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  • Conhecer questionário de governantes tem “consequências graves para a Nação ou nações aliadas”, diz Governo

    Conhecer questionário de governantes tem “consequências graves para a Nação ou nações aliadas”, diz Governo

    O Governo considera que basta considerar que um determinado acto, mesmo se escrito, é político para que deixe de ser administrativo. No decurso de um processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa intentado pelo PÁGINA UM, devido à recusa de acesso ao questionário prévio à sua indigitação pelo novo secretário de Estado da Agricultura, a assessoria jurídica de António Costa defende também a legalidade da classificação de “Nacional Secreto” para este tipo de documento, mesmo se a legislação invocada se aplica exclusivamente a informação cujo conhecimento (público ou privado) possa ter “consequências graves para a Nação [Portugal] ou nações aliadas”. Esta intimação do PÁGINA UM visa também evitar que o Governo possa vir a usar o estratagema do “Nacional Secreto” para obstaculizar o acesso a informação apenas por ser politicamente sensível.


    O Governo quer convencer o Tribunal Administrativo de que os questionários escritos que passaram a ser exigidos pelo primeiro-ministro António Costa aos convidados a integrarem o Executivo não são “documentos administrativos” por supostamente terem natureza política.

    Este é o primeiro argumento usado nas alegações do gabinete de António Costa à intimação do PÁGINA UM junto do Tribunal Administrativo de Lisboa, depois da recusa em disponibilizar o acesso ao inquérito já preenchido pelo secretário de Estado da Agricultura, Gonçalo Caleia Rodrigues, o único governante que entrou em funções desde a Resolução do Conselho de Ministros que, no passado dia 13 de Janeiro, elencou um conjunto de 36 perguntas, incluindo algumas que já são alvo de escrutínio pelo Tribunal Constitucional.

    António Costa cumprimentando Gonçalo Caleia Rodrigues na tomada de posse. O secretário de Estado da Agricultura foi o primeiro, e até agora único, governante a preencher um inquérito que o primeiro-ministro quer secreto, apesar da Resolução do Conselho de Ministros invocar a transparência.

    O dito diploma determinou que estes questionários são classificados como “Nacional Secreto”, numa tentativa de não os tornar públicos, mas baseando-se numa Resolução do Conselho de Ministros, que por ser diploma hierarquicamente inferior, como sucede perante a Lei de Acesso aos Documentos Administrativos (LADA), não a pode contrariar nem sobrepor.

    Adiantando que o questionário está a ser aplicado “tendo em vista a melhoria do processo de avaliação política para a designação de um indivíduo para funções governativas”, a defesa do gabinete do primeiro-ministro – assinada pelos assessores Gonçalo Carrilho e Mariana Melo Egídio, ambos também assistentes convidados da Faculdade de Direito de Lisboa –, alega, contudo, estar-se perante “um processo de nomeação subsumível [integrado] na função política”, defendendo que como são “atos políticos, envolvendo uma partilha de competência de direção política do Presidente com o Governo”, não dizem assim respeito à actividade administrativa. Daí que, defendem, não se aplica a LADA.

    Esta tese do gabinete de António Costa não deixa de ser temerária. Além de querer assumir que uma simples Resolução do Conselho de Ministros – mesmo num Governo de maioria parlamentar – tem mais força do que uma Lei da Assembleia da República –, o argumento do acto político não ser um acto administrativo conflitua até com a Constituição da República.

    Primeira página (de sete) das alegações do gabinete de António Costa, assinadas por dois assessores que são também assistentes convidados da Faculdade de Direito de Lisboa.

    Com efeito, no artigo 182º do texto constitucional taxativamente explicita-se que “o Governo é o órgão de condução da política geral do país e o órgão superior da administração pública” – em simultâneo, portanto.

    Depreendendo-se que não pode um Governo ser uma coisa em certo momento e outra noutro, dever-se-ia deduzir que todos os actos de um Governo sejam vistos sempre como actos administrativos, mesmo se políticos ou de política – que, na verdade, são conceitos algo distintos.

    Porém, o actual Governo aparenta considerar que lhe basta considerar que um determinado acto é político para que deixe de ser administrativo. Algo que, certamente, virá a ser analisado pelo Tribunal Administrativo de Lisboa.

    Saliente-se, aliás, que a LADA estabelece o conceito de “documento administrativo” para “qualquer conteúdo, ou parte desse conteúdo, que esteja na posse ou seja detida em nome dos órgãos e entidades referidas no artigo seguinte [que inclui o Governo]”, seja o suporte de informação sob forma escrita, visual, sonora, eletrónica ou outra forma material”.

    E apenas salienta três excepções: “as notas pessoais, esboços, apontamentos, comunicações eletrónicas pessoais e outros registos de natureza semelhante, qualquer que seja o seu suporte”, bem como “os documentos cuja elaboração não releve da atividade administrativa, designadamente aqueles referentes à reunião do Conselho de Ministros e ou à reunião de Secretários de Estado, bem como à sua preparação” e ainda “os documentos produzidos no âmbito das relações diplomáticas do Estado português”.

    Mas o Governo diz ainda, nas suas alegações que, mesmo se os questionários aos governantes venham a ser considerados documentos administrativos pelo Tribunal Administrativo de Lisboa, estes devem manter-se secretos, defendendo a legalidade dessa classificação.

    Embora a Resolução do Conselho de Ministros de Janeiro passado não explicite qual a norma usada para a classificação de “Nacional Secreto”, nas alegações para o Tribunal Administrativo de Lisboa o gabinete de António Costa explicita que se baseia nas instruções de segurança nacional, salvaguarda e defesa das matérias classificadas (SEGNAC), remetendo para uma Resolução do Conselho de Ministros com quase 25 anos, do primeiro governo de Cavaco Silva.

    O Governo diz agora que “resulta clara a motivação para esta classificação [Nacional Secreto]: a informação em causa diz respeito ao processo de nomeação de membros do Governo, assunto da mais elevada importância para o Estado, nos termos e para os efeitos do nº 3.2.2 da referida Resolução do Conselho de Ministros n.º 50/88, de 3 de dezembro.”

    Cavaco Silva em 1988 na Sala Oval, com o então presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan. Foi nesse ano que uma outra Resolução do Conselho de Ministros estabeleceu a classificação “Nacional Secreto” agora usada por António Costa para esconder os inquéritos aos novos governantes. Mas esse diploma de 1988 estipulava o secretismo apenas para questões que pudessem vir a ter “consequências graves para a Nação [Portugal] ou nações aliadas”.

