De boas intenções está o inferno cheio. E também com alegadas boas intenções se criam oligopólios ilegais. A Comunidade Intermunicipal das Beiras e Serra da Estrela (CIM-BSE) achou por bem que poderia montar um sistema de transportes públicos em zonas mais periféricas, bastando distribuir ajustes directos por empresas da região. Só nos últimos dois meses foram assinados oito contratos convenientemente distribuídos por empresas da região, um dos quais de quase quatro milhões de euros. A fundamentação para tantos ajustes directos remete para uma norma que não é sequer aplicável, ou seja, é falsa. A CIM-BSE é uma estrutura criada por 15 autarquias dos distritos da Guarda e Castelo Brranco, sendo presidida pelo social-democrata Luís Tadeu, presidente da Câmara de Gouveia, que, no ano passado, foi condenado por prevaricação a três anos e meio de prisão, com pena suspensa.
A Comunidade Intermunicipal das Beiras e Serra da Estrela (CIM-BSE) celebrou desde Setembro oito contratos de contratação de transporte rodoviário de passageiros no valor total de mais de 9 milhões de euros (IVA incluído), através de estranhos ajustes directos, em vez de lançar concurso público global ou por lotes. Se se considerar o período de 2024, o número de ajustes directos sobe para 18, envolvendo mais de 11,3 milhões de euros, e beneficiando apenas sete empresas da região, que compartilham o ‘bolo’ num evidente oligopólio. A entidade pública, liderada pelo social-democrata Luís Tadeu, simultaneamente presidente da Câmara Municipal de Gouveia, nem sequer se deu ao trabalho de esclarecer ou comentar o PÁGINA UM sobre estes avultados contratos de ‘mão-beijada’ que colidem com os princípios mais básicos da contratação pública e da transparência e boa gestão dos dinheiros públicos.
Recorde-se que, em Abril do ano passado, Luís Tadeu foi condenado pelo crimes de prevaricação a pena de prisão de três anos e meio, suspensa sob condição do pagamento de 25 mil euros, por causa de parcerias público-privadas com a e empresa MRG. Na altura dos factos, Tadeu era vice-presidente da autarquia então liderada por Álvaro Amaro, também condenado na mesma pena. No processo foram também condenadas outras pessoas, entre as quais Júlio Sarmento, antigo presidente da Câmara de Trancoso, que apanhou uma pena efectiva de sete anos por prevaricação de titular de cargo político, corrupção passiva e branqueamento de capitais. Este histórico militante social-democrata foi ainda sentenciado a devolver ao Estado 552 mil euros.
Luís Tadeu, presidente da Câmara Municipal de Gouveia e da Comunidade Intermunicipal das Beiras e Serra da Estrela. Foto: DR.
Pessoa colectiva de direito público de natureza associativa, a CIM-BSE agrega as 15 autarquias dos distritos da Guarda e Castelo Brranco (Almeida, Belmonte, Celorico da Beira, Covilhã, Figueira de Castelo Rodrigo, Fornos de Algodres, Fundão, Guarda, Gouveia, Manteigas, Mêda, Pinhel, Sabugal, Seia e Trancoso), e como tem vindo a suceder na última década têm assumido, mesmo com a regionalização a marcar passo, protagonismo político, com investimentos quase sempre financiados com dinheiros comunitários. Desde 2017, a CIM-BSE já estabeleceu 225 contratos no valor de quase 17,7 milhões de euros, mas no presente ano os gastos têm aumentando consideravelmente.
De acordo com um levantamento no PÁGINA UM, desde Janeiro foram assinados 47 contratos para diversas aquisições de bens e serviços, com os compromissos financeiros a atingirem, sem IVA incluído, quase 10,2 milhões de euros. Globalmente, de entre os 17,7 milhões de euros ‘despachados’ desde 2014, mais de 12,5 milhões de euros (69% do total) foram entregues em 157 ajustes directos. Por concurso público somente foram celebrados 55 contratos envolvendo pouco mais de 2,7 milhões de euros (15% do total).
Desde Setembro, a ‘rotativa’ tem aumentado. Os oito contratos de ‘mão-beijada’ assinados nos últimos dois meses, no âmbito de um projecto de mobilidade entre povoações dos concelhos do CIM-BSE (MobiFlex.BSE), têm a particularidade de incluir três com valores acima de um milhão de euros, que dificilmente terão enquadramento para a escolha ser feita de forma arbitrária e com ajuste directo.
O maior contrato foi assinado com a Transdev Interior, uma empresa de Castro Daire que recentemente incorporou a Caima. Sem pestanejar, a CIM-BSE entregou-lhe um contrato por ajuste directo de 3.213.596,18 euros, sem IVA, incluído. Com esse imposto, aproxima-se dos quatro milhões de euros. No Portal Base surge uma ligação às peças do procedimento, mas o sistema dá erro: ou seja, a ligação é falsa, não se ficando assim, a conhecer o caderno de encargos nem sequer o serviço a executar durante os 12 meses da prestação de serviço. A fundamentação indicada para a escolha pelo ajuste directo também é falsa: refere-se o artigo 11º do Código dos Contratos Públicos, que diz respeito a pormenores sobre o acto público. Mas não é o único contrato este ano.
A Transdev Interior foi a mais beneficiada por uma distribuição suspeita de ajustes directos por empresas da região.
A empresa ‘sacou’ mais dois contratos com o mesmo expediente: o primeiro em Abril, por serviços de 30 dias por quase 260 mil euros; o segundo no mês seguinte, com duração de dois meses, pelo qual arrecadou 410 mil euros. Com IVA, a transportadora já facturou este ano à CIM-BSE quase 4,8 milhões de euros em contratos de ‘mão-beijada’.
A fundamentação errada para a opção por ajustes directos num mercado fortemente concorrencial é extensiva aos restantes contratos. O segundo ajuste directo mais chorudo ficou noutra empresa da região: a Auto Transportes do Fundão. São quase 1,5 milhões de euros por serviços de transporte que não se percebe quais serão, porque as peças do procedimento também não estão disponíveis. A este contrato podem também adicionar-se mais três ajustes directos celebrados este ano: em Junho passado foram dois, que totalizaram cerca de 375 mil euros, e em Setembro ‘caiu’ mais outro por quase 159 mil euros. Em todos os casos a fundamentação para os ajustes directos é falsa.
Num dos contratos de Junho existe um caderno de encargos disponível no Portal Base, ficando-se a saber os percursos de transporte previamente definidos. Cada quilómetro percorrido teve um custo para a CIM-BSE de 2,74 euros por quilómetro, um valor consideravelmente elevado.
A empresa Marques Lda., com sede em Viseu, foi outra das ‘felizes contempladas’ com um ajuste directo milionário: o contrato estipula a entrega de cerca de 1,2 milhões de euros, sem se conseguir saber a tipologia dos serviços a prestar. Também neste caso, não há caderno de encargos disponível. Em Junho, esta empresa já conseguira outro ajuste directo no valor de 222 mil euros.
Em menor valor, a Empresa Berrelhas de Camionagem – originalmente de Penalva do Castelo, mas que mudou a sede para Viseu em 2022 – teve ‘direito’ a um ajuste directo de um pouco mais de 601 mil euros agora em finais de Setembro, mas contentara-se com 75 mil euros de outro ajuste directo em Junho por serviços de três meses.
Sem regionalização, autarcas encontraram nas comunidades intermunicipais um expediente para distribuir contratos públicos por ajuste directo.
Além destas quatro empresas, a empresa Viúva Monteiro & Irmão, com sede no concelho do Sabugal, não tem motivos para ‘chorar’, porque também teve direito a dois ajustes directos: em Setembro, no valor de 396 mil euros, e em Junho, no valor de 103 mil euros. Com menores direitos a ‘comer do bolo público’, sem o incómodo da livre concorrência e transparência, encontram-se ainda mais duas empresas no sector dos transportes, também da região: a Lopes & Filhos, com sede em Figueira de Castelo Rodrigo – com dois contratos no valor total de 194 mil euros – e a União do Sátão & Aguiar da Beira, com sede no Sátão, que ficou com dois contratos de apenas 160 mil euros.
Saliente-se que o ajuste directo, uma medida que permite a contratação sem concurso público, destina-se geralmente a casos excepcionais, como situações de emergência ou quando o fornecimento dos serviços envolve pequenos montantes ou existem direitos especiais. No entanto, no sector de transportes, a concorrência é forte, e existem empresas que poderiam estar interessadas em exercer essa actividade em novos mercados a preços mais competitivos e benéficos para os clientes.
Estes novos contratos de transporte estarão associados ao programa de transporte flexível MobiFlex.BSE, promovido pela CIM-BSE. Este programa, que visa proporcionar uma solução de mobilidade ajustada às necessidades das populações mais isoladas, começou a ser implementado em Seia e no Fundão. Criado para complementar o transporte público regular, o MobiFlex.BSE é uma solução de transporte flexível que permite aos cidadãos marcar viagens com antecedência, operando em dias específicos e ligando localidades mais periféricas aos centros de concelho.
Exemplo de um dos serviços de transporte pagos por ajuste directo pela Comunidade Intermunicipal das Beiras e Serra da Estrela.
No concelho de Seia, por exemplo, o programa integra circuitos experimentais, como Sabugueiro – Seia e Vide-Cabeça-Loriga, que se destinam a colmatar a falta de transporte regular e garantir mobilidade inclusiva. O serviço é assegurado por táxis, e o sistema de reservas é feito através de uma linha telefónica gratuita, com os preços dos bilhetes variando entre os 3,65 e os 1,65 euros, numa tabela tarifária semelhante à do transporte público convencional.
O PÁGINA UM enviou um conjunto de questões à presidência da CIM-BSE, mas Luís Tadeu nem sequer respondeu. Em todo o caso, a acta de uma reunião desta entidade, no passado dia 10 de Setembro, revela um ‘truque’ usado para justificar os chorudos ajustes directos: a CIM-BSE estará a manifestar avanços para vir a lançar um concurso público internacional para estes serviços de transporte – tendo sido aprovadas as peças do procedimento –, mas logo no ponto seguinte foi votado um parecer de Agosto no sentido de ser não se avançar por um concurso público por lotes. E, em seguida, de imediato, passou-se então a análise, discussão e votação para se avançar para os ajustes directos milionários. Tudo aprovado por unanimidade.
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Portugal continua, no século XXI e meio século depois do 25 de Abril, a ser um país ainda dividido por desigualdades económicas e sociais, com regiões privilegiadas e outras mais ‘esquecidas’. Os mais recentes dados do Instituto Nacional de Estatística revela que há 13 concelhos onde mais de um quinto das habitações não tem ainda acesso a água canalizada da rede pública. Cerca de metade destes concelhos estão no Alentejo, sendo que os restantes se localizam sobretudo na região Norte, embora haja um na região Centro e outro no Algarve. Os municípios de Cinfães e Marco de Canaveses são os casos mais deploráveis, com quase metade das habitações sem ligação a sistemas públicos de água, constituindo assim um elevado risco de saúde pública.
Ter água sempre disponível a sair da torneira, com quantidade e controlo de qualidade assegurados, é serviço que ainda está longe de ser uma realidade em todas as casas do país. E a estatística nacional esconde as profundas assimetrias e desequilíbrios ainda vigentes em Portugal. Os dados revelados esta semana pelo Instituto Nacional de Estatística, relativos ao ano de 2022, até mostram um país de ‘primeiro mundo’, onde somente três em cada 100 alojamentos não têm serviço público de abastecimento de água.
Porém, como a ‘estória’ da falácia estatística que defende que duas pessoas comeram metade de um frango quando, na verdade, só uma o comeu inteiro, no caso do abastecimento de água Portugal Continental está excelente mas ‘esconde’ 13 munícipios com mais de uma em cada 10 alojamentos sem abastecimento de água de rede pública. Cinfães, no distrito de Viseu é o pior concelho: quase metade (47%) das casas não têm água canalizada, seguido de perto por Marco de Canaveses, no distrito do Porto, onde 46% dos lares têm de ir buscar água a furos privados ou mesmo à fonte, com risco para a saúde pública.
De acordo com os mais recentes dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), divulgados esta semana e respeitante ao ano de 2022, estes municípios, sendo os piores, estão longe de ser casos únicos. No Alentejo encontram-se seis dos municípios com mais de um quinto das casas sem abastecimento de água. Três dos municípios situam-se no distrito de Beja: Odemira; Alvito; e Almodôvar. Outros dois municípios pertencem ao distrito de Portalegre: Marvão; e Arronches. O sexto é Montemor-o-Novo, no distrito de Évora.
Na região do Norte contabilizam-se cinco concelhos no top dos piores: Cinfães, no distrito de Viseu; Marco de Canaveses, no Porto; Freixo de Espada à Cinta, em Bragança; Vale de Cambra, no distrito de Aveiro; e Vila Verde, em Braga. Os restantes situam-se na região Centro – São Pedro do Sul, distrito de Viseu – e no Algarve – Monchique, no distrito de Faro.
De resto, dos 308 concelhos do país, apenas 135 têm a totalidade das casas com abastecimento de água da rede, sendo que o INE não dispõe de dados relativamente à região Autónoma dos Açores nem aos concelhos de Mirandela, Crato e Idanha-a-Nova. Cerca de uma centena tem menos de 5% das habitações ainda sem água canalizada, incluindo a Região Autónoma da Madeira, que tem 99,9% das habitações com abastecimento da rede.
Concelhos com a maior percentagem de alojamentos sem acesso a abastecimento público de água em 2022. Fonte. INE.
Não é por isso de estranhar que a penetração da cobertura dos sistemas de distribuição de água se reflicta também nos dados anuais de água distribuída pelos municípios ou empresas, que tem reflexo directo no consumo per capita. Segundo indicadores do INE, por também ser o município com menos casas com água canalizada, Cinfães também é o concelho com o menor volume de água distribuída por habitante. Também no top dos 10 concelhos com menor volume de água distribuída está Marco de Canaveses, que surge no sexto lugar com menor consumo.
No lado oposto, o concelho que mais água distribui por habitante é Albufeira, que até está no grupo de municípios com uma elevada cobertura de abastecimento de água pela rede público (95%). Porém, o elevado volume anual per capita distribuído – 199,5 metros cúbicos em 2022, o que representa quase 550 litros por dia para cada pessoa – advém de uma ‘inflação’ decorrente do turismo, uma vez que os residentes pontuais não entram na contabilidade para o cálculo unitário. Este volume é, aliás, o triplo do valor médio registado pelo INE para todo o país: 64,6 metros cúbicos, representando 177 litros por habitante.
Não surpreende assim que, embora em alguns casos haja ‘responsabilidades’ nas perdas de água nos sistemas de abastecimento, a generalidade dos municípios com maior volume de água distribuída sejam de zonas de grande actividade turística, designadamente na região do Algarve, no Porto Santo (Madeira), em Lisboa e em Grândola.
Concelhos com mais e menor volume de água distribuída (m3/habitante por ano). Fonte: INE
De notar ainda que também na quantidade de água distribuída por habitante há uma diferença grande em termos regionais. Os concelhos com menor volume de água por habitante são sobretudo da região Norte, enquanto os que somam mais consumo de água da rede são destinos preferidos em termos turísticos, designadamente os que ficam localizados mais a Sul, além da própria capital. A excepção é Mangualde, no distrito de Viseu, que registou 122,4 metros cúbicos de água distribuída por habitante.
Numa altura em que crescem as pressões em Portugal e outros países contra a pressão turística e o seu impacto no dia-a-dia das cidades, o que é certo é que as que mais turistas atraem melhor cobertura de abastecimento de água têm, o que pode ser visto também como uma questão de progresso e bem-estar das populações. O acesso a água canalizada através de sistemas públicos é visto como um indicador de progresso, além de uma das necessidades mais básicas para garantir a saúde e o bem-estar das populações, uma vez que é, teoricamente, um garante de fornecimento estável e de qualidade da água consumida.
