Luís Montenegro ganhou as eleições legislativas e já formou Governo. Mas, antes disso, António Costa teve uma derradeira palavra a dizer e resolveu ‘queimar os últimos cartuchos’ sob a forma de 20 Resoluções de Conselho de Ministros (RCM) nos dias 21 e 24, que ontem foram publicados em Diário da República. Não foi coisa pouca: envolvem um volume de despesas públicas da ordem dos 1,7 mil milhões de euros. Segundo um levantamento do PÁGINA UM, de entre as duas dezenas de RCM – que se tornaram uma forma corriqueira de governar por parte de António Costa –, 12 constituem autorizações para realização de despesa em institutos, empresas públicas e também universidades, sendo que as restantes são reprogramações, embora em grande parte dos casos com definição em concreto de gastos acrescidos e das entidades beneficiadas. Como o próximo Governo de Luís Montenegro não terá a mesma facilidade do de António Costa em gerir a ‘máquina de despesa do Estado’ com simples RCM – por não ter maioria parlamentar –, a ‘impressão digital’ do Partido Socialista vai, assim, manter-se em muitos sectores nos próximos anos.
Foi uma semana bastante produtiva a última em acção do Governo socialista cessante. Em quatro dias somente António Costa compôs, entre outros diplomas, um total de 21 Resoluções de Conselho de Ministros, praticamente todos com forte impacte financeiro e, em muitos casos, até condicionando da acção do novo Governo de Luís Montenegro, porque têm incidência em programas plurianuais. A sofreguidão do Governo Costa foi tal que alguns dos diplomas saíram de um Conselho de Ministros extraordinário em regime electrónico no passado domingo.
Tamanho afã governamental, levaram mesmo os serviços da Imprensa Nacional – Casa da Moeda, que produzem o Diário da República, a trabalho redobrado. Uma parte das Resoluções de Conselho de Ministros tiveram de passar para dois suplementos da 1ª série da ‘edição’ de ontem. O ‘tomo’ principal ficou cm 93 páginas, enquanto um dos suplementos ocupou 27 páginas e o outro mais 51, embora neste caso quase todo ocupado por uma portaria que estabeleceu as normas do regime de incentivo à produção cinematográfica e audiovisual.
António Costa e Luís Montenegro. (Foto: D.R./ Foto oficial de António Costa)
De acordo com o levantamento do PÁGINA UM, de entre as 20 Resolução com impacte financeiro e até orçamental, 12 constituem autorizações de realização de despesa por parte de institutos e empresas públicas e também universidades, sendo que as restantes são reprogramações, embora em grande parte dos casos também com definição em concreto de gastos acrescidos e das entidades beneficiadas.
Embora com alguma (pequena) margem de erro, porque algumas reprogramações podem não ter um impacte financeiro por se tratar de reajustamentos plurianuais, as derradeiras medidas do Governo Costa ‘mexem’ num impressionante montante: mais de 1,7 mil milhões de euros. E como o próximo Governo de Luís Montenegro não terá a mesma facilidade do de António Costa em gerir a ‘máquina de despesa do Estado’ com simples Resoluções de Conselho de Ministros – por não ter maioria parlamentar –, a ‘impressão digital’ do Partido Socialista vai manter-se em muitos sectores nos próximos anos.
Dois dos sectores onde tal será mais evidente são os investimentos na ferrovia e na habitação. O novo ministro das Infraestruturas e Habitação, Miguel Pinto Luz, estará ‘agarrado’ a três decisões do Governo de António Costa sobre a afectação de verbas específicas do Fundo Ambiental e do Orçamento do Estado para o Plano de Investimento em Material Circulante por parte da CP.
(Foto: D.R./Foto oficial de António Costa)
Um dos diplomas concede, desde já, autorização à empresa pública para proceder á repartição de encargos plurianuais, até 2032, num montante total de cerca de 746 milhões de euros. Por exemplo, para o Orçamento do Estado do próximo ano, o Governo de Luís Montenegro será já obrigado a incluir uma verba específica de 50 milhões de euros para dar cumprimento a esta Resolução.
Também é o Governo de António Costa que, em ‘fim de festa’ determinou a repartição em concreto das verbas que o Fundo Ambiental, que será tutelado pela nova ministra Maria da Graça Carvalho, deverá entregar à CP. A título de exemplo, este ano serão 78,5 milhões de euros e no próximo mais 82,6 milhões.
Ainda no sector dos transportes, mas neste caso em benefício do Metropolitano de Lisboa, foi também António Costa – que, desde Novembro acumulava a tutela das Infraestruturas – que decidiu já as compensações financeiras anuais a atribuir até 2030 pelo Estado no âmbito das obrigações de serviço público. Por ordem do Governo socialista, o Governo da Aliança Democrática terá de entregar este ano ao Metropolitano de Lisboa um total de 4.259.786 euros, e se continuar a durar em 2025 serão mais cerca de 18,3 milhões de euros. Nos próximos sete anos, a Resolução de Conselho de Ministros de 21 de Março, apenas assinada por Mariana Vieira da Silva, fixou pagamentos à empresa pública de 73,7 milhões de euros.
(Foto: PÁGINA UM)
No caso do sector da habitação, Miguel Pinto Luz vai, em termos práticos, ser obrigado a cumprir a estratégia do Governo socialista. A Resolução de Conselho de Ministros autorizou o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) a realizar a despesa e a assumir os encargos plurianuais de mais 390,5 milhões de euros no âmbito da contratualização do Programa de Apoio ao Acesso à Habitação, e que visa, em princípio, a construção das 26 mil habitações. Para 2025 e 2026, Luís Montenegro terá de garantir 190,25 milhões de euros em cada um destes anos para este programa habitacional, assim o determinou António Costa nos seus últimos dias como primeiro-ministro.
Acresce ainda, no sector da habitação, mas neste caso para residências de estudantes universitários, duas autorizações de despesa concedidas à Construções Públicas (ex-Parque Escolar). A primeira para se gastar quase 17 milhões de euros num edifício na lisboeta Avenida 5 de Outubtro. A segunda para se gastar um pouco menos de 6,6 milhões de euros na reabilitação de um edifício em Seia. Os prédios pertencias ao Subfundo ImoResidências, da Estamo, dissolvido recentemente.
O sector da Saúde também teve decisões de última hora por parte do Governo Costa. Além da confirmação de mais compras de vacinas contra a covid-19 até 2026, no valor de 210 milhões de euros – que terão, em grande parte, o lixo como destino, por ser já escassa a procura face aos compromissos assumidos pela Comissão Europeia –, houve muitas decisões para obras em hospitais.
A última reunião de Conselho de Ministros ordinária do anterior Governo contou a presença do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. (Foto: D.R./Foto oficial de António Costa)
No caso da reprogramação dos encargos plurianuais do Programa de Investimentos na Área da Saúde, foram incluídas autorizações de despesas para o alargamento e remodelação das instalações da urgência polivalente da Unidade Local de Saúde de Viseu Dão-Lafões (8,06 milhões de euros), aquisição de acelerador linear para o Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro (4,9 milhões de euros), a requalificação das instalações do Hospital de Conde de São Bento, em Santo Tirso (6,45 milhões de euros), o projeto de eficiência energética no Centro Hospitalar do Baixo Vouga (2,41 milhões de euros), a construção de uma central térmica no Hospital de Santa Maria (8,95 milhões de euros), a reabilitação dos sistemas energéticos do Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro (4,26 milhões de euros) e a requalificação do edifício de cirurgia do Instituto Português de Oncologia de Coimbra (38,3 milhões de euros).
Ainda no sector hospitalar, o Governo Costa aprovou a realização, ainda para este ano, de gastos por parte da Administração Central do Sistema de Saúde no valor de cerca de 16,1 milhões de euros, no quadro de um acordo de prestação de cuidados de saúde com a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa em duas unidades de saúde: o centro de reabilitação de Alcoitão e o Hospital Ortopédico de Sant’Ana.
Por fim, ainda houve mais três Resoluções relacionadas com a logística e aquisição de fármacos, um dos quais a próxima ministra da Saúde, Ana Paula Martins, até ‘agradecerá’ por não ser ela a tomar. Trata-se de uma aquisição de compra, ao longo deste ano, de cerca de 1,6 milhões de euros do polémico antiviral remdevisir, para tratamento da covid-19, que é comercializado sob a marca Veklury, pela Gilead. Ana Paula Martins foi um quadro de topo desta farmacêutica entre Fevereiro de 2022 e Janeiro de 2023. Nesta Resolução integra-se também a compra de outros “medicamentos contra a covid-19” não especificados, mas feito no âmbito de acordos celebrados, e mantidos em segredo, que atingiram os 22,7 milhões de euros desde 2022.
Ana Paula Martins (Foto: Captura a partir de vídeo da AR-TV)
No sector da segurança, o Governo de António Costa já ‘avançou’ com o trabalho da nova ministra da Administração Interna, Margarida Blasco já não se terá de preocupar demasiado com a aquisição de serviços de suporte à Rede Nacional de Segurança Interna. Ou, pelo menos, ficará a saber que o Governo socialista determinou já vai tudo vai ficar em cerca de 63 milhões de euros, sendo que este ano se gastará apenas 5,2 milhões de euros, mas depois 12,8 milhões de euros em cada ano do quadriénio 2025-2028, terminando em 2029 com um gasto final de 6,4 milhões de euros.
Além de autorizações para gastos em campanhas de sensibilização na área dos resíduos – onde o Governo Costa determinou ‘autorizar’ que o Governo Montenegro venha a gastar cerca de 10,7 milhões de euros, através do Fundo Ambiental e da Agência Portuguesa do Ambiente – e de autorizações para a aquisição de computadores por escolas e de aquisição de serviços de gestão do centro de contacto do Instituto de Segurança Social, houve também lugar, nesta recta final do Governo socialista, em garantir despesa para obras em duas universidades.
Para uma residência de estudantes, a Universidade de Lisboa obteve autorização para avançar com uma empreitada de 6 milhões de euros, cujas obras deverão estar concluídas no próximo ano.
Já a Universidade de Coimbra recebeu duas benesses na recta final do Governo socialista: a primeira para avançar com a empreitada de edificação da nova biblioteca da Faculdade de Direito, no valor de 28,1 milhões de euros; e a segunda para reprogramar a despesa de outra empreitada, dessa vez de quase 22,3 milhões de euros, no decurso da construção do Centro de Excelência em Investigação do Envelhecimento.
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NOTA: Esta reportagem contém imagens que podem chocar o público mais sensível.
A guerra promete continuar. (Foto: Rui Araújo)
República Centro-Africana.
5 de Janeiro de 2019.
A Força de Reacção Rápida (QRF) portuguesa é projectada para Bambari, a segunda maior cidade do país.
A 7ª missão das Nações Unidas (MINUSCA) inicia a Operação “Bambari sem grupos armados e sem armas”.
O objectivo é expulsar o grupo armado UPC da cidade.
Está programada uma visita do Presidente da República…
10 de Janeiro.
Os relatórios de situação referem tiroteio intenso na cidade.
90 paraquedistas portugueses – 3 grupos de combate, mais exactamente – participam nos combates contra os rebeldes muçulmanos.