    Mas apesar de explicitar o enquadramento [o ponto nº 3.2.2 da dita Resolução do Conselho de Ministros dos tempos de Cavaco Silva), os assessores não a expõem nas alegações. O ponto nº 3.2.2 diz o seguinte: “Este grau de classificação [Nacional Secreto] abrange as informações, documentos e materiais cuja divulgação ou conhecimento por pessoas não autorizadas possa ter consequências graves para a Nação ou nações aliadas ou para qualquer organização de que Portugal faça parte, em resultado de: Fazerem perigar a concretização de empreendimentos importantes para a Nação ou nações aliadas ou para organizações de que Portugal faça parte; Comprometerem a segurança de planos civis e militares e de melhoramentos científicos ou técnicos de importância para o País ou seus aliados ou para organizações de que Portugal faça parte; Revelarem procedimentos em curso relacionados com assuntos civis e militares de alta importância.”

    Em suma, o Governo está assim a tentar convencer o Tribunal Administrativo de Lisboa de que a revelação pública de informações sobre os governantes – quase toda pública, embora complexa de recolher por existir em várias fontes públicas, como cartórios e registos civis, comerciais e prediais – pode ter consequências graves para a Nação ou nações aliadas ou para qualquer organização de que Portugal faça parte por afectar projectos nacionais importantes, comprometerem a segurança pública e militar ou revelarem assuntos civis e militares de alta importância.

    woman in black dress illustration

    Por fim, nas alegações, a assessoria jurídica de António Costa ainda acrescenta que nos inquéritos constam dados nominativos – que, aliás, o PÁGINA UM destaca, no seu requerimento, que devem ser expurgados, de acordo com a lei – e que por esse simples motivo não devem ser acessíveis.

    E, apesar de o requerimento do PÁGINA UM dirigido directamente a António Costa ter sido assinado por um jornalista – cuja função é reconhecida e protegida constitucionalmente, havendo sempre um interesse direto, pessoal, legítimo na obtenção de informação –, o gabinete do primeiro-ministro argumenta que “o Requerente [director do PÁGINA UM] não demonstrou qualquer interesse direto, pessoal, legítimo, muito menos constitucionalmente protegido, que o habilite ao acesso ao documento nominativo em causa constitucionalmente protegido”.


    N.D. Todos os encargos do PÁGINA UM nos processos administrativos, incluindo taxas de justiça e honorários de advogado, têm sido suportados pelos leitores e apoiantes, através do FUNDO JURÍDICO. Neste momento, por força de 16 processos de intimação intentados desde Abril do ano passado, além de outras diligências, o PÁGINA UM faz um apelo para um reforço destes apoios fundamentais para a defesa da democracia e de um jornalismo independente. Recorde-se que o PÁGINA UM não tem publicidade nem parcerias comerciais, garantindo assim a máxima independência, mas colocando também restrições financeiras.

  • O negócio das esculturas: traz um amigo também…

    O negócio das esculturas: traz um amigo também…

    A homenagem a António Guterres em Vizela, sob a forma de escultura, é apenas mais um dos casos em que a arte pública está conotada ao mundo dos amiguismos ou do marketing pessoal dos artistas plásticos. O PÁGINA UM foi dar uma “vista de olhos” nas esculturas encomendadas desde 2022 por autarquias, universidades e outras entidades públicas. E se a diversidade de preços é grande, quase todas têm uma característica comum: não houve concorrência; paga-se para ver em definitivo, porque os contratos são por ajuste directo. De entre os mais beneficiados está a nova coqueluche da arte urbana: Bordalo II já facturou, nos últimos cinco anos, mais de 650 mil euros em ajustes directos.


    Há de tudo um pouco no mundo da arte pública. Desde obras que orçam nem seis mil euros até valores que se aproximam dos 200 mil euros, mas todos com um ponto em comum: ajustes directos, o que, em termos práticos, significa que o adjudicante escolheu literalmente a dedo quem, com as mãos, lhe haveria de fazer esculturas.

    Num momento em que ecoam críticas à beleza e ao custo da escultura de António Guterres em Vizela – encomendada pela autarquia por 89.980 euros para homenagear o primeiro-ministro que elevou aquela vila a sede de concelho, em 1998 –, este caso revela apenas os meandros do pequeno mundo da arte escultórica em Portugal, onde mais do que o aprumo no cinzel ou as noções estéticas do escultor jogam mais as suas ligações ou o marketing pessoal.

    Estátua de António Guterres custou quase 90 mil euros.

    Com efeito, de acordo com uma análise do PÁGINA UM, de entre os 49 contratos relacionados com esculturas registados no Portal Base desde Janeiro de 2022, apenas um foi por concurso público, aberto pelo município do Porto e ganho por Gelimar da Silva Trillo, que teve de “derrotar” cinco concorrentes. O valor, porém, é dos mais baixos que se detectam. No total, os 48 contratos por ajuste directo desde 2022 totalizam mais de 1,3 milhões de euros.

    No topo da lista de contratos por ajuste directo está uma escultura em homenagem ao cavaleiro Joaquim Bastinhas, falecido em 2018, que a autarquia de Elvas encomendou ao escultor espanhol José Antonio Navarro Arteaga, conhecido em Portugal por ser o autor do busto de 60 quilogramas de bronze de Cristiano Ronaldo que se encontra no museu do Real Madrid.

    Para a escultura do toureiro português, a Câmara de Elvas, presidido pelo “dinossauro” Rondão Almeida, nem pestanejou em pagar 177 mil euros em Julho do ano passado, sendo, por agora, conhecida uma réplica em pequeno tamanho.

    Escultor espanhol que fez busto de Cristiano Ronaldo para o museu do Real Madrid recebeu 177 mil euros da autarquia de Elvas para homenagear o cavaleiro Joaquim Bastinhas.

    O segundo maior contrato por ajuste directo desde 2022 foi estabelecido pela Fundação Marques da Silva, ligada à Universidade do Porto. Por duas peças escultóricas, a encomenda foi entregue directamente ao arquitecto Álvaro Siza Vieira por 175 mil euros, em Abril do ano passado. A ausência de concurso público ter-se-á devido ao facto de um dos mais famosos arquitectos portugueses ser já o autor do edifício do novo centro de documentação desta instituição.

    Já a Câmara Municipal de Trofa fez o terceiro contrato mais elevado, decidindo, também por ajuste directo, comprar uma escultura e dois conjuntos de desenhos do artista plástico Alberto Carneiro, já falecido, em 2017.

    O contrato, neste caso, beneficiou uma galeria de arte lisboeta (Galeria 3 + 1), que detinha estas obras de arte, tendo a aquisição uma justificação até bastante plausível: Alberto Carneiro, cuja obra premiada está exposta em vários importantes museus, nascera em 1937 naquele concelho, mais precisamente em São Mamede do Coronado.

