difícil. As rotas de abastecimento foram interrompidas. Os voos da Rússia para Svalbard foram interrompidos desde o primeiro confinamento do coronavírus. Por causa da guerra, simplesmente nunca foram repostos.
Tudo isto teve um enorme impacto no turismo local. “Enormes navios de cruzeiro costumavam visitar o porto de Barentsburgo. Agora, só temos um ocasional navio turístico mais pequeno”, relatou Dina Gusein-Zade com uma certa tristeza. Praticamente não há turistas da Rússia. Aqueles que conseguem vir, apesar de tudo, geralmente já têm vistos e estão a viver fora da Rússia. Barentsburgo recebe principalmente turistas da Europa, América e Ásia. O navio da minha agência deve navegar até Longyearbyen para ir buscá-los. É a única opção disponível.”
Como é que as sanções afectaram as relações pessoais em Barentsburgo, perguntei à escritora russa.
Svalbard. (Foto: Boštjan Videmšek)
“Ah, as sanções e todas as tensões crescentes tiveram um impacto enorme!” respondeu. “Muita gente partiu. Mas aqueles de nós que permanecem parecem estar bem. Gostamos de nos ajudar, de dar a mão ao próximo. Esta é uma das vantagens de viver numa pequena comunidade. Mas as sanções já tinham causado danos terríveis. O seu efeito tem sido o fortalecimento dos conflitos já existentes dentro da comunidade. As pessoas aqui estão zangadas. As sanções revelaram-se mais prejudiciais para os economicamente mais vulneráveis e para aqueles que desejavam manter-se em contacto. Agora, pode realmente observar-se as pessoas a endurecerem em tempo real. E também há muito medo vindo de ambos os lados. O problema é que este tipo de medo leva ao ódio. Não creio, no entanto, que isolar-se seja a solução. O isolamento muitas vezes significa catástrofe. Especialmente aqui, onde já estamos mais ou menos isolados do mundo. Temos de nos manter ligados – é o único caminho para a paz. À coexistência!”
Gusein-Zade fez uma última pausa. “Sabe, eu costumava acreditar que o Ártico estava vazio. Mas não está. Há muita vida aqui. E também é vasto e aberto. Isso é uma fonte de inspiração para mim.”
Atrito geopolítico no Extremo Norte
O Ártico pode, de facto, ser aberto, mas apenas no sentido espacial. A fricção geopolítica tornou-se recentemente numa enorme influência na vida dos habitantes. Especialmente em Barentsburgo, onde as autoridades locais – servindo a proposta do Kremlin – transformaram a cidade num parque temático de propaganda ao estilo soviético.
As relações entre Barentsburgo e Longyearbyen começaram a deteriorar-se já em 2014, quando a Rússia anexou a península da Crimeia e enviou as suas unidades paramilitares para as regiões de Donetsk e Lugansk, na Ucrânia. As tensões aumentaram acentuadamente após 24 de fevereiro de 2022, quando a Rússia invadiu a Ucrânia.
No entanto, apesar das sanções e da interrupção da cooperação institucional entre a Rússia e a Noruega, ainda há comunicação entre o governador de Svalbard e o CEO da Arktikugol em Barentsburgo. O governador de Svalbard, Lars Fause, também visita o seu homólogo russo – o cônsul-geral em Barentsburgo – duas vezes por mês.
(Foto: Boštjan Videmšek)
“As grandes mudanças em Barentsburgo e dentro da comunidade russa em Svalbard começaram em 2021”, explicou Kari Aga Myklebost, professora de história da Universidade do Ártico da Noruega em Tromsø. “Foi então que o novo cônsul russo em Barentsburgo e o novo CEO da Arktikugol começaram a assumir poderes cada vez maiores. Arktikugol foi transformada num veículo para promover os objectivos da política externa russa. Poderosos políticos russos estiveram envolvidos, entre eles vários membros da Duma. O novo CEO e o cônsul-geral foram rápidos em ligar seus próprios funcionários. Especialmente quando tentaram expressar o seu apoio ao já falecido Alexei Navalny. O chefe do departamento de turismo da Arktikugol foi aconselhado a sair devido à sua oposição às novas políticas que estão a ser implementadas em Barentsburgo. Saiu, como vários outros funcionários. Desde então, a influência de Moscovo só se intensificou. Após a agressão à Ucrânia, a liberdade de expressão sofreu um novo golpe. Os acontecimentos em Barentsburgo são um reflexo da repressão que actualmente se verifica em toda a Rússia.”
Aga Myklebost é considerado o maior especialista da Noruega em russo e no Ártico. “O novo regime começou imediatamente a insistir nos direitos dos trabalhadores russos no Ártico e em Svalbard. E também sobre os direitos históricos e a protecção da população russa”, afirmou, descrevendo a gradual ‘putinização’ da tradicionalmente moderada Barentsburgo.
Kari Aga Myklebost. (Foto: Boštjan Videmšek)
“Mensagens muito semelhantes começaram a ser emitidas a partir dos altos níveis da política russa,” prosseguiu. “É uma tática bem conhecida. O Kremlin continua a repetir que o Ocidente procura um conflito com a Rússia. O mesmo tipo de linguagem era usada antes da invasão da Ucrânia. A Rússia vê este tipo de manobra de propaganda como extremamente barata, simples e eficaz.”
De acordo com o professor norueguês, a endoutrinação cada vez maior de Barentsburgo não significa necessariamente que as autoridades russas estejam prestes a agir de acordo com sua retórica. A maior parte da propaganda pode muito bem ser dirigida ao público russo. Afinal, foi sufocando todas as vozes dissidentes que o apoio à agressão à Ucrânia ganhou apoio interno.
“Os motivos russos em Svalbard não mudaram,” advertiu Aga Myklebost. “Querem manter o controlo do mar de Barents, que está agora a ser aberto ao comércio internacional devido ao degelo. É por isso que a Rússia continua a tentar contestar o tratado de Svalbard e a soberania da Noruega sobre o arquipélago. Querem impedir que Svalbard – e esta parte do Ártico – seja controlada pela NATO. Veja, se houver um conflito sério entre a Rússia e a NATO, a Rússia será forçada a fechar as vias navegáveis ao redor de Svalbard que levam diretamente à Rússia e à península de Kola, onde uma grande quantidade de capacidade nuclear russa está armazenada. Creio que é por isso que a Rússia não quer uma nova escalada das hostilidades com o Ocidente. Representaria simplesmente um risco excessivo.”