Baixas do dia:
2 elementos das Forças de Segurança mortos.
1 comandante das Forças Armadas (FACA) da RCA abatido.
6 rebeldes do grupo armado UPC – o segundo mais importante do país – perdem a vida.
E 23 ficam feridos.
É o princípio da fase 2 da operação.
11 de Janeiro.
Os paraquedistas portugueses avançam ao longo do eixo Maidou – Mbrepou – Élevage.
É preciso dar protecção aos militares do Cambodja.
É o princípio da fase III da operação.
Percurso MREPOU-MAIDOU-ÉLEVAGE (Imagem: Documento militar classificado/Arquivo Rui Araújo)
11 de Janeiro.
Bambari.
Bairro muçulmano de Maidou.
Esta casa acanhada ardeu e, agora, está ao abandono.
Das intimidades mais secretas já nada resta.
É o fadário de muita gente…
A guerra deixou, aqui, uma modorra de ruínas ocres.
— O grupo UPC tinha a sua barreira aqui. É por isso que os portugueses vieram rebentar com as barreiras. Foi ao dispararem contra a barreira que a casa começou a arder. As chamas das armas… Começou a arder… E eles tinham a base aqui debaixo da mangueira. Ali à frente, debaixo da mangueira. Havia muitos UPC aqui no nosso bairro. No caminho, os veículos não podiam passar, mas as pessoas que passavam eram revistadas aqui. Pediam-lhes dinheiro para comer. É isso… — conta-me Gabin Gawa, que mora aqui.
— E o que viu quando os portugueses chegaram? — pergunto.
— Vi… Os blindados dos portugueses vieram disparar contra as barreiras. As chamas começaram a subir alto e caíam nas casas. E, a seguir, vi os do UPC a fugir… É por causa disso que os portugueses andaram a combater aqui.
— E houve muitos mortos?
— Só feridos. Mortos, não. Houve apenas feridos.
— Civis ou do grupo UPC?
— Civis. Os da UPC fugiram. Eles fugiram…
A tarde vai passando.
Apesar da miséria e dos morticínios da guerra é preciso viver a vida corrente…
Reparamos no salão “Tribunal de Beleza TANAKA” que, aqui, no meio de nenhures pode parecer anacrónico.
Puxamos paleio com o cabeleireiro.
É apenas um pretexto para escutar os mexericos, esmiuçar as agruras e as aspirações desta gente…
O cartaz carcomido mostra o acessório. Quem vê caras não vê preços…
— Um corte de cabelo, aqui, para as mulheres é 15.000 francos (23,00 euros) porque têm dois cabelos… À frente e atrás. Para os homens é 500 francos (0,77 euros). Tens algum problema com isso? (Ri-se) — explica ou indaga o rapaz Raoul Ether.
— E os jovens daqui desta aldeia… O que querem fazer na vida? Como é que eles vêem o seu futuro?
— O futuro dos jovens, aqui? Não há dinheiro, não há trabalho. Eles sofrem. Uns lavram a terra. Outros, acartam água. Há cabeleireiros, há costureiros. Não há nada para fazer. E eu preciso de ajuda. Há trabalho? (SILÊNCIO) Se há trabalho, vamos a isso. Mas se não há trabalho, ficamos sós, somos uns inúteis. Comemos mangas, meio a dormir. Não há nada. Não é vida…
O comércio nunca pára, apesar de não haver prosperidade há que mundos…
Todos os dias, aqui, são dias de fazer. E esforçados…
Um moço ganha uns vinténs a empurrar o carro da água.
Uns vendedores ambulantes de pé descalço aproximam-se.
Kossei, pastéis de feijão a 10 francos (0,02 euros).
Vendedores ambulantes. (Foto: Rui Araújo)
Um café de tacho custa 25 francos (0,05 euros)…
40 soldados (um pelotão de Infantaria do Nepal com 4 viaturas APC) patrulham Maidou. 24 horas por dia, 7 dias por semana…
Agora… porque antes da operação da MINUSCA não podiam meter os pés aqui.
O cenário no lugarejo é este:
Militares.
Perigo.
Arame farpado.
Casas em ruínas.
Destruição e miséria.
E… ladroagem pela noite fora…
Élevage, um dos bairros problemáticos de Bambari — juntamente com o de Maidou e Adji.
Há dois anos Élevage era mato.
Hoje, vivem neste campo duas mil e tal pessoas, sobretudo criadores de gado, que fugiram de Ippy, uma terriola a cento e tal quilómetros daqui.
Encontro com o chefe e o imã de Élevage com a protecção dos militares da ONU.
(Foto: Tiago Ferreira)
— Se o país estiver bem, se houver paz regressamos para a nossa terra, Ippy. Mas até agora os problemas são aqui nesta pequena aldeia…Há massacres. Há gente a morrer. Há muitos problemas no mato. É por isso que continuamos aqui em Bambari. — diz Hassan Issa, o imã de Élevage.
Os soldados nepaleses da MINUSCA efectuam, aqui, patrulhas 24/7. São os únicos.
As forças armadas da RCA (FACA) e a polícia não metem aqui os pés.
Percorremos o campo banhado de sol.
Mais miséria. E mais desconfiança, também. Plenamente justificada.
Os Capacetes Azuis nem sempre conseguiram impedir os massacres como foram, por outro lado, acusados de cometer crimes (sexuais) contra as populações que eram supostos defender.
A paz decretada há meses (com a assinatura do 8º acordo de paz) é precária.
Há quem defenda que o mandato da MINUSCA devia ser mais ofensivo para permitir a resolução do conflito e a reconstrução do país.
A luz turva da tarde está a chegar…
O muezim chama os fiéis para a prece obrigatória.
É o fim do segundo apelo. Há cinco por dia.
Mesquita Central de Bambari.
Bairro de Bornou.
Os fiéis entram.
O imã é Hamat Hamadi.
44 anos. É comerciante. Tem 5 filhos e uma única mulher…
É um homem respeitado no burgo.
O imã despacha-se já que nem todos estamos com vagar.
Terminada a oração, o arauto e os outros crentes partem.
Decidimos falar com o homem.
— A UPC é o quê? Que gente é essa?
— Em todo o caso, senhor jornalista, a UPC é um movimento que nasceu depois da crise, mas os bairros muçulmanos e os meios muçulmanos já existiam antes. Podemos dizer quase há meio século. Os bairros muçulmanos existem e os homens da UPC existiam antes de a crise chegar. Portanto, é escusado dizer é um meio da UPC ou um meio tal. É um bairro como os outros bairros da cidade. Não há nada de bom nesta guerra. Não há um vencedor nesta guerra. Pelo contrário, só há perdedores. Nós somos todos perdedores. A outra comunidade governou este país durante meio século. E a nossa comunidade que vivia com eles veio, por sua vez, gerir o poder. Eles não estão de acordo. Inventaram tudo e mais alguma coisa para nos irmos embora. Fizeram-nos deixar o poder. Mas porque razão ainda trazem milícias que matam. Já viste um muçulmano, um Seleka, cortar alguém aos pedaços? Comer a carne de uma pessoa? Não. Vimos o canibalismo no outro lado. Toda a gente viu.
— A MINUSCA está cá. Os portugueses estiveram cá até há umas semanas. Houve combates sangrentos aqui e não só. Qual é a lição que tira destes acontecimentos? — questiono.
— A MINUSCA está cá. Trabalhou muito para o regresso da paz e da segurança no nosso país. Sim, devemos agradecer à MINUSCA. Ela fez coisas boas.
— E os portugueses? Há umas semanas, os paraquedistas…
— Há semanas os paraquedistas portugueses estavam na cidade. Travaram um combate sangrento, como referiu, com homens armados, mas eu digo-lhe: o que eles fizeram não o fizeram com profissionalismo. Os portugueses não fizeram a diferença entre o homem armado e o homem civil. Porquê? Os homens armados moram nos mesmos bairros que os civis. Eles querem montar uma operação militar e não têm escolha. O exército português matou muita gente que é inocente. Então, eu peço-lhes para darem provas de profissionalismo nas suas acções…
— A UPC não meteu os civis à frente justamente para se servir dos civis?
— Senhor, o último combate que ocorreu aqui na cidade foi à uma da madrugada. Eu pergunto-lhe: quem é o civil que vai estar acordado a essa hora para estar metido nessa história? À uma hora da manhã, por favor…
— Pode ter sido obrigado…
— Obrigado por quem?
— Pela UPC…
— Eu não tenho a prova. Eu não tenho a prova. Eu estava no interior quando os tiros de canhão começaram a retentir. Ouvi gritos aqui e acolá. A população começou a fugir nessa noite. Uns, caíram com as balas. Outros, escaparam.
O grupo armado usou crianças como escudos humanos em Bambari.
É o que reza vermelho no branco um relatório militar a que a TVI teve acesso.
“They are also using children as human shield.” (“Eles também usam crianças como escudos humanos.”) (Imagem: Documento militar classificado/ Arquivo Rui Araújo)
Bambari, a “Fascinante”.
O eixo CTO — a rua Direita —– começa no PK0 e acaba, ali ao fundo, na ponte do Ouaka.
O rio de povo passa…
Na outra margem, lá em baixo… As lavadeiras. A roupa a corar.
Roupa branca que a gente estendeu…
O pescador…
Os putos a brincar.
E os areeiros, que afeitos a horas longas, batem a margem e enchem bidões à custa de muito suor.
Bambari foi um importante polo económico. Foi…
Para o algodão e para o açúcar.
Hoje, a cidade é apenas mais um ponto de passagem.
As bancas e o mercado dos cristãos, que esteve fechado durante quase um ano, dão uma aparência de normalidade…
9:46
A patrulha apeada conjunta arranca…
Dois polícias, outros tantos guardas, três soldados e sete Capacetes Azuis da Mauritânia garantem a segurança e impedem os roubos.
O comércio: mercearias, barbeiros e bancas de roupa.
É um arraial incessante de propostas.
As falas doces dos vendedores de pé no palco improvisado parecem réplicas. Eles representam. Como toda a gente, aliás. E governam-se…
Calças de ganga a 2 mil francos (3,00 euros).
Camisas a 1.500 (2,30 euros).
Vestidos a 500 (0,70 euros).
Os clientes enganados ou desenganados — nunca se sabe! — compram os precisos e a roupa. Quando compram…
No mercado, a meio rua, a coisa fia mais fino: os muçulmanos fornecem a carne e os cristãos o resto.
— Isto pode rebentar a qualquer momento? — digo a Bob Gbiassango, oficial da Gendarmerie local.
— Pode ou não pode… Pois. Pode ou não pode… Eu não sou a melhor pessoa para dizer se pode explodir. Para mim, isto está resolvido… Houve combates… Mas a população, efectivamente, foi ela quem sofreu… Os combates foram travados em toda a cidade… Depois, quando acabaram, a população ficou de um lado e os assaltantes do outro. Houve muita gente que morreu nos dois lados feitas as contas. Feitas as contas, não foram coisas sem gravidade…
— Foram momentos terríveis…
— Sim, efectivamente foram momentos terríveis, mas isso já passou. Com a tropa é sempre assim. Quando a coisa rebenta deve aquecer, mas depois fica calmo. É assim…
“Momentos terríveis…” É a formulação autorizada. E politicamente correcta.
