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  • Já viu como estão tão verdes os mupis de Lisboa?

    Já viu como estão tão verdes os mupis de Lisboa?


    A Câmara Municipal de Lisboa abriu em 2017 um novo concurso público para a gestão dos chamados ‘oudoors’, um negócio milionário. Por ano, o município prevê receber 8,3 milhões de euros pela concessão, embora a ‘fatia de leão’ do bolo publicitário vá para a empresa gestora. Mas o concurso público, que deu a vitória à JCDecaux em Setembro de 2022, viu-se enredado numa série de litígios. Resultado: até este mês, a autarquia lisboeta só conseguiu que a empresa Cemark, que detinha mais de 1.700 ‘outdoors’ por via da concessão anterior, retirasse pouco mais de um quinto. A solução foi meter, por agora, paisagens florestais.


    De repente, em Lisboa, muitos mupis e outros equipamentos de mobiliário urbano para fins publicitários estão a ostentar luxuriantes paisagens florestais. São centenas, sem qualquer mensagem, e apenas com uma curta referência de a imagem provir do Wirestock, uma plataforma de imagens criadas por inteligência artificial. Poder-se-ia tratar de uma campanha publicitária subliminar, levantando apenas o véu – neste caso, com conotação ambiental – sem revelar de imediato a entidade ou o produto. Mas não: trata-se apenas de mais um capítulo do longo e complexo concurso público de exploração de mobiliário publicitário na capital.

    Lançado em Março de 2017, o concurso para a “concessão de uso privativo do domínio público do Município de Lisboa para instalação e exploração publicitária” não foi nada pacífico, sobretudo por estar em causa a rentável gestão da publicidade a inserir nos abrigos das paragens de autocarros, em mupis, instalações sanitárias públicas e painéis informativos. O concurso – que vale aos cofres da autarquia um montante de 8,3 milhões de euros por ano – acabou por ser ganho pela JCDecaux, ‘derrotando’ quatro concorrentes, entre as quais a Cemark (ex-Cemusa), que com a JCDecaux tinha explorado estes equipamentos na última década no principal município português.

    Em consequência desta vitória, o contrato assinado em Setembro de 2022, determinava que a a JCDecaux poderia instalar como peças de mobiliário urbano com fins publicitários um total de 900 mupis, dos quais 10% de natureza digital, de 2.000 abrigos, de 75 sanitários públicos, dos quais pelo menos oito preparados para mobilidade condicionada, 40 mupis amovíveis para publicidade institucional e pelo menos 125 painéis digitais de grande formato, além de 25 mupis de natureza digital e cinco painéis digitais para informação exclusivamente municipal.

    Com a sua derrota num negócio de milhões, a Cemark interpôs uma acção no Tribunal Administrativo de Lisboa sobretudo porque o município alfacinha pretendia que a empresa desmontasse os 1.703 equipamentos instalados durante a vigência do anterior concurso. Em Abril do ano passado, o tribunal considerou “improcedente” essa acção, obrigando à desmontagem daqueles equipamentos urbanos para que o contrato de exploração da publicidade exterior celebrado entre a Câmara Municipal de Lisboa e a JCDecaux pudesse ser executado na sua plenitude.

    Ora, e é afinal o mobiliário urbano da Cemark ainda instalado que ostenta agora as paisagens florestais. Esta foi a forma de a autarquia de Lisboa não dar um ar de abandono àquele mobiliário urbano. Segundo fonte oficial da autarquia liderada por Carlos Moedas, “a Cemark já não está autorizada a explorar comercialmente os mupis e abrigos instalados na cidade, porque tal violaria a exclusividade resultante do contrato do novo contrato de concessão”, sendo “essa razão, de todos os equipamentos propriedade desta empresa [terem] afixada imagem não publicitária”.

    A autarquia de Lisboa informa que “até ao final de 2023, a Cemark havia desmontado 162 abrigos e 216 mupis”, ou seja, apenas 22% dos equipamentos que explorava, prevendo-se que até ao próximo Verão que “a totalidade dos abrigos e mupis instalados no âmbito dos antigos contratos de 1995 (da Cemark e da JCDecaux) sejam substituídos pelo novo mobiliário”.

    Para justificar este atraso, a autarquia liderada por Carlos Moedas diz ainda que “o processo de substituição é bastante complexo, requerendo um planeamento significativo que envolve diferentes entidades externas e serviços municipais”. Este processo está a ser concretizado por freguesias, com intervenções que implicam o arranque dos equipamentos, incluindo ligações à corrente eléctrica. “A escolha das zonas a intervir e a sua sequência teve em consideração as características específicas de cada zona (como por exemplo, evitar zonas mais comerciais em épocas do ano de pico da atividade económica, evitar zonas do centro histórico em épocas de sobrecarga de fluxo de pessoas ou zonas com sobrecarga de iniciativas e eventos já previstos)”, releva a Câmara Municipal de Lisboa.

    E a autarquia alfacinha adianta ainda que “no caso do mobiliário da Cemark, temos de assegurar que esta empresa desmonta o equipamento (depois de o ramal estar desligado) para que a JCDecaux inicie os trabalhos de montagem dos novos”.

    Fotografias de Frederico Carvalho


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  • ‘Business as usual’: alheia à crise política, Start Sines Campus arrecada mais 25 milhões de euros para investir

    ‘Business as usual’: alheia à crise política, Start Sines Campus arrecada mais 25 milhões de euros para investir


    Portugal deve ser mesmo um país excelente para investimentos. Mesmo se um projecto espoletar indícios de falcatrua, tráfico de influências e prevaricação, com queda de Governo e processos judiciais à mistura, pode tudo continuar como se nada se passasse. E assim é no caso da empresa Start Sines Campus, no ‘olho do furacão’ da Operação Influencer, que deliberou há três semanas um novo empréstimo obrigacionista de valor chorudo: 25 milhões de euros. Na verdade, ‘enxotados’ os dois administradores portugueses no início do escândalo de Novembro passado, tudo aparenta estar como estava, incluindo a não revelação das contas da empresa do exercício de 2022. O atraso nesta obrigação tributária já vai em quase seis meses. Mas, quem se importa com isso?


    Caiu um primeiro-ministro, caiu um Governo, caiu uma Assembleia da República, caíram administradores de empresas, caiu o Carmo e a Trindade que alimentou o mundo mediático e o mundo político em Portugal, vai realizar-se eleições legislativas em 10 de Março, mas a Terra continuou a rodar em torno do Sol, e os negócios a correr e a prosperar. Mesmo os da Start – Sines Transatlantic Renewable & Technology Campus.

    Aparentemente imune ao ‘terramoto político’ que desencadearam as buscas em 7 de Novembro passado a São Bento – e as detenções de Vítor Escária e de Diogo Lacerda Machado –, a empresa que está, desde Abril de 2022, a construir uma mega-centro de dados em Sines, não abrandou os trabalhos nem a atracção e interesse de investidores, que aparentam acreditar num projecto apoiado até por uma “lei malandra”, que coloca António Costa sob suspeita de crime de prevaricação. E prova da ‘normalidade’ é a emissão de uma nova emissão de obrigações deliberada pela Start Sines Campus no antepenúltimo dia de 2023, e anteontem divulgada no Portal das Publicações de Actos Societários do Ministério da Justiça. E não foi de pequena monta, demonstrativo de que o projecto, indiferente aos processos judiciais e às eleições que se avizinham, continua em marcha acelerada.

    Esta emissão de obrigações realizada por oferta particular totalizará os 25 milhões de euros, sendo que cada obrigação tem um preço de 100 mil euros. Esta foi a 15ª série de obrigações emitidas, e que já totalizam 208,1 milhões de euros, o que revela que existem infindáveis investidores (anónimos) pouco interessados em ver o polémico projecto. Ou seja, esta última emissão conseguiu ‘capitalizar’ cerca de 12% do dinheiro já amealhado pela empresa para investir no data center de Sines.

    A empresa formada por um ‘consórcio’ de dois fundos de investimento (Davidson Kempner e Pioneer Point Partners), mas numa complexa e obscura “cascata de empresas”, bem detalhada por uma investigação do jornal Eco, tem apenas um capital social de um milhão e euros, mas esconde as suas contas. As últimas contas conhecidas são relativas ao exercício de 2021 e na Base de Dados das Contas Anuais continuam sem surgir a declaração da Informação Empresarial Simplificada (IES) relativa ao ano de 2022, que deveria ter sido entregue até 15 de Julho de 2023, de acordo com o Código do Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Colectivas (CIRC). Ou seja, já há um atraso de quase seis meses na entrega.

    Assim, conforme já revelara o PÁGINA UM em Novembro passado, as únicas informações relevantes da Start – Sines têm sido os sucessivos empréstimos obrigacionistas que aumentaram a sua dívida em 151 milhões de euros desde Novembro de 2022. A partir desse período, são conhecidas, portanto, já nove emissões: seis milhões de euros em Novembro de 2022, mais duas tranches no mês seguinte no valor total de 23,6 milhões de euros, e as restantes em 2023, sendo que 16,5 milhões de euros foram em Fevereiro, 12 milhões em Julho, 20,1 milhões em Agosto, duas tranches em Outubro (15,6 milhões e 32 milhões) e 25 milhões no dia 29 de Dezembro, já depois da destituição de Afonso Salema e Rui Oliveira Neves, e a nomeação de Robert Dunn.

    Governo Costa caiu, surgem suspeitas em torno de uma ‘lei malandra’, mas empresa de Sines continua como se nada fosse, e arrecadou mais 25 milhões de euros para continuar investimentos.