Esta é a razão pela qual Kari Aga Myklebost acredita que as recentes provocações russas não foram de natureza militar. “É sobretudo ideologia. A Rússia está a gritar – mas principalmente apenas simbolicamente! Creio que estão muito mais interessados na resposta do público interno do que na resposta do Ocidente. Toda a propaganda é realizada exclusivamente na língua russa. Embora também seja verdade que a Rússia gostaria de provocar os decisores políticos noruegueses a fornecer um álibi para o fim do tratado de Svalbard.”
Um enorme golpe para a ciência
“Esperemos que as actuais más relações entre os principais protagonistas no Ártico não sejam o novo normal. O futuro da exploração do Ártico está em jogo, dado que cerca de metade da costa do Ártico está localizada na Rússia”, disse Kim Holmen, ex-diretor do Instituto Polar Norueguês e agora seu conselheiro especial.
“Para aprofundar a nossa compreensão do Norte, precisamos de dados – precisamos de colaboração entre especialistas, independentemente da sua nacionalidade”, prosseguiu Holmen. “Isso seria do melhor interesse da humanidade. Mas, tal como as coisas estão, a colaboração é impossível.”
Kim Holmén. (Foto: D.R.)
O homem barbudo, considerado a principal autoridade na exploração do Ártico, acredita que a actual interrupção do fluxo de informações pode ser atribuída exclusivamente à invasão russa da Ucrânia. “Antes disso, o Instituto Polar tinha uma excelente relação de colaboração com cientistas russos. Mas agora a Noruega já não permite contactos entre instituições. As sanções também impedem transacções financeiras, o que representa um enorme obstáculo adicional.”
Holmen disse-me que tinha vários amigos entre cientistas russos, mas conferenciar com eles já não era possível. “Há demasiados obstáculos. Começámos a compensar a nossa nova falta de dados com a utilização de satélites… Mas, no fim de contas, é necessário conhecimento humano para compreendermos como o Ártico realmente funciona. Precisamos de relatórios diretamente no terreno. O que se passa com o permafrost (solo congelado)? O que está a acontecer aos peixes? Aos oceanos? Aos glaciares? Os satélites não podem realmente fornecer esse tipo de dados.”
De acordo com Holmen, uma consequência é que, nos últimos dois anos e meio, a nossa compreensão do que está a acontecer no Ártico começou a deteriorar-se. Dada a ferocidade das alterações climáticas, esta é uma péssima notícia. “O resultado é que teremos cada vez mais dificuldade em prever o futuro próximo. As relações cortadas terão certamente efeitos negativos de longo alcance. A ciência sofreu um duro golpe.”
(Foto: Boštjan Videmšek)
Era final da tarde quando o MS Polar Girldeixou o porto de Barentsburgo. Ao longe, pude observar o brilho dos glaciares, alertando-me para um mundo em desaparecimento.
Perguntei a Masha se ao partir sentia que estava a sair de casa.
“Não”, respondeu ela. “A minha casa é este navio!”
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.
Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.
A Câmara Municipal de Lisboa celebrou com pompa e circunstância o arranque da prova de ciclismo ‘La Vuelta’ em Belém. Mas, afinal, quanto custou aos contribuintes o patrocínio de Carlos Moedas à prova desportiva espanhola? No Portal Base apenas constam dois contratos que somam uma despesa de 119 mil euros da autarquia com a ‘La Vuelta’. Em simultâneo, e apesar de ter anunciado que apoiara a ‘Volta a Portugal em Bicicleta’, a passagem desta prova ancional pela capital só sucedeu de forma muito discreta na zona de Chelas, e tudo graças a um apoio de 90 mil euros feito pela Junta de Freguesia de Marvila, dominada pelo Partido Socialista.
O entusiasmo de Carlos Moedas com a passagem da Volta a Espanha em bicicleta pela capital foi publicamente notório, até com direito a discurso em castelhano. Mas se a promoção da prova na capital teve destaque mediático, e andou sobre rodas, o mesmo não se pode dizer da despesa que os contribuintes portugueses tiveram para pagar o arranque da ‘La Vuelta’ a partir de Belém, e que também cruzou Oeiras e outras parte de Portugal.
No Portal Base apenas consta, para já, a referência a dois contratos feitos pelo município lisboeta relativos à prova, que somam uma despesa de 119 mil euros. Um dos contratos, publicado no dia 30 de Agosto, foi um ajuste directo referente à “aquisição de serviços para a locação de tenda, salas e estacionamento do CCB, no âmbito do evento ‘Portugal La Vuelta 2024’”. Este contrato, no valor de 50 mil euros foi adjudicado à Fundação Centro Cultural de Belém.
O outro contrato, relativo à contratação de “serviços para a realização e gestão do evento La Vuelta – Etapa em Lisboa”, no valor de 69 mil euros, foi adjudicado à Bravimaginação Unipessoal, num procedimento de consulta prévia, ou seja, foram formalmente consultadas pelo menos três empresas antes da decisão de adjudicação.
Foto: D.R./CML
Mas o apoio da Câmara Municipal de Lisboa (CML) à ‘La Vuelta’ terá custado muito mais aos contribuintes. Contudo, até à data, desconhece-se oficialmente o valor global da factura que o município teve com a prova. Em respostas a questões colocadas pelo PÁGINA UM, o gabinete de comunicação da CML afirmou a ‘pés juntos’ que as únicas despesas efectuadas pela autarquia com a ‘La Vuelta’ são as que já constam no Portal Base.
Notícias divulgadas nos media, designadamente pela CNN, apontavam que a prova iria custar um milhão de euros a três autarquias. Segundo as notícias, Lisboa, Oeiras e Cascais iriam repartir entre si a verba de patrocínio à ‘La Vuelta’ para que pusesse um pezinho (ou as rodas) na região. Assim, os três municípios iriam arcar cada um com 333 mil euros de despesa com a prova, contando com o apoio de associações de turismo locais. Isto para que a prova passasse pela região nos dias 16, 17 e 18 de Agosto.
Além destes dois contratos da autarquia lisboeta, apenas surgem mais dois registos de despesa pública com a ‘La Vuelta’: dois contratos adjudicados pelo município de Oeiras, ambos através do procedimento de consulta prévia. Um dos contratos, de “aquisição de serviços de fornecimento de cocktail para evento ‘La Vuelta’ no Forte de São Julião da Barra”, no valor de 19.800 euros, foi adjudicado à empresa Pedretti Catering e Eventos Unipessoal. O outro contrato serviu para alugar ” no ‘aluguer de “5000 baias para os locais de passagem no concelho de Oeiras’ da ‘La Vuelta’, sendo entregue a Duarte Teives pelo valor de 26.600 euros.
O vereador do desporto da CML, Ângelo Pereira, e também o presidente da Junta de Freguesia de Marvila, José António Videira, estiveram numa cerimónia da ‘La Vuelta’ em Marvila. Foto: D.R./CML.