As mesmas vítimas de sempre… (Foto: Movimento de guerrilha UPC/ Arquivo de Rui Araújo)
Os combates entre as forças da MINUSCA e o grupo armado UPC provocam, segundo uma fonte religiosa, 50 mortos e um número indeterminado de feridos.
Rebeldes e, sobretudo, civis…
Toda a gente mata na RCA, mas ninguém ou quase denuncia esta guerra particularmente suja… (Foto: movimento da guerrilha UPC – Arquivo de Rui Araújo)
Estas fotografias dão conta da tragédia…
Em parte…
Habitações esburacadas, destruídas. Fogo… Cinzas e mais cinzas. E morte… por toda a parte: homens, mulheres e muitas crianças…
“Os nús e os mortos” (1), aqui, são os mesmos…
O raio da guerra não poupa nada nem ninguém…
12 de Janeiro.
6:05 da manhã.
A Força de Reacção Rápida (QRC) portuguesa parte de Bambari para Bokolobo, o quartel-general do grupo armado UPC.
As forças do Ruanda avançam para o mesmo objectivo a partir de Alindao, outra terra de massacres, que fica mais a Sul.
Entre Bambari e Alindao fica Bokolobo, o quartel-general do grupo UCP. (Imagem: Documento militar classificado/ Arquivo de Rui Araújo)
A operação contra o grupo armado UPC em Bokolobo é um sucesso.
Balanço estimado: 65 a 83 rebeldes mortos e 29 a 42 feridos.
A MINUSCA não sofreu qualquer baixa.
No dia seguinte os paraquedistas portugueses regressam à base do PK3, em Bambari.
Manifestaçáo. A morte é a morte, independentemente do lugar. (Imagem: Documento da guerrilha UPC/ Arquivo de Rui Araújo)
16 de Janeiro.
9 da manhã.
200 ou 250 moradores dos bairros muçulmanos de Bambari protestam contra a operação militar da MINUSCA.
Lamentam os mortos e a destruição. E pedem o fim do uso da força em Bambari e Bokolobo.
Três palavras de ordem:
“NÃO AO CONTINGENTE PORTUGUÊS E AO NEPALÊS
NÃO NÃO NÃO À GUERRA
QUEREMOS PAZ“
— A MINUSCA tem os meios humanos e materiais de que necessita para cumprir a sua missão aqui? Num país tão vasto quanto a Península Ibérica… — pergunto.
— Vamos lá a ver. A MINUSCA tem… tem… tem, sob o ponto de vista da sua organização, da sua componente militar, um perfil que está estabelecido e que está aprovado. Não vale a pena estarmos a apelar para aumentar o efectivo da força quando isso não tem sido autorizado pelo Conselho de Segurança. — responde o general Marco Serronha, 2º Comandante da MINUSCA.
General M. Serronha, 2º Comandante da MINUSCA.
(Foto: Tiago Ferreira)
— Estamos a falar de cerca de 12.000 homens…
— 11 mil… 11 mil e 600. 11.654, mais precisamente. Mas o que nós temos tentado fazer junto de Nova Iorque é, sem subir por assim dizer o tecto do efectivo, melhorar as capacidades e estamos a trabalhar nesse sentido. Ou seja: que os contingentes internacionais tragam capacidades adicionais nalgumas áreas, nomeadamente nas áreas que têm a ver com a possibilidade de terem uma, o que nós chamamos uma situation aware, terem a capacidade de antecipar aquilo que se está a passar e para isso é preciso meios tecnológicos que alguns deles não têm, mas que nós estamos a fazer força para terem. Nomeadamente uma das questões também que estamos a trabalhar e que já temos são os meios aéreos não tripulados que estão a ser utilizados também, mas que temos de algum modo estender mais para permitir que possamos saber melhor o que se passa no terreno. Agora, não temos, vamos lá a ver, não vamos pedir um aumento de efectivo porque isso não é autorizado, portanto, não vale a pena…
— Uma QRF (Quick Reaction Force ou Força de Reacção Rápida) sem meios aéreos chega sempre tarde e a más horas…
— Essa é uma das questões também. Nós estamos a fazer força junto de Nova Iorque para obter mais meios aéreos nomeadamente mais uma unidade de helicópteros, não só para ter a possibilidade de projectar ou apoiar a projecção de forças, mas essencialmente para cobrir melhor um dos aspectos sensíveis destas missões de paz que é a evacuação de baixas, caso aconteçam.
A morte, aqui, é pública… (Foto cedida por um movimento de guerrilha da RCA/Arquivo de Rui Araújo)
17 de Janeiro.
Élevage.
A potencial chegada a Bambari de dois generais do grupo UPC pode indiciar — segundo serviços militares — a continuação da guerra.
Durante a tarde, os paraquedistas portugueses detectam movimentos suspeitos no bairro muçulmano.
Este homem, que se encontra perto do local onde foram encontradas armas, é identificado como elemento do grupo armado e detido.
O suspeito detido e o armamento apreendido. (Fotos: Documentos militares classificados/ Arquivo de Rui Araújo)
Bambari, uma cidade sem grupos armados e sem armas?
Mais ou menos…
É neste quartel das Forças Armadas da República Centro-Africana, as FACA, que os mercenários russos estão instalados.
Alguns pertenceram às forças especiais.
Os soldados das FACA – ao contrário dos guerrilheiros – têm medo dos criminosos do grupo Wagner. ((Foto: Documento de um serviço secreto ocidental/ Arquivo de Rui Araújo)
— Com os russos, tudo bem, porque eles são parceiros nossos… — diz o Comandante Florent Ogalama das FACA.
— O que fazem exactamente, aqui? Ao nosso lado…
— São amigos nossos. Estão cá connosco…
— E estão a fazer o quê?
— Não comento… Não comento…
Chega a haver 20 mercenários russos em cada destacamento das FACA.
Os russos do grupo Wagner ou Séwa, aqui, fazem o que querem.
E não é só andarem a passear na rua de espingarda automática. E formarem a tropa. Torturam pessoas!
Mercenários do grupo russo Wagner, em Bria (uma “cidade sem armas” por decisão da MINUSCA que inexplicavelmente nada faz para os travar…). (Foto: Rui Araújo)
Este documento militar classificado, por exemplo, é peremptório:
11 de Janeiro.
8:00 da manhã.
Os mercenários russos prendem em Bambari um cidadão de 38 anos a pretexto de ser coronel dos grupos armados muçulmanos.
Depois de ter sido torturado durante 5 dias o homem acabou por mutilar-se, cortou um dedo da mão direita para conseguir ir para a Gendarmerie.
Os bandidos russos roubam, torturam e matam impunemente. (Imagem: Documento militar classificado/ Arquivo de Rui Araújo)
Há menos de um ano, foram assassinados no norte do país três jornalistas russos que investigavam as actividades do grupo privado militar russo (sem existência legal) Wagner.
Os corpos foram descobertos pela MINUSCA…
Os jornalistas russos andavam a investigar o grupo Wagner… (Foto: D.R.)
As ambições imperiais da Rússia (que passam pela reconquista geopolítica e económica do continente africano) são assumidas… por Lobanov, o representante diplomático de Moscovo em Bangui.
“A URSS foi um dos primeiros países a reconhecer esse jovem Estado africano.“
“Hoje, a Rússia regressa a passos largos ao continente africano.“
A influência crescente da Rússia, que vai ter 30 observadores e pessoal de comunicações na MINUSCA, reflecte-se a vários níveis:
– Doação de armamento
– Instrução das Forças Armadas
– Assessoria e Segurança (incluindo do presidente)
– Medidas políticas
– Influência sobre os grupos armados no processo de paz
– Colunas humanitárias… ou coisa que valha. Há colunas “humanitárias” russas com protecção blindada e mercenários que vêm do Sudão (pela fronteira no nordeste, em Birao para Ndele ou para Kaga Bandor,o antes de se dividirem: uma parte da coluna vai para Bria e outra para Bangui) e que ninguém controla (nem sequer a MINUSCA).
A primeira entrega de armas e munições russas teve lugar no ano passado.
O plano prevê mais fornecimentos…
Milhares de armas de todos os tamanhos e feitios e milhões de munições calibre 7.62 e 5.45, etc.
A ajuda internacional nunca é desinteressada…
Há quem pense que a intenção real da Rússia na República Centro-Africana é testar uma abordagem pluridisciplinar (política, militar, económica e mediática) susceptível de ser duplicada noutros pontos do continente.
Aos tiros é que a gente se entende… (Imagem: Documento militar classificado/ Arquivo de Rui Araújo)
— A presença russa é uma realidade neste país. Portanto, temos que ter em conta esse facto. Não é só neste país como sabemos… A presença russa tem um plano estratégico, que não é um plano desconhecido para África, portanto, há claramente um regressar a África, uma influência a todos os níveis em África do ponto de vista político, do ponto de vista operacional e até nas áreas mais ligadas aos recursos, nas áreas comerciais. Portanto, a Rússia está presente. Como é que a Rússia iniciou a sua actividade aqui na RCA? Iniciou-a com oferta de armamento para equipar as Forças Armadas centro-africanas. Isso foi a porta de entrada. — explica o general Hermínio Maio, comandante da Missão da UE na RCA.
A União Europeia está a apoiar a “transição para a paz” (sic). O acompanhamento é político e militar. E o responsável europeu da missão de treino das Forças Armadas da República Centro-Africana é um general português…
A coluna faz um alto!
É preciso avaliar a situação.
O inimigo, aqui, nunca está longe.
É dada ordem de marcha.
E o que conta em campo aberto é a cadência.
E a melhor forma de sobrevivência.
Esta guerra é complexa e surpreendente…
Campo Kassai.
Marchar é preciso…
É mais um dia de formação.
Esta manhã são os militares do Batalhão de Infantaria Territorial 4.
Duas companhias: 336 homens e 8 mulheres.
Têm pouco mais de 3 meses para apreender a arte da guerra.
— Alistei-me no exército centro-africano só para apoiar o meu país. Só para defender a integridade territorial do meu país, mas hoje infelizmente não há paz no meu país. Estou, portanto, decepcionado com o que está a acontecer no meu país. Pois, eu peço mesmo a Deus. Se Deus me der a paz no meu país é o suficiente. — confessa o cabo BIT 4, Régis Moresse.
Treino operacional e educação.
O projecto é de Bruxelas.
Os 46 formadores de 5 nacionalidades são, essencialmente, europeus.
A crise — para não dizer a guerra — começou há sete longos anos.
O pais é um dos mais pobres do Mundo apesar da riqueza: diamantes, ouro e urânio.
Os grupos armados são um dos problemas.
— Chegou-se a um nível básico de crueldade entre as pessoas que é incrível e que é difícil de aceitar. Da minha experiência noutros países africanos, obviamente pensei que seria difícil ver pior, mas o pior existe aqui na República Centro Africana. E se nós considerarmos que estamos no coração de África, isto deve naturalmente interpelar-nos. — conclui o comandante da Missão da União Europeia na RCA.