    Continuam sem ser conhecidas as condições destas emissões obrigacionistas, mas com o agravamento da Euribor a 12 meses ao longo deste ano será sensato admitir que a empresa estará a pagar uma taxa de juro próxima de 14%, ou seja, um spread de 10%. Com efeito, nas contas de 2021 da Start Sines Campus refere-se que foi celebrado “um contrato com a Adare Finance DAC, denominado de ‘Programme Agreement’, que determina um montante de empréstimo à Empresa até ao montante agregado de 50.000.000,00 euros, com juros à taxa fixa de 10%”. Como nesse período a Euribor estava em terreno negativo, e agora está nos 4,2%, significa que a Start Sines estará a oferecer um rendimento potencial acima de 14%.

    Em todo o caso, sem a consulta das contas de 2022 não será possível ter uma ideia mais concreta da saúde financeira deste investimento, nem sequer confirmar aquilo que foi dito pelos então responsáveis da empresa durante o interrogatório no Tribunal de Instrução Criminal: um investimento, até este mês, de 162 milhões de euros” na aquisição de direitos sobre terrenos, em equipamentos e em construção”.


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  • Inédito: Regulador dos media diz ser aceitável exigir pagamento a jornalistas para cobrirem eventos públicos

    Inédito: Regulador dos media diz ser aceitável exigir pagamento a jornalistas para cobrirem eventos públicos


    O V Congresso dos Jornalistas começou hoje. É um evento duplamente público: teve inscrições para jornalistas e não-jornalistas, realizando-se num espaço público (Cinema São Jorge, em Lisboa), pertencente à Câmara Municipal de Lisboa desde 2001. O Estatuto dos Jornalistas diz claramente que os jornalistas não podem ser impedidos de entrar ou permanecer em locais abertos ao público quando a sua presença for exigida pelo exercício da respectiva actividade profissional. Mas a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) defende que afinal este evento de jornalistas, financiado por empresas privadas, pode exigir aquilo que nunca ninguém fez: condicionar a cobertura noticiosa de um evento público – que recebeu hoje o Presidente da República e terá mesmo deputados a debaterem a situação da imprensa – a um pagamento prévio. Numa deliberação urgente a concordar com esta cobrança inédita, a ERC comete um ‘conveniente’ erro para defender a sua tese: atribui o estatuto de “local privado” ao Cinema São Jorge para legitimar um pagamento prévio para cobertura noticiosa. Abriu uma caixa de Pandora.


    A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) considera que a exigência de uma inscrição prévia, em montante arbitrário, para a realização da cobertura de um evento público é uma opção válida e “não consubstancia um tratamento discriminatório”. A decisão do regulador, divulgada pelas 17h00 desta quinta-feira, através de uma deliberação de oito páginas, resulta de um pedido de intervenção do PÁGINA UM por via da exigência da Comissão Organizadora do V Congresso dos Jornalistas, que se inicia esta tarde no Cinema (público) São Jorge, e que conta com o apoio financeiro de 13 empresas e uma fundação não ligadas ao sector dos media.

    Apesar do Estatuto do Jornalista determinar que “os jornalistas têm acesso a locais abertos ao público desde que para fins de cobertura informativa” e que somente nos “espectáculos ou outros eventos com entradas pagas [como o caso do Congresso dos Jornalistas] em que o afluxo de espectadores justifique a imposição de condicionamentos de acesso” se pode implementar “sistemas de credenciação de jornalistas” – não se conhecendo até agora a exigência de pagamento de qualquer verba, quando tal ocorre –, a ERC considera legítimo que a organização deste congresso, presidida pelo jornalista da SIC Pedro Coelho, imponha um pagamento prévio.

    Helena Sousa, presidente da ERC, na tomada de posse, cumprimentando o presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva.

    Na sua deliberação, o regulador agora presidido por Helena Sousa começa por considerar que “o direito de acesso a locais públicos não constitui um fim em si mesmo”, mas antes uma forma de acesso à informação, o que conclui ser legítimo que o Congresso dos Jornalistas – financiado por empresas privadas fora do âmbito dos media e apoiado também pela autarquia de Lisboa, proprietária do Cinema São Jorge” – imponha um preço de entrada a jornalistas que manifestem a exclusiva intenção de cobertura noticiosa.

    A ERC considera que “a verba é exigida [pela Organização do Congresso dos Jornalistas] a todos os interessados elegíveis, em montante idêntico, sendo clara e declaradamente assumida como uma das receitas utilizadas para o financiamento do congresso”, acrescentando que não cabe ao regulador “sindicar o sentido de tal opção nem discutir se esse financiamento pode ou deve igualmente integrar contributos de entidades públicas e privadas.”

    Recorde-se que, numa altura em que a credibilidade do jornalista é colocada em causa pelas promiscuidades com empresas e poder político, o V Congresso dos Jornalistas – organizado pelo Sindicato dos Jornalistas, Casa de Imprensa e Clube de Jornalistas – decidiu não apenas solicitar inscrições aos participantes e jornalistas que queiram cobrir os eventos, mas também abrir os ‘cofres’ para à entrada de dinheiro, em quantias não divulgadas nem sob eventuais contrapartidas, do Grupo Brisa, da REN, da NOS, dos bancos Santander e Millennium BCP, da Mota-Engil, da Google, da Mercadona, da Delta, da seguradora Fidelidade, da KIA, da Xerox, do IKEA e da Fundação Oriente.

    A ERC diz que Cinema São Jorge é um local privado e que a organização do Congresso dos Jornalistas pode condicionar a cobertura noticiosa ao pagamento prévio de uma verba. Contudo, o Cinema São Jorge é um local público e o evento é público, porque estavam previstas inscrições de não-jornalistas.

    Além destas entidades privadas, o evento conta ainda com apoios institucionais, em moldes também não revelados, do Cenjor, da Agência Nacional Erasmus, da Fundação Inatel (tutelada pelo Governo), da Universidade Autónoma de Lisboa e da Câmara Municipal de Lisboa. De entre estas 19 entidades privadas e públicas de relevância noticiosa, somente o Cenjor – um centro de formação de jornalismo – tem ligação directa a temas relacionados com a imprensa.

    Na defesa do sua tese, a ERC até considera que, “em rigor, o local [Cinema São Jorge, um espaço detido pela autarquia de Lisboa] onde se realizará o Congresso dos Jornalistas [que será inaugurado pelo Presidente da República e contará com debates onde participarão deputados e mesmo dos reguladores] não é um local aberto ao público”, apesar de o Estatuto dos Jornalistas determinar que “os jornalistas têm o direito de acesso a locais abertos ao público desde que para fins de cobertura informativa”.

    Com efeito, e isto não é uma irrelevância, até porque repetido várias vezes na deliberação da ERC, o Cinema São Jorge não é um “espaço privado”, pois pertence à Câmara Municipal de Lisboa desde 2021, sendo gerido pela empresa municipal EGEAC. Ou seja, o Congresso dos Jornalistas é um evento duplamente público: é aberto ao público – inscrições eram feitas pelo TicketOnline, podendo os ingressos ser adquiridos até por não-jornalistas – e realiza-se num edifício público cedido por uma autarquia local. Mais público não poderia ser.

    Pedro Coelho, jornalista da SIC e presidente do V Congresso dos Jornalistas, inovou: num evento público com financiamento de 13 empresas e uma fundação, exigiu pagamento prévio para ser possível a cobertura noticiosa dos debates.

    Contudo, seguindo a tese estapafúrdia de ser o Cinema São Jorge supostamente um espaço privado (que é tão privado como a sede da ERC, na Avenida 24 de Julho em Lisboa), o regulador presidido por Helena Sousa argumenta que “o acesso ao espaço (privado)”, como repete, “em causa “é restringido a jornalistas, estudantes, professores, observadores e convidados da organização” [sendo que estes últimos não pagam], e repete um erro crasso e relevante ao reiterar, mais adiante na sua deliberação, que “o Cinema São Jorge é um espaço (…) privado”.

    Além desse incompreensível ‘erro’ sobre a propriedade do Cinema São Jorge, a ERC também tece uma tese curiosa que acaba por colocar questões deontológicas sensíveis. Com efeito, o regulador salienta que “o [na verdade público] Cinema São Jorge (…) albergará um evento destinado aos jornalistas enquanto tais, para discutir assuntos da profissão, ainda que o acesso a esse evento não lhes seja assegurado com vista ao desempenho da sua actividade de cobertura noticiosa” ressalvando, contudo, que “uma vez nele presente, [os jornalistas] possam, no todo ou em parte, exercitar essa sua atividade típica”.

    Ora, ao inscrever-se e adquirirem o direito de participar na votação de moções, esses jornalistas deveriam estar, por princípio, impedidos de fazerem a cobertura noticiosa para os seus órgãos de comunicação social, uma vez que o Código Deontológico estabelece que “o jornalista não deve valer-se da sua condição profissional para noticiar assuntos em que tenha interesse”.

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    Por fim, o regulador que salienta ser facultativo a possibilidade de credenciação, mas nem sequer reparou que entra em contradição, porque, assim sendo, somente se pode aplicar o princípio geral de acesso, que explicitamente diz que “os jornalistas não podem ser impedidos de entrar ou permanecer nos locais [abertos ao público] quando a sua presença for exigida pelo exercício da respectiva actividade profissional, sem outras limitações além das decorrentes da lei”. Ora, a lei não determina – e nunca tem sido prática – o pagamento de uma verba, independentemente da ERC considerar não ser demasiado elevada, sem especificar qual o limite de razoabilidade.

    Assim, com esta decisão o regulador abre a porta para que, em eventos públicos – incluindo outros congressos, espectáculos e mesmo convenções partidárias – passe a ser necessário uma inscrição prévia e um pagamento de entrada para efeitos de cobertura noticiosa. Ora, como a organização está livre de efectuar convites, a imposição de um preço de entrada pode ser um factor condicionante à liberdade de acesso às fontes de informação para jornalistas incómodos. Mas esse aspecto não foi sequer reflectido pela ERC.