O contraste com o apoio de Lisboa à ‘La Vuelta’ face ao envolvimento da autarquia da capital com a prova-irmã em Portugal foi gritante. Em termos mediáticos, não teve qualquer comparação. Moedas esteve ‘em grande’ a promover a passagem de ‘la Vuelta’ por Lisboa através de vários media. Já a ‘Volta a Portugal em Bicicleta’ passou por Lisboa à boleia de um apoio de 90 mil euros da Junta de Freguesia de Marvila, dominada pelo Partido Socialista.
Num anúncio no site da CML, publicado no dia 27 de Julho, a autarquia publicitava que “a 85ª Volta a Portugal em Bicicleta, apoiada pela Câmara Municipal de Lisboa, chegou à capital a 26 de Julho”. E adiantava: “a etapa de hoje, entre Santarém e Lisboa, assinala a homenagem ao Capitão Salgueiro Maia. O ciclista German Tivani sagrou-se vencedor da ‘Etapa da Liberdade’.”
Após a chegada dos ciclistas e da cerimónia de pódio, foi inaugurado, de facto, um busto de Salgueiro Maia, colocado na rua com o seu nome, em Marvila. A segunda etapa da prova foi “simbolicamente integrada nas comemorações do cinquentenário do 25 de Abril” e “evocou a memória da coluna militar que saiu de Santarém para Lisboa, em 1974, liderada por Salgueiro Maia”.
Foto: D.R./CML
Contudo, a representar a autarquia naquela cerimónia esteve o vereador do desporto, Ângelo Pereira, e também o presidente da Junta de Freguesia de Marvila, José António Videira, cujo apoio à prova pode ser consultado no Portal Base, e foi noticiado em primeira-mão pelo PÁGINA UM no passado dia 8 de Agosto.
Apesar de o município lisboeta ter anunciado que apoiou a ‘Volta a Portugal em Bicicleta’, certo é que se desconhece como prestou esse apoio, pois no Portal Base não conta, até à data, qualquer despesa relativamente à prova. A própria organização da prova não integra o município de Lisboa na lista de patrocinadores e apoiantes. Assim, quem quiser saber quanto a CML gastou com ambas as provas, tem de andar às voltas.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.
Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.
Uma reportagem de Pedro Almeida Vieira publicada originalmente, e como tema de capa, em Março de 2003 na extinta revista GRANDE REPORTAGEM, que mostra a parte mais desconhecida da riqueza ecológica da ilha da Madeira, agora destruída pelo recente incêndio. As fotografias que acompanham esta reedição são de Sandra Mesquita.
Na sua obra de referência, A Origem das Espécies, Charles Darwin citou-a mais vezes do que as misteriosas e luxuriantes ilhas Galápagos. Abriga quase cinco mil espécies de animais e plantas – e muitas mais, garantem os cientistas, estão por descobrir. Tem uma biodiversidade que rivaliza com algumas regiões da Amazónia, uma floresta virgem classificada como Património Mundial Natural e um primitivo e intacto difícil de encontrar em todo o planeta. É um inestimável tesouro que Portugal possui e que em peso, desconhece. Mas é também um dos pequenos territórios do globo com mais espécies ameaçadas. Uma viagem fantástica ao coração da Madeira selvagem.
Reza a lenda que por volta do ano 1420, depois da descoberta oficial da ilha de Porto Santo, o capitão Gonçalves Zarco decidiu rumar em direcção a uma grande nuvem negra. Os marinheiros estavam aterrados. Sob aquele manto de escuridão borbulhante dizia-se estar a boca do inferno ou um abismo para onde cairiam os barcos borda fora do mundo. À coragem do navegador português obrigou-os a aproximarem-se do intenso nevoeiro, mas os rugidos tenebrosos que de lá saíam afugentaram-nos para sul, onde, já com a vista livre das trevas, em vez do inferno, encontraram o paraíso. Aos seus olhos, montanhas imponentes tombavam a pique sobre o mar, vales escarpados e verdejantes recebiam cascatas e riachos de água cristalina, animais nunca vistos pousavam-lhes nos ombros. E a vegetação, sempre presente em qualquer canto, luxuriante, exuberante, viçosa e majestática. Desde o pico mais alto até às praias pedregosas.
Da lenda à realidade haverá uma pequena distância. A ilha da Madeira até já pode estar longe de ser um paraíso terreno – não fosse a região de Portugal com maior densidade populacional –, mas aí existem ainda os últimos redutos virgens da floresta dos descobridores portugueses. Ou mesmo da floresta dos tempos em que o Homem ainda nem sequer existia como espécie primitiva. É certo que a colonização humana rapidamente deu cabo de grande parte do arvoredo – mais uma vez, a lenda fala de sete anos de incêndios sem findar provocados pela arroteia de terrenos para a agricultura. Contudo, em pleno século XXI, a Madeira possui ainda a mais extensa floresta natural da região da Macaronésia, uma expressão grega que significa ‘Ilhas Afortunadas’ e que agrega também os arquipélagos dos Açores, Canárias e Cabo Verde.
Capa da edição de Março da revista Grande Reportagem de Março de 2003.
Mas, dentro desta região, a Madeira é um caso especial. À sua beleza e biodiversidade sempre encantaram tudo e todos. Mesmo aqueles que conheciam a fundo todas as maravilhas da Natureza. Não será por acaso que o pai do evolucionismo, Charles Darwin – cujo nome se associa, desde logo, às ilhas Galápagos –, acabou por citar a Madeira, no seu livro A origem das espécies, por vinte vezes. E a palavra Galápagos fica-se apenas pelas dezassete citações.
*
A viagem do aeroporto para o Funchal é percorrida numa via rápida com poucos pontos de interesse: campos agrícolas, alguns com bananeiras, umas pontas de mar e um casario que se vai massificando à medida que a cidade se aproxima.
Depois receia-se uma desilusão. Quem só conhece a riqueza da ilha por aquilo que lhe disseram pensa que lhe venderam gato por lebre. Em cada pedaço de terra visível a partir do Funchal está a marca humana. O inverso daquilo que os descobridores de quinhentos encontraram. Desde o mar (literalmente, pois abundam os hotéis encostados às águas) até ao pico mais alto, dispersam-se casas e alguns prédios, numa mancha de óleo que ameaça alastrar ao topo da montanha. Apetece fugir dali. E partir à procura dos tesouros que maravilharam Zarco e os seus marinheiros, depois Darwin e ainda recentemente a UNESCO que, em 1999, classificou a floresta natural da ilha como Património Mundial.