Treino de tiro com dois instrutores de Portugal e um de França.
A arma é a AK 47.
Calibre 7.62.
Há 10 atiradores de cada vez.
4 posições de tiro.
São 2 tiros por posição.
As distâncias são 25, 50, 80 e 100 metros.
O responsavel, esta manhã, é um sargento-mor francês – de Infantaria de Marinha – que não poupa nada nem ninguém.
— Zero! Não é o seu primeiro zero! Você é um adepto do zero. — grita um sargento francês.
A ideia é atirar a matar.
O alvo é para atingir no centro, mais exactamente na zona laranja.
A dificuldade é tirar a mirada – alinhar o ponto de mira com o centro do alvo.
— Temos que insistir muito mais porque é mais difícil a compreensão deles. Por exemplo, quando estamos, aqui, numa acção destas, não tenho ali alguém sempre ao meu lado para traduzir. Tenho que andar em cima deles. Conduzi-los muitas vezes para a acção. Faz assim… Faz assim… muitas vezes por gestos. Falo francês e eles não compreendem. Já sei algumas palavras em sangho, mas só isso não chega. Então, temos de estar em cima deles nesse aspecto. — afirma o primeiro-sargento Pedro Monteiro.
Mudança de cenário.
É dia de táctica de pelotão de combate.
Deslocamento para a área do objectivo.
Não há tempo a perder.
O perigo na zona de morte é uma constante.
O grupo de assalto avança.
É preciso limpar o objectivo. O português orienta o movimento, corrige os erros.
O primeiro inimigo é abatido. A fingir, claro.
Inimigos neutralizados.
Operação terminada.
42 homens e uma mulher partem.
É o momento do balanço.
— O grande desafio, aqui, serão exactamente os meios. Sabemos que estamos com fracos recursos e também temos que ter atenção a isso, adaptar-nos às condições que eles têm e dar-lhes ferramentas de forma a eles não fazerem porque sim, mas perceberem porque é que o fazem. — complementa o alferes Roque Seguro.
A esperança — e o caminho a percorrer será necessariamente longo e penoso — é o horizonte, um dia, daqui a algum tempo, sabe-se lá, ser feito de democracia e de paz.
—A formação vai prosseguir e é tanto mais importante quanto a guerra continue.
Os rebeldes controlam 80 por cento do território do país. Os acordos de paz — e não são poucos, já vamos no oitavo — sucedem-se, mas até hoje resumiram-se a estrondosos fracassos. — conto dentro de um helicóptero cheio de militares da RCA.
Os formadores das FACA são a União Europeia e… (Foto: Rui Araújo)
Bokolobo.
Umas semanas depois dos combates.
À entrada da cidade a barreira do grupo UPC.
Há homens armados e de todas as idades por toda a parte.
Bokolobo é um desses lugares onde a guerra parece humana…
Fomos ter com os inimigos dos paraquedistas portugueses, aqui, no seu quartel-general.
O grupo UPC perdeu dezenas e mais dezenas de combatentes, mas continua a controlar a cidade e a região.
Centro de Saúde de Bokolobo.
No pátio que faz de sala de espera…
Aichatou Nouhou.
9 anos.
Foi para Pombolo para fugir da guerra. Não escapou à fome.
Aichatou está a morrer. De malnutrição aguda.
É muçulmana. Mas Deus (seja ele qual for!) não mora aqui…
No interior do estabelecimento uma doente acamada espera…
Tem 32 anos. É camponesa. Cuida da terra a 10 quilómetros daqui. Perdeu os sentidos por causa da fome…
Os poucos medicamentos que há são distribuídos.
Principais diagnósticos para os 14 mil 330 doentes: diarreia, malária, infecções, mais as doenças associadas à malnutrição.
— Quando vejo as crianças que sofrem, magras, e não temos nada para lhes dar, dói… Dói-me porque pedimos muitas vezes à Comunidade Internacional para ajudar essas crianças e ninguém as ajuda… Há vezes em que as crianças morrem de fome… — narra Jean Claude Dounia, chefe do Centro de Saúde de Bokolobo.
— Portanto, há a guerra…
— Há a guerra… Há o conflito armado que abalou as duas etnias: muçulmanos e cristãos. O sofrimento é o mesmo para todos. É o mesmo problema. É o mesmo problema…
— E está optimista?
— Eu sou optimista. (PAUSA) Eu sou optimista…
O Centro de Saúde não tem médico, não tem ambulância, não tem remédios que cheguem…
A agonia é lúcida para a maioria desta gente.
Olhares que nos interpelam…
— Há crianças que vêm cá e que morrem por causa da malnutrição. Peço aos parceiros… às pessoas de boa vontade para nos ajudarem a salvar a vida das crianças com problemas nesta aldeia. — diz em forma de lamento Kaleb Kette-Ouabolo, o auxiliar do Centro de Saúde.
— Então, aqui, vive-se com… Há a guerra. Há a miséria. Há a fome… Que vida é esta, aqui?
—Aqui, bem, é certo que a guerra reina, mas nós continuamos a viver juntos, cristãos e muçulmanos. Mas a miséria e a fome ultrapassam-nos. A fome e a miséria ultrapassam-nos porque, vocês sabe, na guerra que devastou este país muitas pessoas dos dois lados perderam os seus pertences, mas continuamos a viver juntos.
— Não é uma guerra de religião?
—Não é uma guerra de religião, não.
— É uma guerra de quê?
— É um assunto do Estado. Não é uma guerra de religião…
Esta gente luta com afinco para sobreviver, aqui, fora de mão e longe de tudo…
Aproximo-me de um doente.
O ancião perdido numa tragédia que náo compreende. (Foto: Rui Araújo)
— Deve ajudar-me. O corpo, sofro muito. Como? O que está a acontecer-me? Preciso de ajuda para salvar-me. É isso que lhe peço. — implora o ancião Paul Dolokepa.
— A vida, aqui, é difícil?
— É difícil, se souber como estamos. Eu luto. Eu quero dar uma explicação para que possa ver em que condições me encontro. O que se passa comigo? Porque estou assim, tão magro?
— Come todos os dias?
— Eu não como quase nada! O comer é mandioca.
À falta de mandioca há quem mate a fome com as mangas.
Os rebeldes do grupo UPC não estão longe. E tanto andam fardados como não. Depende… De quê? Não sabemos.
— Adamu Hassan. Tenente da UPC. — comunico ou pergunto ao rapaz que aceitou
falar.
— Sim.
— Tem que idade?
— Tenho 22 anos. Aqui, na República Centro-Africana… Estou com as pessoas da UPC. Era o que eu queria. Há outros colegas queriam ser polícias ou gendarmes. Os outros queriam ir para as Forças Armadas. Queríamos ir para as Forças Armadas da República Centro-Africana.
— Para fazerem o quê?
— Porque… Porque a UPC é um bom movimento para as pessoas fazerem o nosso país ir para a frente. A UPC não queria a guerra. É um bom movimento.
— E porque razão é um bom movimento?
— Porque a UPC não queria desordem. É um bom movimento. Queria a paz…
— E a guerra para um jovem de 22 anos é o quê?
— A guerra não é bom, mas na República Centro-Africana nós… nós… (Engasga-se)
— O que é a guerra para um jovem?
— A guerra… A guerra não é bom. O que nós… o que nós desejamos para o nosso país é bom.
A propaganda inculcada dá sempre um discurso prudente…
E tudo tem dois sentidos…
É tarde de mais para perguntas de circunstância.
Esta gente é perigosa.
Há meia dúzia de meses, 200 a 400 combatentes do grupo UPC mataram com o apoio de civis mais de 100 pessoas (incluindo mulheres e crianças, algumas foram queimadas vivas) no campo de deslocados de Alindao.
Estamos no território dos inimigos dos paraquedistas portugueses. E não só…
Chegada do general Ali Darassa, o líder do grupo armado UPC.
Pompa e circunstância. E demonstração de força.
Encontro com Ali Darrassa, líder do movimento de guerrilha UPC no quartel-general de Bokolobo. (Foto: Rui Araújo)
O guerrilheiro pretende tirar dividendos do acordo de paz celebrado há semanas, mas recusa fazer cedências significativas.
A coisa promete…
— Os grupos armados, incluindo a UPC, vão integrar o governo da República Centro-Africana. Uma paz duradoura é possível, agora, neste país?
— Como você disse, os grupos armados e o governo celebraram um acordo e até agora as coisas têm corrido muito bem. Estão a correr bem, mas não sabemos como é que vai ser no futuro. — responde-me o general em Fula.
— Qual é o maior desafio para si, agora?
— O maior desafio é a organização das unidades especiais mistas. Se essas unidades foram correctamente constituídas, pensamos que pouco a pouco o resto correrá bem.
— Os combates em Bambari e, aqui mesmo, em Bokolobo há pouco tempo foram sangrentos. Os paraquedistas portugueses participaram. O que aconteceu de facto? Qual é a sua versão dos acontecimentos?
— O que aconteceu em Bambari e aqui… A MINUSCA e mais exactamente o contingente português foram ludibriados pelo governo da República Centro-Africana. Nessa altura, ainda não tínhamos chegado a um acordo com o governo. O governo enganou-os e eles começaram a lutar contra nós. Os combates foram particularmente sangrentos e houve baixas dos dois lados. Em nada ajudou este país…
— Houve quantas baixas do seu lado?
— É impossível dar números. Feitas as contas, foi a população civil quem mais sofreu…
— Há cerca de ano e meio, aqui, em Bokolobo estávamos ali sentados e disse-me que não tinha má opinião dos portugueses. Faço-lhe a pergunta hoje. O que pensa dos portugueses?
— Não temos problemas com os portugueses. O que aconteceu foi um incidente. O governo enganou-os. Eles avançaram. Aconteceu o que aconteceu. Isso, hoje, pertence ao passado.
— Tenho só mais três perguntas. Qual é o seu sonho para a República Centro-Africana?
— O nosso maior sonho para a República Centro-Africana é que haja paz. E que cada cidadão possa circular livremente…
— E para a UPC? Qual é o seu sonho?
— O sonho para a UPC é podermos integrar as Forças Armadas da República Centro-Africana e que a UPC possa contribuir para a segurança da população e do país.
Os grupos armados proliferam no país. Controlam o território e os recursos.
As Forças Armadas pouco ou nada podem fazer…
A capital, Bangui, continua praticamente isolada do resto do país.
Bangui, capital de um país em guerra. (Foto: Rui Araújo)
O destino colectivo desta gente ainda é um espantalho dentro e fora do país apesar do oitavo acordo de paz…
(1) Referência implícita ao grande livro sobre a guerra de Norman Mailer
NOTA:
Reportagem emitida originalmente na TVI, em 3 de Junho de 2019 [VER AQUI].