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  • RTP entrega avença jurídica de 160 mil euros a sociedade de advogados com menos de um ano

    RTP entrega avença jurídica de 160 mil euros a sociedade de advogados com menos de um ano


    São quase 160 mil euros, se se incluir IVA, que a administração da RTP decidiu entregar de ‘mão-beijada’ a uma sociedade de advogados com pouco mais de meio ano de existência. O ajuste directo, celebrado em finais de Novembro de 2023, mas apenas divulgado na sexta-feira passada, estipula a entrega, ao longo de três anos, de uma avença mensal de 3.600 euros à Dower CMNS por serviços não especificados de “assessoria jurídica e mandato judicial (…) na área do Direito Laboral”.

    Criada no início de 2023, e sediada no Porto, a Dower CMNS nasceu da saída de quatro advogados de outras sociedades conhecidas, mas com ambições de facturar logo no primeiro ano pelo menos dois milhões de euros. Se não atingirem essa meta, a RTP contribui com quase 160 mil euros, a que acrescem mais oito contratos ‘sacados’ a entidades públicas, entre as quais as autarquias do Porto (e uma empresa municipal), de Caminha e de Lousada, a Área Metropolitana do Porto, a Fundação Casa da Música e a Ordem dos Engenheiros.

    No total, a Dower CMNS sacou contratos no valor de 423.899,99 euros ao longo do ano passado – que ultrapassa o meio milhão, incluindo IVA -, quase todos sem o incómodo da concorrência. Com efeito, somente um contrato no valor de 13.800 euros foi ganho após uma consulta prévia. Todos os outros foram pelos ‘lindos olhos’ – leia-se, se se quiser, pelos inegáveis talentos – dos quatro sócios da novel sociedade: Eduardo Castro Marques, Miguel Cunha Machado, Pedro Neves de Sousa e Nuno Sá Costa.

    No caso concreto do contrato com a RTP – o maior de todos os nove celebrados pela Dower CMNS com entidades públicas –, o Conselho de Administração da empresa pública liderado por Nicolau Santos escolheu uma das mais sui generis fundamentações previstas no Código dos Contratos Públicos.

    No registo constante no Portal Base invoca-se a norma que possibilita uma ajuste directo, mesmo se com uma duração de três anos sem determinação em concreto dos serviços jurídicos, nos casos em que “a natureza das respetivas prestações, nomeadamente as inerentes a serviços de natureza intelectual, não permita a elaboração de especificações contratuais suficientemente precisas para que sejam definidos os atributos qualitativos das propostas necessários à fixação de um critério de adjudicação (…) e desde que a definição quantitativa dos atributos das propostas, no âmbito de outros tipos de procedimento, seja desadequada a essa fixação, tendo em conta os objetivos da aquisição pretendida”. Portanto, um palavreado que permite encaixar tudo.

    Os sócios da novel sociedade Dower CMNS: Miguel Cunha Machado, Nuno Sá Costa, Eduardo Castro e Pedro Neves de Sousa. Bons contactos são ‘código postal’ para sacar contratos com entidades públicas sem o incómodo da concorrência.

    O PÁGINA UM pediu esclarecimentos na noite da passada sexta-feira ao presidente do Conselho de Administração da RTP, Nicolau Santos, sobre este contrato assinado apenas pelos outros dois administradores (Luísa Coelho Ribeiro e Hugo Figueiredo). Numa primeira reacção, Nicolau Santos manifestou-se surpreso, referindo ter pedido explicações “à Direcção Jurídica [da RTP] sobre o tema”, acrescentando ter esperança de poder responder até meio da tarde de hoje, o que (ainda) não sucedeu.

    Apesar de este ajuste directo com a Dower CMNS ser o maior – e beneficiar sem concorrência uma novel sociedade de advogados –, este não é o único ajuste directo por serviços de advocacia do mandato de Nicolau Santos na liderança da gestão da RTP. De acordo com o Portal Base, desde meados de 2021, quando este antigo jornalista licenciado em Economia pelo ISEG assumiu a presidência da RTP, foram celebrados mais cinco ajustes directos, que beneficiaram a PRA, Raposo, Sá Miranda & Associados (126.000 euros), a Sérvulo & Associados (96.000 euros), a Ferreiro Pinto & Associados (dois contratos, um de 60.000 euros, e outro de 57.600 euros) e a Morais Leitão, Galvão Teles, Soares da Silva & Associados (20.250 euros). Com IVA, a administração de Nicolau Santos leva já mais de 600 mil euros em ajustes directos para serviços jurídicos.

    Entretanto, esta terça-feira, Nicolau Santos referiu ao PÁGINA UM que a sua administração “segue as boas práticas de mercado, auscultando periodicamente o mercado nas mais variadas circunstâncias, sectores de atividade e projetos, independentemente de avançar ou não, por adjudicação direta”, acrescentando que “sempre que possível, a RTP inclui empresas novas nessas auscultações, como não poderia deixar de ser”. Não explica, contudo, qual a razão pela qual foi auscultada a Dower CMNS especificamente, e não outra qualquer criada recentemente. Além disso, também não explica a necessidade de criar uma avença para serviços que nem sequer são definidos em concreto e que, portanto, poderiam ser até tratados com a ‘prata da casa’.

    Nicolau Santos, presidente do Conselho de Administração da RTP desde 2021.

    Embora o presidente do conselho de administração da RTP saliente ainda que se selecciona, neste e noutros casos, “a empresas que mais se adequa e [se] adjudica formalmente serviços no estrito cumprimento da lei”, os critérios permanecem obscuros. Ou seja, não se sabe, no caso da Dower CMNS e dos outros contratos para aquisição de serviços jurídicos, porque foram aquelas escolhidas e não outras para receberem ‘contratos de mão-beijada’ com dinheiros públicos. Ignorando-se os critérios, a hipótese académica de ser ‘pelos lindos olhos dos advogados’ pode ser, mesmo que por absurdo, ser colocada em cima da mesa.

    O contrato entre a RTP e a Dower CMNS integra o Boletim P1 da Contratação Pública e Ajustes Directos que agrega os contratos divulgados entre os dias 12 e 14 de Janeiro de 2024. Desde Setembro de 2023, o PÁGINA UM apresenta uma análise diária aos contratos publicados no dia anterior (independentemente da data da assinatura) no Portal Base. De segunda a sexta-feira, o PÁGINA UM faz uma leitura do Portal Base para revelar os principais contratos públicos, destacando sobretudo aqueles que foram assumidos por ajuste directo.

    PAV

    Nota: O artigo foi complementado em às 17h15 do dia 16 de Janeiro de 2024 com as declarações de Nicolau Santos, presidente do conselho de administração da RTP.


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    Nos últimos três dias, de sexta-feira passada até ontem, no Portal Base foram divulgados 869 contratos públicos, com preços entre os 3,00 euros – para aquisição de material de carpintaria, pela Unidade Local de Saúde da Guarda, através de consulta prévia – e os 2.878.260,34 euros – para aquisição de energia eléctrica, pelos SIMAR – Serviços Intermunicipalizados de Loures e Odivelas, através de concurso público.

    Com preço contratual acima de 500.000 euros, foram publicados 10 contratos, dos quais seis por concurso público e quatro ao abrigo de acordo-quadro.

    Por ajuste directo, com preço contratual superior a 100.000 euros, foram publicados oito contratos, pelas seguintes entidades adjudicantes: dois da Cascais Próxima – Gestão de Mobilidade, Espaços Urbanos e Energias (ambos com a Sanestradas – Empreitadas de Obras Públicas e Particulares, um no valor de 390.000,00 euros, e outro no valor de 240.000,00 euros); Município de Gondomar (com a Ronsegur – Rondas e Segurança, no valor de 373.833,60 euros); Serviço Estrangeiros e Fronteiras (com a Securitas, no valor de 236.440,65 euros); três do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte (um com a Petrogal, no valor de 206.750,29 euros, outro com a Vertex Pharmaceuticals, no valor de 132.896,41 euros, e outro com a Bio Portugal – Quimico-farmacêutica, no valor de 107.748,00 euros); e a Rádio e Televisão de Portugal (com a Dower CMNS – Sociedade de Advogados, no valor de 129.600,00 euros).


    TOP 5 dos contratos públicos divulgados no período de 12 a 14 de Janeiro

    1Aquisição de energia eléctrica

    Adjudicante: SIMAR – Serviços Intermunicipalizados de Loures e Odivelas

    Adjudicatário: Acciona Green Energy Developments S.L.

    Preço contratual: 2.878.260,34 euros

    Tipo de procedimento: Concurso público


    2Aquisição de medicamentos

    Adjudicante: Centro Hospitalar Tondela-Viseu

    Adjudicatário: Bayer Portugal

    Preço contratual: 2.301.862,58 euros

    Tipo de procedimento: Ao abrigo de acordo-quadro (artº 259º)


    3Aquisição de energia eléctrica

    Adjudicante: SIMAR – Serviços Intermunicipalizados de Loures e Odivelas

    Adjudicatário: Acciona Green Energy Developments S.L.

    Preço contratual: 1.780.312,96 euros

    Tipo de procedimento: Concurso público


    4Aquisição de equipamento informático

    Adjudicante: Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça

    Adjudicatário: Base2, Lda.