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A lei prevê compensação para as distribuidoras de electricidade por cada factura que enviem aos seus clientes com a cobrança da contribuição para o audiovisual com o objectivo de financiar o serviço público da RTP. Nos últimos 15 anos, as distribuidoras de electricidade, sobretudo a EDP, arrecadaram 40,3 milhões de euros apenas por incluírem nas facturas dos clientes aquela cobrança. Empresas de electricidade só não ganharam mais com a medida porque no tempo da ‘troika’ o valor que estão autorizadas a ‘reter’ em cada factura de cliente caiu para metade. Ainda assim, só em 2023, as eléctricas puseram no bolso mais de 2,2 milhões de euros. Na prática, 1,18% da contribuição para o audiovisual não chegou à RTP porque ficou nas mãos das distribuidoras de electricidade. Ainda assim, no global, já entraram nos cofres da empresa pública de televisão 2,44 mil milhões de euros provenientes das contas da luz, desde 2009.
Uma fatia da contribuição para o audiovisual nunca chega à RTP. Isto porque as distribuidoras de electricidade retêm um ‘taxa’ como compensação por terem de incluir nas facturas dos seus clientes a cobrança daquele apoio que visa financiar a empresa pública de televisão. Nos últimos 15 anos, um total de 40,3 milhões de euros ficaram ‘retidos’ nos cofres das empresas de electricidade, segundo a análise do PÁGINA UM aos relatórios e contas da RTP.
A EDP, a maior empresa do sector, com mais de 4,7 milhões de clientes em Portugal, tem sido a que mais tem ‘amealhado’ com a medida prevista numa lei de 2003, que aprovou o modelo de financiamento do serviço público de radiodifusão e de televisão. Segundo este diploma, “as empresas distribuidoras de electricidade serão compensadas pelos encargos de liquidação da contribuição através da retenção de um valor fixo por factura cobrada”.
Em 2023, as eléctricas viram entrar em ‘caixa’ um total de 2.243.170 euros apenas por terem cobrado aos clientes a contribuição para o audiovisual, e entregue depois o valor à RTP. Por cada factura em que seja cobrada esta contribuição, as distribuidoras e comercializadoras de energia podem tirar para si o valor de 0,0333 euros.
Segundo a legislação, quem decide quanto podem reter as eléctricas por prestarem este ‘serviço’ é o Governo, por meio de despacho conjunto do Ministro das Finanças, do ministro responsável pela área da comunicação social e do Ministro da Economia. O valor inicial até chegou a ser mais elevado do que actualmente: 0,06 euros por cada factura de cliente, por via de um despacho conjunto de Janeiro de 2004. Posteriormente, em 2011, foi actualizado para 0,0666 euros, uma subida de 11%, mas a crise de dívida e a ‘troika’ levou a que, em 2012, o valor fosse cortado para metade, ficando nos 0,0333 euros. O valor mantém-se desde essa data.
Mas, se para uma empresa lucrativa, como a EDP ou a Galp, esta receita possa parecer ‘peanuts‘, sabe a pipocas, porque é dinheiro ‘limpo’ e garantido em caixa. E é uma excepção ao modelo de cobrança de taxas e impostos. Por exemplo, a Galp não recebe qualquer montante por gerir os fluxos do Imposto sobre os Produtos Petrolíferos (ISP), nem, claro, as empresas e os particulares por serem ‘cobradores’ de IVA. Pelo contrário, se falharem ou se atrasarem no envio desse dinheiros para a ‘máquina estatal’ arriscam pesadas coimas ou mesmo penas por crime de abuso de confiança fiscal.
Receitas das eléctricas com a cobrança da contribuição para o audiovisual: 40,3 milhões desde 2009. Valores em euros. Fonte: RTP
Segundo o levantamento feito pelo PÁGINA UM, através de uma análise aos relatórios e contas da RTP nos últimos 15 anos, entre 2009 e 2012 as empresas de electricidade conseguiram ‘sacar’ mais de quatro milhões de euros por ano à conta da contribuição para o audiovisual. Só com a chegada da crise e o pedido de ajuda financeira externa do país, houve um travão nesta receita fácil, e os valores recuaram para valores próximos dos dois milhões de euros por ano. No ano passado atingiram um pouco mais de 2,2 milhões de euros, o valor mais elevado da última década.
Este crescimento nas receitas advém directamente do aumento do número de consumidores de electricidade no país. Segundo o mais recente boletim da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos, em Portugal Continental estão registados um pouco mais de 6,5 milhões de consumidores do mercado retalhista de eletricidade, entre mercado liberalidade e mercado regulado. O bolo da comissão pela ‘taxa audiovisual’ é distribuído pelos 35 comercializadores a operar no país, mas a EDP mantém-se como a ‘rainha’, uma vez que detém ainda64% de quota de mercado.
No meio de tudo, quem tem perdido são os consumidores que são obrigados a pagar, nas suas facturas da luz, a verba para financiar a RTP, sendo discutível que a empresa presta sempre serviço público, como seria suposto. Por exemplo, a empresa empregou, a peso de ouro, apresentadores para serem estrelas em programas de entretenimento de gosto debatível, além de outros casos de possíveis ‘desperdícios’ de dinheiro dos contribuintes. Por outro lado, em alturas de crise, como foi o caso da pandemia de covid-19, alinhou com a ‘linha’ oficial do Governo, sem questionar algumas das medidas radicais impostas no país com resultados trágicos, os quais são observáveis no excesso de mortalidade recorde registado desde 2021 e no aumento do nível de pobreza no país.
Contribuição para o audiovisual que entrou nos cofres da RTP. Valores em milhões de euros. Fonte: RTP
Ao todo, a RTP encaixou, somando os valores contabilizados nos diversos relatórios e contas, cerca de 2,44 mil milhões de euros nos últimos 15 anos pagos pelos consumidores através das faturas da luz. Dava para construir quase três pontes Vasco da Gama. O ano em que a RTP recebeu menos verba foi em 2010, quando ‘só’ arrecadou 109,6 milhões de euros. O valor mais alto registou-se no ano passado: 190,1 milhões de euros. A empresa explicou, no seu relatório e contas de 2023 que o aumento daquela ‘receita’ em 2,7% face a 2022, é justificado “maioritariamente pelo aumento do número de consumidores de eletricidade” no país.
Apesar de os montantes arrecadados de ‘taxa audiovisual estarem a subir, não significa que a RTP tivesse menos dinheiro do Estado há alguns anos, uma vez que existia a prática de injectar financiamento extraordinário através das denominadas “indemnizações compensatórias”. Por exemplo, em 2010, a indemnização compensatória de 121 milhões de euros chegou a ser superior à ‘taxa audiovisual’ (109,6 milhões de euros). Em 2023 não houve este tipo de ‘compensação’.
A contribuição para o audiovisual tem, actualmente, um valor fixo mensal de 2,85 euros, a que acresce o IVA à taxa de 6%. Ou seja, só em IVA o Governo encaixou no ano passado mais 11,46 milhões de euros. Para clientes que cumprem certos critérios, como estar em situação de desemprego, a contribuição é de 1 euro, mais IVA. Este ‘imposto’ sobre os consumidores de electricidade é cobrado 12 vezes ao ano, a cada mês. Apenas os contratos com consumos menores de 400 kWh por ano estão isentos do pagamento deste ‘imposto’ para financiar a RTP.
Este ‘imposto’ cobrado aos clientes das eléctricas para financiar a RTP continua a ser polémico, sendo considerado anacrónico, por obrigar os consumidores de electricidade a ‘sustentar’ uma empresa da qual podem nem ser ‘clientes’, que não valorizam ou cujo desempenho não apreciam. Certo é que, mesmo sendo considerada uma taxa, por prestação de um serviço, ninguém pode recusar o pagamento.
A lei determina que nenhuma comercializadora de electricidade pode passar factura ou aceitar pagamento de um cliente sem somar aos custos dos consumos de electricidade e demais serviços este ‘imposto RTP’. Assim, o consumidor, se quiser ter luz em casa, tem mesmo de financiar a RTP. E, à boleia, acaba a dar uma ‘gorjeta’ forçada às eléctricas.
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Durante anos, a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) – que detém, directa e indirectamente, 12 rádios locais, dois periódicos, um canal televisivo – tentou que a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) a desobrigasse de revelar os indicadores financeiros de uma actividade religiosa, assente numa mera associação privada do tipo clube, que movimentou 209 milhões de euros entre 2017 e 2022. Nunca conseguiu. Até este ano. Sem sequer qualquer deliberação conhecida, o novo Conselho Regulador da ERC decidiu que, afinal, bastava a IURD divulgar dados parcelares e não validados, passando a esconder as informações financeiras globais. Sustentação legal para esta acção do regulador dos media, presidida por Helena de Sousa, não existe. A ERC diz que a actividade de comunicação da IURD é secundária, o que se mostra bastante questionável, tanto mais que também detém uma ‘holding’ de empresas de rádio, a Global Difusion, que em 2022 tinha dívidas de 58 milhões de euros e estava em falência técnica. E não registou ainda as contas do ano de 2023.
A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), presidida por Helena de Sousa, aceitou este ano que a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) não divulgasse os seus dados financeiros reais de toda a sua actividade, permitindo-lhe, ao arrepio da lei, que inserisse na Plataforma da Transparência dos Media somente algumas informações financeiras não validadas respeitantes às actividades de comunicação social, que incluem dois periódicos e um canal televisivo por cabo (UniFé TV), que entrou em actividade em Agosto de 2022. Essa documentação não está acessível nem sequer é validável, por a IURD se tratar de uma associação privada.
Nos últimos anos, a IURD andou insistentemente a tentar obter a confidencialidade dos dados financeiros, com sucessivos requerimentos, mas o anterior Conselho Regulador, presidido pelo Sebastião Póvoas, recusou por sistema essa pretensão, conforme documentos consultados pelo PÁGINA UM após a intervenção do Tribunal Administrativo de Lisboa, confirmado por um acórdão ‘demolidor’ do Tribunal Central Administrativo de Lisboa. Recorde-se que o PÁGINA UM teve uma ‘luta’ de quase dois anos contra o regulador que se opunha a identificar as entidades que solicitavam confidencialidade na transmissão do reporte financeiro exigido pela Lei da Transparência dos Media.
Domingos Siqueira, o ‘homem forte’ da IURD em Portugal. Foto: DR.
Para tentar não divulgar publicamente qualquer informação, a IURD alegava, segundo os documentos consultados na ERC, “que, por se tratar de uma associação de carácter religioso sem fins lucrativos, as suas contas não se encontra[v]am sujeitas a um dever de publicação” e que desenvolvia uma actividade “que vai muitíssimo além da publicação periódica da qual é detentora, actuando neste prisma de empreender de forma meramente acessória por referência ao seu escopo principal”. E defendia que, deste modo, “a maioria dos dados financeiros inseridos na Plataforma da Transparência não está relacionada com a sua actividade de comunicação social”. Contudo, o sector da comunicação social na IURD, com uma estratégia de compra tem aumentado substancialmente nos últimos anos, detendo directa e indirectamente dois periódicos, um canal televisivo e 12 rádios locais.
De entre essas largas dezenas de entidades que pediam confidencialidade destacava-se a IURD, bem como as empresas de rádios regionais integradas na holding Global Difusion, detida a 100% por esta igreja evangélica de origem brasileira, e ainda a RecordTV. Este canal televisivo integra a holding de Edir Macedo, o fundador e líder da IURD no Brasil.
Em anos anteriores, a ERC recusara sistematicamente essa pretensão de obscuridão por parte da IURD, até porque uma autorização abriria uma caixa de Pandora. Ou seja, qualquer investidor ou fundo poderia passar a deter um ou vários órgãos de comunicação social sem divulgar publicamente a informação, bastando ‘provar’ que a actividade de media era completamente acessória. No limite, os próprios partidos políticos que detêm os seus periódicos oficiais deixariam de ser obrigados a transmitirem dados financeiros no Portal da Transparência dos Media, bem como centenas de outras entidades, entre as quais algumas de carácter religioso ligadas à Igreja Católica, sindicatos, instituições de solidariedade social e diversas empresas privadas, ou até mesmo fundos financeiros.
Desde Agosto de 2022, a IURD fez um forte investimento numa televisão por cabo, com uma programação mista, entre a informação ao estilo da CMTV, com jornalistas profissionais, e programas associados à divulgação do culto da igreja evangélica. A ERC optou por ‘aligeirar’, sem sustentação legal, as obrigações de transparência da IURD.
Até ao ano passado, mesmo se até houve um ano em que os serviços técnicos recomendaram o deferimento dos dados financeiros da IURD, o Conselho Regulador da ERC foi intransigente, indeferindo sempre os pedidos de confidencialidade dos dados financeiros, apenas permitindo a ocultação dos sócios da IURD em Portugal, que é uma associação privada do tipo clube apenas acessível aos ‘bispos’, e que vive dos chorudos donativos dos fiéis. Por esse motivo, através do Portal da Transparência dos Media era possível conhecer tanto os rendimentos, como o activo total, o capital próprio e o passivo da IURD. Consultando essa informação, fica-se a saber que a igreja evangélica conseguiu arrecadar 209 milhões de euros entre 2017 e 2022, passando o activo, que inclui edifícios de culto, para os 184,5 milhões de euros, mais 110 milhões do que em 2017.
Com as novas ‘contas’, alegadamente referentes apenas à componente associada à comunicação social, a IURD inscreveu apenas rendimentos de 1,4 milhões de euros, reportando também prejuízos de 1,38 milhões de euros e capitais próprios negativos de 2,7 milhões de euros. Mas em anos anteriores essa informação discriminada não existirá.
Confrontada com esta situação, o Conselho Regulador da ERC alega que “as entidades proprietárias de órgãos de comunicação social, mas cuja actividade principal não é a comunicação social (como é o caso da IURD) quando inserem as suas informações na Plataforma da Transparência podem optar por inserir os indicadores relativos à atividade global ou apenas os indicadores financeiros relativos à actividade de comunicação social”, acrescentando que “neste enquadramento, até 2022 inclusive, os dados inseridos pela IURD dizem respeito à actividade da igreja como um todo”, mas que, “em 2023, passaram a apresentar os indicadores financeiros para a actividade de comunicação social isoladamente”.
Nos noticiários da UniFé TV existem mesmo debates e comentários, mas o actual Conselho Regulador da ERC passou a tratar a IURD como sendo uma entidade com actividade irrelevante na comunicação social.
A ERC acrescenta ainda que a informação reportada pela IURD “está devidamente documentada”, mas defende que “a prova dos indicadores financeiros não é documentação de domínio público”. Esta é mais uma interpretação abusiva por parte do regulador, uma vez que, estando essa informação em sua posse, em formato analógico ou digital, passa a constituir imediatamente o ‘estatuto’ de documento, acessível ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos. Aliás, o PÁGINA UM já requereu hoje a consulta formal desses documentos.
Mas o acesso á documentação é somente um pormenor, porque, na verdade, a liberalidade do regulador constituiu uma ilegalidade. Com efeito, a ERC até tem o poder arbitrário de conceder confidencialidade às empresas – e somente em condições muitos especiais o fez, como o PÁGINA UM teve oportunidade de conferir em mais de uma centena de processos consultados nas instalações do regulador até ao final da passada semana –, mas não pode alterar as normas da Lei da Transparência dos Media, uma vez que esta é uma incumbência exclusiva da Assembleia da República.
Ora, na lei de 2015 e no regulamento subsequente que estabelece as regras de reporte financeiro, aprovado em 2020, não existe a mínima referência à possibilidade de se indicar apenas a parte alegadamente respeitante a uma suposta componente minoritária associada à comunicação social. Nesse aspecto, os deputados que aprovaram a Lei da Transparência dos Media em 2015 foram taxativos: a lei da transparência aplicava-se às agências noticiosas, às pessoas singulares ou colectivas que editem publicações periódicas (quaisquer que fossem), aos operadores de rádio e de televisão (incluindo emissão por via eletrónica), às “pessoas singulares ou colectivas que disponibilizem ao público, através de redes de comunicações eletrónicas, serviços de programas de rádio ou de televisão, na medida em que lhes caiba decidir sobre a sua seleção e agregação”, bem como às “pessoas singulares ou colectivas que disponibilizem regularmente ao público, através de redes de comunicações eletrónicas, conteúdos submetidos a tratamento editorial e organizados como um todo coerente”.