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Antes de sair, António Costa manteve as ordens recebidas de Bruxelas, através de uma Resolução de Conselho de Ministros de última hora publicada hoje em Diário da República: Portugal vai continuar a comprar vacinas contra a covid-19 como se estivéssemos no auge da pandemia. Este ano ficou garantida uma despesa de 103,3 milhões de euros, mantendo prevista a compra de mais 107 milhões de euros em 2025 e 2026. Desde Outubro do ano passado, já só foram administradas menos de dois milhões de doses, e se se mantiver o ritmo dos reforços até ao Inverno de 2026-2027, o desperdício financeiro (em benefício das farmacêuticas) atingirá os 550 milhões de euros, porque haverá cerca de 35 milhões de doses literalmente deitadas ao lixo por perda de validade. Quando a covid-19 deixou de ser um problema de Saúde Pública – este mês representa 0,17% das mortes –, e sabendo-se que há 1,7 milhões de cidadãos sem médico de família, esta estratégia mostra os paradoxos das políticas de Saúde Pública em Portugal.
Preso pelos acordos secretos da Comissão von der Leyen com as farmacêuticas, o Governo cessante de António Costa decidiu no domingo passado, em Conselho de Ministros extraordinário, reprogramar as despesas pelas compras de vacinas contra a covid-19, autorizando para o ano de 2024 gastos da ordem dos 103,3 milhões de euros. Uma parte desta verba será para suportar encargos feitos no ano passado, mas apenas a serem pagos agora por causa de alegados atrasos de visto no Tribunal de Contas.
Com a reprogramação desta despesa – a que acrescerão mais quase 107 milhões de euros em 2025 e 2026 –, confirma-se um desastre financeiro e de Saúde Pública: num país com mais de 1,6 milhões de cidadãos sem médico de família, vai continuar a haver dinheiro para comprar doses de vacinas contra a covid-19 que serão enviadas literalmente para o lixo, face à cada vez mais diminuta procura. Com efeito, estando a covid-19 endémica e com uma baixíssima mortalidade – este ano causou 197 óbitos, representando 0,6% dos óbitos totais, mas este mês de Março encontra-se abaixo dos 0,2% –, a procura tem sido bastante baixa.
De acordo com os dados da Direcção-Geral da Saúde, entre Outubro do ano passado e o domingo passado, 24 de Março, foram administradas um total de 1.990.226 doses de reforço. Considerando o preço médio unitário de 15,5 euros, indicado num relatório do Tribunal de Contas, a despesa total terá ascendido a 30,8 milhões de euros, caso não existissem compromissos assumidos pela Comissão von der Leyen com a concordância dos diversos Governos da União Europeia de se comprar mais do que o necessário.
Vacinas desperdiçadas: não serão enviadas para o lixo urbano, obviamente, mas serão inutilizadas cerca de metade das doses que serão adquiridas por Portugal desde 2020 até 2026.
O Tribunal de Contas, num relatório de Setembro do ano passado, já apontava para um elevado desperdício financeiro pela inutilização de doses não administradas. O valor provisório então indicado, referente ao final de Dezembro de 2022, era de um desperdício de 3,5 milhões de doses com um valor de 54,5 milhões de euros. Porém, esse montante pecava já por defeito.
Uma análise do PÁGINA UM, com base em informação oficial, mostrava que apesar de Portugal ter encomendado 61.19.803 doses de vacinas até 2022 somente tinha administrado, até então, 28.200.460 doses, considerando os dados do European Centre for Disease Prevention and Control (ECDC). Ou seja, como a partir dessa altura até agora acresceram cerca de dois milhões de doses, administradas, chega-se a um desperdício de mais de 40 milhões de doses.
Mas entretanto, ainda se comprou muitas mais doses, e mais se comprarão, atendendo à cativação das verbas desde 2020 pelo Governo de António Costa. Apesar de os contratos celebrados pela DGS continuarem escondidos – o PÁGINA UM tem um processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa que corre há quase 15 meses, embora seja considerado urgente –, fica-se a saber, através de sucessivas Resoluções de Conselho de Ministros quanto se gastou e se continuará a gastar em vacinas contra a covid-19 até, pelo menos, 2026.
A primeira compra foi autorizada em 20 de Agosto de 2020, antes mesmo da aprovação das vacinas. Montante: 20 milhões de euros. Ainda nesse ano, em 17 de Dezembro, em vésperas da administração da primeira dose, o Governo de António Costa autorizou, para o ano seguinte, a realização de despesas de aquisição de vacinas e de logística no total de 195,5 milhões de euros.
Menos de cinco meses depois, em 6 de Maio de 2021, uma nova autorização para realização de despesa adicional: mais 241.537.472 euros. Em 23 de Dezembro desse ano, autorizou-se mais compras de vacinas contra a covid-19 para 2022: e assim se concedeu liberdade para se gastar mais 291,4 milhões de euros. Mas não acabou por aí: em 17 de Novembro de 2022, o Governo Costa autorizou mais compras no valor de quase 70,6 milhões de euros. E menos de um mês depois, em 15 de Dezembro, ainda se adicionou mais uma autorização no valor máximo de mais de 57,8 milhões de euros.
Nesta lógica de dividir uma factura cada vez mais crescente, em 7 de Setembro do ano passado, o Conselho de Ministros determinou que em 2023, apesar de a covid-19 deixar de ser uma preocupação pública relevante, se gastariam ainda mais 65,4 milhões de euros em 2023, mais cerca de 50 milhões de euros em 2024, mais 53,5 milhões de euros em 2025 e outro tanto em 2026.
A decisão do passada domingo de um Governo em gestão altera os montantes de 2023 e 2024 – sem afectar a despesa previamente definida, e assegura a despesa pré-determinada para os anos de 2025 e 2026 – mostra sobretudo que Portugal, tal como os outros parcerias comunitários, está completamente preso aos negócios secretos assumidos secretamente por Ursula von der Leyen.
António Costa e Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, que negociou contratos secretos com as farmacêuticas que resultarão seguramente, apenas em Portugal, no desperdício de 35 milhões de doses e quase 550 milhões de euros
Somando toda a despesa feita e assumida desde 2020 pelo Governo português, Portugal deverá assumir encargos de 1,1 mil milhões de euros associadas à compra e armazenamento de vacinas contra a covid-19, dos quais 210 milhões de euros entre 2024 e 2026. Se o preço unitário rondar os 15,5 euros por dose, o valor indicado pelo Tribunal de Contas, então estará garantida a compra de quase 71 milhões doses.
Contudo, contabilizando as doses já administradas (cerca de 30 milhões) e se o processo de reforço nos Invernos de 2024-2025, 2025-2026 e 2026-2027 for similar ao do mais recente, o nosso país apenas administrará 36 milhões de doses, o que significará que desperdiçará praticamente metade das doses adquiridas. Contas feitas, o processo de aquisição sob a batuta da Comissão Europeia entregará cerca de 550 milhões de euros aos cofres das farmacêuticas beneficiadas sem qualquer préstimo, uma vez que aproximadamente 35 milhões de doses serão deitadas para o lixo por nem sequer haver quem as queira receber de borla.
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No caso da sucursal portuguesa da IBM, o contrato agora celebrado, para vigorar até 2026, no valor total de quase 26,9 milhões de euros com IVA, vem no seguimento de um outro que decorreu entre 2021 e 2023, que incluía o licenciamento e manutenção do software usados pelos funcionários do Fisco. Tanto para a IBM como para a Autoridade Tributária e Aduaneira, este é o maior contrato público de sempre, ultrapassando o anterior para serviços quase similares estabelecido em Fevereiro de 2021 no valor de cerca de 21,4 milhões de euros.
Um segundo contrato, sobretudo para serviços de melhoria e manutenção do hardware, foi assinado com a Tiemestamp – uma empresa portuguesa de sistemas e tecnologias de informação com ligações comerciais à gigante tecnológica norte-americana Oracle – e o seu valor é consideravelmente mais baixo, embora num montante relevante: quase 8,4 milhões de euros. Esta empresa esteve associada ao caso das viagens pagas pela Oracle em 2017 a altos quadros do Estado.
Os encargos associados à informática e automatização de processos pela Autoridade Tributária e Aduaneira têm vindo a aumentando consideravelmente nos últimos anos, e os contratos públicos que celebra atingem montantes cada vez mais elevados.
Na lista ordenada dos 25 maiores contratos públicos da Autoridade Tributária Aduaneira – com valores que vão desde os 2,5 milhões até aos 21,9 milhões de euros (sem IVA), 19 são com empresas de tecnologia de informação, com a IBM a destacar-se, arrecadando os três maiores. Esta empresa tem ainda o 11º maior contrato. Nos últimos cinco anos, só com serviços ao Fisco, sobretudo venda de licenças de software, a gigante norte-americana facturou cerca de 72,4 milhões de euros desde 2019. Nos seis anos anteriores, apenas vendera ao Fisco pouco mais de 10,2 milhões de euros
Apesar de a IBM bater a concorrência na facturação, a Timestamp segue próxima, porque conta larga dezenas de contratos, umas vezes sozinha e outra integrada com outras empresas. Contabilizando somente os contratos sem parceria, a Timestamp tem sete contratos no top 25 da Autoridade Tributária e Aduaneira, e facturou a esta entidade pública cerca de 55 milhões de euros (IVA incluído) desde 2019.
Helena Borges, directora-geral da Autoridade Tributária e Aduaneira.
Fora do sector informático, os contratos mais elevados abrangem os sectores das limpezas (dois) e energético (quatro), com a Endesa a atingir o acordo comercial mais elevado: quase 9,5 milhões de euros por fornecimento de electricidade em Abril do ano passado por um período de apenas um ano. Com a excepção do contrato que ocupa a 25ª posição – um ajuste directo com a Samsic no valor de 2,5 milhões de euros –, todos estes contratos foram celebrados ao abrigo de um acordo-quadro ou após um concurso público.
Os contratos celebrados entre a Autoridade Tributária e Aduaneira e a IBM e a Timestamp integra o Boletim P1 da Contratação Pública e Ajustes Directos que agrega os contratos divulgados nos dia 26 de Março de 2024. Desde Setembro de 2023, o PÁGINA UM apresenta uma análise diária aos contratos publicados no dia anterior (independentemente da data da assinatura) no Portal Base. De segunda a sexta-feira, o PÁGINA UM faz uma leitura do Portal Base para revelar os principais contratos públicos, destacando sobretudo aqueles que foram assumidos por ajuste directo.
PAV
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Ontem, dia 26 de Março, no Portal Base foram divulgados 1179 contratos públicos, com preços entre os 4,90 euros – para aquisição de papel térmico, pelo Instituto Português de Oncologia do Porto Francisco Gentil, através de ajuste directo – e os 21.845.466,00 euros – para aquisição de modelo de licenciamento empresarial, pela Autoridade Tributária e Aduaneira, através de concurso público.
Com preço contratual acima de 500.000 euros, foram publicados 25 contratos, dos quais 15 por concurso público, oito ao abrigo de acordo-quadro e dois por ajuste-directo.