    Preço contratual: 1.469.752,00 euros

    Tipo de procedimento: Concurso público


    5Fornecimento de gás natural em regime de mercado livre para Portugal Continental

    Adjudicante: Exército Português

    Adjudicatário: Gold Energy – Comercializadora de Energia

    Preço contratual: 959.941,90 euros

    Tipo de procedimento: Ao abrigo de acordo-quadro (artº 259º)


    TOP 5 dos contratos públicos por ajuste directo divulgados no período de 12 a 14 de Janeiro

    1 Empreitada de movimentações de terras, reparação de bases de pavimentos rodoviários e drenagem de águas pluviais

    Adjudicante: Cascais Próxima – Gestão de Mobilidade, Espaços Urbanos e Energias

    Adjudicatário: Sanestradas – Empreitadas de Obras Públicas e Particulares

    Preço contratual: 390.000,00 euros


    2Aquisição de serviços de segurança e vigilância privada para instalações de Saúde Pública municipais

    Adjudicante: Município de Gondomar

    Adjudicatário: Ronsegur – Rondas e Segurança

    Preço contratual: 373.833,60 euros


    3Empreitada de movimentações de terras, reparação de bases de pavimentos rodoviários e drenagem de águas pluviais

    Adjudicante: Cascais Próxima – Gestão de Mobilidade, Espaços Urbanos e Energias

    Adjudicatário: Sanestradas – Empreitadas de Obras Públicas e Particulares

    Preço contratual: 240.000,00 euros


    4Aquisição de serviços de vigilância e segurança humana

    Adjudicante: Serviço Estrangeiros e Fronteiras

    Adjudicatário: Securitas

    Preço contratual: 236.440,65 euros


    5Aquisição de gás natural durante os meses de Janeiro e Fevereiro do ano 2024

    Adjudicante: Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte

    Adjudicatário: Petrogal

    Preço contratual: 206.750,29 euros


    MAP

  • Congresso de jornalistas exige o que ninguém pede: inscrição com pagamento para cobertura noticiosa

    Congresso de jornalistas exige o que ninguém pede: inscrição com pagamento para cobertura noticiosa


    Em plena crise reputacional da Imprensa, a Comissão Organizadora do Congresso dos Jornalistas decidiu inovar duplamente: pediu apoio financeiro a 13 empresas e uma fundação – entre as quais dois bancos, a construtora Mota-Engil (onde é administrador Paulo Portas, antigo ministro e fundador nos anos 80 do semanário Independente), a Brisa, a REN, a Google e a Ikea – e mesmo assim ainda decidiu exigir pagamento de inscrição aos jornalistas que, sem participar nas moções, apenas desejem fazer a cobertura noticiosa dos debates. Além de o Estatuto dos Jornalistas não permitir a imposição de preços para o acesso de jornalistas a eventos públicos – e neste caso até está prevista a participação do Presidente da República e de seis deputados –, não se conhece casos similares de exigência de qualquer pagamento como condição de entrada a profissionais da imprensa. O PÁGINA UM, mais por uma questão de princípio e de prevenção, solicitou a intervenção urgente e em tempo útil da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, que ainda na semana passada interveio num litígio por o partido Chega ter colocado obstáculos ilegais à acreditação do jornalista Miguel Carvalho.


    “Reitere o que entender, reiteramos a nossa resposta”. É assim que Pedro Coelho – jornalista da televisão SIC, professor universitário e presidente da organização do V Congresso dos Jornalistas –, respondeu ao PÁGINA UM, insistindo na aplicação de um pagamento prévio, em violação do Estatuto do Jornalista, para ser permitida a cobertura de um evento público onde, entre outros assuntos, se debaterá o financiamento da imprensa, mas em que a liberdade e o direito de acesso à informação se encontram omissos na programação.

    Com um interregno de sete anos, a Casa de Imprensa, o Clube de Jornalistas e o Sindicato de Jornalistas realizam um novo encontro desta classe profissional, aberto ao público, entre a próxima quinta-feira e domingo. Embora já previsto há mais de um ano, o congresso coincide com um período conturbado em algumas empresas de media, com destaque para a Global Media e a Trust in News. Daí que a organização tenha integrado, de forma extraordinária, na cerimónia de abertura, que terá a presença do Presidente da República, quatro depoimentos de jornalistas da TSF (Filipe Santa-Bárbara), Diário de Notícias (João Pedro Henriques), Jornal de Notícias (Alexandre Panda) e TSF (Mário Fernando).

    Pedro Coelho, jornalista da SIC e presidente do V Congresso dos Jornalistas, inovou: num evento público com financiamento de 13 empresas e uma fundação, exige pagamento prévio para ser possível a cobertura noticiosa dos debates.

    A componente financeira aparenta ser, pela sua predominância do programa do congresso, um dos temas centrais, embora estranhamente sem a participação de administradores das empresas de media, que no programa são ‘substituídos’ por jornalistas e directores dos diversos órgãos de comunicação social, alguns dos quais têm promovido e participado em eventos pagos por empresas privadas e públicas, contribuindo assim para uma descredibilização da profissão e da reputação da imprensa.

    Aliás, sem terem sido revelados os montantes concedidos nem as contrapartidas, as três entidades organizadoras aceitaram apoios financeiros do Grupo Brisa, da REN, da NOS, dos bancos Santander e Millennium BCP, da Mota-Engil, do Google, da Mercadona, da Delta, da seguradora Fidelidade, da KIAS, da Xerox, do IKEA e da Fundação Oriente. Além disso, contam ainda com apoios institucionais do Cenjor, Agência Nacional Erasmus, Fundação Inatel, Universidade Autónoma de Lisboa e Câmara Municipal de Lisboa. De entre estas 19 entidades privadas e públicas de relevância noticiosa, somente o Cenjor, um centro de formação de jornalismo, tem ligação directa a temas relacionados com a imprensa. A Mota-Engil conta, desde 2023, com Paulo Portas como administrador. Recorde-se que este antigo ministro e ex-líder do CDS fundou em 1988 o jornal Independente, mas as suas ligações aos media circuncrevem-se agora ao comentário político na TVI.

    Apesar de o V Congresso dos Jornalistas ser um evento explicitamente público – ou seja, não é fechado sequer em exclusivo ao jornalistas –, e tanto assim que conta com o “Alto Patrocínio” da Presidência da República, havendo também um debate com deputados de seis partidos (PS, PSD, Chega, Iniciativa Liberal, Bloco de Esquerda e PCP), a Comissão Organizadora, liderada por Pedro Coelho, exige um pagamento prévio aos jornalistas que apenas queiram fazer a cobertura dos eventos. Mesmo se estes explicitem que não pretendem qualquer tipo de participação, como seja votação de moções.

    Congresso dos Jornalistas é financiado por uma fundação e 13 empresas, entre as quais a construtora Mota-Engil, que tem Paulo Portas como administrador. O antigo ministro e líder dos CDS-PP, fundador do semanário Independente nos finais dos anos 80 (conhecido pela sua irreverência), mantém agora um pé na imprensa como comentador da TVI.

    Saliente-se que o direito de acesso a locais públicos e o exercício desse direito por jornalistas com carteira profissional estão explicitamente consagrados no Estatuto do Jornalista. Sendo que o congresso dos jornalistas é público – admitindo-se a inscrição, sob pagamento, também de não-profissionais do sector, que não têm direito a votar em moções –, o diploma legal de 1999 diz que “os jornalistas não podem ser impedidos de entrar ou permanecer nos locais [onde se realizam eventos em locais abertos ao público] quando a sua presença for exigida pelo exercício da respectiva actividade profissional, sem outras limitações além das decorrentes da lei”.

    Ora, o condicionamento do acesso, como exige a Comissão Organizadora do Congresso dos Jornalistas, ao pagamento prévio de um montante, independentemente do valor, viola a lei. Aliás, a legislação refere que “nos espectáculos com entrada paga”, somente se os locais destinados à comunicação social se mostrarem insuficientes, podem ser aplicadas algumas restrições, mas ao nível de prioridades, sendo que os órgãos de comunicação de âmbito nacional e os de âmbito local do concelho onde se realiza o evento têm primazia sobre os demais. Mas está impedido que esse condicionamento seja feito sob a forma de pagamento.

    Aliás, se tal se verificasse poderia suceder uma espécie de “leilão de acesso” ou até uma imposição de pagamento arbitrário que, na prática, impedisse a cobertura noticiosa. Se esta prática de exigência de pagamento que a Comissão Organizadora do Congresso dos Jornalistas justifica como aceitável e legal passasse a ser prática comum, diversas entidades poderiam conseguir afastar ‘jornalistas incómodos’ exigindo, para a sua entrada, somas exorbitantes.

    Em todo o caso, e apesar do PÁGINA UM ter procurado junto da Comissão Organizadora que indicassem exemplos similares, até agora não são conhecidos outros casos em que os organizadores de um qualquer evento com interesse mediático tenham exigido uma inscrição com pagamento aos jornalistas para acederem aos locais.

    Independentemente do montante exigido para se aceder ao evento (20 euros) sobre o qual deseja fazer cobertura noticiosa – tanto que o jornal há meses tem uma secção especificamente dedicada à imprensa –, o PÁGINA UM solicitou uma intervenção da Entidade Reguladora para a Comunicação Social com carácter de urgência – e em tempo útil, como sucedeu (e bem) recentemente com a acreditação solicitada pelo jornalista Miguel Carvalho para acesso à convenção do Chega em Viana do Castelo.


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  • Covid-19: situação epidemiológica estável há 18 meses, mas DGS ‘inventa’ urgência de ‘booster’ a maiores de idade

    Covid-19: situação epidemiológica estável há 18 meses, mas DGS ‘inventa’ urgência de ‘booster’ a maiores de idade


    Desde Agosto de 2022, a mortalidade diária causada pela covid-19 nunca ultrapassou em qualquer mês a fasquia dos 10 óbitos, e a mediana está nos sete, exactamente o valor que se contabiliza nesta primeira quinzena de Janeiro. A covid-19, que desde Maio do ano passado está oficialmente endémica, ‘continua por aí’, mas sem constituir um risco de Saúde Pública relevante, sendo responsável apenas por cerca de 1,3% do total das mortes. Mas com o anormal acréscimo da mortalidade das últimas semanas, que o Ministério da Saúde recusa analisar, a Direcção-Geral da Saúde decidiu promover mais um ‘booster’ da vacina contra a covid-19. No comunicado de imprensa desta entidade, agora liderada por Rita Sá Machado, diz que esta recomendação foi “precedid[a] de avaliação pela Comissão Técnica de Vacinação Sazonal”. O parecer, porém, não foi disponibilizado ao PÁGINA UM, que o pediu por três vezes. Não admira: não existe formalmente qualquer “Comissão Técnica de Vacinação Sazonal“.