A única excepção seria para os casos em que não há, por razões de dimensão financeira, contabilidade organizada, algo que jamais se pode aplicar à IURD que movimentou mais de 200 milhões de euros desde 2017.
Certo é que desde que tomou posse no ano passado, o novo Conselho Regulador da ERC, presidido por Helena de Sousa, tem mostrado interesse em ‘escurecer’ a Lei da Transparência dos Media, justificando a intenção com o cenário de crise financeira do sector. Em Julho passado, numa polémica proposta de revisão desta legislação, sob a forma de deliberação, a ERC propôs à Assembleia da República um autêntico repositório de alterações e subtracções das obrigações das empresas de media em termos de identificação dos titulares directos e indirectos dos órgãos de comunicação social, bem como um aligeiramento das penalizações em caso de não indicação (ou lacunas e erros) de indicadores financeiros.
Por outro lado, nessa proposta, a ERC ainda manifestava o desejo de se ocultar o acesso a acordos parassociais – escondendo assim formas de controlo indirecto sem ser sob a forma de quotas ou acções – e também a possibilidade de isenção do cumprimento das normas de transparência sobre os meios de financiamento e o relatório organizacional por parte das “entidades que prossigam actividades de comunicação social a título acessório, em que a actividade de comunicação social tenha comprovadamente um peso diminuto nos rendimentos e um alcance residual ao nível das audiências”.
A ERC nunca determinou, nesta deliberação nem em outros documentos, os critérios para determinar o que é “um peso diminuto nos rendimentos” ou ainda “um alcance residual ao nível das audiências”, mas, conforme o PÁGINA UM alertava há três meses, claramente esta norma, a ser acolhida numa alteração legislativa na Assembleia da República, isentaria os partidos políticos, sindicatos, associações e diversas instituições religiosas, como a IURD, de mostrarem contas, sobretudo por não serem ‘empresas convencionais’ obrigadas a registo e depósito das demonstrações financeiras na Base de Dados das Contas Anuais, gerida pelo Instituto dos Registos e do Notariado (IRN).
O novo Conselho Regulador da ERC continua a tomar decisões arbitrárias que aniquilam a transparência num sector onde cada vez mais impera a desconfiança nos investimentos.
Ou seja, o Conselho Regulador da ERC – a entidade que, muitas vezes, aplica coimas aos órgãos de comunicação social que cometem infracções legais – está a agir, no caso concreto da IURD, completamente à margem da lei, usando de um poder discricionário incompatível com o seu estatuto de entidade somente reguladora. O PÁGINA UM pediu, aliás, que a entidade presidida por Helena de Sousa dissesse que norma (a existir) em concreto, com indicação do artigo da Lei da Transparência dos Media, que sustenta a ‘benesse’ agora concedida à IURD para não revelar os dados financeiros principais de toda a actividade desta associação privada, como sucedeu entre 2017 e 2022. Hoje, ao final do dia, o Conselho Regulador da ERC respondeu ao PÁGINA UM, continuando sem indicar, em concreto, a norma da Lei da Transparência dos Media que poderia dar respaldo legal à benesse concedida à IURD.
O regulador diz que “31% das entidades registadas na Plataforma da Transparência não têm como atividade principal a comunicação social”, e que, desse modo, entende que “o reporte integral dos indicadores financeiros destas empresas [ou entidades] no Portal da Transparência, a par e passo com empresas cuja actividade é apenas a comunicação social, não só é desproporcional, como é comparada com informação que abrange um universo de atuação distinto – o da comunicação social exclusivamente”. E acrescenta ainda que, “ao permitir que empresas de outros sectores de actividade reportem informação financeira, quando o conseguem fazer, em exclusivo relativa à actividade de comunicação social, reforça a comparabilidade da informação e a sua relevância para a prática regulatória e para os objetivos prosseguidos pela Lei da Transparência”.
Mas esta interpretação abre também uma infinidade de problemas de transparência complexos, sobretudo porque, como sucede no caso da IURD, não há uma validação dessa contabilidade analítica. Aliás, a igreja evangélica sabe disso, razão pela qual nem sequer se mostrou interessada em colocar o canal televisivo UniFé na esfera da sua ‘holding’ Global Difusion ou criar uma empresa específica, que a obrigaria a contas mais rigorosas e transparentes.
Evento político coberto pela UniFé TV
O PÁGINA UM colocou também questões à IURD, que respondeu apenas através de Martim Menezes, advogado da sociedade Abreu Advogados, que tem vindo ‘facilitar’ diversos negócios no sector dos media associados à igreja evangélica, incluindo a aquisição de rádios locais, através da ‘holding’ Global Difusion. Aliás, a recente actividade empresarial desta sociedade anónima, detida a 100% pela IURD, é desconhecida, pois ainda não surgiu, como a lei estabelece, o registo da Informação Empresarial Simplificada (IES) relativa a 2023, que incluiu as demonstrações financeiras, na Base de Dados das Contas Públicas.
Mas a situação não era, em 2022, nada positiva. Pelo contrário, era mesmo muito negativa. Em Setembro do ano passado, numa análise às contas da Global Difusion – que detém, por sua vez, seis empresas que gerem 12 rádios locais –, o PÁGINA UM detectou dívidas de 58 milhões de euros e uma situação de falência técnica, com capitais próprios negativos de 20,8 milhões de euros. A existência de uma ‘holding’ de comunicação social detida a 100% pela IURD com dívidas de 58 milhões de euros é, além disso, uma prova de que este sector não é nada irrelevante para esta igreja evangélica.
Certo é que, efectivamente, esta estranha alteração de procedimentos foi mesmo autorizada, mesmo se de forma informal, sem qualquer sustentação por deliberação, mesmo sabendo-se que houve troca de correspondência entre a ERC e a IURD sobre esta matéria. Martim Menezes garantiu ao PÁGINA UM ser “totalmente falso que a situação [financeira] da Instituição [IURD] não seja óptima”, e que “a parte da comunicação social decorre sem problemas, mas é deficitária e cabe à Instituição suprir esse défice”. No entanto, recusou sempre enviar ao PÁGINA UM quaisquer documentos que validem contabilisticamente quer o desempenho financeiro da IURD, no seu conjunto, quer da Global Difusion.
O advogado em causa, Martim Menezes, assegura que a ERC autorizou que a IURD passasse a remeter apenas informação financeira relativa à comunicação social, e insiste que as contas de 2023 da Global Difusion “foram aprovadas e comunicadas à AT [Autoridade Tributária], embora, mais uma vez, o PÁGINA UM confirmou, mais uma vez hoje, que não foram enviadas à Base de Dados das Contas Anuais, o que é um processo extremamente expedito. O advogado da IURD coloca a hipótese de poder haver “algum problema informático dado o recente ataque à AT”. A debilidade nesta argumentação é exactamente o facto de o ataque informático ser muito recente, pois o envio da IES teria de ser feita obrigatoriamente até 31 de Julho passado, ou seja, há três meses.
Em todo o caso, a alternativa seria o envio da IES da Global Difusion ao PÁGINA UM, conforme pedido, mas Martim Menezes respondeu: “Não vejo qualquer interesse em enviar-lhe o documento. Se quer publicar algum dado especifico agradeço que o contradite antecipadamente pois a Igreja é muito vigilante quanto ao seu bom nome”.
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Desde 2018, os contribuintes desembolsaram 36,6 milhões de euros em contratos feitos com a Porto Editora, na maioria por ajuste directo, mas grande parte da verba (30,8 milhões) advem de contratos a partir de 2022. O grupo portuense, que possui conhecidas editoras de manuais escolares, tem beneficiado de muitos contratos por ser o escolhido pelos agrupamentos escolares e escolas do ensino público para fornecer manuais digitais e licenças de acesso a conteúdos. Mas, à boleia, a Porto Editora acaba a vender ‘kits’ de computadores, muitas vezes sem concorrência, porque as escolas decidem, de forma questionável, não separar as aquisições. Em contratos recentes, a Porto Editora cobrou 490 euros por cada portátil. Somando os manuais digitais e software, cada ‘kit’ para alunos rendeu mais de 900 euros. No top 20 dos maiores contratos ganhos pela Porto Editora, a Região Autónoma da Madeira dá um ‘baile’ ao Continente. As escolas madeirenses são responsáveis pelos 16 contratos mais valiosos feitos com a Porto Editora. Na sua maioria, são adjudicações feitas no último ano e meio por ajuste directo.
As licenças de acesso a manuais digitais têm sido o’ cavalo de Tróia’ da Porto Editora para facturar milhões de euros em contratos com as escolas do ensino público, muitas vezes sem concurso. O grupo editorial, que detém a Areal e a Raiz, ganhou já contratos no valor de 36,6 milhões de euros desde 2018, na maioria por ajuste directo, mesmo quando o objecto do negócio foi a venda de ‘kits’ informáticos para os alunos, num sector com ampla concorrência.
As escolas e os professores têm autonomia para escolher os manuais escolares a adoptar a cada ano lectivo, mas no que toca o material informático, o caso muda de figura. Ainda assim, à boleia da compra de manuais digitais e licenças de acesso a conteúdos pedagógicos, há escolas a adjudicar contratos por ajuste directo de milhares de euros sem a devida fundamentação legal.
A Porto Editora tem beneficiado desta prática. Num levantamento feito pelo PÁGINA UM a contratos públicos registados no Portal Base, a Porto Editora é a ‘rainha’ da venda de manuais e licenças digitais, detendo 100% dos contratos. Na mesma análise, constata-se que em diversos contratos, além dos manuais e das licenças digitais, a empresa vende ‘kits’ informáticos para alunos.
Já em Setembro do ano passado, o PÁGINA UM tinha denunciado esta prática, de haver contratos por ajuste directo com a Porto Editora para vender tablets e computadores em ‘packs‘ à boleia dos manuais e licenças digitais. Em contratos recentes, a Porto Editora cobra mais de 900 euros por cada ‘kit’ para alunos do 10º ano, por exemplo, com o custo de cada portátil a sair a quase 500 euros ao Estado.
De resto, este ano, a editora obteve os dois maiores contratos de sempre feitos com o Estado, ambos envolvendo a venda de ‘kits’ e manuais digitais a escolas da Região Autónoma da Madeira. O seu maior contrato de sempre, no valor de e 1.036.411,89 euros, que, acrescido de IVA, eleva a despesa dos contribuintes para 1.264.422,50 euros, foi efectuado a 22 de Julho com a Secretaria Regional de Educação, Ciência e Tecnologia – Escola Secundária Francisco Franco, no Funchal, referente à ‘Aquisição de manuais escolares digitais, bens e serviços conexos, 2024/2025’. Apenas a Porto Editora concorreu a este concurso público anunciado a 7 de Junho e com data-limite para entrega de propostas a 8 de Julho.
Este contrato inclui a venda, pela Porto Editora, de 780 portáteis Chromebook, com bolsa de proteção personalizada, para alunos do 10º ano, disponibilização da ‘Plataforma LMS-Learning Management System com conteúdos e recursos educativos’, licenças ‘para Firewall Cloud (Secure Access Service Edge – SASE)’, licenças de acessos aos ‘Manuais em Formato digital’ e ainda licenças da ‘plataforma MDM-Mobile Device Management, para gestão centralizada dos equipamentos’. Cada ‘kit’ foi vendido ao preço de 907,52 euros, excluindo IVA. Além disso, o contrato abrangeu o fornecimento de licenças digitais a alunos do 11º ano ao preço de 416,64 euros, cada.
Valor (em euros) dos contratos públicos relativos à compra de manuais digitais, licenças de acesso ou ‘kits’ com manuais digitais e computadores ou tablets. A Porto Editora foi a entidade contratada em 100% dos contratos detectados pelo PÁGINA UM. Fonte: Portal Base.
O segundo maior contrato, no valor de 797.852,37 euros, foi efectuado a 19 de Agosto com a Escola Secundária Jaime Moniz, no Funchal. Este contrato engloba, por exemplo, a venda de 600 ‘kits’ no valor de 907,52 euros para os alunos do 10º ano, que inclui um portátil ‘Chromebook com bolsa de protecção’, num valor global de 544.512 euros, sem IVA. No caso dos ‘kits’ para os alunos do 11º ano, a Porto Editora cobra 416,64 euros por cada um, apenas para disponibilizar manuais digitais, software de cibersegurança e a plataforma LMS-Learning Management System. Fazendo as contas, significa que a Porto Editora vendeu, neste contrato, computadores portáteis para alunos ao preço de 490,88 euros sem IVA.
De resto, os 16 maiores contratos da Porto Editora com entidades públicas foram celebrados com escolas da Região Autónoma da Madeira em contratos adjudicados, na sua maioria, no último ano e meio, tendo gerado mais de 8,1 milhões de euros de receita à Porto Editora. Destes contratos, 12 foram feitos por ajuste directo.
Numa análise a várias compras de ‘kits’ informáticos para alunos feitas por escolas públicas, nos últimos meses, e registadas no Portal Base, o PÁGINA UM detectou contratos em que cada ‘kit’ composto por portátil, uma mochila de transporte, um ‘headset‘ e um rato com ligação USB custa em redor dos 410 euros ou 415 euros, incluindo um sistema operativo. Além do custo mais baixo, alguns dos contratos para a aquisição de portáteis para os alunos são feitos através de concurso ou consulta prévia, mas, na sua maioria, têm sido adjudicados por ajuste directo, apesar de existirem diversas empresas a operar no mercado.
Nos contratos registados no Portal Base referentes à aquisição de manuais e licenças digitais, todos feitos com a Porto Editora, verifica-se que o ‘pico’ das compras ocorreu em 2023, quando o valor total da despesa atingiu os 12,4 milhões de euros. Contudo, este ano o valor global dos contratos vai em 10,3 milhões de euros e há ainda procedimentos que não estarão registados no Portal Base.
Além da Porto Editora, outras empresas que surge ligada a compras por ajuste directo relacionadas com a digitalização das escolas e a aquisição de material informático são a Meo e a Altice, que facturaram 460 mil euros com contratos públicos. Estes contratos feitos pelas escolas surgem num contexto de políticas que têm promovido uma maior digitalização do ensino público e a desmaterialização dos manuais escolares em papel.
Recorde-se que, em 2018, a Direcção-Geral das Actidades Económicas e a Associação de Editores e Livreiros assinaram uma convenção relativa à venda de manuais escolares destinados aos ensinos básico e secundário, na qual se previa a distribuição de licenças digitais a todos os alunos do ensino público abrangidos pela medida de gratuitidade dos manuais escolares. Nesse sentido, anualmente, o Estado tem subsidiado ‘vouchers’ que são enviados aos encarregados de educação dos alunos para serem trocados por manuais escolares novos ou usados, os quais vem acompanhados por licenças de acesso a conteúdos digitais das editoras.
Neste caso, são os pais que recebem os ‘subsídios’ e, por isso, não surgem compras de manuais escolares às diferentes editoras no Portal Base. “A relação é entre o Ministério da Educação e os pais, que recebem os ‘vouchers’, pelo que não há uma compra de manuais às editoras por parte de nenhuma escola”, afirmou Pedro Sobral, presidente da Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL), em declarações ao PÁGINA UM.
Pedro Sobral defendeu que, no caso da compra de manuais digitais por parte das escolas, como as que estão registadas no Portal Base, faz sentido que sejam feitas por ajuste directo, já que “são as escolas que escolhem os manuais que pretendem”. Recordou que essas compras surgem inseridas em programas de digitalização das escolas e desmaterialização dos manuais em papel.