Apesar dos seus reduzidos 737 quilómetros quadrados – menos de nove vezes a cidade de Lisboa –, qualquer sítio parece longínquo nesta ilha. Sempre a subir, o jipe percorre uma estrada que serpenteia por onde pode – dois terços da ilha têm declives superiores a 25 por cento –, passando uma mancha urbana disforme e mais à frente áreas de pinheiros e eucaliptos, duas espécies importadas para esta região. À central de incineração de lixos, recentemente inaugurada, que lança um suspeito fumo negro, acentua-nos as dúvidas sobre a existência do tal paraíso.
Mas eis que o paraíso surge, ao longe, no meio de nevoeiro e chuva miudinha. Encontramo-nos no sopé da Fajã da Nogueira, a poucos quilómetros da central hidroeléctrica, e a chuva intensifica-se. Nada mais normal. Estamos ainda no Inverno, numa zona onde pode chover 170 dias por ano e a precipitação chegar aos três mil milímetros, cerca do triplo da média de Lisboa. Pouco interessa, a ânsia já é mais forte do que o conforto abrigado do jipe. Entramos por um ribeiro, torneando uma pequena levada de abastecimento público de água, e subimos a saltitar pelas pedras. Umas pequenas cascatas, umas rochas escorregadias, umas escarpas que se percorrem com prudência e eis-nos num anfiteatro natural. Não aberto. Pelo contrário, bem fechado: de um lado e do outro, escarpas imponentes, cobertas de vegetação, dão alas a uma cascata inacessível de águas cristalinas. Perante este cenário, a chuva desaparece na memória – e o aspecto desolador do percurso evapora-se –, mesmo se o casaco continua a absorver a água dos céus.
Quer-se ver todos os pormenores: o pequeno lago profundo criado pelas quedas de água, as tonalidades avermelhadas de algumas rochas e aquela árvore que abraça um pedregulho colossal numa perfeita simbiose para que ambos não caiam. Mas aquilo é apenas o cartão-de-visita. Lá mais para cima, dizem-nos, por detrás das nuvens, está o éden. Chamam-lhe floresta laurissilva.
*
O nome lembra uma mulher, a sua beleza também. E bem poderia ser: esta floresta é envolvente, misteriosa, acolhedora, enigmática, que não se descobre e prefere ser descoberta. À origem vem, contudo, da dominância das árvores da família do loureiro – cujas coroas de folhas estão, curiosamente, na génese do nome feminino Laura – que se desenvolviam por toda a ilha entre os 400 e os 1350 metros.
Olhar ao longe esta floresta dos nevoeiros cria, contudo, um erro de óptica. À elevada inclinação das vertentes dá a sensação de um denso manto vegetal, mas de baixa estatura. É preciso embrenharmo-nos por esta floresta – preferencialmente pelos caminhos de uma levada – para notar a dimensão das árvores, sobretudo do til, mas também do barbusano, do vinhático e mesmo do loureiro. Mas não estão sozinhas. Há um mundo de outras pequenas árvores e arbustos de grandes dimensões, desde a faia até ao folhado, passando pelo perado, mocano, azevinho-madeirense, teixo, pau-branco, figueira-do-inferno, uveira-da-serra, sabugueiro, cedro-da-madeira e muitas outras. Grande parte destas espécies são quase eternas, perpetuando-se pelas raízes, ou seja, a árvore verde não é mais que o prolongamento vivo do tronco e ramos secos que estão a seu lado. Depois, há todas as plantas herbáceas que durante a Primavera dão um colorido especial à floresta. E ainda os fetos, musgos e líquenes, alguns com formatos indescritíveis. “É uma floresta de fadas”, diz Susana Fontinha, directora do Parque Natural da Madeira. E é o que parece.
Na zona da Encumeada, entramos no Folhadal para um mundo quase místico. As veredas transportam-nos por autênticas varandas onde as nuvens e nevoeiros se envolvem com o arvoredo e as falésias. A presença de água é imutável, mesmo quando não chove. Além das levadas, as ribeiras saltitam por todo o lado e de quando em vez uma cascata de dezenas de metros surge do alto de uma falésia. O som musical da água a cair das alturas – como se viesse das próprias nuvens – é de um encantamento hipnotizante. Os túneis estreitos – escavados pelos madeirenses para que as levadas transpusessem os penedos – são percorridos em passo prudente, mas ansioso, porque no final aparece sempre uma nova paisagem, uma nova e imponente cascata, uma nova surpresa.
Acompanhados por Susana Fontinha e dois técnicos do parque natural, pedimos – porque é proibido, sem autorização – para ir ver de perto uma cascata no interior da floresta. É mais uma cascata, mas nunca é de mais ver mais uma. São trezentos metros de puro êxtase. É impossível seguir em linha recta, porque o ribeiro contorce-se entre as rochas e as árvores – com os troncos cheios de outras plantas, musgos, líquenes e fungos – quase formando uma parede intransponível. Alguns ramos aparentemente viçosos partem-se ao menor toque. Apenas as pedras no leito do riacho se vêem; as outras estão completamente atapetadas de um manto espesso de musgos e líquenes. A falésia desta cascata é mais um ponto de assombro. Não é por estar coberta de vegetação, mas sim por ter várias árvores de mais de uma dezena de metros que cresceram com o fuste perfeitamente paralelo ao solo. Como se, para elas, o chão fosse a parede do penhasco.
*
A riqueza biológica da Madeira é simultaneamente fruto do acaso e uma bênção da Natureza. De origem vulcânica, a idade da ilha não ultrapassará os três milhões de anos – embora ainda haja uma discussão sobre esta matéria – e as últimas erupções terão ocorrido há cerca de 25 mil anos. A quase mil quilómetros das costas ibéricas e a cerca de setecentos da costa africana, só lentamente foram chegando sementes e animais, transportados pelos ventos e correntes marítimas. E o seu isolamento ‘livrou-a’ da última glaciação na época do Terciário – que fez desaparecer a floresta dos loureiros na Europa e a flora e a fauna evoluíram à sua maneira.
Mas este não foi o único factor que transformou a ilha da Madeira num local único. Face à sua morfologia acidentada, à cordilheira de picos elevados e à proximidade do mar, os habitats da Madeira são extremamente diversificados. Em situação natural existiam, pelo menos, quatro estratos de vegetação e, em cada um deles, subtipos em função dos microclimas. Por exemplo, no caso da floresta laurissilva – que apenas ocupa a faixa entre os 400 e os 1350 metros de altitude – existem, segundo os mais recentes estudos botânicos, cinco diferentes tipos de formações vegetais. Na faixa litoral, mais seca e quente sobretudo na parte sul, abundavam as espécies herbáceas das falésias marítimas – muitas das quais endémicas – e um pouco mais no interior dominavam a figueira-do-inferno – uma eufórbia arbórea que, em outras regiões, apenas atinge um porte herbáceo –, a malfurada, o zambujeiro – uma oliveira selvagem endémica da Madeira – e o dragoeiro. Contudo, por ser esta a região mais humanizada da ilha, grande parte desta vegetação natural foi destruída, pelo que apenas nas falésias e zonas declivosas inacessíveis é possível encontrar alguns vestígios.