    Uma parte substancial das esculturas são de preço abaixo dos 10 mil euros (20 contratos), havendo apenas seis acima dos 50 mil.

    Neste segundo grupo conta-se a a escultura promovida por Miguel Guimarães, ex-bastonário da Ordem dos Médicos, que gastou 57 mil euros para que Rogério Abreu fizesse duas cabeças de metal oco mascaradas a glorificar os “heróis da pandemia”. Por ajuste directo, claro.

    Quem, de entre os vivos, também não se pode queixar da concorrência é o escultor Bordalo II, transformado nos últimos anos na nova coqueluche das artes plásticas. Através da sua empresa Mundofrenético, Artur Bordalo arrecadou dois contratos por ajuste directo nas últimas cinco semanas: no dia 15 deste mês a Lipor – a empresa de gestão de lixos do Grande Porto – pagou-lhe 18.860 euros por uma escultura, e o Instituto Superior Técnico encomendou-lhe também uma escultura por 57.500 euros, em 20 de Fevereiro.

    Estas duas esculturas vão juntar-se a mais 23 contratos por ajuste directo que Bordalo II já conseguiu de entidades públicas, tendo facturado, em apenas cinco anos, um total de 652.329 euros. Em todo o caso, Bordalo II nunca facturou mais do que 72 mil euros por uma peça – valor que fica assim aquém da escultura de António Guterres em Vizela.

    Sendo as autarquias um dos principais clientes destes artistas, não surpreende assim que se estabeleçam laços que vão além da arte. Um desses exemplos ocorre no município de Loulé, onde a Origami, pertencente ao artista plástico Filipe Feijão, conseguiu três ajustes directos para a execução de esculturas no valor total de 48 mil euros.

    A Origami foi responsável pelos corsos dos Carnavais daquele concelho algarvio entre 1999 e 2014. Esta empresa – que tem sede nas Caldas da Rainha – tem, aliás, no município de Loulé um extraordinário cliente, sempre por ajustes directos: desde 2017 soma 11 contratos por ajuste directo no valor total de 201.750 euros.

    A influência dos artistas na arte de obtenção de contratos por ajuste directo tem, de facto, em muitas situações, um padrão regional. Será, por exemplo, o caso de Francisco Lucena – que, desde 2020, conseguiu três contratos com autarquias.

    Na verdade, Lucena é um especialista em conseguir contratos para o mais variado tipo de esculturas públicas contratadas por ajuste directo por autarcas. No seu portefólio contam-se 26 contratos para esculturas urbanas, pagas por autarquias, quase todas do interior norte e centro, das quais apenas em dois casos teve consulta prévia.

    Aos 36 anos, Bordalo II acumula cada vez mais contratos por ajuste directo: em cinco anos foram já mais de 650 mil euros facturados.

    Este escultor tem alguns clientes habituais, o que é bem representativo da cultura destes negócios: dos 18 municípios a quem já entregou arte pública, há quatro repetentes: Vila Pouca de Aguiar (quatro contratos), Trancoso e Sernancelhe (três, cada) Vila Pouca de Aguiar (dois). Francisco Lucena amealhou, desde 2010, um total de 700.819 euros apenas de câmaras municipais.

    Apesar destas ligações promíscuas, que impedem a livre concorrência e estímulo criativo para novos artistas, o silêncio é a alma do negócio. De uma forma aberta, não há, na verdade, quem critique abertamente a forma como os contratos por ajuste directo se executam ao longo do país para obras desta natureza.

  • “As crianças querem fugir. Mas não têm para onde ir”

    “As crianças querem fugir. Mas não têm para onde ir”

    Leia em exclusivo em Portugal, esta reportagem do premiado jornalista de guerra Boštjan Videmšek, também publicada esta semana no Boston Globe e no jornal esloveno DELO.

    Antes da invasão pela Rússia, a Ucrânia já era o país da Europa com o maior número de crianças institucionalizadas. Mais de 100.000 crianças viviam em orfanatos. A guerra veio piorar ainda mais a situação. Boštjan Videmšek deslocou-se à Ucrânia para relatar a situação que se vive nos orfanatos. Encontrou instituições sem meios, escassos recursos humanos e crianças sedentas de afecto, num país devastado pela guerra que dura há um ano. Nesta reportagem, o jornalista esloveno, que cobriu todos os grandes conflitos e guerras desde 1998 e se tem dedicado ao tema dos refugiados e do ambiente, mostra as dificuldades e os desafios que enfrentam os orfanatos num país dilacerado.


    Quando Halyna Bondaruk, líder da instituição de caridade Small Wins, entrou no orfanato na periferia sul de Lviv, um grupo de crianças correu imediatamente na sua direção. As crianças agarraram-se a Halyna como enfeites a uma árvore de Natal.

    O pequeno orfanato abriga actualmente 30 crianças, que foram evacuadas das regiões mais ameaçadas da Ucrânia. Nem todas estavam sem pais, uma particularidade do sistema de orfanatos estatal ucraniano. Antes do início da guerra, este sistema oferecia abrigo a 105 mil crianças, aproximadamente 1% da população infantil da Ucrânia – a maior taxa de institucionalização na Europa.

    Antes da invasão russa, uma média de 250 novas crianças entravam no sistema diariamente. De acordo com a UNICEF, cerca de metade de todas as crianças nos orfanatos da Ucrânia antes da guerra eram deficientes.

    Nem todos eram órfãos “clássicos”. Os chamados “órfãos sociais” também estavam massivamente representados. De acordo com a lei ucraniana, as crianças podem ser retiradas de pais com dependências crónicas ou antecedentes criminais, ou de pais cujos filhos não recebem educação adequada. A principal razão para as crianças serem enviadas para lá era a pobreza.

    Em 2021, a Ucrânia tinha cerca de 750 orfanatos, empregando 68 mil pessoas.

    Após o início da guerra, o sistema de orfanatos do país foi lançado no caos. Algumas das instituições enfrentaram uma grave escassez de pessoal. Dezenas de orfanatos das regiões leste e sul foram realocados em áreas mais seguras. Muitas crianças ficaram presas nos territórios ocupados pela Rússia. Segundo a UNICEF, o exército invasor deportou cerca de 26 mil crianças ucranianas para o território russo ou para a Crimeia ocupada.

    Diana, uma menina de 10 anos, foi evacuada do leste da Ucrânia. Junto com seus dois irmãos mais novos, foi levada para Lviv, onde o trio acabou separado. Sem os irmãos, Diana não consegue parar de chorar. A sua mãe alcoólatra não prestava os devidos cuidados a nenhum dos seus três filhos, e o pai simplesmente desapareceu. Mesmo assim, Diana ainda espera que a sua mãe possa um dia aparecer para a reivindicar.