Estes programas surgiram no âmbito do ‘Plano de Ação para a Transição Digital’ aprovado pelo Governo socialista em Abril de 2020. Nesse âmbito, desde então que o Ministério da Educação, Ciência e Inovação tem vindo a implementar, por exemplo, um projecto-piloto relativo ao uso de manuais digitais que, no ano lectivo passado, abrangeu 24 mil alunos de 104 agrupamentos escolares e escolas não agrupadas. No total, para o ano lectivo de 2023-2024, foi fixado o tecto de 24,167 milhões de euros que o Governo autorizou a gastar em licenças digitais de manuais.
Página online da ‘Escola Virtual’ do grupo Porto Editora. Foto: Captura de ecrã/PÁGINA UM
Mas a aposta na ‘desmaterialização’ dos livros escolares está em ‘banho-maria’ e tem um futuro incerto. “Felizmente, o anterior Governo decidiu, e bem, suspender esse plano”, disse Pedro Sobral, frisando que existem muitos estudos científicos que revelam a importância que o uso de livros em papel tem para o adequado desenvolvimento das crianças, nomeadamente nas suas capacidades de leitura, escrita e compreensão de textos.
“Na APEL, pugnamos por uma complementariedade de formatos”, juntando o manual em papel com conteúdos digitais, frisou Pedro Sobral. “Não somos contra a digitalização, pelo contrário. Pensamos que é complementar”, salientou.
Também o actual Governo já indicou que a estratégia de apostar numa maior digitalização dos manuais escolares está sob análise. Isto acontece numa altura em que persistem as dúvidas sobre os benefícios do uso exclusivo de livros digitais pelos alunos e também os ‘efeitos adversos’ que surgem com a excessiva exposição de crianças e jovens a ecrãs. Ao mesmo tempo, aumenta a pressão por parte de movimentos como o ‘Menos Ecrãs, Mais Vida‘, para travar o projecto dos manuais digitais nas escolas públicas.
Seja como for, o negócio dos manuais digitais já rendeu milhões à Porto Editora e, até ordem contrária, as escolas irão continuar a comprar licenças se quiserem que os alunos continuem a poder usar os computadores comprados em ‘kit’ junto com os manuais digitais.
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O Grupo Impresa respirou de alívio quando, em 2018, vendeu o seu deficitário portefólio de revistas, que incluía a Visão e a Exame, ao antigo jornalista Luís Delgado. Seis anos depois, a Trust in News, que tem um capital social de apenas 10 mil euros detido integralmente por Delgado, soma já 32 milhões de euros em dívidas, dos quais mais de 17 milhões ao Estado. Algumas destas dívidas fiscais e à Segurança Social, apesar da ‘protecção política’ durante o Governo Costa, acabaram por ir parar aos tribunais. Esta semana, o Tribunal da Relação de Lisboa confirmou uma pena de prisão de dois anos e um mês a Luís Delgado e aos outros dois gerentes da Trust in News, por uma dívida ao Fisco de 828 mil euros contraída em 2018. A pena foi suspensa por cinco anos sob a condição de ser saldada a dívida. Mas o calote nunca parou de aumentar e a dívida de 2018 representa agora apenas 5% daquilo que Luís Delgado deve ao Estado. Nos próximos dias, o Governo Montenegro votará, no âmbito do Processo Especial de Revitalização (PER), se vai continuar a confiar em Luís Delgado, e no seu ‘histórico’, ou se exigirá o seu afastamento preferindo que se avance para a insolvência. Nessas circunstâncias, Delgado arrisca ficar atrás das grades por abuso de confiança fiscal.
O Tribunal da Relação de Lisboa confirmou esta quarta-feira as penas de prisão de dois anos e um mês aos gerentes da Trust in News – empresa proprietária das revistas Visão e Exame, entres outros periódicos em papel comprados em 2018 ao Grupo Impresa – por um crime de abuso de confiança fiscal agravado. Esta condenação segue-se à sentença já decretada em Junho pelo Tribunal Judicial de Oeiras num processo instaurado em 2021 pelo Ministério Público por dívidas fiscais no valor de cerca de 828 mil euros. Essa dívida dizia respeito à parte da dívida à Autoridade Tributária e Aduaneira acumulada em 2018, ou seja, apenas no primeiro ano de actividade do grupo de media de Luís Delgado. Este ex-jornalista é um dos três gerentes da Trust in News, sendo os outros dois, também condenados, Filipe Passadouro e Cláudia Serra Campos.
A sentença do Tribunal de Oeiras terá também espoletado a abertura do Processo Especial de Revitalização (PER) da Trust in News, uma estratégia desesperada para suspender o trânsito em julgado deste e de outros processos por dívidas. Isto porque a dívida fiscal no primeiro ano de existência da empresa unipessoal de Luís Delgado (ou seja, ele é o único sócio com um investimento de 10 mil euros) constitui agora uma ‘gota de água’ num ‘oceano de dívidas’ de todo o género, incluindo tanto a Autoridade Tributária e Aduaneira como a Segurança Social.
Luís Delgado, à esquerda, cumprimentando Francisco Pedro Balsemão, CEO da Impresa, aquando da compra das revistas em 2018. Foto: DR.
Com efeito, o PÁGINA UM apurou que, para além deste processo de 2021, a Trust in News – e o seu sócio único, Luís Delgado, e dois outros dois gerentes – enfrentam mais casos na Justiça. No total, as dívidas ao Estado superam já os 17,1 milhões de euros num total de créditos reconhecidos de quase 33 milhões. As dívidas à Autoridade Tributária e Aduaneira, de acordo com o PER, já totalizam 8.125.545,20 euros, sendo que estão ainda em falta pagamentos de contribuições à Segurança Social no montante de 8.979.252,35 euros.
A decisão do Tribunal da Relação de Lisboa será, em princípio, o ‘ponto de partida’ para Luís Delgado e os demais gerentes da Trust in News acabarem mesmo presos, uma vez que, conforme destaca o desembargador Alfredo Costa, na síntese do acórdão desta quarta-feira, “a pena de 2 anos e 1 mês de prisão, suspensa por 5 anos […] foi condicionada ao pagamento da dívida, de acordo com a prática comum em crimes fiscais, equilibrando a sanção penal com a recuperação do montante devido”. O acórdão foi também votado também pelas desembargadoras Ana Guerreiro da Silva e Maria Elisa Marques.
Em sua defesa, a Trust in News terá argumentado que a dívida apurada em 2018 era inferior ao valor de 828.364,59, mas o acórdão concluiu que o Tribunal de Oeiras decidiu bem sobre a moldura penal, uma vez que o crime de abuso de confiança fiscal agravado se aplica “quando o montante em dívida excede os 50.000 euros”. Ora, como o montante devido “ultrapassava largamente este valor”, o acórdão conclui que se justificava “a agravação automática, sem necessidade de outros elementos subjectivos”.
Revista Visão, o principal activo da Trust in News (Foto: PÁGINA UM)
Se esta condenação se aplicou com uma dívida fiscal de cerca de 828 mil euros, imagine-se então com a dívida fiscal agora acumulada de 8,1 milhões de euros (quase 10 vezes superior), a que acresce as dívidas à Segurança Social de mais de 8,9 milhões de euros. No início de Setembro, o Ministério do Trabalho, Solidariedade e da Segurança Social confirmou ao PÁGINA UM que, de entre os vários inquéritos instruídos na Justiça “contra entidades empregadoras que não entregaram à Segurança Social as quotizações obrigatórias dos salários dos seus trabalhadores”, está também “incluído um processo contra a empresa em apreço, Trust in News”.
Saliente-se que o Regime Geral das Infracções Tributárias determina que “quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7.500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias”. Contudo, “nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a (euro) 50.000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas”.
No caso da Segurança Social, a falta de pagamento das contribuições dos trabalhadores é considerada abuso de confiança, sendo aplicadas as mesmas penas previstas para os casos de infracções tributárias de maior gravidade, incluindo prisão e multa.
Recorde-se que Luís Delgado, através da sua empresa unipessoal, a Trust in News, adquiriu o portfólio de revistas da Impresa em Janeiro de 2018 por 10,2 milhões de euros. O negócio rapidamente se revelou ruinoso e as dívidas começaram cedo a avolumar-se. Actualmente, rondam os 30 milhões de euros, sendo o Estado o maior credor. No entanto, as dívidas incluem também empresas de comunicação e o próprio proprietário das redacções das revistas no Taguspark, bem como trabalhadores e ex-trabalhadores. Neste lote, está Mafalda Anjos, a directora que ‘abandonou o barco’ e que em Julho do ano passado apelidou de “fantasiosas” as notícias do PÁGINA UM sobre a situação financeira da Trust in News. A actual comentadora da CNN Portugal reivindica agora 54 mil euros que não lhe foram pagos por Luís Delgado no acordo de rescisão.
Tribunal da Relação de Lisboa. Foto: DR.
Após o pedido de acesso ao PER junto do Tribunal de Sintra, para evitar a falência, a empresa de media está sob gestão de um administrador judicial, estando o plano já apresentado para ser votado ainda este mês. Inexplicavelmente, apesar das dívidas ao Estado se terem acumulado desde o primeiro dia, bem como ao Novo Banco, que financiou a compra das revistas, e à própria Impresa, a Trust in News continuou a sua actividade com o beneplácito do Governo de António Costa. Durante largos meses no ano passado, o PÁGINA UM pediu esclarecimentos ao então ministro das Finanças, Fernando Medina, que nunca explicou as razões para uma empresa de media com um capital social de apenas 10 mil euros continuar a sua actividade apesar das dívidas fiscais de milhões de euros.
Aliás, apesar de estar sempre a acumular dívidas ao Estado, estranhamente a empresa de Luís Delgado nunca integrou a lista de devedores e continuou a beneficiar de contratos comerciais e publicidade junto de entidades públicas. Não se sabe quem autorizou a acumulação sucessiva de dívidas ao Fisco e à Segurança Social, mas terá eventualmente existido autorização superior, da tutela, para atingir os 17,1 milhões de euros.
Também se desconhece se este eventual ‘favor’ político foi concedido mediante a negociação de contrapartidas. Mas é certo que durante todo este período, desde que começou a dever ao Estado, a Trust in News e os seus títulos de media ficaram com ‘uma espada sobre a cabeça’.
Joaquim Miranda Sarmento e Rosário Palma Ramalho vão decidir, no âmbito do PER, se Luís Delgado pode continuar à frente da Trust in News, uma empresa de media que em seis anos conseguiu ‘criar’ 17,1 milhões de euros de dívidas ao Estado. Foto: DR.
Saliente-se também que, desde 2019, a empresa de Luís Delgado tem as suas principais marcas penhoradas pelo Fisco e pela Segurança Social, como já noticiou o PÁGINA UM. Tanto o Ministério das Finanças, tutelado por Joaquim Miranda Sarmento, como o Ministério da Segurança Social, liderado por Rosário Palma Ramalho, ainda não tomaram posição sobre se o Governo Montenegro viabilizará o plano apresentado pela Trust in News no âmbito do PER, uma vez que o Estado detém 51,92%, ou seja, a maioria dos créditos, sendo que 12,98% são detidos por instituições financeiras, 33,62% por outros credores e 1,48% por trabalhadores.
Caso o Governo vote favoravelmente pela aprovação do PER, sob o compromisso (sem garantias) do pagamento das dívidas no prazo de 15 anos, Luís Delgado continuará à frente dos destinos da Trust in News, com o ‘histórico’ de dívidas ‘na lapela’. No caso de o Governo chumbar o PER, mesmo com votos contrários dos outros credores, a Trust in News avançará para a insolvência, o que não significará necessariamente o fim da actividade de media. Na verdade, no processo de insolvência, passando a gestão para um administrador judicial, os títulos poderão ser vendidos e renegociadas as dívidas, mas já sem que Luís Delgado possa manter-se ao leme, dando ‘calotes’ ao Estado e aos outros credores.
A Trust in News e os seus gerentes nunca responderam aos pedidos de informação e esclarecimentos do PÁGINA UM.
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Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem de Rui Araújo, publicada no jornal Semanário na edição de 5 de Novembro de 1988, sobre Maria João, 26 anos, solteira — dois filhos — , desempregada há uma eternidade.
Foto: FRONTERAd, Madrid
LISBOA 1988
Esta história começou ontem.
Maria João, 26 anos, solteira — dois filhos — , desempregada há uma eternidade, compareceu em tribunal e não chegou a ser julgada. Não possuía qualquer documento de identificação. Ficou mais uma noite detida. Esta manhã, voltou ao banco dos réus para julgamento.
Tentou furtar num supermercado da capital duas embalagens de carne — alcatra e cachaço —, uma embalagem de lulas e sete iogurtes naturais.
A rapariga deu um jeito no cabelo, sorriu com os lábios grossos e contou o seu calvário sem protestos ou imprecações.
— Eu estou em casa dos meus pais. Tenho duas meninas. O pai está com a mais velha. Pois teve uma zanga com os meus pais. A minha mãe chateou-se comigo e meteu-me na rua. Eu, como não tinha comer nem para a minha filha nem para mim, fui buscar para as duas. Tive um bocadinho de pouca sorte. Fui apanhada pelo chefe e puseram-me aqui no tribunal. Fiquei cá duas noites a dormir por causa do bilhete de identidade.
— E agora? O que vai fazer?
— Tentar ir para casa. Ir ter com a minha filha.
— Como é que é a vida lá em casa?
— Acho que é tudo bem só que eu não tenho emprego. Já tive um emprego de mulher-a-dias. Estive um ano a trabalhar. Fui cozinheira, também. Eu precisava era de arranjar um emprego. E esquecer esta asneira que eu nunca tinha feito isto. Foi só por a gente estar com fome…
— E já tiveram fome muitas vezes?
— Já. Mas aguenta-se. Há vezes em que mesmo com fome não me chateio. Só que desta vez estava enervada por a minha mãe me ter posto na rua. Eu gostava mesmo era de arranjar um emprego. Mulher-a-dias, secretária, sei lá…
— Para não andar mais em tribunais?
— Para ter uma vida…
Conclusão
Veredicto do tribunal: houve crime de furto. Maria João condenada a 40 dias de prisão, substituídos por uma multa de 12 mil escudos. Pena suspensa por um ano.
Reportagem originalmente publicada no jornal Semanário, na edição de 5 de Novembro de 1988.
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Os dois últimos relatórios e contas da Ordem dos Médicos, recentemente divulgados, revelam que a actual ministra da Saúde, Ana Paula Martins, e um dos vice-presidentes da bancada parlamentar do PSD, Miguel Guimarães, agiram como “fiéis depositários” de uma conta solidária durante a pandemia que envolveu 1,4 milhões de euros, ‘engrossada’ quase na sua totalidade com dinheiros de farmacêuticas. Os dois políticos agiram durante os respectivos mandatos na Ordem dos Farmacêuticos e dos Médicos, respectivamente, sobretudo entre 2020 e 2022. Além de ficar, assim, assumido que houve contabilidade paralela, com fugas ao Fisco de permeio, o expediente de “fiel depositário” é completamente desajustado à gestão de donativos e coloca mesmo sérias suspeitas de fraude com eventuais responsabilidades civis e criminais, uma vez que inexistem sequer documentos formais que mandatassem Ana Paula Martins e Miguel Guimarães para essa função. Além da actual ministra e do deputado, um terceiro titular da conta foi Eurico Castro Alves, como representante das farmacêuticas (APIFARMA), que recentemente foi anfitrião das férias de Luís Montenegro no Brasil.
A Ordem dos Médicos assume, nos seus dois últimos relatórios e contas, que houve contabilidade paralela na campanha ‘Todos por quem cuida’, uma polémica iniciativa de solidariedade durante a pandemia, protagonizada pela actual ministra da Saúde, Ana Paula Martins, e pelo vice-presidente do Grupo Parlamentar do PSD Miguel Guimarães. Então bastonários da Ordem dos Farmacêuticos e dos Médicos, respectivamente, Martins e Guimarães abriram pessoalmente uma conta bancária, com Eurico Castro Alves – actual presidente da Secção Regional do Norte da Ordem dos Médicos e ‘anfitrião’ das recentes férias de Luís Montenegro no Brasil –, para gerir donativos de cerca de 1,4 milhões de euros, com a quase totalidade da verba a ser proveniente de empresas farmacêuticas. A esmagadora maioria destas verbas não foi sequer comunicada no Portal da Transparência e Publicidade, gerida pelo Infarmed, e não foi pago Imposto do Selo, como determina a lei.