    Sem qualquer alteração relevante nos principais indicadores epidemiológicos, a Direcção-Geral da Saúde (DGS) passou a recomendar a vacinação contra a covid-19 para os maiores de 18 anos. A instituição agora liderada por Rita Sá Machado salientou ontem, em nota de imprensa, que esta mudança nas recomendações – que inclui também o alargamento da vacinação contra a gripe para a faixa etária dos 50 aos 59 anos – foi “precedid[a] de avaliação pela Comissão Técnica de Vacinação Sazonal”.

    O PÁGINA UM, apesar de ter solicitado por três vezes esse parecer à assessoria de imprensa da DGS, recebeu como resposta um triplo silêncio. Saliente-se, porém, que não existe formalmente, ao contrário do indicado pela comunicação da DGS, uma Comissão Técnica de Vacinação Sazonal. Existia já, antes da pandemia da covid-19, uma Comissão Técnica de Vacinação, constituída por um grupo de peritos para acompanhamento dos planos de vacinação contra diversas doenças, e a Comissão Técnica de Vacinação contra a Covid-19 (CTVC), criada em finais de 2020, que tem o seu último parecer publicado em Março do ano passado.

    three glass bottles on white table

    Em todo o caso, e independentemente de se estar perante um pico de mortalidade total – nas últimas três semanas (22 de Dezembro a 11 de Janeiro) registaram-se 10.072 mortes, uma média diária de 480 óbitos –, os casos positivos de SARS-CoV-2 e as fatalidades causadas pela covid-19 encontram-se em valores que se podem considerar normais na actual fase endémica.

    Com efeito, analisando os dados oficiais desde 22 de Dezembro de 2023 até 11 de Janeiro deste ano, contabilizam-se apenas 3.024 positivos – a estratégia e os critérios para a realização de testes modificaram-se em meados de Setembro de 2022 –, contabilizando-se 131 óbitos por covid-19. Este número indica uma média diária próxima de seis óbitos, com uma variação entre os dois (dia 26 de Dezembro) e os 10 (dia 28 de Dezembro). Este ano, o número máximo atingiu-se no passado dia 8, com nove óbitos, mas nos dias 10 e 11 registaram-se apenas quatro.

    Considerando o período posterior à declaração pela Organização Mundial da Saúde do fim da Emergência de Saúide Pública de Importância Internacional, em 5 de Maio do ano passado, a mortalidade causada pela covid-19 nas últimas semanas não mostra qualquer anomalias. Aliás, se compararmos as últimas três semanas como período homólogo anterior (22 de Dezembro de 2022 a 11 de Janeiro de 2023), a situação actual até é mais favorável: 131 óbitos agora; 171 óbitos no período anterior.

    Evolução epidemiológica da covid-19 desde o dia da declaração do fim da Emergência

    Caso se queira comparar ainda com os dois períodos anteriores subsequentes, ainda mais se releva que o cenário não parece justificar um programa de vacinação para grupos etários que nem em pleno pico pandémico, ainda com fraca imunidade natural, tinham risco relevante, em especial pessoas sem comorbilidades relevantes.

    De facto, no período de 22 de Dezembro de 2021 a 11 de Janeiro de 2022, os dados oficiais apontam para 847 óbitos por covid-19, ou seja, mais de seis vezes os valores actuais, enquanto no mesmo período de 2020-2021 a mortalidade associada ao SARS-CoV-2 foi de 1.859 óbitos, isto é, 14 vezes superior aos valores actuais. Além disso, em Janeiro de 2021 havia uma tendência crescente de infecções – o que está longe de suceder agora –, que levaria, a par do colapso das unidades hospitalares do Serviço Nacional de Saúde e de uma vaga de frio, que a mortalidade por covid-19 chegasse a rondar quase os 300 óbitos em alguns dias.

    Observando também a evolução da mortalidade ao longo dos últimos meses – e mesmo ao longo de 2023, num período em que a imprensa mainstream simplesmente deixou de acompanhar a covid-19 depois de uma overdose noticiosa de quase três anos –, destaca-se, do ponto de vista de Saúde Pública, uma ‘normalidade’: a covid-19 contribui para cerca de 1,3% das mortes e desde Agosto de 2022 todos os meses estiveram abaixo de uma média diária de 10 óbitos, sendo que a mediana é de sete, o valor actual do presente mês de Janeiro.

    Mortalidade média diária atribuída à covid-19 entre Março de 2020 e Janeiro de 2024 (até ao dia 11). Fonte: DGS. Análise: PÁGINA UM.

    Para um termo de comparação, no Verão de 2022, em vésperas de se levantar praticamente todas as restrições, a mortalidade por covid-19 ainda atingiu os 33 óbitos diários em Junho (987 nos 30 dias) e o pior desse ano foi Fevereiro, com 1.116 óbitos, o que dá uma média diária de 40.

    Em todo o caso, estes valores já eram muito mais baixos dos que se registaram no Inverno de 2020-2021, embora os critérios dessa contabilização sejam muito discutíveis,uma vez que bastava haver um teste positivo no momento da morte para o óbito ser declarado como causado pela covid-19. Por isso, em Janeiro de 2021 estão referenciados oficialmente 187 óbitos de média diária (5.805 nos 31 dias) e no mês seguinte uma média diária de 127, resultante de 3.557 mortes.

    A estratégia de vacinar constantemente a generalidade da população contra a covid-19, através de sucessivos reforços, foi posta em causa por um estudo científico que tem como co-autor o mais prestigiado epidemiologista mundial, o norte-americano John Ioannidis. Baseado num estudo observacional realizado na Áustria, os investigadores concluíram que a eficácia da quarta dose de vacina para impedir a morte por covid-19 não é significativa, além de conferir uma imunidade muito transitória e em rápida quebra.

    person holding white plastic bottle

    Além disso, o estudo salienta que “a imunidade natural pode ser um determinante principal da proteção imunológica numa população”, pelo que, atendendo ao risco-benefício, as vacinações adicionais deixam de ser uma opção aceitável na fase endémica da covid-19.

    Recorde-se que o PÁGINA UM ainda continua, através de iniciativas do seu FUNDO JURÍDICO, a aguardar decisões dos tribunais administrativos relacionados com intimações para acesso a informação de Saúde, nomeadamente a base de dados integral do Sistema de Informação dos Certificados de Óbitos (SICO), a base de dados dos internamentos, a base de dados das reacções adversas das vacinas contra a covid-19, os contratos de compra de vacinas (que excedem em muito as necessidades) e diversa outra informação sobre a gestão da pandemia. Em alguns casos, os processos de intimação estão em curso há quase dois anos.


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  • Falar Global: programa da CMTV vai assumir (finalmente) que não é conteúdo informativo

    Falar Global: programa da CMTV vai assumir (finalmente) que não é conteúdo informativo


    Em Novembro passado, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) já abrira um processo de contra-ordenação por violação da Lei da Televisão, uma vez que o programa Falar Global tinha conteúdos comerciais e era assumido pela CMTV como informação. Para tentar corrigir esta situação, Reginaldo Rodrigues de Almeida, o apresentador que andava a assinar com a sua empresa contratos comerciais para patrocinar este programa, suspendeu a carteira profissional de jornalista, mas foi continuando os seus negócios. No início deste mês, sacou um novo patrocínio de Isaltino Morais para promover no Falar Global a marca Oeiras Valley. A direcção editorial da CMTV, na iminência de nova sanção da ERC, decidiu que o programa é aquilo que tentava não ser: um conteúdo comercial incompatível com a presença de jornalistas.


    Ao jornalismo o que é do jornalismo; e ao marketing o que é do marketing. A direcção editorial da CMTV decidiu esta semana passar a retirar quaisquer referências ao carácter informativo do polémico programa Falar Global, emitido semanalmente naquele canal televisivo do grupo MediaLivre (ex-Cofina Media). Na ficha técnica vai deixar de constar a menção a ser um programa da responsabilidade da direcção de informação da CMTV, e não será permitida a participação de qualquer jornalista. O programa destaca sobretudo temas de tecnologia e inovação, promovendo produtos e também instituições universitárias e empresas, mas até agora mostrava-se aos telespectadores como se fosse um produto informativo.

    Esta decisão surge após o PÁGINA UM ter detectado mais um contrato de 50 mil euros, assinado já este mês entre a empresa Kind of Magic, detida pelo co-autor do Falar Global, Reginaldo Rodrigues de Almeida, e a Câmara Municipal de Oeiras para “aquisição de conteúdos publicitários de divulgação da marca ‘Oeiras Valley’ naquele programa. Aquele empresário é também professor da Universidade Autónoma de Lisboa, sendo membro dos Conselhos Científico e Pedagógico.

    Reginaldo Rodrigues de Almeida, professor da Universidade Autónoma de Lisboa, usou carteira profissional de jornalista para montar um programa de informação que, na verdade, estava ‘inundado’ de conteúdos comerciais escondidos.