    “Essas crianças são as que mais sofrem, dada a forma como estão a construir falsas esperanças”, disse Andrii Mudrak, 24 anos, psicólogo que trabalha com crianças traumatizadas em Lviv.

    “A chave é ajudar a acalmar e estabilizar as crianças novas que ficam sob a nossa custódia”, explicou Mudrak. “A maior parte chega aqui em mau estado. Na maioria, chegam traumatizadas. Para uma criança, cada mudança pode ser uma grande tragédia. De vez em quando, uma das crianças escapa. Mas o problema é que estas crianças não têm para onde fugir!”

    Mudrak foi trazido para o orfanato de Lviv, severamente subdotado de pessoal e subfinanciado, com a ajuda de uma instituição de caridade local. “A maior parte do meu tempo é gasto a lidar com as consequências causadas por abusos e/ ou perdas profundas”, relatou o futuro psicoterapeuta. “Todas estas crianças precisam desesperadamente de amor e atenção.”

    Num dos quartos do orfanato, Andrii Mudrak e as crianças que acompanha viam um filme. No dormitório, um grupo de meninas disputava agressivamente a atenção dos visitantes. Um menino estava a perseguir um cão velho malhado pelo corredor. As paredes das salas sufocantes estavam cobertas de rabiscos e desenhos. Assim como em outros lugares da Ucrânia, o orfanato foi muito afectado, em termos de electricidade e de aquecimento, dados os constantes ataques russos à infraestrutura energética.

    “Em 1991, após a dissolução da União Soviética, a Ucrânia tinha um milhão de crianças a viver nas ruas. A maioria deles tinha sido abandonada pelos pais alcoólicos e desempregados. As crianças tiveram de recorrer à mendicidade. Alguns viviam nos sistemas de esgotos. As autoridades decidiram abrir várias centenas de instituições como a nossa”, diz Helena Malenchuk, vice-diretora do Abrigo para Crianças de Lviv.

    Malenchuk continuou, explicando como, no último ano, as condições nos orfanatos ucranianos se deterioraram gravemente. Parte do motivo deveu-se ao facto de, no segundo dia da guerra, as autoridades terem optado por suspender todas as adopções.

    “Não havia outra escolha. Era a única forma realista de limitar as manipulações possíveis e proteger as crianças. Hoje em dia, muito mais crianças são colocadas em lares adoptivos”, explicou Halyna Bodnaruk, que lidera a instituição de caridade Small Wins.

    Há 37 anos que Miroslava Lipitska gere um internato para crianças com necessidades especiais no centro de Lviv. A escola, NRC Oberig, também funciona como um orfanato – ainda mais durante o ano passado, quando a situação forçou as autoridades a misturar ainda mais as crianças deficientes com os órfãos. Dada a escassez crónica de pessoal, os cuidados recebidos pelas crianças estão a tornar-se cada vez menos frequentes.

    “Estamos a fazer tudo o que podemos. Estamos realmente a lutar por estas crianças. Precisamos perceber que aqui, na instituição, estamos a ter uma vida muito mais fácil do que as pessoas nos campos de batalha”, comentou Lipitska no antigo palácio aristocrático, agora cedendo lentamente sobre si mesmo.

    Actualmente, 113 crianças estão alojadas no orfanato escolar, que parece um portal para os tempos do império austro-húngaro. Alguns dos residentes são permanentes, alguns estão apenas temporariamente aqui. Muitos deles vieram das regiões de Donetsk e Lugansk. Os voluntários estão a ir buscá-los às ruas e à estação ferroviária local. Algumas das crianças tinham perdido o pai para a linha da frente sem nunca terem conhecido as mães.

    Entre os últimos a chegarem estavam Max, da cidade ocupada de Melitopol, e um menino sombrio com uniforme militar, vindo da cidade de Pokrovskyi, na região de Donetsk, localizada bem ao lado da linha de frente. No dia da nossa visita, Lviv estava sob alarme aéreo constante. O menino sombrio desceu, correndo as escadas para garantir de que estava seguro.

    “Quero ir para casa”, exclamou Karina, de 18 anos, enquanto fazia os trabalhos de Matemática. Em Março passado, foi evacuada da cidade de Enerhodar, na região de Zaporizhzhia, localizada nas imediações da maior central nuclear da Europa. Após meses de intensos combates, a cidade é agora controlada pelas forças russas.

    Karina sofre de várias deficiências. Logo depois de nascer, a sua mãe alcoólatra deixou-a no orfanato. No entanto, a doce menina logo se acostumou à sua nova situação. De vez em quando, ela até era visitada por parentes. Tinha o seu próprio pequeno mundo. Mas, praticamente da noite para o dia, a guerra até isso lhe tirou.

    Agora, está visivelmente a sofrer no orfanato de Lviv. A adolescente abandonada tem muitas saudades do seu antigo orfanato. Os seus cuidadores disseram-nos que ela estava o tempo todo a ligar para os seus parentes, pedindo que a viessem buscar.

    Mas, neste momento, as suas esperanças têm precisamente zero de probabilidade de se tornarem uma realidade…

    N.D. Caso deseje ajudar os órfãos na Ucrânia, pode fazê-lo efectuando o seu donativo para a organização Small Wins Charity Foundation.

  • Vacinas contra a covid-19: Doses para o “lixo” valem 120 milhões de euros

    Vacinas contra a covid-19: Doses para o “lixo” valem 120 milhões de euros

    Ao longo de 2021 e 2022, os portugueses mostravam, orgulhosos, os comprovativos das vacinas contra a covid-19, cuja eficácia afinal se perdia em poucos meses. À suposta necessidade de “reforçar” a imunidade vacinal, os portugueses estão agora cada vez mais desconfiados, e a adesão aos boosters estão em queda livre. Mas o Governo português, tal como em outros países, tratou de comprar sem olhar a custos. Resultado: um país que ainda tem um milhão de cidadãos sem médico de família vai em breve contabilizar 8 milhões de doses destas vacinas deitadas literalmente ao lixo. O custo desta falta de gestão de dinheiros públicos em benefício da indústria farmacêutica: 120 milhões de euros. Para já…


    O silêncio absoluto do Ministério da Saúde sobre as alternativas a dar a um stock de 8 milhões de doses de vacinas contra a covid-19 só encontra eco no vazio dos centros de vacinação em sistema de Casa Aberta, que nas últimas semanas – passe a analogia literária – terão tido mais moscas que gente.

    De acordo com o mais recente relatório da resposta sazonal em saúde, da Direcção-Geral da Saúde (DGS), apenas hoje divulgado, na semana 7 deste ano – entre 13 e 19 de Fevereiro – apenas foram administradas 11.861 doses, um ritmo de administração de menos de 1.700 doses por dia. Metade destas terão sido dadas a pessoas com idade entre os 18 e os 50 anos, grupo para quem o reforço sazonal é recomendado a pessoas vulneráveis.