A Câmara Municipal de Cascais aceitou pagar, em tempo recorde, uma factura de cerca de 233 mil euros de uma empresa fornecedora de refeições para refugiados ucranianos numa altura em que os seus centros estavam quase vazios. Ainda mais estranho, e contrariando mesmo o caderno de encargos, a autarquia liderada pelo social democrata Carlos Carreiras fez a transferência ainda durante a vigência do contrato, que decorreu desde 26 de Setembro do ano passado e o dia a seguir ao mais recente Natal, sem sequer se apurar o número de refeições supostamente distribuídas. A autarquia quer agora, num processo de intimação protagonizado pelo PÁGINA UM no Tribunal Administrativo de Sintra, que o caso seja encerrado sem sequer explicar os motivos para não se revelarem guias de remessa e de recepção das refeições. Um caso que, na verdade, merecia mais ser tratado num tribunal penal do que administrativo, até porque em outro estranho ajuste directo com preços hiperinflacionados, envolvendo o Modelo Continente, a Câmara Municipal de Cascais – que fez contratos para apoio aos refugiados da Ucrânia de quase dois milhões de euros – diz que, afinal, não comprou nada à cadeia de supermercados. Mas diz isto sem apresentar provas, e apenas depois de ter sido obrigada pelo Trbunal Administrativo de Sintra a pronunciar-se.
Um contrato com um preço estimado de 250 mil euros para fornecimento de alimentação ao centro de refugiados da Ucrânia em Cascais foi facturado quase na íntegra à autarquia apenas dois dias após o ajuste directo e o pagamento concretizou-se ainda no prazo de vigência, sem sequer especificar sequer número de refeições entregues. Esta situação ocorreu num momento em que os centros de refugiados naquele município estavam já com um número reduzido de ucranianos, segundo apurou o PÁGINA UM, e existem fortes suspeitas de não terem sido entregues grande parte das refeições, apesar do pagamento feito. A autarquia de Cascais sempre recusou divulgar ao PÁGINA UM elementos sobre os refugiados que apoiou desde a invasão da Rússia à Ucrânia.
A factura deste contrato – o terceiro em cerca de dois anos, para o mesmo fim – foi enviada pela ICA – Indústria e Comércio Alimentar em 28 de Setembro do ano passado à Câmara Municipal de Cascais, com um valor total de 232.799,69 euros, mas sem explicitar o número de refeições nem a sua tipologia nem o número de beneficiários nem as condições de entrega. Na referida factura surge apenas a referência “Serviço Refeição – Almoços aos Refugiados” com a quantidade de “1 UN” [uma unidade], com um “Preço Unitário” de 189.268,04 euros, a que acresceu IVA a 23%. Se foram apenas almoços a serem fornecidos, e se se estipulasse um preço unitário de 10 euros, estaríamos perante mais de 23.000 refeições, o que, distribuídas pelo prazo do contrato, daria quase 260 refeições por dia.
Carlos Carreiras, presidente da Câmara Municipal de Cascais. É possível pagar facturas de 233 mil euros com indicação de 1 unidade? Em Cascais, sim.
Como revelou o PÁGINA UM, em Setembro do ano passado, este terceiro ajuste directo à empresa ICA estabelecia “a prestação de serviços de fornecimento de refeições conforme as necessidades até ao valor contratual máximo de 250.000,00 euros, pelo período estimado de 3 meses”, que incluía o “fornecimento diário até 4 refeições completas (pequeno-almoço, almoço, lanche e jantar)” com entregas “nos centros de acolhimento a refugiados”, cujas “localizações e quantidades” deveriam ser acordadas com “o gestor do contrato”.
Porém, ao longo do ano passado, a autarquia liderada por Carlos Carreiras – que foi de longe a entidade pública que despendeu mais dinheiros públicos alegadamente para apoio aos ucranianos após a invasão pela Rússia – nunca mostrou disponibilidade para facultar acesso ao PÁGINA UM aos centros de refugiados nem aos registos das pessoas apoiadas, obrigando assim à instauração de um processo de intimação no Tribunal Administrativo.
Foi no decurso deste processo no Tribunal Administrativo de Sintra que o município de Cascais acabou por enviar cópia da factura, bem como a ordem de pagamento emitida em 7 de Novembro do ano passado, ou seja, a autarquia até pagou antes do fim do contrato, incumprindo, logo aqui, o caderno de encargos que a impedia de conceder adiantamentos.
Factura da empresa ICA emitida em 28 de Setembro de 2023, dois dias após o ajuste directo e quando ainda faltavam 89 dias para o fim da vigência do contrato. Não consta a discriminação das refeições a entregar. Ver AQUI a cópia da factura(em melhor qualidade) e a ordem de pagamento.
Mas o mais suspeito neste estranho contrato de alimentação está relacionado com a assumpção, agora, por parte da própria Câmara Municipal de Cascais, junto do Tribunal Administrativo de Sintra, de que não existirão quaisquer documentos que comprovem o número de refeições efectivamente entregues em cada um dos 91 dias do contrato.
Relembre-se que numa reportagem do Diário de Notícias em Fevereiro do ano passado , Carlos Carreiras dizia que nos dois centros de acolhimento em Cascais, então existentes, estavam “apenas 132 cidadãos” ucranianos, acrescentando que se esperava que até ao final de Março esse número fosse “cerca de metade e que até Maio/ Junho já todos [tivessem] encontrado soluções”. Ou seja, perante a postura da Câmara de Cascais ignora-se quem comeu, e sobretudo quantas pessoas comeram, refeições no valor de 232.799,69 euros supostamente entregues pela ICA entre 26 de Setembro e 26 de Dezembro de 2023. E ignora-se sobretudo quem entregou e quem recebeu, porque a autarquia não quer revelar guias de remessa e de recepção, e quer mesmo que o Tribunal Administrativo de Sintra não a obriga a revelar dando por encerrada a lide com a simples entrega de uma factura e de uma ordem de pagamento.
Ora, não é nada expectável – pelo contrário, a sua falta configura ilegalidades graves – que os serviços associados a uma facturação de um valor tão elevado, que se desenvolvia ao longo de 91 dias, se tenham feito sem qualquer requisição, sem qualquer guia de recepção, sem qualquer outra comunicação entre adjudicante e adjudicatária.
Repasto em Junho do ano passado em Cascais aquando da visita do presidente da autarquia russa de Irpin a um dos centros de acolhimento de refugiados, mas onde estiveram a almoçar muitos portugueses. O contrato suspeito com a ICA foi celebrado em Setembro de 2023.
Acresce também que a emissão da factura apenas dois dias após a celebração do contrato, e com o pagamento a ocorrer em 7 de Novembro, consubstancia uma irregularidade contratual, uma vez que na cláusula 13ª do Caderno de Encargos refere-se que “os pagamentos são efectuados no prazo de 60 dias após a entrega das respectivas facturas, as quais só podem ser emitidas após o vencimento das obrigações a que se referem, devendo conter a menção do número de compromisso e do número de requisição externa […].” Mais se adiantava, que “podem ser propostos pagamentos parcelares, não havendo, contudo, lugar a adiantamentos […]”, conforme é reiterado na cláusula 14ª.
Para além de terem sido feitos pagamentos claramente antecipados – a transferência foi realizada pelo município 20 dias antes da data de vencimento da factura –, ignora-se nos documentos entregues entretanto pela autarquia de Carlos Carreiras qual o motivo para o valor final ter sido de 189.268,04 euros sem IVA (232.799,69 euros com IVA) – e não de 250.000 euros sem IVA estabelecido em contrato – e quantas refeições afinal foram contratadas, uma vez que supostamente não existem documentos onde se indique o número total de refeições, a sua tipologia e o preço unitário.
Na intimação junto do Tribunal Administrativo de Sintra, o PÁGINA UM tinha requerido que a Câmara Municipal de Cascais entregasse, entre outros elementos, a totalidade dos documentos que comprovassem a execução diária do fornecimento de refeições, com o número (em cada dia) de refeições (por tipologia) e o custo respectivo.
Quanto ao ajuste directo para a compra de diversos produtos alimentares e não-alimentares ao Modelo Continente no valor de 166.124,88 (sem IVA) para a entrega em períodos mensais, durante um ano – a acabar em Junho próximo –, de cerca de uma centena de produtos, a autarquia de Cascais diz que, afinal, não comprou nada. O ‘problema’ deste contrato estava sobretudo no facto de as quantidades constantes no caderno de encargos, aos preços unitários então praticados pelos supermercados do Grupo Sonae, totalizarem pouco mais de 14 mil euros. Ou seja, o valor dos bens previstos no contrato era mais de 10 vezes superior ao valor de mercado desses produtos, havendo uma diferença de mais de 160 mil euros, se se considerar o IVA.
Autarquia de Cascais celebrou contratos públicos de quase dois milhões de euros para apoio aos refugiados da Ucrânia, destacando-se entre as entidades públicas portuguesas. Mas, no momento de mostrar ‘contas’, fechou-se em copas.
Somente com a intimação junto do Tribunal Administrativo de Sintra, a autarquia de Cascais veio agora revelar que este estranho contrato, denunciado em Outubro passado pelo PÁGINA UM, afinal terá ficado “em águas de bacalhau”. Ao Tribunal Administrativo de Sintra, a autarquia diz que “até à presente data não foi efectuada qualquer encomenda àquela entidade [Modelo Continente] e por conseguinte não foi emitida qualquer guia de remessa, não foram emitidas quaisquer determinações ou comunicações por parte do gestor do contrato, não foram emitidas facturas por parte daquela empresa, nem existem ordens de pagamento no âmbito do referido contrato”. Informações que que, perante o histórico e comportamento da edilidade liderada por Carlos Carreiras, deveria necessitar de uma confirmação por parte de um entidade judicial com capacidades de investigação para aferir da sua veracidade.
Recorde-se que, desde Junho de 2022, o PÁGINA UM tem-se debruçado nos estranhos contratos da autarquia de Cascais em em redor do apoio aos refugiados ucranianos, que chagaram quase aos dois milhões de euros (com IVA), e mesmo com a intervenção do Tribunal Administrativo tem feito finca-pé para manter o obscurantismo e evitar que se afira a legalidade dos seus procedimentos. A sentença deste processo ainda não foi declarada, estando o PÁGINA UM em fase de resposta jurídica aos argumentos da autarquia de Cascais durante a presente semana. Este é um dos 20 processos de intimação do PÁGINA UM para a obtenção de documentos administrativos financiados pelos leitores através do FUNDO JURÍDICO.
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A Justiça britânica reconheceu, esta terça-feira, que o pedido de extradição do jornalista Julian Assange por parte dos Estados Unidos viola o direito à liberdade de expressão, expõe o fundador da WikiLeaks à pena de morte e também à possibilidade de ser prejudicado no julgamento devido à sua nacionalidade. O tribunal deu aos Estados Unidos até ao dia 16 de Abril para apresentar garantias de que aqueles receios não se cumpram. Na sequência desta decisão de hoje, o PÁGINA UM republica a entrevista a Stella Assange, mulher do fundador da WikiLeaks, divulgada no dia 5 de Março. Na entrevista, Stella afirmou não ter dúvidas de que, no Ocidente, tem havido um recuo muito grave no direito à liberdade de expressão e um controle muito maior sobre a imprensa e a comunicação online. Numa altura em que a Europa anuncia a entrada numa Economia de Guerra, disse que não é um acaso Julian Assange estar detido. Nesta entrevista ao PÁGINA UM, a advogada e activista dos direitos humanos, de 40 anos, espera que mais líderes europeus se juntem ao chanceler alemão Olaf Scholz na defesa do marido para que não seja extraditado para os Estados Unidos. Pode ler a entrevista em português ou ver e ouvir em inglês no YouTube e no Spotify.