Acima dos 1.350 metros, a vegetação é completamente diferente da floresta laurissilva, sobretudo devido às baixas temperaturas. Aí abundavam três espécies de urzes – a mais imponente das quais a molar, cuja ocorrência de exemplares centenários no Pico Ruivo nos faz recuar a tempos longínquos –, loureiros de pequeno porte, a uveira-da-serra e outras plantas herbáceas, musgos e líquenes. A sorveira, um arbusto endémico de grande porte, também era frequente, mas o seu corte indiscriminado quase a levou à extinção, ocorrendo agora apenas junto ao Pico do Areeiro. Na zona do Paul da Serra – um extenso planalto acima dos 1400 metros de altitude –, a acumulação de água e a acção do gelo criaram habitats de prados temporários húmidos de vegetação rasteira que a intensa pastorícia, ao longo dos tempos, acabou por degradar quase até à exaustão.
Um passeio pelo Montado dos Pessegueiros mostra esta panóplia de habitats numa curta distância. Começando por entre um impenetrável urzal junto ao Paul da Serra, somos levados por uma floresta deslumbrante – em que sessenta por cento da área está no seu clímax vegetativo – que vai mudando à medida que se desce por uma vereda, ora escorregadia ora quase imperceptível. Na parte final, a floresta deslumbrante quase se torna numa selva implacável. À estreita vereda junto a falésias de centenas de metros é o parapeito entre uma beleza estonteante, onde o azul do mar tenta fazer inveja ao verde da floresta, e uma queda fatal para o abismo.
*
Mesmo um profundo conhecedor das plantas e dos animais do continente europeu terá dificuldades em identificar as espécies do arquipélago da Madeira. Os endemismos – ou seja, espécies que apenas existem nesta região – são em tão grande número que calcorrear uma vereda ou entrar pela floresta causa uma estranha sensação de destruição atroz. “Numa pequena parte de uma falésia junto ao litoral poderemos encontrar mais de vinte endemismos, entre plantas, musgos e líquenes”, diz Miguel Sequeira, botânico da Universidade da Madeira. O mundo vegetal desta pequena ilha é impressionante, mesmo a nível mundial. Estão actualmente inventariadas cerca de 780 plantas vasculares, das quais 234 são endémicas da Macaronésia e 157 exclusivas deste arquipélago. E, nos últimos anos, tem-se feito rectificações nas identificações, pelo que é previsível que este número aumente. “Algumas espécies que se pensava serem comuns são, afinal, endémicas, tendo dado origem a novas espécies”, afirma Roberto Jardim, director do Jardim Botânico da Madeira. Os musgos e plantas hepáticas são mais de 550 – também um número em crescendo à medida que são feitos mais estudos –, sendo que 35 são endémicos e dez são exclusivos da Madeira. “Estas ilhas são o Eldorado dos estudiosos de líquenes e musgos”, sustenta Susana Fontinha, que há três anos integrou uma equipa que classificou uma nova espécie de líquen nas ilhas Desertas.
Nos seres invertebrados, a lista ainda é maior. Já Charles Darwin, em A origem das espécies, se mostrava maravilhado com a diversidade e formas evolutivas de muitos dos insectos da Madeira. Por agora, estão inventariadas, pelo menos, 3300 espécies de invertebrados, sobretudo insectos, muitos microscópicos e outros cavernícolas, e moluscos, na sua maior parte caracóis e lesmas. Cerca de trinta por cento são endémicos. E, neste caso, há mais espécies à espera de serem descobertas. Mas mesmo muitas mais. “Há vários milhares de espécies ainda por descobrir”, diz a galega Dora Pombo, uma entomóloga (especialista em invertebrados) da Universidade da Madeira.
O reitor da instituição, Ruben Capela, também entomólogo, reforça esta ideia e lamenta que, em Portugal, não se aposte mais na classificação das espécies, a taxonomia. “Só existem verbas para investigar insectos que sejam prejudiciais ao homem, não se aposta no conhecimento básico e os taxonomistas são uma espécie em extinção”, critica, exemplificando com o facto de se ter visto na necessidade de enviar para laboratórios estrangeiros cerca de duas dezenas de prováveis espécies novas de insectos para identificação. “Existem registos, como na floresta amazónica, de invertebrados que nunca descem das copas das árvores, mas nunca conseguimos ver aprovado um projecto para os estudar”, queixa-se o reitor.
Neste mundo primitivo que, em alguns sítios, lembra os cenários do Jurassic Park, as plantas e os insectos são reis e senhores – é a vantagem de se ter sementes ou ser-se pequeno – mas não os únicos habitantes. Os vertebrados são em reduzido número relativamente às regiões naturais do continente europeu. Mas poucos não significa pouca importância. Por exemplo, no arquipélago da Madeira, apesar de apenas ocorrerem 42 espécies de aves, das quais nove são endémicas, existem dois dos maiores santuários de aves a nível mundial: as Desertas e as Selvagens. Mas mesmo na 1lha da Madeira encontram-se algumas ‘relíquias’ endémicas: o pombo-trocaz – a ave emblemática da floresta laurissilva –, a freira-da-madeira, a freira-do-bugio, o canário-da-terra, a andorinha-da-serra, o corre-caminhos e algumas rapinas. Os anfíbios e répteis são pouco frequentes – embora haja uma lagartixa que tem o condão de polinizar uma planta –, enquanto os peixes de água doce estão ausentes, devido à torrencialidade e grandes cascatas das ribeiras. Mas essa ausência acaba por ser compensada pela riqueza das águas do mar, cujo exemplo é a Reserva Natural do Garajau, a leste do Funchal, a única área protegida exclusivamente marinha do país, criada em 1986.
Os mamíferos terrestres também são raros, embora os marinhos estejam (bem) representados pela foca-monge – um dos mamíferos marinhos mais raros do mundo – e por dezoito espécies de baleias. Em terra, merecem especial realce cinco espécies de quirópteros, sobretudo o morcego-da-madeira, endémico da Macaronésia. E já não é pouco.