    Em Novembro passado, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC)  já instaurara um processo de contraordenação à Cofina Media por causa deste programa semanal por transmitir conteúdos comerciais num programa supostamente informativo com a participação de jornalistas (Reginaldo Rodrigues de Almeida e Suely Costa) e onde surgia uma ficha técnica que incluía mesmo o nome do director daquele canal televisivo e também do Correio da Manhã, Carlos Rodrigues.

    O regulador, conforme noticiado pelo PÁGINA UM em Novembro passado, analisou três programas de Reginaldo Rodrigues de Almeida na CMTV, e destacou que “a participação de jornalistas em conteúdos que resultam do pagamento de contrapartidas por entidades externas compromete não só o seu direito à autonomia e independência, como também o seu dever correspondente”, acrescentando também que “a salvaguarda da independência editorial implica a definição de uma clara esfera de proteção face aos interesses promocionais de entidades externas à redação”.

    E concluía ainda que “daí decorre que a transparência e independência editorial não podem ser caucionadas de forma cabal em conteúdos pagos que são escritos por jornalistas”, o regulador destaca a singularidade de o jornalista, que é um dos autores do programa e que o apresenta [Reginaldo Rodrigues de Almeida] ser o proprietário da empresa (Kind of Magic) que celebrou os dois contratos com as entidades externas ao órgão de comunicação social, o Município de Oeiras e a Universidade de Aveiro, dos quais resultaram os conteúdos exibidos nas três edições do ‘Falar Global’ aqui em análise”.

    Ficha técnica do programa Falar Global emitido no passado dia 9 de Janeiro. Será o último com referência à direcção de informação da CMTV, assumindo-se a partir de agora como um conteúdo comercial.

    Além de dar um conjunto de ‘recados’ críticos à CMTV, a ERC decidiu ainda decidiu remeter a sua deliberação para a Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) para “averiguação de eventual incumprimento dos deveres profissionais dos jornalistas”. Antes desta decisão, podia-se assistir no Falar Gobal às conversas de Suely Costa, que se apresentava como jornalista de forma explícita, a auxiliar a promoção da venda, por exemplo, de auriculares com purificação de ar, de caixotes de lixo que fecham os sacos e até de cotonetes electrónicos.

    Ora, de acordo com a Lei da Televisão, “os serviços de programas televisivos e os serviços de comunicação audiovisual a pedido, bem como os respectivos programas patrocinados”, devem ser “claramente identificados como tal pelo nome, logótipo ou qualquer outro sinal distintivo do patrocinador dos seus produtos ou dos seus serviços”. Algo que não sucedeu pelo menos nos casos dos diversos contratos públicos revelados em Agosto passado pelo PÁGINA UM.

    Além de contribuir para desprestigiar a profissão de jornalista, a violação deste princípio de separação entre informação e conteúdos comerciais conduz a uma contraordenação considerada grave, que, no caso em apreço pode valer à nova dona da CMTV, que tem como sócio principal o futebolista Cristiano Ronaldo, uma multa entre os 20 mil e os 150 mil euros.

    Nos últimos programas de 2023, já em consequência da deliberação da ERC, extremamente crítica para a CMTV, o apresentador do programa, Reginaldo Rodrigues de Almeida, e Suely Costa – que conduzia sempre uma rubrica com o mesmo convidado da empresa iServices, chegando mesmo a promover a compras dos produtos divulgados – deixaram de se apresentar como jornalistas.

    Começando com uma curta rubrica dedicada à Ciência e Tecnologia em 2015 na CMTV, Reginaldo Rodrigues de Almeida foi transformando o Falar Global num programa comercial ‘travestido’ de informação.

    Segundo apurou o PÁGINA UM, os dois terão entregado a carteira, uma vez que os seus nomes já não surgem no registo público da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ), por a actividade comercial ser incompatível. No entanto, se a CCPJ assim quiser – ou estiver interessada em contribuir para terminar com a promiscuidade entre jornalismo e actividades comerciais –, poderá ainda accionar mecanismos sancionatórios contra aqueles dois jornalistas com carteira suspensa.

    Segundo revelou ao PÁGINA UM fonte oficial da CMTV, além da retirada de menção a um alegado carácter informativo do Falar Global, será feita “uma alusão clara” de o programa ser “da responsabilidade da produtora Kind of Magic”, e que sempre que forem emitidos conteúdos relacionados com a marca “Oeiras Valley” – como Isaltino Morais pretende dar a conhecer aquele município português – haverá referência expressa. A mesma fonte adiantou que a CMTV irá comunicar ao regulador a mudança de procedimentos, até para evitar um agravamento da sanção pelas violações à Lei da Televisão cometidas


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  • Câmara de Faro: contrato de transporte escolar de 1,06 euros custa afinal 370 mil

    Câmara de Faro: contrato de transporte escolar de 1,06 euros custa afinal 370 mil


    Para a Câmara Municipal de Faro, a pacata vila de Aljezur, na algarvia costa vicentina, fica muito mais longe do que Lisboa, e Loulé fica mais distante do que Beja. Ou, pelo menos, é aquilo que se conclui pelas estimativas dos percursos delineados para justificar um ajuste directo para o transporte de crianças algarvias com necessidades especiais para o Agrupamento de Escolas São João de Deus. O mais absurdo deste ajuste directo, assinado pelo presidente social-democrata e que beneficiou uma empresa denominada ‘Mais que um Destino’, é que, no Portal Base, o ajuste directo surge com um “preço contratual” de 1,06 euros. Com a hiper-inflação de distâncias, os encargos chegam, na verdade, aos 370 mil euros, para supostamente pagar mais de 349 mil quilómetros. Daria para quase nove voltas ao Mundo.


    À primeira vista, na consulta do Portal Base, pode parecer surpreendente a ‘diligência’ da Câmara Municipal de Faro em celebrar e divulgar um contrato público no valor de um euro e seis cêntimos. Isso mesmo: 1,06 euros. Mas é mesmo verdade, no passado dia 21 de Novembro, o município da capital do Algarve, liderado pelo social-democrata Rogério Bacalhau, registou um contrato deste valor pela aquisição de serviço de transporte de crianças para as escolas do Agrupamento João de Deus.

    O surpreendente baixo valor ainda se mostrava mais estranho porque o objectivo era transportar para aquele estabelecimento de ensino, integrado na Rede Nacional de Escolas de Referência de Educação Bilingue (com necessidades educativas especiais por serem surdos-mudos), não apenas crianças de Faro como de todo o Algarve.

    Agrupamento de Escolas São João de Deus.

    Porém, uma leitura do contrato propriamente dito celebrado por ajuste directo entre a autarquia de Faro e a empresa curiosamente denominada Mais que um Destino Lda., mostra que, afinal, os gastos públicos vão ser muito superiores. Na verdade, cerca de 349 mil vezes mais do que o valor que consta como “preço contratual”! Ou seja, a autarquia de Faro vai afinal pagar à Mais que um Destino Lda. um total de 370 mil euros, dos quais 140 mil já terão sido pagos no ano passado.

    Em vigor desde 16 de Novembro do ano passado, e com o seu término em finais de Maio deste ano, o contrato refere que, afinal, o valor de 1,06 euros – considerado o “preço contratual”, que será usada como valor para as estatísticas do Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção – diz respeito ao pagamento por quilómetro percorrido pelos veículos de transporte de crianças. E é através da consulta do caderno de encargos que se descobrem percursos com as respectivas quilometragens completamente absurdas.

    Com efeito, são quatro os percursos definidos a serem feitos pelo Mais que um Destino, Lda. para levar para a escola e trazer para casa as crianças em número que não é indicado. Logo ‘à cabeça’, o primeiro percurso é Aljezur-Lagos-Faro, para onde se apresenta uma estimativa de 667 quilómetros a ser realizado, segundo o caderno de encargos, pela A22. Portanto, por dia, com esta estimativa, a empresa de transportes receberá 707,2 euros.

    Rogério Bacalhau, presidente da autarquia de Faro, assinou um contrato que estipulava que a distância entre o seu concelho e Aljezur é superior à distância a Lisboa.

    Ora, sucede que a distância entre Aljezur e Lagos é de cerca de 32 quilómetros e entre Lagos e Faro de pouco mais de 82. Ida e volta dá, portanto, 228 quilómetros, que correspondia, ao preço unitário de 1,06, a um total de apenas 241,68 euros. Mesmo que se acrescente mais alguns quilómetros, jamais poderíamos chegar a uma quilometragem diária entre Aljezur e Faro passando por Lagos que é bem superior a ir de Lisboa a Faro e regressar no mesmo dia. Além disso, se imaginarmos uma criança a ser transportada todos os dias 667 quilómetros para ir à escola, estaríamos perante um acto de sadismo.

    No mesmo absurdo caem os outros percursos, onde a realidade geográfica não bate com as estimativas do contrato celebrado pela autarquia socialista. Assim, para o percurso Lagoa-Silves-Faro, o caderno de encargos estima uma distância (ida e volta) de 326 quilómetros, que implicará um pagamento de 345,56 euros.

    Também neste caso, o número estimado no caderno de encargos é desmentido pelas distâncias entre aquelas localidades, que rondam os 70 quilómetros, pelo que uma viagem de ida e volta daria apenas cerca de 140 quilómetros. Ou seja, pelo caderno de encargos, e perante esta hiper-inflação de distância, a empresa receberá por cada transporte diário mais do dobro do que deveria.

    Printscreen do caderno de encargos do contrato de ajuste directo onde constam as “rotas dos percursos” e a estimativa de quilometragem diária.

    Já a viagem de ida e volta entre as localidades de Albufeira, Loulé e Faro, que na realidade ronda os 100 quilómetros, foi estimada no caderno de encargos em 240 quilómetros, enquanto o percurso Loulé, Olhão e Faro, para o qual a autarquia definiu uma distância de 325 quilómetros por percurso diário, faz-se normalmente com uma quilometragem real a bater nos 68 quilómetros.