OUÇA NA ÍNTEGRA A ENTREVISTA DE STELLA ASSANGE CONDUZIDA PELA JORNALISTA ELISABETE TAVARES
Começo por um acontecimento recente: o chanceler alemão Olaf Scholz rejeitou a extradição de Julian. Isso traz esperança para si e para Julian?
Sim, vejo-o como um grande desenvolvimento. O primeiro líder europeu, e nada menos do que da Alemanha, a ser a favor de Julian não ser extraditado. Mas vem na sequência de uma série de desenvolvimentos. O Relator Especial das Nações Unidas sobre Tortura e o Relator Especial das Nações Unidas sobre liberdade de expressão manifestaram-se, nas últimas semanas, contra a extradição. Houve também um debate no Parlamento Europeu, em que, tanto o Conselho Europeu como a Comissão Europeia foram instados a prestar declarações sobre o caso de Julian. Penso que, pelo menos, um membro do Conselho o fez. E houve uma escolha cuidadosa de palavras, mas não hostis a Julian, pelo menos. E tem havido declarações muito fortes de parlamentares, de todo o lado. Penso que tem havido uma melhor compreensão dos riscos do caso de Julian e eventos, como o debate no Parlamento Europeu, permitem que informações relevantes sejam compartilhadas. Permitem que as informações sejam assimiladas por um círculo mais alargado de pessoas e talvez isso tenha levado chanceler Scholz a mudar. Mas, obviamente, é algo que eu saúdo e vejo como como fazendo parte de uma mudança maior.
Stella Assange durante a entrevista concedida ao PÁGINA UM. (Foto: PÁGINA UM)
Espera, então, que alguns dos principais líderes europeus se juntem a esta posição ou pensa que serão cautelosos?
Bem, não devem ser cautelosos porque Julian foi nomeado pelo Parlamento Europeu, já em 2022, como um dos finalistas do Prémio Sakharov, que, naturalmente, é o prémio de maior prestígio da União Europeia para a liberdade de pensamento e direitos da humanidade. E ele foi um dos três finalistas. Fui convidada para ir ao Parlamento Europeu e participei em várias reuniões. Por conseguinte, a União Europeia tem o mandato conferido pelo Parlamento para dar prioridade a este caso. Eu acho que também é importante para os sindicatos de jornalistas, nos vários países europeus. Em muitos países, já deram a Julian a filiação ou a filiação honorária, e escreveram declarações sobre o impacto extremamente perigoso deste caso no trabalho de jornalistas em todo o mundo e na Europa. Penso que o facto de Scholz já o ter dito torna muito mais fácil para outros países europeus dizê-lo. Mas, como disse, já têm o mandato do Parlamento Europeu. E, claro, que Julian continua a ganhar muitos prémios em toda a Europa e em todo o mundo.
Deve achar realmente estranho isto estar a acontecer no Ocidente, no mundo ocidental. Porque temos um jornalista – e também, é quase um caso de um denunciante – que está a ser perseguido politicamente e a sua vida está em risco. Como vê isso? Como se sente em relação a isso?
Bem, eu acho que é uma espécie de sintoma de onde estão, hoje, a liberdade de imprensa e a liberdade de expressão. No Ocidente, em geral, nós vimos [nos últimos anos] uma decadência muito grave nos direitos à liberdade de expressão e um controle muito maior sobre a imprensa e a comunicação online. E isto segue a companha, a perseguição e o assédio que Julian enfrentou desde as publicações sobre o Iraque e o Afeganistão e os telegramas [diplomáticos], e assim por diante, que é pelo que ele está a ser perseguido e processado.
Acho que, quando a WikiLeaks publicou essa informação, em 2010, foi a altura do pico da liberdade de expressão na Internet e da liberdade de imprensa. E, desde então, vimos uma reacção negativa, e essa reacção afectou, é claro, Julian. Mas também afectou todos os outros. E Julian tem sido um canário na mina de carvão ao longo dos anos. Quais foram as formas através das quais Julian foi atacado, primeiro? Através do encerramento das contas nos bancos, dos donativos. Isso foi inédito, em 2010. Foi o primeiro caso em que tivemos isso. E é claro, que isso se generalizou muito e se estendeu às plataformas online e à desmonetização [em plataformas digitais] e assim por diante.
Mas surpreendente, em 2010, eu diria que foi, sim. Foi surpreendente, foi uma espécie de perspectiva distópica. Em 2024, eu acho que é um sinal de um mal-estar generalizado que não está a afetar apenas vozes dissidentes ou jornalistas que cobrem temas de segurança nacional, mas sim um ataque sobre a dissidência em geral. E as ferramentas para controlar a dissidência são hoje muito mais sofisticadas e eficazes do que elas eram há 14 ou 15 anos atrás. Portanto, há uma deterioração da capacidade de fazer valer os nossos direitos e, ao mesmo tempo, um reforço muito maior da capacidade de sufocar a dissidência, de impor censura e, em última análise, de reprimir o que é visto como oposição.
Julian Assange e Stella Assange. (Foto: D.R.)
E, neste momento, a Europa está a tentar armar-se para ir para a guerra. Ouvimos agora falar de Economia de Guerra. Acredita que a Europa e o mundo seriam hoje diferentes se Julian fosse livre e estivesse a trabalhar?
Acho que não é por acaso que, numa altura em que temos grandes conflitos que correm o risco de escalar regionalmente, ou para conflitos nucleares ou para uma Guerra Mundial, que a pessoa que mais contribuiu para expor o verdadeiro custo da guerra, as verdadeiras motivações, a realidade da violência no terreno, é a que está na prisão e a ser silenciada. Isto faz parte do mesmo desenvolvimento. A Economia de Guerra obviamente vê Julian como figura da oposição, uma figura de oposição não só ao custo humano da guerra, mas também ao económico, para expor os interesses económicos que impulsionam essas guerras. Então, é claro que é conveniente, para as pessoas que estão a lucrar com a guerra, ter Julian na prisão. E para aqueles que querem ver um fim para esses conflitos, tirar Julian da prisão é crucial.
Provavelmente, estaríamos certamente numa situação diferente, um panorama diferente de informação, se Julian tivesse sido capaz de continuar a fazer o seu trabalho. Porque, claro, as publicações da WikiLeaks são o ‘padrão ouro’ (golden standard) para os denunciantes envolvidos, os ‘insiders’, que estão dentro da máquina de guerra que a expuseram por dentro e mostraram quando as políticas estavam fora de controle. Contribuiu para que houvesse fiscalização e reforma.
Como é que consegue reunir forças para continuar esta luta? Porque deve ser muito difícil. Você tem filhos, para ver o seu marido nesta situação e ainda lutar, falar à imprensa e publicamente.
Bem, a minha força vem do facto de lutar pelo Julian. Se eu perder o Julian, aí é que vou ter dificuldades, de verdade. Não tenho dificuldade em encontrar força e motivação para lutar pela liberdade do meu marido. O maior medo que tenho é de perdê-lo e dos nossos filhos, das nossas crianças crescerem sem o Julian. Vou lutar o tempo que for necessário para recuperá-lo.
E como é que ele está? Tem falado com ele? Tem mencionado que Julian não está bem.
Ele não está em condições de, sequer, poder comparecer à sua própria audiência. Esta foi a mais decisiva audiência de todas, em que, se os juízes. deliberarem contra ele, o Reino Unido, basicamente, coloca-o num avião para os Estados Unidos, a menos que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem o impeça. Se Julian não tivesse estado preso durante cinco anos, se ele não tivesse tido o estado de declínio constante, fisicamente, ao longo destes anos, ele teria, naturalmente, assistido à sua própria audiência, aquela em que a sua vida está em jogo.
Mas, espero que seja, óbvio para todos, como as coisas estão mal. O facto de ele não ter conseguido ir. A prisão é extremamente dura. Ele está em isolamento, muitas vezes. Quer dizer, ao longo de 21 a 22 horas por dia, ele está fisicamente confinado a uma única cela de seis metros quadrados. Durante esse tempo, as suas interações com outras pessoas são limitadas. E também está confinado, fechado, ao lado de infractores muito graves, infractores violentos e assim por diante. E isso leva a melhor tem um impacto muito sério nele, não só fisicamente, mas mentalmente, claro. E essa é uma luta diária. Quer dizer, um dia é mais suportável, e outros dias são menos suportáveis. Portanto, não é possível generalizar. Mas, em geral, o que posso dizer é que sua saúde física está em constante declínio. E ele tem, claro, um espírito de luta. E ele é encorajado por todo o apoio, tanto de apoiantes como de sinais políticos como o de Scholz e assim por diante. Isso é absolutamente essencial para que ele continue a lutar. Mas, obviamente, depende do dia e da semana e do que está a acontecer, e da pressão que ele está a ter.
E o que espera destes procedimentos no tribunal? O tribunal pediu mais informações. Quando poderemos ter mais informação do Tribunal?
Bem, nós simplesmente não sabemos. A única data, a única indicação que tivemos foi que na segunda-feira, dia 4, que foi ontem, havia um prazo para as partes apresentarem mais informações. O tribunal pediu. Foi um bom sinal, o facto de o tribunal ter pedido mais informações. Quer dizer que os juízes estão interessados e querem compreender melhor os antecedentes do caso e os vários argumentos que estavam a ser desenvolvidos. Então, é claro que isso é um bom sinal. Mas simplesmente não temos mais prazos. Podemos ter uma decisão do tribunal a qualquer momento. Eu não espero que seja hoje ou amanhã, porque a informação é volumosa e significativa e eles têm de analisar, mas isso não quer dizer que não pode haver uma decisão muito cedo. Então, estamos á espera. Mas não estamos passivos. Porque, ao mesmo tempo, é a altura em que os juízes decidem. E declarações como a de Scholz – e espero que outros o acompanhem… O ambiente em que esta decisão vai ser tomada…
Stella Assange tem liderado uma forte campanha para a libertação de Julian Assange. (Foto: D.R.)
Gostaria de deixar uma mensagem aos apoiantes portugueses de Julian, neste momento?
Esse apoio em Portugal é grande. Estive em Portugal, em Lisboa, para a Web Summit. Na verdade, foi a minha primeira vez em Portugal e apaixonei-me. E espero poder voltar. E contei ao Julian tudo sobre Lisboa, porque ele disse que também não tinha ido. E espero muito que, quando ele estiver livre, possamos visitar juntos.
É muito importante para os europeus, os decisores a todos os níveis, as organizações não governamentais, as pessoas na rua… Mas, acima de tudo, é importante que os decisores entendam que a luta de Julian é uma luta que afecta todos os europeus, não apenas os jornalistas, mas o nosso direito a saber [ter acesso a informação]. E estamos todos a ser varridos por decisões sobre conflitos. Precisamos de ter, pelo menos, informação, compreender a informação. E a contribuição de Julian para informar o público é absolutamente essencial em democracia. E enquanto ele estiver preso, então esse direito está a ser negado. Então, precisamos libertá-lo e precisamos fortalecer a nossa democracia e a cultura em torno da democracia em todo o mundo. E a liberdade de Julian é essencial para isso.