    Porém, depois de dois anos de comunicação intensiva sobre os alegados benefícios dos reforços (boosters), a DGS passou a ter uma posição ambígua para a população saudável com menos de 50 anos: não recomenda nem desaconselha. E mais: nem revela – em “cooperação” com o Infarmed – os efeitos adversos dos reforços. O resultado desta situação tem sido desinteresse quase absoluto no reforço vacinal.

    Embora a DGS não revele os números exactos das doses de reforço administradas, desde que a modalidade Casa Aberta foi disponibilizada para o grupo etário entre os 18 e os 50 anos – um universo de um pouco mais de 4 milhões de portugueses –, terão sido vacinadas menos de 40 mil pessoas desta faixa em mais de um mês. Ou seja, cerca de 1% do total.

    A fraca procura da vacina contra a covid-19 colocará, assim, uma questão bastante relevante, e que se tem verificado em outros países europeus. Por exemplo, ainda este mês a Suécia anunciou que teria de descartar 8,5 milhões de doses por perda de validade. No Verão do ano passado, a Suíça revelou a perda de 10,3 milhões de doses.

    Evolução da administração de doses de vacinas contra a covid-19 por semana por grupo etário. A linha negra representa o número acumulado desde a semana 35 do ano de 2022. Fonte: DGS.

    No caso português é previsível que estejam a perder a validade cerca de 5 milhões de doses. Portugal terá comprado cerca de 45 milhões de vacinas, e em Outubro passado o Ministério da Saúde revelou ao PÁGINA UM que tinham sido doadas 7,8 milhões de doses, sobretudo aos PALOP, e revendidas 2,6 milhões de doses. Tendo em conta que foram já administradas cerca de 26,5 milhões de doses desde finais de 2021 e outras 3 milhões foram já entretanto inutilizadas até ao final de 2022, haverá assim um pouco mais 5 milhões de doses que podem estar em risco de serem inutilizadas por falta de uso.

    Considerando que o preço médio unitário das vacinas ronda os 15 euros, a perda económica total, para as 8 milhões de doses, ascenderá aos 120 milhões de euros. Mas Portugal pode ainda ser “chamado” a entregar mais dinheiro às farmacêuticas, sobretudo à Pfizer, caso se tenha de concretizar solidariamente o acordo estabelecido pela Comissão von der Leyen. Pelas estimativas do PÁGINA UM, o Governo português poderá ter de comprar cerca de 500 milhões de euros em doses de vacinas para a covid-19, independentemente da adesão para novos reforços nos próximos anos.

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    O PÁGINA UM pediu informações ao Ministério da Saúde para confirmar a quantidade de doses que perderão a validade dos próximos três meses e qual a perda potencial, tendo enviado mensagens a três dos assessores de imprensa de Manuel Pizarro, a saber: Pedro César, Romana Santos e Marta Reis. O e-mail foi remetido para os três assessores no dia 20 deste mês, ou seja, há uma semana. Não houve qualquer reacção.

    Recorde-se que o PÁGINA UM tem em curso uma intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa para obrigar Manuel Pizarro a revelar todos os contratos e entregas de vacinas contra a covid-19, bem como as comunicações entre o Ministério da Saúde e as farmacêuticas que as vendem. Após a interposição deste processo, o Ministério da Saúde chegou mesmo a “apagar” quatro contratos que estavam já no Portal Base desde meados de 2021.

  • Presidente da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista decidiu aumentar taxas, mas recusa dizer quanto ganha em cargo público

    Presidente da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista decidiu aumentar taxas, mas recusa dizer quanto ganha em cargo público

    Em casa de ferreiro, espeto de pau. A Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) recusa ceder documentos administrativos aos próprios jornalistas sobre o seu funcionamento, mesmo se esta entidade é pública. Em causa estão as decisões tomadas desde 2020 pelo órgão regulador e de acreditação de uma profissão que está em polvorosa, com um abaixo-assinado de 1.400 jornalistas, por causa da subida da taxa obrigatória para o exercício da profissão. Num pedido do PÁGINA UM, pretende-se saber a remuneração da presidente da CCPJ, Licínia Girão, que assumiu o cargo em Maio do ano passado. como “jurista de mérito”, mesmo se foi incapaz de concluir o estágio de advocacia, que iniciara em finais de 2020.


    A Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) recusa o acesso às actas do plenário daquele órgão regulador, bem como aos documentos que comprovem as remunerações dos seus membros, numa altura em que se avolumam as críticas contra a entidade reguladora da classe. Este mês, a CCPJ aumentou os emolumentos para o exercício da actividade jornalística, levando à criação de um abaixo-assinado de cerca de 1.400 jornalistas.

    A entidade presidida por Licínia Girão – uma jornalista freelancer cooptada por oito jornalistas que integram o Plenário da CCPJ por ser considerada uma “jurista de mérito”, apesar de nem sequer ter conseguido concluir o estágio de advocacia – decidiu subir os encargos pela aquisição e renovação bianual da carteira profissional, subindo os emolumentos de 66,5 euros para os 76 euros.

    Comissão da Carteira Profissional de Jornalista tem sede no Palácio Foz, na Praça dos Restauradores, em Lisboa.

    A CCPJ – um organismo independente de direito público para a acreditação e disciplina dos jornalistas, embora sem qualquer semelhança com uma Ordem – alegou que os emolumentos são “a única base fundamental do [seu] orçamento (…) para efetuar a sua missão legal, nomeadamente o processamento e a emissão física dos próprios títulos, pagar os salários aos cinco colaboradores que asseguram o serviço diário da Comissão e as despesas inerentes à manutenção deste organismo”.

    Nesse comunicado, o Secretariado da CCPJ – composto por Licínia Girão e Jacinto Godinho, que é jornalista da RTP e professor na Universidade Nova de Lisboa – acrescentou ainda que “a receita anual proveniente dos valores pagos a título de emolumentos pelos jornalistas e equiparados, não são suficientes para a total autonomia financeira da Comissão”.

    Contudo, nem o Orçamento nem o plano de actividades nem tão-pouco os encargos dos funcionários e também dos diversos membros da CCPJ são divulgados no site da entidade nem são revelados, quando pedidos pelos próprios jornalistas.

    Licínia Girão é, desde Maio do ano passado, presidente da CCPJ por ser considerada “jurista de mérito”, mas quando assumiu cargo estava a desenvolver estágio de advocacia, que foi incapaz de concluir, e “chumbou” ainda no acesso ao curso de magistrados do Centro de Estudos Judiciários. Da sua actividade jornalística actual sabe-se pouco: consta apenas na “Ficha Técnica” do jornal Sinal Aberto, surgindo identificada na “Redação” ao lado de pessoas que não possuem carteira profissional, o que não é permitido por lei.