    Com o objectivo de perceber como foram feitas estas estimativas pelo município de Faro, o PÁGINA UM contactou a autarquia, por duas vezes desde Novembro passado, mas nunca obteve qualquer resposta. Também ficou sem resposta o motivo pelo qual a autarquia de Faro se disponibilizou a arcar com despesas de transporte de crianças que vivem em outros concelhos, sabendo-se que, por regra, o transporte escolar é assegurado pelos municípios de residência das crianças. De igual modo, ignora-se o número de crianças beneficiadas, porque o caderno de encargos é estranhamento omisso quer no número de estudantes a transportar em cada percurso quer na tipologia dos veículos.

    O PÁGINA UM também questionou o Ministério da Educação sobre o número de crianças algarvias a frequentarem aulas em Faro, no âmbito da Rede Nacional de Escolas de Referência, e pediu esclarecimentos sobre os apoios concedidos quer às escolas quer às autarquias quer às famílias dos estudantes, mas não obteve também qualquer resposta ao longo de mais de um mês.

    Aljezur: para a Câmara Municipal de Faro fica mais longe do que Lisboa.

    Também o Agrupamento São João de Deus não se mostrou disponível para informar quantas, afinal, são as crianças surdo-mudas por concelho que frequentam a escola nem para dizer os apoios que recebe do Ministério da Educação, e se incluem o transporte ou alojamento desses estudantes.

    Assim, com tanto silêncio, e perante a hiper-inflação da quilometragem, aquilo que apenas se sabe é que um ajuste directo com “preço contratual” de 1,06 euros vai custar afinal 370 mil euros. E com a hiper-inflação de distância, a autarquia pagará 349.057 quilómetros. Daria para quase nove voltas à Terra – para quem acredita que a Terra é redonda, claro.


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  • PRR ‘electriza’ Saúde: 788 veículos eléctricos custam 26 milhões de euros

    PRR ‘electriza’ Saúde: 788 veículos eléctricos custam 26 milhões de euros


    O Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) está também a servir para que a Saúde siga agora sobre ‘rodas ecológicas’. Os contratos decorrentes de um mega-concurso público, aberto no Verão passado, já começaram a ser assinados para entregar quase 800 viaturas eléctricas às cinco ex-Administrações Regionais de Saúde (ARS) e às oito Unidades Locais de Saúde (ULS) já existentes no ano passado. O grande vencedor foi a Stellantis Portugal, a sucursal nacional da empresa que fabrica, entre outras, as marcas Peugeot, Citroen e Opel. No total, o Estado vai gastar quase 26 milhões de euros para a nova frota automóvel eléctrica.


    Diversas entidades do Serviço Nacional da Saúde já começaram a celebrar contratos de aquisição de veículos eléctricos ao abrigo do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), que deverão totalizar mais de 25 milhões de euros, incluindo IVA. O primeiro contrato foi assinado em Novembro do ano passado – entre a Unidade Local de Saúde de Matosinhos e a Caetano TEC, no valor de quase 315 mil euros, para a aquisição de 10 viaturas –, enquanto o mais recente se celebrou em 22 de Dezembro, embora apenas divulgado anteontem no Portal Base, no valor de mais de 12,5 milhões de euros.

    Tanto este último como os restantes cinco contratos que integraram o plano de compra de veículos eléctricos para o sector da saúde tiveram como adjudicante a Stellantis Portugal, a sucursal nacional da empresa que fabrica, entre outras, as marcas Peugeot, Citroen e Opel. Este grupo foi, aliás, o grande vencedor do concurso público aberto em Junho do ano passado pelos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS) com um preço base de 24,2 milhões de euros.

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    O referido concurso público foi divido em cinco lotes, os três primeiros para a aquisição de um total de 719 furgões de cinco lugares, o quarto para 53 ligeiros de passageiros e o quinto para 16 furgões fechados. No total serão adquiridos 788 veículos.

    Cada um dos lotes tinha a distribuição do número de veículos para as diversas entidades, nomeadamente as Administrações Regionais de Saúde (ARS) do Norte (350 veículos), do Centro (117 veículos), de Lisboa e Vale do Tejo (123 veículos), do Alentejo (17 veículos) e do Algarve (42 veículos). As restantes entidades a receber veículos eléctricos com fundos do PRR foram as oito Unidades Locais de Saúde já existentes no ano passado, designadamente do Alto Minho, do Nordeste, de Matosinhos, da Guarda, de Castelo Branco, do Norte Alentejo, Baixo Alentejo e do Litoral Alentejano.

    Devido ao elevado montante, este concurso público dos SPMS atraiu muito interesse, concorrendo, além da Caetano TEC e a Stellanis Portugal, mais quatro empresas: Onda Predilecta, Ambienti d’Interni, Works4Pros e Lux Concept.

    De acordo com os dados disponíveis através do Portal Base, não é ainda claro se os lotes 4 e 5 – com vista à aquisição de 53 e 16 viaturas, respectivamente, foram já integralmente decididos. Quanto aos outros três lotes é já garantido terem sido ganhos pela Stellanis: o primeiro por quase 10,8 milhões de euros (quase 35,9 mil euros por cada um dos 300 veículos), o segundo por cerca de 10,7 milhões de euros (pelo mesmo preço unitário, relativo a 299 veículos) e o terceiro por aproximadamente 4 milhões de euros (cerca de 33,2 mil euros para cada um dos 120 veículos).

    Este terceiro lote, integralmente destinado à ARS de Lisboa e Vale do Tejo teve o contrato assinado em 28 de Novembro do ano passado, enquanto para os outros dois lotes ganhos pela Stellantis foram celebrados os contratos para entrega das 350 viaturas à ARS do Norte, pelo valor de cerca de 12,45 milhões de euros (IVA incluído), de 15 viaturas à ARS do Alentejo, no valor de 538 mil euros, de 14 viaturas à ULS da Guarda e de outras 14 à ULS de Castelo Branco, ambas no valor de um pouco mais de 502 mil euros, e ainda de 12 viaturas à ULS do Nordeste, no valor de 430 mil euros.


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  • Estranhos negócios: Fundo das Bahamas comprou empresa com passivo de 6 milhões para controlar grupo de media com passivo de 55 milhões

    Estranhos negócios: Fundo das Bahamas comprou empresa com passivo de 6 milhões para controlar grupo de media com passivo de 55 milhões


    No epicentro de uma ‘crise’ não apenas financeira mas também política, continua sem se conhecer os investidores do fundo das Bahamas que quiseram controlar a Global Media, um dos mais importantes grupos de media em Portugal, incluindo os históricos periódicos Diário de Notícias e Jornal de Notícias. Mas mais do que inquirir sobre quem está por detrás do World Opportunity Fund, há a ‘pergunta de um milhão’: sabendo-se que teve oportunidade de vasculhar contas e operações contabilísticas antes de concretizar a compra da quota a Marco Galinha, por que motivo o fundo das Bahamas foi adquirir uma empresa com um passivo de seis milhões de euros para depois poder controlar outra com um passivo de 55 milhões de euros, ainda por cima quase falida? E por onde andou o regulador no segundo semestre de 2023? E o Governo, que sabia da dívida de 10 milhões de euros ao Estado por parte da Global Media, não sabia de nada?


    Apesar de o controlo do World Opportunity Fund sobre a Global Media se ter concretizado apenas em 23 de Outubro do ano passado – com a aquisição da quota de Marco Galinha por um pouco menos de 1,1 milhões de euros –, o actual CEO deste grupo, José Paulo Fafe, já se encontrava como gerente da Páginas Civilizadas desde 24 de Julho, ou seja, a interferência do fundo das Bahamas iniciou-se muito antes da formalização do acordo de compra.

    Na verdade, ao contrário daquilo que indiciam as trocas de acusações entre os diversos accionistas da Global Media, a venda da quota de Marco Galinha, até então o sócio maioritário do grupo de media, ao fundo das Bahamas não se fez de forma repentina nem sem que as duas partes conhecessem, em concreto e por antecipação, a situação financeira em detalhe e os objectivos para o futuro. Até Marco Galinha, que não se desfez por completo da sua participação na Global Media, mantendo uma posição indirecta de um pouco menos de 25%.

    Ascensão e queda: Marco Galinha (ao centro) teve em 2020 uma entrada fulgurante como empresário dos media, mas está já de saída, sendo apenas o quarto maior accionista da Global Media. Conseguiu, com a venda ao fundo das Bahamas, fugir literalmente do ‘olho do furacão’.

    Como costuma ser habitual em negócios deste género, o World Opportunity Fund tratou logo de meter José Paulo Fafe na gerência da Páginas Civilizadas mesmo antes da compra de parte das quotas daquela empresa, que lhe daria o controlo indirecto da Global Media. Por regra, esse processo – que se denomina, em inglês, due diligence – permite uma averiguação detalhada dos activos e dos passivos de quem compra, para assim validar o interesse na aquisição sem surpresas à posteriori. O fundo das Bahamas passou assim, através de Fafe, a conhecer não apenas as demonstrações financeiras (e o relatório e contas) da Global Media, onde se destacava o passivo de quase 55 milhões de euros em 2022, como as operações contabilísticas em detalhe ao longo de vários meses.

    Neste contexto, mostra-se bastante estranho que numa newsletter do início deste ano da Comissão Executiva da Global Media, já presidida por José Paulo Fafe, surjam acusações contra a anterior administração – liderada por Marco Galinha (que ainda se mantém na administração sem funções executivas) – de ter solicitado a fornecedores que “somente facturassem após a conclusão do negócio com o World Opportunity Fund”. Se tal ocorreu, também é certo que apenas por falta de cuidado na due diligence. Além disso, recorde-se que José Paulo Fafe e Marco Galinha mantinham relações há muitos anos, tanto assim que o primeiro refundara o semanário Tal&Qual em 2021 com autorização do segundo, uma vez que o título daquele período está registado no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) como marca da Global Media.