*
No entanto, nem tudo são rosas na biodiversidade da Madeira. Existem mesmo muitos espinhos encravados na natureza, fruto de anos de intensa humanização. Se as ilhas Desertas e as Selvagens estão completamente a salvo – sobretudo agora que esta última se apresta para ser também classificada pela UNESCO como Património Mundial Natural –, as ilhas do Porto Santo e da Madeira – apesar do seu estatuto de protecção alargado com os sítios da Rede Natura – possuem significativos problemas e ameaças. O último Livro Vermelho da União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN), divulgado em Outubro do ano passado, apresenta um cenário algo negro para o arquipélago da Madeira: dezasseis espécies em risco crítico de extinção, onze em perigo de extinção e 45 em situação muito vulnerável. De acordo com a lista da IUCN, se a Madeira – que em termos territoriais é minúscula – fosse um Estado, seria o quinto país europeu com mais espécies ameaçadas, a seguir à Rússia, Espanha, França e Itália.
Estando integrada em Portugal, faz com que o nosso país seja o 38º a nível mundial com mais espécies ameaçadas e o segundo em toda a Europa, a seguir à imensa Federação Russa. E se se considerar apenas os animais, Portugal está nos vinte primeiros do Mundo com mais espécies ameaçadas.
Na Madeira, o grupo dos moluscos encabeça a ‘lista negra’, com 55 espécies entre os três principais estatutos de ameaça criados pela IUCN. Curiosamente, as duas últimas espécies endémicas portuguesas que «aceleraram» para a extinção, declarada em 1996 pela IUCN, foram dois caracóis terrestres madeirenses (Letostyla lamellosa e Psedocampylaea lower).
Mas nesta lista da IUCN estão também em vias de extinção plantas e animais de grande simbolismo deste arquipélago: a foca-monge (mamífero), a freira-da-madeira (ave) e duas borboletas endémicas, bem como o mocano, a sorveira e o cedro-da-madeira (plantas). Para cada uma destas três plantas estão inventariadas menos de quarenta árvores à escala mundial. Mas mesmo as principais árvores da floresta laurissilva – como o loureiro, o til, o vinhático e o azevinho-madeirense – encontram-se num limiar próximo das espécies ameaçadas a nível mundial, de acordo com os dados da IUCN. Outras espécies de árvores, outrora abundantes, estão praticamente extintas na Madeira – embora não nas outras ilhas macaronésicas –, nomeadamente o mocano, a tintureira, o marmulano e o dragoeiro. Para esta última planta – um símbolo natural da Madeira, cujo aspecto arbóreo esconde a sua verdadeira fisiologia de herbácea – restam apenas três exemplares selvagens, numa falésia da zona da Ribeira Brava.
Para agravar ainda mais este cenário, um recente estudo desenvolvido por investigadores portugueses sobre as acções de conservação da flora portuguesa aponta mesmo para um maior número de espécies vegetais em perigo. No caso dos briófitos da Madeira, três espécies encontram-se em perigo de extinção, quinze estão vulneráveis e 42 são raras, enquanto para as plantas vasculares endémicas encontram-se 32 espécies em perigo de extinção, outras 41 estão vulneráveis e 32 são já raras.
A principal causa desta situação foi – em especial nos casos do vinhático, til e cedro-da-madeira – o abate indiscriminado durante séculos para a construção de casas, móveis e outros utensílios de madeira. Outras árvores e arbustos foram sendo utilizados, de forma mais ou menos desregrada, para a construção civil, marcenaria e diversos utensílios domésticos e agrícolas. Susana Fontinha garante que, desde os anos vinte do século passado, “a floresta é exclusivamente de protecção, não há cortes e, além dos vigilantes da natureza, temos o corpo de guardas-florestais com quase noventa elementos a darem-nos apoio; na Madeira os políticos já se aperceberam da sua riqueza ambiental e económica”. A criação em 1988 do Parque Natural da Madeira – que ocupa dois terços da ilha – foi o corolário dessa nova postura. Actualmente a única excepção de corte, autorizada apenas em casos especiais, é o da urze-das-vassouras, utilizada para protecção das culturas agrícolas no litoral contra a maresia.
Apesar de considerar que existem motivos de preocupação, sobretudo nos habitats de baixa altitude, Miguel Sequeira relativiza alguns estatutos de perigo de extinção. «Muitas espécies endémicas, sobretudo se forem exclusivas da Madeira, têm uma área espacial de ocorrência relativamente limitada, mas nem sempre conhecida por completo, ficando, desde logo, integrada num estatuto vulnerável», afirma este biólogo. E, além disso, salienta, “a inclusão de espécies ameaçadas depende muito da profundidade dos estudos que se realizam num determinado país e do seu peso político a nível internacional e junto da IUCN”.
Na mesma linha segue o reitor da Universidade da Madeira. “A investigação em biologia depende de aspectos práticos, mas também da afeição que um determinado grupo merece por parte dos investigadores e das pessoas em geral. Por exemplo, quem se preocupa que um determinado mosquito se extinga, mesmo que os investigadores digam que isso pode vir a provocar uma epidemia de outras espécies?”, questiona Ruben Capela. Será, porventura, por causa disto que sendo a Madeira um museu vivo de insectos – com quase três mil espécies conhecidas –, estejam apenas quatro na ‘lista vermelha’ da IUCN, sendo que três delas são borboletas, as mais amadas deste extenso grupo de ‘indesejados’. “É muitíssimo improvável que na Madeira não haja mais espécies de insectos em risco de extinção, ou seja, isto significa que existem poucos estudos e não que as espécies de insectos estão de boa saúde”, salienta Ruben Capela.
*
Na generalidade, não se pode acusar a Madeira de não se preocupar com este cenário pouco idílico. Na última década foram investidos em projectos de conservação da natureza na Madeira, financiados pela União Europeia, mais de sete milhões de euros, abrangendo a foca-monge, cetáceos, moluscos e a recuperação e gestão da floresta laurissilva e outros habitats. Mas nem sempre as medidas chegam a bom porto. Nuns casos por colidirem com outros interesses, noutras situações por a recuperação ser onerosa ou tecnicamente difícil.
As plantas infestantes são disso um exemplo. Actualmente, cerca de meia centena de espécies exóticas introduzidas nos últimos séculos invadiram extensas áreas da 1lha, sobretudo na vertente sul. E já começam a atingir algumas áreas no interior do parque natural, como acontece com a bananilha, uma herbácea oriunda da Índia que forma tapetes compactos até dois metros.