    Em 6 de Fevereiro passado, o PÁGINA UM, no âmbito de outros pedidos, requereu a Licínia Girão “o acesso a presencial de todas as actas do Plenário da CCPJ desde 2020” e ainda “o acesso presencial ao documento administrativo original onde constem os pagamentos a qualquer título, mensal ou por presença, a cada um dos membros da CCPJ desde 2020 até à data”.

    Desde Maio do ano passado, a CCPJ é presidida por Licínia Girão, uma jornalista freelancer que vive em Coimbra, não lhe sendo conhecida qualquer ocupação além do cargo no órgão regulador. No seu perfil do LinkedIn, a sua experiência como “Jurista” e “Jornalista Jurista” estão dadas como encerradas em Junho de 2022, sendo assim sensato pensar que estará a ser remunerada como funcionária da CCPJ, o que seria aceitável mas inédito nesta entidade.

    Em resposta ao legítimo requerimento do PÁGINA UM – formalmente apresentado ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos por assim obrigar a uma resposta no prazo máximo de 10 dias –, o Secretariado da CCPJ invocou uma norma da LADA para prorrogar uma resposta por dois meses, mas ainda avisando que desse adiamento “não resulta qualquer assunção expressa ou tácita de que é devido o acesso requerido”. Ou seja, daqui a dois meses, a resposta pode ser não.

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    Além de ser uma justificação bizarra – e ainda mais sendo feita por jornalistas que ocupam cargos públicos perante um pedido de acesso a informação por um colega de profissão –, o Secretariado da CCPJ nem sequer fundamenta, como exige a legislação, a necessidade de um prazo tão alargado para disponibilizar actas e documentos tão simples.

    De facto, a norma alegada pela CCPJ somente é usada, por uma questão lógica de espírito da lei, depois de assumido o direito de acesso, quando é necessário despender muito tempo para agregar os documentos requeridos.

    Ora, a disponibilização de actas e de um documento sobre remunerações dos membros da CCPJ – que devem estar devidamente arquivadas – não aparenta ser tarefa hercúlea que necessite de 60 dias, até porque Licínia Girão foi considerada, pelo seus pares, que a cooptaram, uma “jurista de mérito”.

    Além de Licínia Girão, compõem o Plenário da CCPJ os jornalistas Jacinto Godinho (CP 772), Anabela Natário (CP 326), Miguel Alexandre Ganhão (CP 1552), Isabel Magalhães (CP 1024), Cláudia Maia (CP 2578), Paulo Ribeiro (CP 1027), Luís Mendonça (CP 1407) e Pedro Pinheiro (CP1440).

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    Anteontem, três dos membros da CCPJ foram ouvidos na comissão parlamentar de Cultura sobre o modelo de financiamento e os indispensáveis ajustes dos diplomas que regulam a atividade jornalística. Nessa audição, citado pelo ECO, Jacinto Godinho terá dito que “o trabalho jornalístico mexe directamente com liberdades, direitos e garantias de todos”.

    E, de facto, a recusa da CCPJ em disponibilizar ao PÁGINA UM o acesso à informação (e a documentos) é, efectivamente, algo que mexe indubitável e directamente com liberdades, direitos e garantias.


    N.D. Além dos dois pedidos destacados nesta notícia, o PÁGINA UM solicitou outros dois pedidos de acesso a documentação já solicitados à CCPJ, e recusados. Essa recusa fez com que o PÁGINA UM apresentasse uma intimação no Tribunal Administrativo, mas teve de se voltar à estaca zero (novo pedido formal) por um lapso nos prazos. Com esta postura da CCPJ, o PÁGINA UM não vê outra alternativa que não seja a intimação judicial, o que se lamenta, porque não é aceitável esta postura obscurantista numa “casa de jornalistas”. O ponto 3 do Código Deontológico dos Jornalistas diz o seguinte: “O jornalista deve lutar contra as restrições no acesso às fontes de informação e as tentativas de limitar a liberdade de expressão e o direito de informar. É obrigação do jornalista divulgar as ofensas a estes direitos” – e por isso mesmo aqui o fazemos. Saliente-se, por fim, que não assinei, nem como jornalista nem como director do PÁGINA UM, o abaixo-assinado referido na notícia.

  • A prodigiosa vida e os estupendos milagres do verdadeiro Pai Natal

    A prodigiosa vida e os estupendos milagres do verdadeiro Pai Natal

    O verdadeiro Pai Natal não nasceu na Lapónia, mas sim na Anatólia, actual Turquia. Tendo vivido nos séculos III e IV, o arcebispo de Myra de seu nome Nicolau andou por terrenos e tempos atribulados, ao longo do antigo Império Romano, que só com o imperador Constantino se tornaria cristão. A sua fama de benemérito inspirou em 1823 um professor norte-americano a “criar” o Pai Natal, que viria depois a ser aproveitado pela Coca Cola para uma campanha de marketing. Mais fantasiosa ainda é, contudo, a sua hagiografia – isto é, a sua vida em livro – escrita por um padre português do século XVIII, João Antunes Monteiro, prior da alfacinha freguesia de São Nicolau e influente conselheiro do rei D. João V. Nem contada nem lida se acredita.


    Na véspera de Natal de 1822, o norte-americano Clement Moore, professor de grego contou aos seus filhos, através de um poema, a história de um certo Nicolau, por sinal santo homem da Igreja Católica do século IV, que viajava num trenó puxado por renas, desde o pólo Norte, e distribuía brinquedos pelas crianças, enfiando-se pelas chaminés.

    A fábula pegaria bem de estaca nas décadas seguintes, alimentando-se também de aspectos do folclore alemão e holandês, que então celebravam a data da morte de São Nicolau – dia 6 de Dezembro – com a oferta de prendas.

    Daí até se encontrar uma figura para o mais famoso e aguardado velhinho foi um pulo. Na segunda metade do século XIX, vários cartoonistas criariam uma iconografia, sempre em evolução: primeiro a preto e branco, mais tarde, já na terceira década do século XX – através de uma campanha de marketing da Coca Cola – com as suas inconfundíveis roupas vermelhas e brancas.

    As primeiras versões do Santa Claus – a alteração fonética da fusão do alemão Sankt Niklaus e do holandês Sinterklaas – até foram pouco politicamente correctas: o velhinho, mais do que bonacheirão – na verdade, a barriga era descomunal –, promovia o tabagismo.