Numa longa investigação do PÁGINA UM – apenas possível após o Tribunal Administrativo de Lisboa ter permitido o acesso aos documentos operacionais e contabilísticos desta campanha que visava distribuir sobretudo equipamentos de protecção individual –, já se tinha detectado que a conta aberta não era titulada por nenhuma das duas ordens profissionais, mas sim por Miguel Guimarães (primeiro titular), Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves. E, além de não terem pagado Imposto do Selo – ou seja, cometeu-se uma fuga ao Fisco, no valor estimado de cerca de 125 mil euros, 10% das doações acima de 500 euros –, também permitiram que uma parte substancial das facturas dessem entrada na Ordem dos Médicos, embora os pagamentos tivessem sido consumados através da conta particular, indiciando assim possibilidades de criação de um ‘saco azul’. Houve, além disso, um vasto conjunto de declarações falsas para obtenção de benefícios fiscais ilegítimos por parte de diversas farmacêuticas.
Ana Paula Martins e Migue Guimarães foram co-fiéis depositários em campanha solidária com contabilidade paralela com donativos provenientes sobretudo de farmacêuticas.
Mas agora, e somente com a revelação pública dos relatórios e contas da Ordem dos Médicos dos últimos anos – uma iniciativa reveladora de uma louvável transparência por parte do actual bastonário Carlos Cortes, em contraste com a postura do seu antecessor Miguel Guimarães –, confirmou-se não apenas a existência de contabilidade paralela na campanha ‘Todos por quem cuida’ como terá havido recurso a uma figura jurídica ilegítima e que configura desvio de função com responsabilidade civil e mesmo criminal.
Com efeito, se nos relatórios e contas de 2020 e 2021 – elaborados ainda com Miguel Guimarães como bastonário –, nenhuma referência consta nos anexos sobre a campanha ‘Todos por quem cuida’, não havendo assim sequer sinais da entrada de donativos nas receitas desses anos, já nos relatórios e contas de 2022 e 2023 (da responsabilidade de Carlos Cortes) há uma justificação. E é essa justificação acaba por revelar uma relevante ilegalidade por parte dos ‘gestores’ da conta solidária: Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves.
De facto, tanto nas contas de 2022 como nas de 2023, já assinadas por Carlos Cortes como bastonário, é apresentada uma nota às demonstrações financeiras, referindo que, depois da abertura da conta da campanha, em Março de 2020, em nome de Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Castro Alves, estes “ficaram fiéis depositári[o]s de contribuições financeiras para que, no uso criterioso desses fundos, pudessem, de acordo com as necessidades e prioridades, canalizar para as instituições, profissionais e doentes, material ou bens que consider[assem] essenciais”.
Ora, além desta nota consubstanciar uma contabilidade paralela numa iniciativa que envolveu mais de 1,4 milhões de euros – mesmo sem jamais explicar as razões de terem entrado na Ordem dos Médicos mais de 950 mil euros de facturas, que acabarem por ser pagas por essa conta pessoal, não havendo assim qualquer fluxo de caixa perante a assumpção de gastos –, a figura de “fiel depositário” jamais poderia ser usada nestas circunstâncias.
Trecho da nota sobre a conta solidária nas demonstrações financeiras da Ordem dos Médicos constante no relatório e contas do ano de 2023. Essa nota surge também no relatório e contas de 2022, esta semana disponibilizado no site desta entidade, mas não surge nos relatórios e conta de 2020 e 2021, sob responsabilidade de Miguel Guimarães.
De acordo com vários juristas consultados pelo PÁGINA UM, um ‘fiel depositário” é alguém que, sob superintendência de um tribunal, fica na posse temporária de determinados bens ou objectos que, perante alguma controvérsia ou medida judicial, estejam assim, de alguma forma, sob tutela judicial. Nessas circunstâncias, o “fiel depositário” tem de ser expressamente investido, até para que tome conhecimento, estabelecendo-se os seus deveres, obrigações e direitos no decurso dessa função. Ora, a opção por escolher “fiéis depositários” é temerária para uma simples campanha de solidariedade que envolve a entrada de donativos, que necessita até de autorizações governamentais. No pedido prévio feito ao Ministério da Administração Interna, as duas ordens indicaram a conta solidária criada, mas omitem que os titulares eram pessoas singulares, e nem sequer fazem qualquer menção à existência de quaisquer “fiéis depositários”.
Além disto, aquando da consulta da documentação da campanha ‘Todos por quem cuida’ pelo PÁGINA UM, nunca se detectou qualquer documento que sustente juridicamente a gestão de avultadas verbas, recebidas sobretudo de farmacêuticas, através de “fiéis depositários”. Nem tão-pouco seria tal expectável, porquanto nunca houve qualquer intervenção judicial, mas sim a mera gestão de donativos para a compra de equipamentos para o combate à covid-19. De uma forma prática, a única ‘vantagem’ terá sido criar uma contabilidade paralela.
Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves não poderiam assim assumir as funções de “fiéis depositários” nem tão-pouco de depositários convencionais, previsto no Código Civil, ou mercantis, porque isso também pressupõe um contrato específico em que uma das partes entrega à outra uma coisa móvel ou imóvel, para que a guarde, e a restitua quando for exigida.
Uma das fontes jurídicas do PÁGINA UM diz que, no contexto da gestão da campanha ‘Todos por quem cuida’, para além de outras vantagens ilegítimas, como a do não pagamento de impostos, o expediente do “fiel depositário” poderá configurar uma simulação e uma “fraude à lei, geradora da nulidade”, mesmo que tenha havido um “negócio jurídico”.
Eurico Castro Alves, actual presidente da Secção Regional do Norte da Ordem dos Médicos, foi um dos três co-fiéis depositários que geriu, em contabilidade paralela, 1,4 milhões de euros. O médico, que foi este Verão anfitrião das férias brasileiras de Luís Montenegro, era o representante da APIFARMA, o principal ‘municiador’ dos donativos.
Porém, não há sequer provas de ter havido qualquer “negócio jurídico” – nem se vislumbra de que tipo poderia ser, no âmbito estrito de uma campanha solidária – e, deste modo, a referência aos “fiéis depositários” nos relatórios e contas de 2022 e de 2023 da Ordem dos Médicos aparenta ser um expediente do actual bastonário Carlos Cortes para se afastar das decisões do seu antecessor, Miguel Guimarães.
O PÁGINA UM questionou Carlos Cortes sobre se houve ou não algum documento, designadamente do Conselho Nacional da Ordem dos Médicos, a sancionar a constituição de uma equipa de “fiéis depositários”. A resposta mostra-se elucidativa quanto à legítima vontade do bastonário se descartar das decisões tomadas por Miguel Guimarães. “Os juristas/advogados actualmente afetos” ao Departamento Jurídico da Ordem dos Médicos “não acompanharam o Protocolo então celebrado entre a Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (APIFARMA), a Ordem dos Médicos (OM) e a Ordem dos Farmacêuticos (OF) não tendo, como tal, na sua posse informação que permita responder ao solicitado no prazo indicado”, referiu ao PÁGINA UM fonte oficial do gabinete de Carlos Cortes. E a mesma fonte remete ainda para uma auditoria feita pela consultora BDO, que, como já salientou o PÁGINA UM, nem sequer identifica que a conta solidária como pertencente a Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eduardo Castro Alves.
De igual modo, o PÁGINA UM remeteu questões à ministra da Saúde, Ana Paula Martins, sobre o seu papel no grupo de “fiéis depositários” de dinheiros provenientes de farmacêuticas. Não respondeu.
Também colocou questões a Miguel Guimarães, que afirmara ao Correio da Manhã, aquando do início da investigação do PÁGINA UM, que a campanha ‘Tudo por quem cuida’ era “à prova de bala”. Não respondeu.
Também se colocaram questões a Eurico Castro Alves. Não respondeu.
E também se colocaram questões ao actual bastonário da Ordem dos Farmacêuticos, Helder Filipe Mota. Não respondeu.
O PÁGINA UM também questionou, pela quinta vez, a Procuradoria-Geral da República sobre se estava em curso algum procedimento sobre a gestão financeira da campanha ‘Todos por quem cuida’. A PGR nunca respondeu a qualquer das missivas colocadas sobre esta matéria.
Recorde-se que a campanha “Todos por Quem Cuida” teve por base um protocolo assinado em 26 de Março de 2020 entre as Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos e a Apifarma, que apresentava toda a aparência de um fundo solidário com bons propósitos, e que serviria numa primeira fase apenas para canalizar “contributos monetários (…) ou em espécie” de farmacêuticas para “o apoio à aquisição de equipamentos hospitalares, equipamentos de protecção individual e outros materiais necessários aos profissionais de saúde que se encontra[ssem] a trabalhar nas instituições de saúde”.
Porém, no início do mês de Abril de 2020 – e também por via de um despacho do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais que alargava a possibilidade de benefícios fiscais por donativos aos hospitais –, as três entidades decidiram alargar o âmbito da campanha para um “fundo solidário” público, nomeando, de acordo com os documentos consultados pelo PÁGINA UM, Manuel Luís Goucha como “embaixador da iniciativa”.
E foi aqui que começaram as irregularidades. Ao invés da conta solidária ser assumida pelas duas ordens profissionais – ou apenas por aquela com maior protagonismo, a Ordem dos Médicos – foi decidido que a conta com o NIB 003506460001766293021, aberta no balcão da Caixa Geral de Depósitos na Portela de Sacavém seria titulada por três pessoas: José Miguel Castro Guimarães, Ana Paula Martins Silvestre Correia e Eurico Castro Alves.
Ora, uma pseudo-auditoria da BDO, cujos trabalhos para a Ordem dos Médicos não foram sujeitos a contrato público conhecido, até confirma o NIB (e IBAN) usado, referindo que “foi criada uma conta destinada a receber, através de depósito directo ou por transferência, os donativos angariados com o IBAN P50 0035 0646 0001 7662 9302 1”. Porém, o documento assinado por Ana Gabriela Barata de Almeida (ROC nº 1366, inscrito na CMVM sob o nº 201606976, em representação da BDO & Associados – SROC) não se debruça, nem numa linha, no aspecto essencial: essa conta não era nem da Ordem dos Médicos nem da Ordem dos Farmacêuticos nem da própria Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (Apifarma), que se associou à campanha.
Não se diga que essa pesquisa era complexa. Na verdade, é pública e confirmável que pertence a uma conta da Caixa Geral de Depósitos, onde surge, como primeiro beneficiário “José Miguel R Castro Guimarães”. A actual ministra é (era) co-titular desta conta particular, havendo ainda outro co-titular, Eurico Castro Alves, ex-secretário de Estado da Saúde do PSD. A conta era movimentada com duas assinaturas. A actual ministra assinou diversas ordens de pagamento para facturas que, na verdade, entraram na contabilidade da Ordem dos Médicos.
Conta bancária da campanha, para onde seguiram os donativos das farmacêuticas, de outras empresas e de particulares, foi aberta no dia 2 de Abril de 2020, em nome de Miguel Guimarães (como titular principal), Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves. Todos os pagamentos da campanha foram efectuados através desta conta.
Sendo que a conta da campanha “Todos por quem cuida” não era institucional – mas sim de três pessoas, independentemente dos cargos ocupados –, o pedido de autorização ao Ministério da Administração Interna para a angariação de fundos nunca poderia omitir o facto de que o NIB em causa não ser das entidades oficiosamente promotoras: a Ordem dos Médicos e a Ordem dos Farmacêuticas. Aliás, foram indicadas no final do pedido duas contas que nunca foram usadas na angariação, e que efectivamente pertencem a estas duas instituições. Ambas as contas (com o NIB 000334778686020 e o NIB 000000182339728) estão no Santander, sendo tituladas, respectivamente, pela Ordem dos Médicos e pela Ordem dos Farmacêuticas.
A razão para não serem usadas contas oficiais de qualquer uma das ordens nunca foi dada, mas certo é que o Ministério da Administração Interna foi iludido. Além disso, o pedido de autorização apenas foi feito em 27 de Julho de 2020, quando a angariação de donativos para a conta paralela se iniciara em 6 de Abril daquele ano, ou seja, mais de três meses antes, o que constitui mais uma ilegalidade. Com efeito, à data do pedido de autorização ao Ministério da Administração Interna já a conta titulada por Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves tinha um saldo de 716.501,51 euros. Por lei, a angariação deve ser precedida da autorização ministerial.
Por outro lado, nessas circunstâncias jamais se poderia aplicar a Lei do Mecenato ou outro tipo de benefício, porque em termos formais se estava perante uma recolha de donativos por três pessoas, inexistindo uma justificação lógica (ou ilógica) para não se ter procedido sequer a qualquer correcção. Nessa medida, Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves deveriam ter pagado solidariamente o Imposto do Selo no valor de 10% de todos os donativos recebidos acima dos 500 euros. E houve muitos.
Ora, face aos montantes das diversas transferências, sobretudo da Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (Apifarma), todas individualmente acima dos 500 euros, a actual ministra da Saúde e os seus parceiros deveriam ter declarado à Autoridade Tributária e Aduaneira o recebimento de 1.2561.251 euros, o que implicaria o pagamento de 125.125,10 euros de Imposto do Selo. Na documentação consultada pelo PÁGINA UM, nomeadamente extractos bancários, não existe qualquer saída de dinheiro para esse cumprimento fiscal.
Pedido de autorização para angariação de donativos omitiu que a conta solidária não era titulada pela Ordem dos Médicos e Ordem dos Farmacêuticos. Nunca foi explicada opção por uma conta não-oficial, que permitiu uma contabilidade paralela cheia de irregularidades e ilegalidades. Não há qualquer documento que sustente ou valide a figura jurídica de “fiéis depositários” da conta aberta em nome de Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves.
Além desta grave falha fiscal – independentemente dos objectivos da campanha –, as 16 entidades do sector farmacêutico que concederam apoios também deveriam ter feito declarações no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed, identificando expressamente Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves. Estes profissionais de saúde – dois médicos e uma farmacêutica – também nunca procuraram que o Infarmed, que vigia os patrocínios neste sector, envidasse esforços para incluir essas referências no portal. E o Infarmed, presidido por Rui Santos Ivo, nunca se incomodou em incomodar as farmacêuticas por não declararem o ‘patrocínio’ de mais de 1,3 milhões de euros a três individualidades, uma das quais Ana Paula Martins, que agora tutela o regulador do medicamento.
Além destas irregularidades e incumprimentos fiscais, o uso da conta solidária em nome de três pessoas permitiu uma estranha e ilegal contabilidade paralela de todas as operações de aquisição, designadamente de facturação e pagamentos, dos equipamentos e materiais a serem doados. Ora, isso passou ao largo da BDO, apesar de se apresentar como uma das principais auditoras a operar em Portugal.
Na consulta à documentação contabilística da campanha “Todos por Quem Cuida”, o PÁGINA UM identificou 34 facturas no valor total de 978.167,15 euros que entraram na contabilidade da Ordem dos Médicos (pela aquisição de equipamento de protecção individual, câmaras de entubamento e ventiladores), mas sem que esta entidade tenha alguma vez feito qualquer pagamento. Na verdade, quem pagou foi a conta titulada por Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves. As facturas assumidas pela Ordem dos Médicos, mas que foram afinal pagas com a conta solidária (à margem da Ordem dos Médicos) podem ser consultadas AQUI.