Por outro lado, a recuperação de espécies vegetais em risco de extinção em estado selvagem, feita sobretudo pelo Jardim Botânico da Madeira, não tem sido tarefa fácil. “Para repovoamentos, recolhemos sempre material genético, sementes ou caules, de exemplares da natureza, como fizemos com os dragoeiros e em algumas plantas do litoral, mas é um processo difícil e moroso, nem sempre com resultados assegurados”, salienta Roberto Jardim. “Existem espécies, como o mocano, em que a reprodução é complicada – provavelmente extinguir-se-ia mesmo sem pressão humana –, embora recentemente tenhamos descoberto um método que nos permitirá fazer repovoamentos”, salienta. Em alguns casos, para fazer germinar as sementes, são encontradas soluções inesperadas e insólitas. Por exemplo, há alguns anos descobriu-se que para fazer germinar as sementes do cedro-da-madeira bastaria ‘lavá-las’ com… sabão azul
Ainda mais complexa e lenta tem sido a recuperação de habitats destruídos pelo
pastoreio desregrado. Largadas ao relento, cabras e ovelhas dizimaram áreas de herbáceas e de matos nas serranias, não permitindo também a regeneração natural do arvoredo. A ‘coisa’ já foi pior, mas ainda é possível encontrar muitas cabras e ovelhas ao deus-dará, comendo tudo o que lhes aparece pela frente. Raimundo Quintal, geógrafo e ex-vereador da autarquia do Funchal, é um adversário feroz do pastoreio nas serras madeirenses. “A criação de gado é uma estúpida questão tradicional, não há razões económicas; não existem rebanhos organizados nem pessoas economicamente dependentes do gado”, salienta aquele que é considerado um dos maiores divulgadores da Madeira natural.
Para acabar com a degradação – que despiu quase por completo a vegetação no Paul da Serra e em algumas zonas do Pico Ruivo e do Pico do Areeiro –, o Governo Regional da Madeira instituiu um incentivo à redução do pastoreio livre, oferecendo aos proprietários, durante cinco anos, 38 euros pela retirada de cada cabeça de gado. “No ano passado gastámos cerca de um milhão de euros em pagamentos de compensações, esta é uma medida feita com diálogo, mas de forma intransigente; para quem não cumprir, o gado é morto pelos guardas-florestais”, diz Manuel António Correia, secretário regional do Ambiente. “Com esta medida beneficiou-se o infractor”, critica Raimundo Quintal que, apesar disso, releva a recuperação encetada em várias zonas Já libertadas do gado, nomeadamente no Paul da Serra e no Pico do Areeiro. Nesta última zona, grupos de voluntários já plantaram, nos últimos anos, milhares de plantas indígenas em terrenos do Parque Ecológico do Funchal. E os resultados começam já a ser visíveis.
Sem solução à vista parece estarem as queimadas de matos que, indiscriminadamente, são feitas por populares, mesmo durante a noite. A sorte é que, na esmagadora maioria dos casos, afecta apenas as zonas mais próximas dos aglomerados urbanos e afastadas da floresta laurissilva. Mas, mesmo com a elevada humidade, já ocorreram incêndios em áreas de floresta laurissilva, que se tornam catastróficos face à dificuldade de os atacar. É em algumas zonas fustigadas pelos fogos a diferença para a floresta natural original é, diga-se, tristemente abissal.
*
As atenções ambientalistas sobre a Madeira estão agora, mesmo a nível internacional, viradas para a evolução de um projecto, no Pico do Areeiro, que poderá pôr em risco uma das mais ameaçadas aves do mundo. No momento em que ainda se ouvem os ecos da aceitação da candidatura das ilhas Selvagens a Património Mundial Natural da UNESCO – devido à sua riqueza em aves marinhas –, os ambientalistas receiam que a projectada construção de um radar militar da NATO possa afectar a freira-da-madeira. Considerada extinta até finais dos anos sessenta, esta ave foi entretanto ‘redescoberta’, mas já em estado de grande vulnerabilidade, estando apenas referenciados trinta casais. Vivendo praticamente meio ano em alto mar e estando em terra apenas para nidificar, as fêmeas põem apenas um ovo por ano num ninho escavado em falésias do Pico do Areeiro. Durante anos, os seus principais inimigos eram os ratos e os gatos abandonados que lhes comiam os ovos. Mas agora a principal ameaça é tecnológica.
Perante a acérrima oposição dos ambientalistas e o comprometedor silêncio do Ministério do Ambiente, tem sido o ministro da Defesa, Paulo Portas, a ‘comandar’ as hostilidades. Já chamou “ecoxiitas” aos ambientalistas e estes responderam-lhe na mesma moeda, acusando-o de mentiroso. O braço-de-ferro deverá continuar nos próximos tempos, tanto mais que várias associações ambientalistas – a Liga para a Protecção da Natureza (LPN), a Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves e a Bird Life International – já se queixaram à Comissão Europeia, visto que esta área está já classificada definitivamente como sítio de interesse comunitário no âmbito da Rede Natura, existindo mesmo um projecto de conservação da freira-da-madeira financiado pelo programa Life.
O secretário regional do Ambiente da Madeira prefere não se meter nesta ‘guerra’, dizendo que “o Governo Regional é solidário com os propósitos do Governo português”. Mas Manuel António Correia vai acrescentando que “os estudos apontam para que não haja qualquer impacte ambiental, tanto mais que o radar situar-se-á no mesmo local da pousada do pico do Areeiro, além de que se vai adquirir, como medida de compensação, cerca de três mil hectares para serem entregues à gestão do parque natural”. Diga-se, contudo, que a compra dos terrenos já está garantida não por causa do radar, mas sim devido ao projecto do programa Life, da União Europeia, que visa a preservação da freira-da-madeira. E que, ao contrário daquilo que os responsáveis políticos dizem, o estudo de incidências ambientais, encomendado à Universidade de Aveiro, não consegue mais do que concluir que “quanto aos efeitos da radiação emitida pelo radar […] é difícil afirmar com determinação a ocorrência ou não de incidência” sobre a freira-da-madeira.
José Alho, presidente da LPN, diz “não compreender a insistência do Ministério da Defesa na construção do radar, porquanto não provou que este equipamento é imprescindível, sabendo-se que está em causa a extinção de uma espécie única”. “Em caso de dúvida, deve aplicar-se o princípio de precaução; numa extinção não há forma de corrigir erros”, salienta.
Outro projecto polémico, desta vez em plena floresta laurissilva, prende-se com o prolongamento da estrada do Fanal até ao Paul da Serra. Há cerca de uma década, o Governo Regional alargou e asfaltou um caminho de terra desde a povoação do Seixal até ao posto florestal do Fanal, atravessando uma zona de floresta natural. Agora, o mesmo Governo Regional quer acabar a ‘obra-prima’. O secretário regional do Ambiente defende que “os madeirenses têm necessidade desta estrada até ao Paul da Serra para usufruto, para os seus passeios”. Frontalmente contra este projecto está Raimundo Quintal. “Esta estrada não faz qualquer sentido”, contrapõe este geógrafo, acrescentando que “não serve populações nem beneficia em nada o turismo, apenas destrói a floresta”.