    Os primeiros cartoons – desenhados por T. C. Boyd, F. O. Darley e, sobretudo, pelo anticlerical Thomas Nast – apresentavam-no quase invariavelmente com um fumegante cachimbo nos beiços.

    A Igreja Católica, claro, não apreciou muito. E se, porventura, os autores da brincadeira tivessem vivido um século antes teriam tido problemas. Parodiar um santo do quilate de Nicolau de Myra seria então inadmissível; heresia, no mínimo, com direito, eventualmente, ao crepitar de lenha.

     Ilustração de Thomas Nast de 1881 do Pai Natal

    Se São Nicolau parece ter sido, de facto, um bom filantropo, as suas vidas – a terrena e a celestial – mostram que foi homem que, embora piedoso, não andou por aqui em grandes brincadeiras. O próprio diabo que o diga, que supostamente sofreu amarguras diversas sempre que com ele se cruzou. Pelo menos é o que mostram os biógrafos deste santo, em escritos fantásticos disseminados ao longo dos séculos. Uma dessas biografias – que bebeu inspiração a vários sermões seculares – até é bem portuguesa; publicada em 1720, pelo então prior da paróquia lisboeta de São Nicolau, João Antunes Monteiro.

    Este padre foi, curiosamente, uma figura preponderante na Corte lusitana da primeira metade do século XVIII. Era para o rei D. João V, aquilo que porventura Vítor Melícias foi para o antigo primeiro-ministro António Guterres.

    Ou seja, o prior da alfacinha paróquia de São Nicolau – no centro da Baixa, que foi freguesia até 2013, estando agora integrada na de Santa Maria Maior – era um dos conselheiros predilecto do Magnânimo, não apenas espiritual, mas também em negócios de Estado. Por exemplo, chegou a desempenhar funções de gestão em algumas fases da construção do Aqueduto das Águas Livres. A sua influência no Terreiro do Paço foi tanta que não admira que a dita biografia do nosso Pai Natal – pomposamente intitulada Breve compêndio da prodigiosa vida e estupendos milagres do glorioso Arcebispo de Myra S. Nicolao Taumaturgo, advogado universal de todos os peccadores – tivesse sido oferecida à Virgem Maria pela soberana, augusta e excelsa mão do magnânimo, generoso, esclarecido e sempre memorável monarca D. João V Nosso Senhor”, conforme consta no frontispício. Portanto, estamos perante uma obra escrita para ser levada a sério. Na verdade, muito a sério – naquela época, claro.

    A linguagem usada pelo padre João Antunes Monteiro na biografia de São Nicolau torna-se deliciosa – alguns poderão dizer delirante – pela forma como descreve, em minuciosos e mirabolantes detalhes, a vida daquele santo. Embora não existam quaisquer documentos, as biografias apontam para o ano de 270 depois de Cristo, na antiga cidade marítima de Patara, uma região de Lycia, na actual Turquia. Na Anatólia, portanto – um tanto afastado da comercial aldeia do Pai Natal, na Lapónia.

    E por falar em Jesus Cristo, saiba-se que as hagiografias dizem que São Nicolau teve um nascimento, supostamente a 15 de Março, com contornos semelhantes. Com efeito, remetendo para a biografia do padre João Antunes Monteiro, os pais do santo – Epifânio e Joana – “sendo casados em muita paz, concórdia e santos costumes” desejavam um filho. E tantas instâncias fizeram que a Virgem Maria “apresentou no Consistório da Santíssima Trindade” aqueles desejos paternais, pelo que, pouco tempo depois, “lhe enviou o Senhor do Céu um anjo que os certificou (…) que brevemente haviam de ter um filho muito mais santo e com muito mais préstimo para o serviço de Deus do que tinham desejado”. E assinalou-lhes ainda o dia e hora da chegada.

    A Coca Cola “apropriou-se” do Pai Natal na década de 20 do século XX, dando-lhe o “formato” que hoje conhecemos.

    O recém-nascido parece ter dado sinais de evidente santidade logo que viu a luz do dia. Estava a parteira para o lavar e “ele se pôs de pé com muita notável firmeza (…), com os olhos postos no Céu e as mãos erguidas e postas sobre os peitos”. São Vicente Ferrer – um clérigo do século XIV, actual patrono da Comunidade de Valência – diria que aquele prematuro acto era de agradecimento a Deus por “o ter feito criatura racional à sua imagem e semelhança e porque o tinha livrado dos perigos que poderia ter dentro do cárcere do ventre de sua mãe”.

    Foi por este prodígio que São Nicolau se tornou também, em muitos países, o santo protector dos partos difíceis. Depois disto, o facto de ele, por “mais meiguices que sua mãe lhe fazia para tomar o peito”, ter jejuado, com precisão, às quartas e sextas-feiras, já não pode causar muita admiração ao mais cépticos…

    O seu primeiro grande milagre estava, porém, reservado para a idade escolar, antes de completar os sete anos, segundo a biografia setecentista. Como os pais eram ricos, costumava ele levar dinheiro para distribuir pelos pobres antes de entrar na sala de aulas. Consta que, em certo dia, uma pobre aleijada chegou atrasada, devido à deformidade, e lastimou-se da sorte. Pois bem, o pequeno Nicolau condoeu-se e “levantando o coração a Deus”, fez o sinal da cruz sobre a cabeça da rapariga e disse: “Em nome do Senhor Jesus Nazareno, levanta-te e anda”. O resultado, claro, foi imediato!

    Mas foi em artes da ressurreição que Nicolau de Myra deu cartas, de acordo com os seus biógrafos. E aqui bateu mesmo Jesus Cristo, que apenas fez Lázaro regressar à vida. O primeiro lote de ressuscitados ocorreu ainda na sua adolescência, durante uma peste na região de Lycia. O padre João Antunes Monteiro diz mesmo que “Deus o conservava para ressuscitar mortos” ou coloca como hipótese que “temeu a morte ter encontros com quem a podia consumir e sepultar”.

    Mesmo assim, não teve dotes para salvar os progenitores, embora o prior lusitano informe que a Virgem Maria “lhe limpava as lágrimas e o consolava, mostrando-lhe no Céu as almas dos seus pais entre os coros dos Bem-Aventurados.

    Herdada a fortuna dos pais, Nicolau pôde então dar largas à sua costela filantrópica, que está na base da fábula do Pai Natal. O seu lusitano biógrafo destaca sobretudo a história de um velho viúvo com três filhas donzelas, a quem o demónio tentava, a expô-las ao perigo de perder a castidade” – que é, como quem diz, a prostituí-las.

    Biografia do padre João Antunes Monteiro, publicada em 1720, prior da freguesia de São Nicolau, então pertencente a Lisboa Ocidental.