Uma das ordem de pagamento assinadas por Ana Paula Martins foi para transferir 27.365,20 euros ao Hospital das Forças Armadas como contrapartida pela disponibilização de locais e pessoal de enfermagem para vacinar, contra as regras da Direcção-Geral da Saúde, médicos considerados não-prioritários em Fevereiro de 2021, uma iniciativa pessoal de Miguel Guimarães. Esta decisão, com a concordância do então coordenador da task force Gouveia e Melo, após diversas reuniões, continua a ser analisada (há mais de um ano) pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS). A factura das Forças Armadas foi, contudo, emitida para a Ordem dos Médicos. E a Ordem dos Médicos viria depois a emitir declarações (falsas) de recepção de donativos por parte de quatro farmacêuticas. Uma dessas falsas declarações de donativo, no valor de 3.725,20 foi passada em Março de 2022 à Gilead. Nesta altura, Ana Paula Martins – que terminara o mandato em Fevereiro na Ordem dos Farmacêuticos – já ocupava o cargo de directora dos negócios governamentais desta farmacêutica norte-americana.
Através da conta pessoal de que era co-titular, a actual ministra da Saúde, Ana Paula Martins, assinou, por exemplo, uma ordem de transferência bancária ao Hospital das Forças Armadas num acordo com a task force liderada por Gouveia e Melo para pagar a vacinação contra a covid-19 de médicos não-prioritários numa altura de escassez de vacinas. Mas a factura das Forças Armadas foi emitida em nome da Ordem dos Médicos.
Sendo legal que um terceiro possa proceder ao pagamento de facturas de uma determinada entidade – ou seja, era legítimo que Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves usassem a sua conta solidária para saldar as compras dos géneros a doar –, essa informação teria, porém, de constar na contabilidade da Ordem dos Médicos. Como tal não sucedeu – ou pelo menos, nunca foi apresentado ao PÁGINA UM qualquer documento comprovativo –, na prática, significa que a Ordem dos Médicos foi acumulando despesas – até chegar aos 978.167,15 euros – sem ter saído qualquer verba dos seus cofres.
Esse ‘crédito informal’ criou condições, pelo menos em teoria, para se formar um ‘saco azul’, ou mesmo um desvio de verbas até 968 mil euros. Para tal, bastaria que responsáveis da Ordem dos Médicos com acesso às contas oficiais fossem retirando os valores exactos das facturas que iam recebendo dos fornecedores dos bens comprados no âmbito da campanha “Todos por Quem Cuida”.
Ora, a alegada auditoria da BDO – pelo menos, o título do documento obtido pelo PÁGINA UM após sentença do tribunal diz “Prestação de serviços de autoria às actividades e contas do fundo solidário #TodosPorQuemCuida” – comete aqui um erro de palmatória. Na página 10 da auditoria diz-se que “procedemos à análise dos gastos/aquisições efectuadas por forma a validar a documentação de suporte correspondente”, indicando que foram realizadas verificações às notas de encomenda, facturas, evidência de entrega aos beneficiários e comprovativo do pagamento, concluindo que se confirmou “a existência destes elementos para todas as aquisições”.
Mas também aqui há uma omissão grave, que aparenta ser intencional. Com efeito, se e BDO conferiu facturas e pagamentos teria sido assim impossível não ter detectado que as facturas eram emitidas em nome da Ordem dos Médicos mas os pagamentos eram feitos por terceiros, neste caso pela conta titulada por Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves. Significa isso que, sem qualquer documento justificativo – e não existia quando o PÁGINA UM consultou todos os documentos após a sentença do Tribunal Administrativo –, deram entrada documentos de despesa elevados (cerca de 978 mil euros) sem quaisquer fluxos de caixa associados às respectivas facturas, ou seja, houve indicação de que terá saído dinheiro da Ordem dos Médicos sem ter havido, efectivamente.
Se houve ou não a criação de um ‘saco azul’, não se sabe – e nem tal se vislumbra nas contas da Ordem dos Médicos, que vive desafogada com activos de quase 63 milhões de euros e depósitos registados no final do ano passado de 35 milhões de euros –, mas é estranho que haja uma completa omissão por parte da BDO neste aspecto sensível e de grande responsabilidade. No relatório e contas de 2023, na tal nota sobre a conta solidária, refere-se que foi entregue um saldo remanescente de um pouco mais de 107 mil euros para a Agência de Investigação Clínica e Inovação Biomédica, mas não se indica se essa decisão foi tomada pela Ordem dos Médicos ou pelos titulares da conta solidária.
Edifício principal da sede da Ordem dos Médicos, na Avenida Gago Coutinho, em Lisboa.
Houve, porém, mais irregularidades fiscais. Apesar de todos os donativos terem tido como destinatário a conta solidária – titulada, repita-se, por Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves –, as farmacêuticas quiseram aproveitar os benefícios fiscais da Lei do Mecenato, que um despacho do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais alargou, em Abril de 2020, também para os hospitais públicos.
Nessa medida, os serviços operacionais da Ordem dos Médicos instruíram as largas dezenas de IPSS e outras entidades – que incluíram mesmo a PSP, a Liga dos Bombeiros, a Associação Nacional de Farmácias e até hospitais públicos e privados – a passarem declarações atestando que, afinal, receberam donativos em géneros das farmacêuticas, que lhe eram especificamente indicadas.
Deste modo, um dos trabalhos (mais meticulosos) da equipa da Ordem dos Médicos, que Miguel Guimarães colocou na gestão operacional da ‘sua campanha’, passou por preencher intrincados “puzzles” entre os donativos em dinheiro fornecidos à conta solidária e os valores dos géneros recebidos pelas instituições. Assim, em vez das declarações de recepção dos donativos pelas diversas entidades beneficiadas serem passadas à conta solidária – em termos formais, aos três titulares da conta – ou à Ordem dos Médicos, foram encaminhadas para determinadas farmacêuticas.
A emissão de centenas de declarações falsas – trata-se mesmo de centenas, que englobam muitas pequenas IPSS – configura até fraude fiscal, porque as entidades beneficiadas assumiram que os donativos em géneros vieram directamente de farmacêuticas, algo que não é verdade, nem as farmacêuticas conseguirão comprovar qualquer compra através de facturas. Certo é que, com este estratagema, as farmacêuticas conseguiram enquadrar os seus donativos no mecenato social – e, em casos específicos, no mecenato ao Estado – para levar a custos um valor correspondente a 130% ou 140% do valor entregue. Algo que não sucederia se tivesse sido tudo feito como sucedeu: os donativos foram entregues a três pessoas (Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves), foram feitas compras e entregues os géneros às IPSS, associações e unidades hospitalares.
Assim, com este esquema falso, as farmacêuticas terão conseguido declarações num montante total de cerca de 1,3 milhões de euros, e terão acabado por assumir, em termos contabilísticos, redução da matéria colectável da ordem dos 1,82 milhões de euros. Em conclusão, este expediente – a utilização abusiva de um benefício fiscal – terá lesado o Estado, segundo estimativas do PÁGINA UM, em cerca de 145 mil euros. Note-se que este esquema, profundamente à margem da lei, envolveu também hospitais públicos, conforme o PÁGINA UM revelou detalhadamente no final de 2022.
Apesar da logística desta campanha ter sido protagonizada sobretudo pela Ordem dos Médicos, e pelo seu então bastonário Miguel Guimarães, a actual ministra teve um papel bastante activo, e não apenas como co-titular da conta. Ana Paula Martins procedeu a várias ordens de pagamento de géneros – cujas facturas foram encaminhadas para a Ordem dos Médicos – e também participou em diversas reuniões específicas da campanha. De acordo com as actas consultadas pelo PÁGINA UM, a actual ministra da Saúde participou em pelo menos oito reuniões da comissão de acompanhamento entre 11 Maio de 2020 e 5 de Maio de 2021. Mesmo depois da sua saída da liderança da Ordem dos Farmacêuticos em Fevereiro de 2022, manteve-se como titular da polémica conta solidária.
Ora, perante este intrincado esquema de falsas declarações – as farmacêuticas doaram o dinheiro para a conta de três pessoas, e não fizeram donativos directos para os beneficiários –, a BDO nada diz na sua suposta auditoria. No curto capítulo sobre a confirmação das declarações emitidas aos doadores, a auditora diz que “procedemos também à verificação das declarações emitidas aos doadores pelas entidades beneficiárias e pelo TPQC [‘Todos por quem cuida’].
Saliente-se que, de entre as centenas de declarações que o PÁGINA UM consultou, os beneficiários finais nunca tiveram contacto com os doadores iniciais; e, na verdade, a haver declarações verídicas deveriam ser de dois tipos: declarações de Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves aos doadores, entre os quais as farmacêuticas; e, depois, declarações das diversas beneficiárias às referidas pessoas que pagaram os bens doados. O facto de a auditoria da BDO referir que foi “possível confirmar a concordância dessas declarações” é, no mínimo, estranho. Mas tudo é estranho neste processo.
Nota: Pode consultar os relatórios e contas da Ordem dos Médicos no respectivo site. Em alternativa, pode aceder aqui, aqui, aqui e aqui aos relatórios e contas de 2020 a 2023, no servidor do PÁGINA UM, para memória futura.
N.D. Como é do conhecimento público, a Ordem dos Médicos, a Ordem dos Farmacêuticos, a Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (APIFARMA), Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves contrataram, em conjunto, a sociedade de advogados Morais Leitão para me processarem por difamação. As acções judiciais desta índole, conhecidas por SLAPP (Strategic Lawsuits Against Public Participation), têm um objectivo claro, ademais perante a passividade do Ministério Público em encetar uma investigação criminal sobre as revelações do PÁGINA UM. Mas, se o objectivo é silenciar um jornalista independente, essa estratégia não funcionará, sobretudo se a sociedade não aceitar este tipo de conduta por parte de quem tem recursos financeiros aparentemente ilimitados. Desconhece-se quem, entre a Ordem dos Médicos, a Ordem dos Farmacêuticos, a Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (APIFARMA), Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves, está a pagar a conta da sociedade Morais Leitão.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
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Nos últimos dois anos, a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) retirou a carteira a nove jornalistas, mas na sua acção sancionatória tem deixado escapar o ‘peixe graúdo’. Os jornalistas que trabalham ou colaboram em grandes grupos de comunicação social têm uma espécie de imunidade, e não sofrem sanções ou penalizações mesmo quando exercem actividades absolutamente incompatíveis com a profissão. Este é um cenário de uma ‘terra com leis enviesadas’, onde o exercício da profissão sem carteira profissional até é o menor dos ‘crimes’. Por exemplo, há um pivot da CNN que se orgulha de ser dono de uma empresa de consultoria em comunicação e de fazer media training para a Força Aérea. Há jornalistas a trabalhar em empresas ou agência de comunicação e conteúdos comerciais. Outros tantos dão formação em ‘media training’ ou ensinam a escrever ‘press releases’ e a saber ‘apresentar um produto’, como faz uma das mais mediáticas jornalistas da RTP. E há ainda directores e jornalistas a executar contratos comerciais. E isto é o que se mostra visível. O PÁGINA UM revela aqui quem são e como tudo isto é feito nas ‘barbas’ da CCPJ e da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, que pouco ou nada fazem neste ‘faroeste’ em que se transformou o sector do Jornalismo em Portugal.
Os jornalistas em Portugal vivem numa ‘terra com leis enviesadas’, um ‘faroeste’ em que os ‘xerifes’ dormem muito, e quando acordados são fortes com os fracos mas fracos com os fortes. Os casos de jornalistas ‘estrela’ que estão a exercer a profissão à margem da lei, sem terem carteira profissional, é apenas a ponta de um icebergue que esconde ilegalidades, muitíssimo mais graves, como jornalistas a exercer impunemente actividades incompatíveis e que violam a Lei da Imprensa e o Estatuto do Jornalista.
Uma análise do PÁGINA UM detectou inúmeros casos de jornalistas, alguns conhecidos do grande público, que facturam com o exercício de actividades incompatíveis com a profissão. Mas isto faz-se a par de uma aparência de fiscalização, mas pífia e enviesada.
Numa primeira consulta ao site da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) contabilizaram-se nove jornalistas que viram as suas carteiras profissionais serem cassadas nos últimos dois anos até 5 de Abril de 2024, por, na sua maioria, terem sido ‘apanhados’ a exercer actividade incompatível com a profissão. Numa consulta feita esta semana, embora surja a última cassação com data de 9 de Outubro de 2024, somente aparecem oito casos. Existem também processos de contra-ordenação pela ‘polícia dos jornalistas’ que resultaram em multas. Contudo, nenhum destes agora ex-jornalistas pertence ao grupo dos que trabalham para grandes grupos de media. O ‘peixe graúdo’ tem escapado à acção sancionatória da CCPJ e da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC).
Em 2023, de acordo com a primeira informação recolhida pelo PÁGINA UM, a CPCJ retirou a carteira a quatro jornalistas: Manuel T. Perez (CP 8265) e Sérgio Velhote (CP 8002), da Revista Dragões; Paula Charro (CP 4342), da Associação Mutualista Covilhanense; e Maria João Silva (CP 8411), da publicação Leonino. Os três primeiros perderam o título por “incompatibilidade com o exercício da profissão de jornalista” e a quarta por exercer “atividade ao serviço de publicação predominantemente promocional”, infracções previstas no Estatuto do Jornalista.
Já este ano, terá sido cassada a carteira a cinco jornalistas: André Estima (TE779) e Artur Arêde (TE793), do Notícias Ribeirinhas; Maria Pinto Jorge (CP8420) e Duarte Pereira da Silva (CP8419), do EuroRegião; e Sofia Ribeiro (CP8434), do Jornal Fórum. O primeiro ficou sem carteira por ter sido detectada a “falta de requisitos obrigatórios” e os restantes por “incompatibilidade com o exercício da profissão de jornalista”.
Na lista mais recente, estranhamente desaparecem, nos processos de 2024, os nomes de Maria Pinto Jorge e Duarte Pereira da Silva, mas aparece Alice Machado (TE117), directora da doPapel, de Angra do Heroísmo, por uma estranha causa: a revista não estar registada na ERC, o que, sendo matéria de controlo do regulador dos media, não aparenta constituir matéria para retirada da carteira profissional. A CPCJ também decidiu dois processos de contra-ordenação, em 2023, tendo aplicado multas a dois jornalistas por “exercício de actividade incompatível”.
De acordo com o Estatuto do Jornalista, o exercício do jornalismo é incompatível com funções em áreas como publicidade, marketing, relações públicas, assessoria de comunicação, serviços de segurança e informação, serviço militar, cargos políticos ou executivos em órgãos autárquicos, além de actividades que promovam produtos ou entidades através da notoriedade do jornalista, excepto quando regidas por critérios editoriais ou se para acções de solidariedade e promoção das actividades informativas do seu órgão de comunicação social.
Mas as diligências da CCPJ só valem para o ‘peixe miúdo’, os jornalistas que trabalham em publicações de menor dimensão ou especializadas, e sobretudo os jornalistas mais jovens que são ‘enviados’ pelas chefias para fazerem trabalhos incompatíveis, e que assim ficam ‘queimados’. Aliás, a generalidade dos jornalistas que têm a carteira profissional (CP) começada pelo número 8 obtiveram o título há menos de três anos. No caso das carteiras com a denominação TE são títulos equiparados a jornalistas, geralmente detidas por responsáveis editoriais com outras profissões sem formação jornalística.
Certo é que nesta selecta ‘rede’ da CCPJ não caem ‘tubarões’, ou seja, jornalistas com estatuto ou trabalhando em órgãos de comunicação social de âmbito nacional. Esses, mesmo que publicamente assumam actividades incompatíveis, têm escapado incólumes, sem multas, sem penalizações ou sem repreensões públicas, apesar de estarem a cometer infracções graves.
Há jornalistas com carteira profissional a facturar milhares de euros com actividades incompatíveis com a profissão, como formação em ‘media training’, consultoria de comunicação e produção de conteúdos pagos. Alguns dos casos têm sido noticiados pelo PÁGINA UM desde 2022.
Veja-se o caso de jornalistas como José Alberto Carvalho, pivot da TVI, que tem exercido ilegalmente a profissão sem ter carteira profissional válida, algo que o PÁGINA UM noticiou em Janeiro de 2022. Ou os casos de jornalistas e de responsáveis editoriais de jornais de grandes grupos de media nacionais que exercem a profissão também sem carteira. Depois, há todo um conjunto de jornalistas que tem executado contratos comerciais em grandes órgãos de comunicação social, incluindo directores de publicações. Outros dão formação em ‘media training’, e há até jornalistas que têm empresas que prestam serviços de comunicação ou que fazem produção de conteúdos comerciais.