    Aliás, a entrada da World Opportunity Fund fez-se sentir logo nos primeiros meses de 2023 com a renúncia de praticamente toda a administração anterior de Marco Galinha, onde pontuavam Helena Ferro de Gouveia – agora com uma veniaga na autarquia socialista de Almada –, Guilherme Pinheiro, Domingos de Andrade (que acumulava funções editoriais) e João Pedro Soeiro. A renúncia deste último, em 5 de Maio do ano passado, mostra-se estranha, porque continua a ser detentor directo de 20,4% do capital social da Global Media.

    José Paulo Fafe entrou, como ‘ponto de contacto’ da World Opportunity Fund, na Páginas Civilizadas antes da aquisição da quota a Marco Galinha.

    Já terá sido dinheiro do World Opportunity Fund a entrar em finais de Junho na Global Media para concretizar um aumento de capital, subsequente a uma redução para cobertura de prejuízos. Nessa altura, numa fase avançada das negociações para a compra da Páginas Civilizadas pelo fundo das Bahamas – e com José Paulo Fafe como gerente dessa empresa que controla a Global Media –, entrou em numerário, mediante a emissão de 417.792 novas acções, um total de 1.558.364,16 euros. Como a Páginas Civilizadas detém 50,2% do capital da Global Media, o World Opportunity Fund entrou, por aqui, com cerca de 780 mil euros. Desconhece-se por agora se houve entrada de mais verbas sob a forma de empréstimo de accionistas, uma forma expedita usada anteriormente, de modo a se obter rentabilidade mesmo em situação de prejuízos, e também para ser mais fácil recuperar os montantes investidos.  

    Contudo, em tudo isto, mais estranho do que a própria entrada do World Opportunity Fund, um veículo de investimento que visa lucro contínuo, como accionista da Global Media – em situação económica e financeira periclitante há anos, com prejuízos acumulados de 42 milhões de euros desde 2017 –, acaba por ser a opção pela aquisição da Páginas Civilizadas, uma vez que esta empresa, criada em 2020 por Marco Galinha, apresentava um passivo no final de 2022 de mais de 6,1 milhões de euros. E isto com um capital próprio de pouco mais de dois milhões de euros. Ou seja, a World Opportunity Fund, ao comprar 51% da Páginas Civilizadas não pagou a Marco Galinha apenas 1,02 milhões de euros; também assegurou a responsabilidade por 51% do passivo, ou seja, mais de três milhões de euros. João Paulo Fafe revelou em audição no Parlamento que o World Opportunity Fund terá gastado 7 milhões de euros para adquirir a posição de 51% nas Páginas Civilizadas a Marco Galinha.

    O percurso da curta vida da Páginas Civilizadas tem, na verdade, algumas situações peculiares. Constituída em 2 de Setembro de 2020 para servir de veículo financeiro para a entrada de Marco Galinha como accionista da Global Media, a Páginas Civilizadas não tem actividade editorial propriamente dita, tanto assim que contava em 2022 com apenas dois funcionários com um salário médio a rondar os 2.000 euros. Contudo, mesmo sem qualquer actividade que tal justificasse a empresa apresentou nesse ano uma facturação de mais de 6,2 milhões de euros, sendo que se contabilizaram gastos superiores a 5,7 milhões de euros, resultando, com outras despesas, entre as quais pagamentos de juros de quase 290 mil euros, um lucro de 29 mil euros.

    Em Julho do ano passado, o PÁGINA UM começou a questionar Fernando Medina, ministro das Finanças, sobre as dívidas de 10 milhões de euros ao Estado por parte da Global Media, dos quais cerca de 7 milhões assumidas ao longo do exercício de 2022. O governante recusou sempre responder. Este mês, o CEO da Global Media, José Paulo Fafe, admitiu que a empresa deve, actualmente, 7,5 milhões de euros.

    Que serviços (e a quem) a Páginas Civilizadas prestou com dois empregados, é uma incógnita; e para onde se destinou o dinheiro dos gastos, também se desconhece. Uma hipótese para tamanho volume de negócios terá sido a facturação de determinados serviços executados pela Global Media, uma situação que, uma due diligence, certamente detectaria como irregular e até bastante lesiva para os outros accionistas do grupo de media.

    Analisando as demonstrações financeiras da Páginas Civilizadas dos seus três primeiros anos de existência (2020, 2021 e 2022), há muitos aspectos sombrios. Quando a criou, Marco Galinha não incorporou logo na Páginas Civilizadas os investimentos na Global Media e na Lusa, nem tão pouco lhe chegou dinheiro fresco dos seus então sócios a título de capital social de dois milhões de euros: o Grupo Bel e as Páginas de Prestígio, ambas ainda sob seu controlo. Com efeito, no balanço de 2020 ainda não constava qualquer valor na rubrica de investimentos financeiros, e a maior rubrica dos activos (então de 2.193.774 euros) era referente a “outras contas a receber”.

    Ignora-se se o Grupo Bel e a Páginas de Prestígio chegaram alguma vez a fazer entrar dinheiro na Páginas Civilizadas, porque as demonstrações de fluxo de caixa entregues na Base de Dados das Contas Anuais estão vazias nos três anos de exercício (2020, 2021 e 2022) consultados pelo PÁGINA UM. Certo é que 2021 foi, na verdade, ano para fazer engordar o passivo da maior accionista da Global Media e da Lusa. Nesse ano, os dois funcionários conseguiram facturar um pouco menos de 165 mil euros, e entre gastos e outros ganhos, a Páginas Civilizadas até acabou o ano com um lucro de 78 mil euros.

    Marco Galinha controlava a Global Media desde 2020, mas com a ‘sangria financeira’ e o calote ao Estado, começou a desfazer-se dos investimentos e também da crise, entretanto ‘chutada’ para um fundo das Bahamas.

    Porém, em contrapartida, o passivo – que em 2020 era de 191 mil euros – disparou para os 10,6 milhões de euros. Uma parte deste passivo deveu-se a um financiamento de longo prazo de quase 3,4 milhões de euros – além de outro de curto prazo de cerca de 560 mil euros –, mas aparentemente a Páginas Civilizadas terá passado a assumir dívidas de outras entidades, em princípio da Global Media. Isto porque em 2021 o activo da Páginas Civilizadas passou já a incluir as participações directas na Global Media e na Lusa (valorizadas em 5,7 milhões de euros), mas no passivo, além dos quase 4 milhões de empréstimos bancários, acresceram aproximadamente 6,7 milhões de euros de “outras contas a pagar”. A quem? E por que actividade? Mistérios não esclarecidos pela gerência da empresa que já em Outubro do ano passado foi questionada pelo PÁGINA UM.

    Em 2022, com o extraordinário e inexplicável aumento da facturação, embora os seus lucros tenham sido de apenas 29 mil euros, é certo que o passivo da Páginas Civilizadas desceu, situando-se, mesmo assim, nos 6,1 milhões de euros, ou seja, três vezes superior ao capital próprio. Essa redução ter-se-á devido sobretudo ao pagamento de devedores, porque houve uma redução da rubrica “outras contas a receber”, que terá permitido o abate de uma parte da dívida do ano anterior. No entanto, isto são suposições, tendo em conta a ausência de esclarecimentos da gerência das Páginas Civilizadas e da ausência de dados nas demonstrações de fluxos de caixa.

    Por outro lado, a dívida de longo prazo diminui apenas para os 738 mil euros, mas em compensação a rubrica de “outras contas a pagar” (que não são fornecedores) continuou alta, situando-se nos 4,8 milhões de euros.

    Ivan Hooper (à esquerda), CEO da The Winterbotham Trust Company Limited, e Clement Ducasse (à direita), sócio da UCAP Bahamas Limited, são respectivamente administrador e gestor do World Opportunity Fund, conforme registo no Securities Commission of the Bahamas (SCB). Não se conhece a identidade dos investidores.

    Em suma, nesta análise financeira do PÁGINA UM às contas da maior accionista da Global Notícias, que detém também quase um quarto do capital da Lusa, talvez o maior mistério seja mesmo conhecer não tantos os investidores individuais mas sobretudo a razão pela qual um fundo de investimento das Bahamas compra parte de uma empresa (a Páginas Civilizadas) já fortemente endividada ao fim de três anos, que detém, por sua vez, uma empresa de media (Global Media) com prejuízos acumulados de quase 42 milhões de euros desde 2017, e ainda com uma dívida ao Estado que, no final de 2022, ascendia aos 10 milhões de euros.

    Saliente-se ainda que o PÁGINA UM tentou ao longo do último semestre do ano passado que a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) explicasse as razões pela qual não investigava em detalhe as contas da Global Media – que ainda por cima tem participação na Agência Lusa, uma empresa maioritariamente pública – para saber o motivo de não estar discriminado no Portal da Transparência o calote de 10 milhões de euros ao Estado, e conhecer outras informações relevantes. A ERC tergiversou sempre.

    Em Novembro passado, por exemplo, o regulador respondeu ao PÁGINA UM que, “não obstante, pontualmente e por razões proporcionais e necessárias, poder recorrer ao cruzamento com outras fontes disponíveis para verificar o cumprimento” das exigências de informação verdadeira no Portal da Transparência dos Media, como “o universo de regulados é vasto”, procurava promover “o tratamento equitativo de todos eles”. Portanto, para o regulador, avaliar o pasquim da Vila da Pocariça [N. D., que não existe] parecia ser uma prioridade similar à da Global Media. O impacte da crise nesta empresa, com efeitos até políticos, e com eventuais consequências financeiras para os contribuintes, tem demonstrado o contrário.


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