Estes dois projectos serão, porventura, o calcanhar de Aquiles da postura pró-ambiental da Madeira e do seu Governo Regional, sendo evidentes os esforços em inverter a degradação de alguns habitats, recuperar espécies ameaçadas e manter o seu património natural. De resto, pode-se dizer que, quando todos os estereótipos já foram inventados para criticar a gestão da res publica pelo Governo de Alberto João Jardim, talvez neste sector a Madeira possa pedir, com justiça, meças ao Continente. Não é tudo perfeito, muito longe disso – e é bom nem falar do urbanismo, ou falta dele, nas deprimentes povoações madeirenses –, mas em política de conservação da natureza e gestão de áreas protegidas, o continente tem muito a aprender com a Madeira. Em postura, mas também em paixão e orgulho naquilo que a natureza deu e ainda existe.
Uma floresta que vale ouro
A laurissilva é não só um gigantesco reservatório de água como uma barreira de defesa contra tragédias e um atractivo turístico. E ainda tem outras virtudes.
A floresta laurissilva não é apenas um mostruário natural. É um espaço vital para a economia e sobrevivência humana da Madeira. A começar pelo líquido chamado água, que produz um quarto da electricidade consumida na ilha. Num território de pequena extensão, mesmo chovendo muito, a água escorreria ingloriamente até ao mar caso não existisse uma densa floresta. A estrutura da laurissilva consegue não só armazenar a água como captá-la dos próprios nevoeiros, três vezes aquilo que chove, segundo dizem os especialistas. Além disso, sem a vegetação, torrentes de água, pedras e lama transformar-se-iam facilmente em catástrofes. Que, aliás, se verificam de tempos em tempos, sobretudo na vertente sul, mais humanizada e alterada, onde a vegetação natural foi ocupada por campos agrícolas, casas, pinhais e eucaliptais.
Desde o século XIX existem registos de cheias catastróficas – denominadas localmente por aluviões –, tendo a mais destrutiva ocorrido em 1803, matando cerca de mil pessoas do Funchal, quatro por cento da população de então. Mas se a tragédia humana nunca mais atingiu aquelas proporções, a frequência intensificou-se. “Nos últimos dois séculos, cerca de setenta por cento dos aluviões registaram-se nas últimas cinco décadas”, diz Raimundo Quintal, geógrafo e ex-vereador da autarquia do Funchal. “A floresta é a maior barreira e defesa contra as cheias; isso é uma das suas maiores virtudes”, salienta.
Mas há muitas mais virtudes. E algumas mesmo à mão de semear, embora quase não sejam aproveitadas. É o caso do potencial farmacológico das plantas da Madeira. “Na medicina tradicional há muitas utilizações de plantas e mesmo de fungos, mas existe pouca investigação nacional para a caracterização das substâncias vegetais que possam ter propriedades farmacológicas”, diz Roberto Jardim, director do Jardim Botânico da Madeira. Contudo, com tantas plantas ali mesmo à mão, “nada garante que multinacionais não tenham já vindo à Madeira recolher plantas para as estudar, encontrado e patenteado substâncias novas para a Medicina”. Miguel Sequeira, biólogo da Universidade da Madeira, defende que esta postura deve ser alterada. “Se não soubermos esses potenciais, nunca se poderá reivindicar qualquer eventual retribuição ao abrigo da Convenção da Biodiversidade”, diz.
O turismo de natureza é outra componente económica importante da Madeira, mas cuja exploração é ainda incipiente, sobretudo entre a população portuguesa do continente. Para estes, a Madeira é pouco mais do que o sol no Verão, o Funchal, o Carnaval, a Festa da Flor e a passagem de ano. Por isso, pelas veredas e levadas da Madeira os caminhantes são sobretudo madeirenses ou então estrangeiros, mas a informação disponibilizada ainda é reduzida, sobretudo em termos de marketing internacional que ofereça a Madeira como um destino de turismo de natureza por excelência. E é bom que esse passo seja dado, uma vez que se estima que este seja um dos negócios mais florescentes a nível mundial, com crescimentos anuais de até vinte por cento em algumas áreas naturais do mundo. Com a vantagem que o turista de natureza tem, regra geral, elevado poder de compra e é respeitador dos valores ambientais que visita.
PRINCIPAIS ESPÉCIES AMEAÇADAS DA MADEIRA
Segundo a lista da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), a Madeira possui dezasseis espécies em risco crítico de extinção, onze em perigo de extinção e outras 45 em situação vulnerável. Os moluscos – por terem sido mais estudados –, com muitas espécies endémicas, sobretudo no Porto Santo, são o grupo com maior número de espécies ameaçadas no arquipélago. Mas existem outras espécies mais conhecidas e simbólicas que estão em risco de desaparecer na Madeira.
Borboleta endémica cujo nome científico foi dado em honra de Thomas Wollaston – naturalista inglês amigo de Darwin, que se serviu dos seus estudos para citar a Madeira no livro A origem das espécies. Está praticamente desaparecida, devido a parasitas exóticos.
Embora a ecologia desta ave marinha ainda seja um mistério, sabe-se que apenas está em terra durante meio ano para acasalar em ninhos que escava em escarpas do Pico do Areeiro, na ilha da Madeira. Apenas existem cerca de trinta casais, que são fiéis durante a vida e apenas chocam um ovo por ano.
Também chamado lobo-marinho, esta é a foca mais rara do Mundo, distribuindo-se desde a costa noroeste de África até à Madeira, embora existam apenas cerca de quatrocentos indivíduos. As ilhas Desertas são conhecidas por possuir a maior colónia de focas-monge, com cerca de vinte animais, tendo-se já referenciado a sua ocorrência na ponta de São Lourenço, na ilha da Madeira.
Pequena árvore que se desenvolve em zonas escarpadas da floresta laurissilva, de odoríferas flores amarelo-pálidas, está quase extinta na Natureza. Depois de vários anos de tentativas, o Jardim Botânico da Madeira conseguiu recentemente a sua reprodução in vitro.
Conífera de zonas escarpadas da floresta laurissilva, é bastante rara devido ao corte excessivo durante séculos, uma vez que a sua madeira era bastante apreciada para marcenaria e construção civil, sendo exemplo disso os tectos da Sé do Funchal. Em estado natural existem apenas, na Madeira e Canárias, 39 exemplares.
Arbusto de alta montanha. Tem umas bagas vermelhas semelhantes às do azevinho. Os fogos e a pastorícia reduziram a população da sorveira a cerca de trinta exemplares, os quais estão sobretudo localizados no pico dos Melros e Chão do Areeiro, em zonas de escarpa.
Foto: Carlos Aguiar.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.
Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.