Por exemplo, José Gabriel Quaresma (CP 1713), pivot da CNN, tem uma empresa de comunicação e ‘media training’, a Sardine Conjugation Lda, criada a 29 de Fevereiro de 2023. O jornalista apresenta-se publicamente como CEO da empresa, a qual tem um capital social de apenas 250 euros, e também como um especialista em comunicação, prestando serviços de consultoria de marca, relações públicas e preparação para entrevistas. O jornalista da CNN participa mesmo como orador em eventos de ‘estratégia de comunicação’, ao lado do ‘guru das agências de comunicação, Luís Paixão Martins, e publicita abertamente a sua actividade de consultoria em comunicação nas redes sociais, designadamente no Facebook e na rede profissional LinkedIn. Além disso, José Gabriel Quaresma refere no seu perfil no site da CNN que colabora “há 9 anos com a Academia da Força Aérea Portuguesa, enquanto Media Coach (Media Training)”.
José Gabriel Quaresma (à esquerda na foto) celebrou num post na rede Facebook o aniversário da sua empresa que presta serviços de “consultadoria em comunicação, formação, media training e consultadoria online”.
Já a jornalista Rita Marrafa de Carvalho (CP 3195 ), uma das jornalistas mais mediáticas da RTP, ensina a escrever “press releases”, “newsletters”, “artigos de opinião” e “crónicas” na empresa Proficoncept – Formação Profissional, Unipessoal Lda. Trata-se de uma empresa que tem como objecto social um vasto conjunto de serviços, designadamente consultoria, auditoria e formação profissional”, mas também prestação de serviços de higiene e segurança no trabalho, bem como “actividades de consultoria para negócios e gestão” e até “desinfecção, desratização e similares“. A sociedade é actualmente detida pela Ferreira da Cunha Saúde, Lda, uma empresa criada em Junho de 2020, em plena pandemia, e que “disponibiliza serviços e cuidados de saúde e bem-estar ao domicílio”. Por sua vez, esta empresa tem como principal sócio um médico, Miguel Ferreira da Cunha.
O mais recente curso com a presença de Rita Marrafa de Carvalho, denominado ‘Estrutura da Comunicação Escrita’, custa 205 euros a cada participante, podendo render até 4.100 euros por cada edição, se houver lotação esgotada. A página que anuncia esta formação inclui um vídeo promocional protagonizado por Rita Marrafa de Carvalho, completamente incompatível com o Estatuto do Jornalista, no qual afirma, designadamente, que ensina aos participantes diversas técnicas de ‘escrita’ para diferentes fins, incluindo para “apresentar um produto”. O curso, com a duração de 20 horas, vai na sua terceira edição, decorre online, via Zoom, e terá lugar em oito sessões, entre os dias 22 de Outubro e 10 de Dezembro.
Recorde-se que o Estatuto do Jornalista proíbe que jornalistas prestem serviços como os de “consultoria em comunicação ou imagem, bem como de planificação, orientação e execução de estratégias comerciais”, nomeadamente consultoria na elaboração de ‘press releases’ e ‘apresentação de produtos’.
Num outro caso, o jornalista André Carvalho Ramos (CP 6177), da CNN Portugal e da TVI, que fez parte da equipa do programa Ana Leal (agora na CMTV), é um dos formadores no Curso de Especialização em Media Training da Universidade Europeia/Grupo GCIMedia, que começa no próximo mês de Novembro. Também é formadora neste curso a jornalista Patrícia Matos (CP 5341), da Medialivre (Now) e ex-pivot da TVI. O estatuto de formador nestas condições não confere nenhuma categoria de professor, mesmo realizando-se numa universidade, porque se trata de consultoria de comunicação.
A jornalista Rita Marrafa de Carvalho, da RTP, é formadora na empresa Profi Concept, onde ensina a escrever comunicados de imprensa e a saber escrever para “apresentar um produto”. Cada participante paga 205 euros, podendo a formação gerar uma receita de 4.100 euros, se tiver lotação esgotada. Este curso online vai na sua terceira edição.
Na verdade, este curso com André Carvalho Ramos e Patrícia Matos é dirigido à formação de gestores e executivos, sendo realizado em parceria com o GCIMEDIA Group, um grupo da área de comunicação e relações com a imprensa. Os líderes da GCI coordenam e participam como formadores no curso, como é o caso de Pedro Costa, filho do ex-primeiro-ministro António Costa. O membro da comissão política nacional do PS é o actual director-geral da GCI, onde lidera “em particular a área de comunicação institucional”. André Gerson, CEO da GCI é um dos dois coordenadores do curso e Bruno Baptista, presidente do grupo de comunicação, é outro dos formadores.
O curso da Universidade Europeia/Grupo GCIMedia em questão promete “reforçar competências essenciais ao desenvolvimento profissional no mercado da comunicação”, e dando a possibilidade aos participantes de poderem “progredir nas carreiras de comunicação, relações-públicas ou similar”. Entre as saídas profissionais consta ainda “integrar empresas de comunicação, agências de relações-públicas, departamentos de comunicação externa e outros em que o media training pode ser uma mais-valia”.
Mas há mais casos. Por exemplo, Augusto Madureira (CP 1059), um dos mais antigos jornalistas da SIC, também anuncia na sua página no LinkedIn que presta serviços de ‘media training’, sem fornecer mais detalhes.
Uma antiga jornalista da RTP, Teresa Botelheiro (CP 2549), detém carteira profissional e apresenta-se como jornalista, apesar de indicar na sua página na rede social LinkedIn que trabalha desde 2019 no Instituto de Oftalmologia Dr. Gama Pinto e na Universidade Aberta, onde é formadora de ‘media training’. Teresa Botelheiro, que diz ainda ser formadora há oito anos na World Academy PT, tem também apresentado diversos programas da Universidade Aberta transmitidos na RTP.
No anúncio do curso de ‘media training’ que lecciona, cuja lotação é de 100 inscritos, lê-se que a formação “destina-se a capacitar um profissional que pretenda atuar como porta-voz de uma organização” e ajuda os profissionais a “adotar conhecimentos e competências para se posicionar em relação à comunicação social”. Neste curso “serão simuladas situações de comunicação de crise, onde o porta-voz será confrontado pelos diferentes meios de comunicação, em situação de entrevista, direto, conferência de imprensa ou na elaboração de comunicados de imprensa (press release)”.
André Carvalho Ramos (CNN) e Patrícia Matos (Now) são formadores num curso de Media Training da Universidade Europeia e da empresa de comunicação e consultoria Grupo GCIMedia, que tem como director-geral Pedro Costa, membro da comissão política nacional do PS e filho do ex-primeiro-ministro, António Costa.
Os destinatários desta formação são todos os “profissionais com interesse em adquirir competências em técnicas de comunicação organizacional”. Nos seus critérios de admissão, o curso confere prioridade de admissão aos profissionais cuja entidade patronal seja um “Associado do Turismo de Portugal”, a Sonae, a Polícia de Segurança Pública ou um “associado da ANAFRE (Associação Nacional de Freguesias)”. Esta formação começou a 17 de Setembro e dura até 15 de Novembro.
A questão da actividade de ‘Media Training’ até foi objecto de uma recomendação da CPCJ, em Janeiro de 2021, por considerar que “pode dar origem a um conflito de interesses em algumas situações” e colocar em causa a “imparcialidade do jornalista”.
Na altura, a CCPJ identificou alguns exemplos em que a actividade de ‘media training’ pode gerar conflito de interesses, designadamente “nos casos em que os sujeitos passivos da formação recebem instruções sobre como se apresentar nos media, evitar perguntas difíceis, esconder informação, ou contribuir para a desinformação apresentando dados incorretos”. Ou ainda “nos casos em que os sujeitos passivos da formação são líderes partidários ou outros protagonistas da atividade informativa e cujo relacionamento com os jornalistas põe claramente em causa o dever de isenção e imparcialidade destes”. Também incluiu as situações “em que os sujeitos passivos da formação venham a marcar presença em peças noticiosas, debates, entrevistas ou programas de informação produzidos ou coordenados pelo jornalista que fez o treino”.
Há jornalistas a ensinar profissionais de marketing e executivos a darem entrevistas, gerirem situações de crise, a escrever comunicados de imprensa e a saber apresentar produtos.
Certo é que, numa rápida análise, o PÁGINA UM detectou inúmeros casos de jornalistas que usam a sua ‘carteira’ e o estatuto (mediático) de jornalista para anunciarem e prestarem serviços de formação em ‘media training’ e para dar formação a gestores e executivos e profissionais de marketing sobre a forma como devem lidar com jornalistas, para ensinar a escrever comunicados de imprensa e a “apresentar produtos”.
Questionada sobre se tem fiscalizado e actuado nos casos de jornalistas que fazem formação em ‘media training’, a CCPJ indicou ao PÁGINA UM, no início de Setembro, numa fase em que se estava já a investigar este tema, que não tem “nos seus quadros, ‘equipas’ ou ‘agentes’ de ‘fiscalização’ que, aliás, não estão prevista(o)s em nenhum normativo legal que rege este organismo, pelo que não realiza ações de fiscalização”.
Mas a Comissão adiantou que “contudo, como é sua obrigação, sempre que seja identificada pela CCPJ uma eventual violação de deveres e/ou do regime de incompatibilidades, este organismo independente de direito público desencadeia os procedimentos necessários para averiguar se estão reunidos os pressupostos para desencadear a abertura de um processo de contraordenação e/ou disciplinar”. Nestas situações, “fá-lo oficiosamente ou a partir de queixas, denúncias ou participações”.
Mas a actividade de ‘media training’ não é a única incompatibilidade detectada na análise do PÁGINA UM. Uma das mais comuns incompatibilidades observadas é a elaboração de conteúdos comerciais, seja através de empresas de comunicação, seja na execução de contratos feitos pelo departamento comercial dos órgãos de comunicação social onde os jornalistas trabalham.
A ERC anunciou processos de contra-odenação contra órgãos de comunicação social que puseram directores e jornalistas a executar parcerias comerciais, o que é ilegal. Mas desconhece-se o desfecho desses processos. O ‘faroeste’ continua.
No primeiro caso, o PÁGINA UM já tinha noticiado a situação envolvendo dois colaboradores do Expresso que trabalham na empresa de produção de conteúdos e comunicação Mad Brain. Trata-se de Francisco de Almeida Fernandes e Fátima Ferrão que tinham carteira profissional activa, mas actualmente não constam da base de dados da CCPJ como jornalistas ou colaboradores. Contudo, continuam a apresentar-se na rede social profissional LinkedIn como jornalistas. Fátima Ferrão apresenta-se como “Coordenadora Editorial at Mad Brain, jornalista colaboradora do Expresso” e Francisco de Almeida Fernandes diz ser “Colaborador do Expresso e Jornalista na Mad Brain – Produção de Conteúdos” e ainda colaborador do Diário de Notícias. A Mad Brain é detida e gerida por Maria Ferrão, segundo o portal oficial com os registos de actos das sociedades, e presta diversos serviços, nomeadamente em comunicação e produção de conteúdos, chegando a produzir revistas para empresas e instituições.
Depois, há ainda jornalistas e directores de grandes órgãos de comunicação social que executam contratos feitos pelos departamentos de marketing, como o PÁGINA UM também já noticiou, o que também é incompatível com o Estatuto do Jornalista. Neste lote estavam então Celso Filipe (CP 852), diretor-adjunto do Jornal de Negócios desde 2018; Miguel Midões (CP 4707), então jornalista da TSF; Luís Ribeiro (CP 3188), jornalista na Visão e comentador da SIC; Tiago Freire (CP 3053), director da Exame; Alexandra Costa (CP 2208), Rute Coelho (CP 1893), Adriana Castro (CP 7692) e Carla Aguiar (CP 739), jornalistas em periódicos da Global Media; Filipe S. Fernandes (CP 1175), jornalista no Jornal de Negócios; António Larguesa (CP 5493), jornalista no Jornal de Negócios; Mário Barros (CP 7963), jornalista colaborador no Público; e José Miguel Dentinho (CP 882), jornalista colaborador no Expresso.
A ERC abriu processos de contra-ordenação neste âmbito aos órgãos de comunicação social, mas, mais de um ano depois, desconhece-se ainda o seu desfecho e efeitos práticos. No caso da CCPJ, esta entidade tem vindo a recusar revelar se abriu qualquer processo. Certo é que não procedeu à cassação de títulos a estes jornalistas.
Luís Ribeiro (à esquerda), inflluencer da rede X, comentador da SIC Notícias e jornalista da Visão desde 1999. Coordena a Visão Verde, que foi acusada pela ERC de ter conteúdos comerciais escritos por jornalistas, incluindo pelo próprio.
Por fim, o PÁGINA UM detectou vários casos de jornalistas com carteira activa que prestam serviços de comunicação e produção de conteúdos empresariais. Além disso, há um mar de produtores de conteúdos e relações públicas que se apresentam como jornalistas nas redes sociais e no seu curriculum vitae, não possuindo, contudo, qualquer habilitação profissional.
Assim, perante a lentidão ou mesmo inacção dos ‘xerifes’ deste ‘faroeste’ em que se tornou o sector do Jornalismo em Portugal, os casos de ilegalidades, incompatibilidades e usurpação de funções alastram, ameaçando a reputação de uma classe que já viveu melhores dias.
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Só este ano, a conta dos ‘contratos de mão-beijada’ milionários envolvendo prestadores escolhidos a dedo e sem concorrência – a antecâmara para a corrupção – já ultrapassou os 290 milhões de euros, e apenas incluindo os acordos acima de meio milhão de euros. O caso mais recente está a ‘incendiar’ a política dos Açores, e envolve a escolha de um dos accionistas privados da empresa pública de electricidade, a EDA, controlada pelo Governo Regional daquele arquipélago. O PÁGINA UM apanhou na ‘rede’ um autêntico regabofe, com justificações absurdas, e que aparentemente passam incólumes à fiscalização do Tribunal de Contas, apesar da jurisprudência.
É o segundo maior ajuste directo de sempre invocando “urgência imperiosa”, sendo apenas ultrapassado pela polémica construção de dois navios patrulha em 2015, por 77 milhões de euros, no Estaleiros de Viana do Castelo determinada pelo Governo de Passos Coelho. Um contrato celebrado no final de Setembro passado pela empresa pública EDA – Electricidade dos Açores e a Bencom, no valor de quase 50 milhões de euros, está a levantar polémica naquele arquipélago, não apenas por ter sido assinado a um sábado, mas por envolver uma empresa do Grupo Bensaúde.
Esta ‘holding’ é o principal accionista, através da ESA (39,7%) da empresa de electricidade dos Açores maioritariamente detida pelo Governo Regional (50,1%), e a decisão de adjudicação, após um concurso público internacional lançado em Maio deste ano ter ficado deserto, está a causar acusações de conflito de interesses. Os potenciais candidatos tiveram apenas um mês para apresentar propostas de fornecimento de combustível durante três anos.
A administração da eléctrica açoriana, sem explicar as razões de não se precaver deste tipo de imponderáveis em concursos públicos de grande complexidade, alegou agora ser “impossível repetir um novo procedimento concursal a tempo de garantir o abastecimento de fuelóleo necessário à produção de energia eléctrica” nas ilhas de São Miguel, Terceira, Pico e Faial, daí que optou por um ajuste directo por nove meses em condições que não sequer minimamente conhecidas através do Portal Base. Na plataforma da contratação pública, consultada pelo PÁGINA UM, consta apenas um contrato ‘minimalista’ sem o caderno de encargos e sem a proposta apresentada pela Bencom. Ignora-se assim o preço unitário do fuelóleo e os custos de logística e armazenamento. O contrato nem sequer foi assinado por qualquer membro do Conselho de Administração da EDA.