    Assim, certa noite, Nicolau decidiu deitar anonimamente, pela janela da casa do velho, uma bolsa de ouro suficiente para pagar o dote da primeira filha. Na segunda noite, repetiu a dose, para outra filha. E o mesmo sucedeu na terceira, para a última.

    No entanto, desta vez, o velho fez uma espera e surpreendeu o benemérito, pelo que Nicolau fez-lhe prometer que não divulgaria a sua acção. A manutenção do segredo custou alguns dissabores ao velho, porque o seu tão repentino enriquecimento causou murmuração entre a vizinhança. Como é normal, estes “mais depressa se inclinaram a julgar mal do que bem”, pelo que, para salvar a honra do velho, Nicolau de Myra se viu na contingência de se denunciar como o obsequiador.

    A sua entrada num mosteiro, em data desconhecia, teve como consequência um aumento dos seus milagres, que se sucederam em catadupa, quase sempre tendo o demónio por inimigo. Os seus sucessivos exorcismos até levam mesmo o diabo, certa vez, a lamentar-se: “Ai que Nicolau me vence em tudo e não me deixa executar meus intentos”, assim relata o padre João Antunes Monteiro.

    E como o dito belzebu já não conseguia endemoninhar ninguém, decidiu, noutra ocasião, incendiar uma cidade, mas Nicolau interveio mais uma vez, pelo que o fogo se extinguiu sem deixar lesão alguma nos edifícios. À conta disto, Nicolau também se tornou o padroeiro contra os incêndios urbanos.

    Pouco tempo depois, faria ele uma viagem até à Terra Santa, seguindo os passos de Cristo, tendo os anjos como cicerones, segundo o seu biógrafo. E pelo caminho foi curando enfermos, cegos, surdos, paralíticos e um ou outro endemoninhado. Regressado ao seu mosteiro, teve tempo ainda para multiplicar um pão para dar de comer a 70 operários que estavam construindo uma igreja. E como estes, mesmo de barriga cheia, não conseguiram mover uma grande coluna, Nicolau benzeu a gigantesca pedra e, com a ajuda de apenas dois clérigos, colocou-a no sítio exacto.

    Pouco depois de ter sido nomeado arcebispo de Myra – cargo para o qual tinha recebido três premonições, a última das quais envolvendo Cristo –, houve de obrar mais uma fantástica ressurreição. Dois estudantes de Atenas, em peregrinação, acabaram na salgadeira de um estalajadeiro, cortados em postas. Nicolau, sendo avisado pelo Espírito Santo, obrigou o estalajadeiro a mostrar-lhe os despojos e, juntando-os, ressuscitou os jovens.

    Situação similar terá ocorrido anos mais tarde, numa viagem até Roma. Neste caso, Nicolau descobriu a malvadez de outro estalajadeiro que lhe apresentou um prato de carne retirada de três mancebos, em vez do atum que lhe pedira. Nesta mirabolante viagem, conforme a descrição do padre João Antunes Monteiro, até os animais beneficiaram das suas artes.

    Passagem da biografia onde se destaca a acção de oferta “furtiva” de São Nicolau de Myra.

    Numa noite, perto de Bari, mais outro estalajadeiro foi tentado pelo demónio e, porque o arcebispo de Myra e o seu companheiro fizeram parca despesa, cortou as cabeças dos burros que os transportavam. Na manhã seguinte, ainda um pouco antes da aurora, perante aquele espectáculo, Nicolau mandou coser as cabeças aos respectivos corpos dos burros – ressuscitaram, claro. Com um pequeno percalço nesta operação sem luz, quase às cegas: os burros ficaram com as cabeças trocadas. Ou seja, o burro que era branco ficou com a cabeça do burro que era preto; e ao preto, claro, restou-lhe a cabeça do branco.

    Ainda antes destas aventuras, Nicolau chegou a ser perseguido, preso e mais tarde deportado, durante a época de Lícinio, que liderou o Império Bizantino entre os anos de 313 e 324, quando então foi derrotado por Constantino, o Grande, que concedeu liberdade religiosa aos cristãos. A partir daí tudo se alterou para Nicolau de Myra; mandou arrasar templos pagãos – em especial os dedicados a Diana –, substituindo-os por igrejas. No meio deste processo, a biografia do nosso prior lisboeta diz que os demónios se lamentavam e berravam pelos ares, “testemunhando que iam vencidos pela virtude de Nicolau”.

    Na biografia escrita pelo padre João Antunes Monteiro existem mais uns quantos prodígios obrados por Nicolau de Myra até à sua morte aos 65 anos, supostamente no dia 6 de Dezembro – aliás, a data em que o calendário litúrgico e alguns países o evocam. A causa é desconhecida, mas não terá sido mártir.

    Cripta na igreja de Bari, onde estão depositadas as ossadas de São Nicolau.

    Se a vida lhe cessou, os milagres não. Daí que a segunda metade do livro do padre João Antunes Monteiro, a partir da página 113, seja ocupada a detalhar a infindável quantidade de curas milagrosas e mais ressurreições, por via do maná que saía ininterruptamente do seu corpo, enterrado na zona de Myra.

    Na verdade, eram dois, os manás: um que lhe brotava da cabeça, com a consistência de óleo; outro que lhe escorria dos pés, com aspecto aquoso. Na lista de supostos beneficiados pelos poderes desse santo maná, conforme o relato do seu lusitano biógrafo, constam mesmo duas portuguesas, que no início do século XVIII sofriam de supostas febres malignas.

    Mas, nessa altura, as ossadas de Nicolau já há muito se encontravam em Bari, na Itália. Em 1087, umas dezenas de marinheiros e clérigos conseguiram, no meio de algumas peripécias, roubar as relíquias do santo da sua sepultura original em Myra, região entretanto perdida em 1071 pelo cristão Império Bizantino, no decurso da batalha de Manzikert, para o islâmico Império Seljúcida.

    toddler in black sweater standing in front of Santa Claus

    A chegada desta comitiva com as santas ossadas a terras italianas foi celebrada ao som de sinos, tambores e clarins. Mas essa alegria acabou em tragédia: como o bispo de Bari e os aventureiros não se entenderam quanto ao local para depositar as ossadas, entraram em vias de facto. E daí a pouco “houve pendência, e nela mortes e feridos”.

    O nosso biógrafo lusitano do Pai Natal não esclarece se, após esta estapafúrdia batalha campal, houve ressurreições por intercessão de São Nicolau. Apenas informa que as ossadas acabaram transladadas pelo papa Urbano II para a actual Igreja de São Nicolau. Depois, a biografia é rematada com uma novena. Amen


    N.D. Uma primícia versão deste artigo foi publicada no final de Dezembro de 2006 na extinta revista GR-Grande Reportagem.