Foto: D.R./Bencom
Sem explicações concretas sobre as razões de um concurso público ter ficado deserto – sendo que, em casos similares, se deve a preços-base baixos ou a exigências de candidaturas que não permitem propostas em tempo útil –, e das verdadeiras responsabilidades da empresa pública, colocam-se em todo o caso dúvidas, a serem dirimidas pelo Tribunal de Contas, sobre a legalidade da invocação da “urgência imperiosa” para entregar de ‘mão-beijada’, e sem limite de valor, um fornecimento de combustíveis no valor de 50 milhões de euros. Isto porque o Código dos Contratos Públicos exige que os “motivos de urgência imperiosa” sejam resultantes de “acontecimentos imprevisíveis pela entidade adjudicante [neste caso, a EDA], não possam ser cumpridos os prazos inerentes aos demais procedimentos, e desde que as circunstâncias invocadas não sejam, em caso algum, imputáveis à entidade adjudicante”.
Ora, uma administração que lança um concurso público ‘em cima da hora’ para o fornecimento de combustível que se sabe, há muito, ser necessário, não pode depois justificar que não teve responsabilidades. Além disso, o princípio dos “acontecimentos imprevisíveis” não deve configurar casos como os de concursos públicos sem concorrentes, um risco que pode ser previsível e até quantificável em termos percentuais. Na verdade, subjacente aos “acontecimentos imprevisíveis” estão fenómenos meteorológicos e naturais ou mesmo crises de saúde pública.
A interpretação do Tribunal de Contas tem sido no sentido de que “são motivos de urgência imperiosa aqueles que se impõem à entidade administrativa de uma forma categórica, a que não pode deixar de responder com rapidez […], sob pena de, não o fazendo com a máxima rapidez, os danos daí decorrentes causarem ou poderem vir a causar prejuízos irreparáveis ou de difícil reparação”. Mas o Tribunal de Contas salienta ser “ainda necessário que essa urgência imperiosa seja resultante de acontecimentos imprevisíveis pela entidade adjudicante, e não sejam, em caso algum, a ela imputáveis”, reforçando que “acontecimentos imprevisíveis são todos aqueles que um decisor público normal, colocado na posição do real decisor, não podia nem devia ter previsto”. E acrescenta que ”estão, portanto, fora do conceito de acontecimentos imprevisíveis, os acontecimentos que aquele decisor público podia e devia ter previsto”.
Foto: D.R.
Contudo, cada vez com maior facilidade as empresas públicas e entidades da Administração Públicas, e mesmo o próprio Governo, pelo ‘esquema’ da “urgência imperiosa” para entregar, sem qualquer concurso público, adjudicações de avultados montantes. De acordo com um levantamento exaustivo do PÁGINA UM aos ajustes directos acima de meio milhão de euros publicados este ano, contabilizam-se 162 contratos, envolvendo 59 entidades públicas. A empresa de electricidade açoriana EDA lidera em termos de montante: além do já referido contrato de quase 50 milhões de euros, celebrou já este mês um ajuste directo ‘urgente’ de locação de uma central termoeléctrica à Aggreko Iberia por quase 973 mil euros. Os dois ajustes directos por “urgência imperiosa” despacharam assim 50,95 milhões de euros, sem IVA.
Em todo o caso, o Estado-Maior das Força Aérea é a entidade pública que mais vezes encontra “urgência imperiosa” para entregar contratos sem concurso público. Somente este ano, de acordo com os registos do Portal Base, contam-se 14 ajustes directos desta natureza que totalizaram quase 33,3 milhões de euros. Todos estes contratos se referem à contratação de meios aéreos para combate aos incêndios rurais de 2023 e deste ano, que beneficiaram a Avincis, a Helibravo, a HTA Helicópteros e a Gestifly. A simples aplicação do ‘bom senso’ – ou seja, da evidência da necessidade, ano após ano, de meios aéreos – deveria retirar, desde logo, o argumento da “urgência imperiosa”, mas Tribunal de Contas (e a decência) pouco se tem incomodado com esta repetida situação, e aparentemente só uma coisa é certa: para o ano o Estado-Maior da Força Aérea repetirá a dose com mais ajustes directos desta natureza.
Ajustes directos por “urgência imperiosa” com meios aéreos também foram usados pelo Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM), depois de atrasos nos concursos públicos por razões políticas. O segundo destes contratos, no valor de 12 milhões de euros, assinado em finais de Junho com a Avincis, levaria à demissão do então presidente do INEM, Luís Meira, mas já houvera outro, no valor de seis milhões de euros com a Babcock em finais do ano passado, que seria publicado no Portal Base em Janeiro deste ano. Acrescem, com o estafado argumento da “urgência imperiosa”, dois contratos de serviços de reparação e manutenção da frota do INEM, num total de 1,46 milhões de euros. Contas feitas, apenas em quatro “urgências imperiosas”, o INEM despachou, sem burocracias e com nula transparência, quase 19,5 milhões de euros nos últimos 10 meses.
(D.R.)
O Governo, ele próprio, também aprecia a “urgência imperiosa” para despachar ajustes directos por empresas escolhidas a dedo. Contas feitas, desde o início deste ano foram publicados no Portal Base um total de 10 contratos desta natureza celebrados por departamentos governamentais, totalizando cerca de 25 milhões de euros.
A Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros já contabiliza três ajustes directos desta natureza no montante global de 17,7 milhões de euros para software e hardware de controlo de fronteiras. Mais uma vez a urgência foi invocada, quando, na verdade, o sistema de Smart Borders há muito estava previsto, como destacou o PÁGINA UM em Junho passado.
A Secretaria-Geral do Ministério da Administração Interna contabiliza, por sua vez, quatro contratos por ajuste directo devido a alegada “urgência imperiosa”, mas os montantes são mais reduzidos: quase 4,9 milhões de euros, entregues à Timestamp (um contrato) e à Meo. No caso de um dos ajustes directos a esta última empresa, por exemplo, a justificação para a “urgência imperiosa” por “acontecimentos imprevisíveis” é absolutamente ridícula: tratou-se da “aquisição de serviços para implementação do Centro de Suporte aos Técnicos de Apoio Informático (CSTAI) para utilização dos Cadernos Eleitorais Desmaterializados”, no âmbito das eleições para o Parlamento Europeu em Junho passado. Custou, em três dias, um pouco mais de 1,3 milhões de euros, ganhos pela Meo, sem os incómodos da concorrência. Estas eleições estavam, obviamente, previstas há muitos e muitos anos.
Por fim, na área governamental, o Gabinete do Secretário de Estado Adjunto e das Infraestruturas também já fez este ano três ajustes directos por “urgência imperiosa”, dois dos quais no mês passado, sendo que o outro se concretizou ainda no tempo do Governo Costa. Os três contratos, no valor de 2,4 milhões de euros, destinaram-se a suportar custos do serviço aéreo no arquipélago da Madeira e aquele que era prestado pela Sevenair – através da ligação Bragança-Vila Real-Viseu-Cascais-Portimão. No caso desta última ligação, o serviço acabou por ser suspenso no final do mês passado, devido à falta de pagamento. Para suspender o serviço, desta vez não houve mais “urgência imperiosa”.
A Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros já contabiliza três ajustes directos para software e hardware de controlo de fronteiras. Foto: D.R.
As autarquias apreciam também bastante os ajustes directos por “urgência imperiosa”, embora com contratos acima de 500 mil euros ‘somente’ se encontram publicados este ano um total de 21 contratos, envolvendo 16 municípios: Murça, Porto, Santo Tirso, Sintra e Maia (dois, cada), Trofa, São João da Madeira, Vila Nova de Gaia, Lisboa, Barreiro, Moita, Seixal, Almada, Coimbra, Espinho e Gondomar.
De todos estes, Maia, Murça, Santo Tirso, Sintra, Porto e Gondomar ultrapassam a fasquia de um milhão de euros, mas o último destes municípios supera isso, e por muito. E é um ‘caso’ que tem todos os contornos de ser ‘de polícia’. De facto, o ajuste directo de quase 13,9 milhões de euros, celebrado no passado dia 25 de Setembro, e que entrou em vigor no início do presente, é a continuação, dir-se-ia ad aeternum, de uma relação comercial iniciada entre a autarquia socialista e a Rede Ambiente. Desde Julho de 2022, o município tem feito sucessivos contratos de aquisição de serviços de recolha de resíduos sólidos urbanos, sem concurso, a esta empresa que integra o Grupo Terris, com sede naquele concelho nortenho e que é ré no processo ‘Ajuste Secreto’. O próprio CEO do Grupo Terris, e ex-presidente da Rede Ambiente, viu em 2019 o Tribunal de Santa Maria da Feira decretar-lhe o arresto preventivo de bens.
Estes ajustes directos sucedem a um contrato ganho por concurso público pela Rede Ambiente e EGEO em 2012, em consórcio, pelo valor de 35,8 milhões de euros. Até final do ano passado, a autarquia de Gondomar fez três contratos de ‘mão-beijada’ no valor de cerca de 12,9 milhões de euros, de acordo com dados disponíveis no Portal Base. Mas, supostamente, não teve tempo para concluir entretanto um concurso público e celebrou um novo ajuste directo por “urgência imperiosa” por um período de dois anos no valor de 13,9 milhões de euros. Este é, de longe, o maior ajuste directo da autarquia gondomarense e foge também do espírito legal do Código dos Contratos Públicos, uma vez que não só há responsabilidades do município na não conclusão de concurso público como, por outro lado, o prazo de execução (730 dias) excede muito o “estritamente necessário” previsto nos normativos.
Foto: D.R.
De entre o tipo de serviços e aquisição de bens acima de 500 mil euros alvo deste expediente de ajuste directo por “urgência imperiosa”, o sector da energia, muito por via dos contratos da EDA (quase 51 milhões de euros), é aquele que mais verbas envolve, totalizando, segundo a análise do PÁGINA UM, um pouco mais de 84 milhões de euros. No total de 23 contratos, além dos dois da EDA, destacam-se os cinco celebrados pela Infraestruturas de Portugal (12,5 milhões de euros), os seis da Transtejo (10,8 milhões de euros) e os cinco da Soflusa (quase seis milhões). Tudo “urgência imperiosa”, porque, alegadamente, não seria previsível haver necessidade de usar combustíveis para transporte.
Seguem-se, a grande distância, os contratos, já acima referidos, relacionados com a aquisição de serviços de aeronaves, que ultrapassam os 33,2 milhões de euros, aos quais se acrescentam mais 18 milhões de se incluírem os meios aéreos para emergência médica, e mais 2,4 milhões se se contabilizarem também a contribuição para os voos regionais.
Também rodeado por um mistério está o sistemático recurso à “urgência imperiosa” em 31 contratos por ajuste directo acima de meio milhão de euros para a prestação de serviços de refeições, detectados pelo PÁGINA UM no Portal Base, e envolvendo 16 entidades públicas, das quais sete são unidades locais de saúde (ULS), ou os antigos centros hospitalares, e seis são autarquias. No caso da ULS de São José – que sucedeu ao Centro Hospitalar de Lisboa Central –, este ano já se contam seis “urgência imperiosas” para alimentação, envolvendo quase 5,1 milhões de euros. A ULS de Santa Maria, antigo Centro Hospitalar de Lisboa Norte, não está longe: um pouco mais de quatro milhões de euros em refeições por quatro ajustes directos. A empresa ‘campeã’ destes ajustes directos, sobretudo nos hospitais, tem sido a Itau, que ‘apanhou’ 20 dos 31 contratos desta natureza, sacando 18 milhões do ‘bolo’ de 26,5 milhões de euros despachados por “urgência imperiosa”.
Os serviços de limpeza – mais um tipo de serviços ‘previsíveis’ em entidades com o mínimo de planeamento – são também ‘chão’ para negócios sustentados pela “urgência imperiosa”, que permitem escolhas a dedo. A análise do PÁGINA UM detectou 17 entidades de toda a natureza que usaram este expediente em contratos que já envolveram 23,5 milhões de euros. De entre as entidades públicas que mais dinheiro gastaram este ano com estes contratos de ‘mão-beijada’ com justificações espúrias estão a Autoridade Tributária e Aduaneira (2,04 milhões de euros), a Guarda Nacional Republicana (3,37 milhões de euros), o Metropolitano de Lisboa (3,59 milhões de euros), e a ULS de Santa Maria (2,94 milhões de euros). Aqui aparentemente existe uma espécie de oligopólio, porque são várias as empresas, consoantes os adjudicantes, que beneficiam destes negócios da “urgência imperiosa”. De acordo com os dados do Portal Base, houve 11 empresas de limpeza que conseguiram este tipo de ajustes directos, embora o destaque seja da Fine Facility Services, com 5,94 milhões de euros.
De resto, contabilizando os gastos pelos sectores definidos pelo PÁGINA UM, os X contratos por “urgência imperiosa” acima de meio milhão de euros no sector das comunicações já quase atingiu os sete milhões de euros, no sector do controlo de fronteiras um pouco mais de 10,9 milhões de euros, no sector da informáticxa quase 8,5 milhões de euros, no sector das obras públicas cerca de 14,6 milhões de euros – destacando-se a construção de um edifício modular no hospital de Ponta Delgada, no valor de 11,2 milhões de euros –, no sector da segurança quase 9,7 milhões de euros – e no sector dos serviços de manutenção aproximadamente 6,7 milhões de euros.
Também relevantes são os encargos hospitalares feitos ao abrigo da “urgência imperiosa”, tanto para medicamentos (11 milhões, onde se incluem 3,7 milhões de euros pagos à Novartis por duas doses de Zolgensma, o polémico fármaco do caso das gémeas) como para material e serviços hospitalares. Embora em diversos casos se possa admitir mesmo a aquisição urgente, pelas particularidades do sector, já tudo se mostra mais obscuro quando, por via de uma alegada – mas nunca justificada com argumentos escritos – “urgência imperiosa”, também não há redução de contrato a escrito. Por exemplo, na compra de material de consumo clínico pela ULS de Braga no valor de 729.636 euros ocorrida em Março deste ano, e publicada no Portal Base em Julho passado, não se sabe nem preço nem que produtos foram efectivamente adquiridos para o serviço vascular, de neurorradiologia e de anestesia. Mas a gestão do hospital de Braga, como o PÁGINA UM já teve oportunidade de revelar, é outro caso ‘doentio caso’ de gestão de dinheiros públicos a merecer atenção do Ministério Público.
Foto: D.R.
Pelo lado dos adjudicatários – ou seja, das 73 empresas e consórcios que beneficiaram da escolha a dedo por “urgência imperiosa –, da lista compilada pelo PÁGINA UM com contratos acima de meio milhão de euros, o destaque vai para a Bencom (por via do contrato com a EDA), com quase 50 milhões de euros, seguindo-se a Avincis (meios aéreos), a Petrogal (energia) e a Itau (alimentação), todos com valores a rondar os 18 milhões de euros.
A Rede Ambiente (resíduos) e a Iberdrola (energia) conseguiram facturar, graças aos ajustes directos por “urgência imperiosa”, analisados pelo PÁGINA UM, 13,9 milhões e quase 13,4 milhões de euros, respectivamente. Ainda acima dos 10 milhões, estão ainda incluídas a Modular Builders Worldwide (obras públicas, no caso a construção do edifício modular do hospital de Ponta Delgada) e a Gestifly (prestação de serviços de aeronaves).
Com valores entres cinco milhões e 10 milhões de euros surgem a Helibravo Aviação, com quase 9,9 milhões de euros, a Timestamp (7,9 milhões de euros), a Indra Sistemas Portugal (6,8 milhões de euros), a Babcock (6,6 milhões de euros), a Fine Facility Services (5,9 milhões de euros), a HTA Helicópteros (5,8 milhões de euros) e a Meo (quase 5,5 milhões de euros). Muitos milhões que chegaram em ‘bandejas’. Se o preço foi justo, se houve defesa do interesse público, se houve corrupção – ninguém sabe dizer, porque poucos (ou nenhuns) querem saber.
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