Entrevista traduzida e editada para português
A entrevista pode ser vista na íntegra em vídeo no YouTube
Depois do ‘furacão’ causado pela fugaz passagem de um obscuro fundo das Bahamas, não se pode dizer que prime pela transparência o plano de transferência de alguns dos títulos mais atractivos da Global Media, com o Jornal de Notícias à cabeça, para a esfera de uma nova sociedade de empresários. Pelo contrário. Criada no final do mês passado, com um capital social de apenas 50 mil euros, a Notícias Ilimitadas não revela qualquer accionista nem detentor de direitos de voto no Registo Central do Beneficiário Efectivo, contrariando uma lei de prevenção do branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo, sendo que os administradores indicados (Alexandre Bobone, Diogo Freitas e Domingos de Andrade) declaram não terem qualquer participação accionista. O modelo sugerido para a ‘cisão’ dos títulos da Global Media, a ser autorizado pelo regulador e pelo futuro Governo, abre também a porta a uma eventual ‘Global Media tóxica’ com o Diário de Notícias à boleia. Ou seja, se a Notícias Ilimitadas ficar apenas com o direito de usufruto dos títulos, não assume assim qualquer parte do elevadíssimo passivo da Global Media, que atingia quase 55 milhões de euros em 2022, incluindo 10 milhões de dívidas fiscais. Se, com isto, e com a redução de receitas, a Global Media entrar em falência, o Governo pode então querer salvar o Diário de Notícias, assumindo dívidas e concedendo um perdão fiscal. Um precedente arrepiante…
A falta de transparência continua a ensombrar os títulos jornalísticos ainda detidos pela Global Media. Após a retirada decretada na semana passada pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) dos direitos de voto ao World Opportunity Fund – o fundo das Bahamas que chegou a controlar a administração da Global Media, através da maioria do capital da Páginas Civilizadas ao empresário Marco Galinha em Setembro do ano passado –, por não identificar os investidores, agora também se desconhece quem, efectivamente, controla a nova empresa criada para concretizar a cisão dos títulos da Global Media.
Com efeito, apesar de ter sido já constituída em finais de Fevereiro uma empresa – a Notícias Ilimitadas, com sede na Maia –, que já terá assinado um memorando de entendimento com os accionistas da Global Media com direito de voto válidos (Kevin Ho, José Pedro Soeiro e Marco Galinha), em concreto desconhecem-se os verdadeiros investidores. Sabe-se apenas que detém, por agora, um capital social de apenas 50.000 euros distribuídas por 10.000 acções nominativas.
De acordo com uma consulta ao Registo Central do Beneficiário Efectivo (RCBE), a empresa Notícias Ilimitadas apenas identificou os três administradores – o jornalista e actual director-geral da TSF e do JN Domingos de Andrade, que também é agora administrador da Global Media, e os empresários Diogo Freitas e Alexandre Bobone, que preside –, mas nenhum deles indica que possui qualquer nível de controlo da empresa ou sequer direitos de votos.
Saliente-se que, apesar de a Notícias Ilimitadas não deter ainda formalmente qualquer título de comunicação social – e, portanto, não estar, por agora, sujeita à Lei da Transparência dos Media –, o RCBE estipula a obrigatoriedade das sociedades comerciais manter um registo atualizado dos sócios, com discriminação das respetivas participações sociais, ou das pessoas singulares que detêm, ainda que de forma indireta ou através de terceiro, a propriedade das participações sociais, ou de quem, por qualquer forma, detenha o respetivo controlo efetivo.
Ora, nenhuma dessa informação consta do registo referente à Notícias Ilimitadas, que, como indica apenas administradores, está ao mesmo (baixo) nível da ‘qualidade de transparência’ da World Opportunity Fund, que sempre indicou apenas no RCBE o nome e elementos do administrador, o francês Clement Ducasse.
A forma pouco transparente como decorre o processo de cisão dos títulos da Global Media – com a entrada da Notícias Ilimitadas em jogo, depois do breve e conflituoso ‘reinado’ do fundo das Bahamas –, levanta sérias dúvidas sobre as operações financeiras em curso e sobre quem assumirá, no futuro, o elevadíssimo endividamento deste grupo de media.
Fraca transparência nos negócios da Global Media tem sido o ‘código postal’ para a crise de títulos históricos da imprensa nacional. A crise vem de longe mas agudizou-se no ‘reinado’ de Marco Galinha, o responsável pela entrada do World Opportunity Fund no (seu) grupo de media.
Recorde-se que a Global Media finalizou 2022 com um passivo de 54,9 milhões de euros, dos quais 11 milhões a instituições bancárias e 10 milhões de dívidas fiscais, das quais cerca de sete milhões criada ao longo desse ano. Ou seja, estava já há muito em situação financeira desastrosa, sendo garantido que concluiu 2023 com capitais próprios negativos. Este mês, a nova administração liderada novamente por Marco Galinha revelou que a demonstração de resultados preliminar aponta para um prejuízo de 7,2 milhões de euros, a transitar para um capital próprio que era de pouco mais de 5,7 milhões de euros em 2022. Efeito disto, sem que tenha sido aprovado qualquer aumento de capital. é a Global Media estar já em falência técnica, ou seja, com capitais próprios negativos de 1,5 milhões de euros. Em 2019, antes da ‘era Galinha’, os capitais próprios eram positivo de quase 15,5 milhões de euros. Além disto, cerca de metade dos activos da Global Media, no valor de cerca de 30,6 milhões de euros em 2022, eram constituídos por goodwill, de reduzidíssima liquidez e de valor de mercado bastante questionável por estar associado ao valor dos títulos, incluindo os arquivos históricos.
No início de Fevereiro, o jornal Público avançou como hipótese mais provável que um grupo de empresários – onde se inclui os dois actuais administradores da Notícias Ilimitadas – viesse a comprar o JN, O Jogo e as revistas Evasões e Volta ao Mundo. Estas últimas são, na verdade, propriedade de Marco Galinha, através da Páginas de Prestígio, não estando integradas desde Setembro do ano passado na Global Media. No entanto, o jornal Eco concretizou que o negócio implicaria “a compra dos títulos, não de nenhuma empresa”, adiantando que os “actuais accionistas minoritário do grupo devem assumir uma posição na nova sociedade”, ou seja, na novel Notícias Ilimitadas – algo que não se consegue confirmar por ausência de informação no RCBE.
A concretizar-se uma simples venda ou cedência dos títulos para uma empresa fora do universo da Global Media seguir-se-á então um modelo muito similar à que ocorreu com o Tal & Qual. Com efeito, este título encontra-se registado no Instituto Nacional de Propriedade Industrial em nome da Global Media mas foi concedido o direito de usufruto à empresa Parem as Máquinas – curiosamente fundada por José Paulo Fafe em finais de 2020 – em (re)publicar o semanário. Obviamente, neste modelo não existe qualquer relação societária entre as duas empresas, antes apenas uma relação comercial com o eventual pagamento pelo uso da marca.
Aliás, o objecto social da Notícias Ilimitadas sugere esta opção, uma vez que a empresa diz que a sua actividade, no âmbito estrito da imprensa, é de “difusão de actividades de terceiro designadamente por anúncio; editar, produzir, comercializar e distribuir jornais e revista e outros meios de comunicação social”.
Transferência do título do Jornal de Notícias para a Notícias Ilimitadas sem assumpção do passivo vai agravar ainda mais as contas da Global Media, que deverá apresentar capital próprio negativo nas contas de 2023.
Seguir este modelo para o JN, O Jogo, a TSF e as revistas Evasões e Volta ao Mundo pode ser um expediente atractivo para os accionistas (desconhecidos) da Notícias Ilimitadas (onde estarão, em princípio, também Marco Galinha, Kevin Ho e José Pedro Soeiro), mas potencialmente catastrófico para os credores da Global Media, incluindo o Estado. Isto porque sendo aceite pela ERC a transmissão dos títulos – e até os jornalistas e produção – da Global Media para a Notícias Ilimitadas, a sobrevivência daqueles órgãos de comunicação social fica garantida pela nova empresa sedeada na Maia, mas se a situação financeira da Global Media se deteriorar, e entrar mesmo em falência, o ‘calote’ não ‘infectará’ a Notícias Ilimitadas, mesmo se houver sócios ou accionistas comuns.
Com a retirada dos seus títulos ainda rentáveis, a Global Media fica mesmo assim com dois ‘trunfos’, que valem muito pelo simbolismo: o Diário de Notícias (que detém a 100%) e o Açoriano Oriental (a 90%) são os mais antigos órgãos de comunicação social de Portugal. Daí que numa eventual falência da ‘Global Media tóxica’, pode vir a ‘salvação’, aceite e até recomendada por partido como o Livre e o PCP, através de uma operação de nacionalização com assumpção das dívidas e perdão fiscal pelo Estado.
Saliente-se, por fim, que desde a entrada de Marco Galinha ao universo da Global Media em 2020, sucedem-se as empresas com nomes muito sui generis com um similar diapasão. Embora a novel Notícias Ilimitadas não venha a ser, em princípio, nem accionista nem subsidiária da Global Media, o dono do Grupo Bel mostra ser apreciador de nomes pomposos para empresas ligadas aos media. Foi ele que criou uma ‘matrioska’ de empresas, quando assumiu o controlo da Global Media, fundando a Páginas Civilizadas e ainda a Norma Erudita e a Palavras de Prestígio.
Curiosamente, esta última empresa, criada também por Marco Galinha em 2020, teve como sócios a Parsoc e a Ilíria – que agora surgem como eventuais accionistas da Notícias Ilimitadas –, mas as quotas foram adquiridas, sem qualquer explicação, pelo Grupo Bel pouco tempo antes da entrada do World Opportunity Fund na Global Media.
O PÁGINA UM, no decurso da elaboração desta notícia, tentou obter comentários e esclarecimentos de Alexandre Bobone, presidente do C0nselho de Administração da Notícias Ilimitadas, e que surge como contacto no RCBE, mas não houve qualquer reacção.
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A limpeza das estações do metro de Lisboa está a custar mais de 13 mil euros por dia. O contrato celebrado há um mês pelo Metropolitano de Lisboa, um ajuste directo com a multinacional Acciona Facility Services, de origem espanhola, foi apenas publicado na passada sexta-feira no Portal Base, embora esteja em vigor desde o início de Fevereiro.
De acordo com o contrato e o caderno de encargos, os serviços incluem a limpeza das áreas públicas e de acesso reservado, bem como a recolha e remoção de resíduos e a manutenção do Auditório do Alto dos Moinhos, da Esquadra da PSP e a remoção de grafittis. Ao contrário da aquisição de serviços no ano passado, entregue por linha a distintas empresas, para este ano a Administração do Metropolitano de Lisboa decidiu englobar todas as linhas numa só empresa, pelo que são assim da responsabilidade da multinacional espanhola a limpeza das 17 estações da Linha Azul, uma as quais dupla (Marquês de Pombal), as 12 estações da Linha Amarela, as 11 estações da Linha Verde, uma das quais dupla (Alameda) e as 11 estações da Linha Vermelha.
Apesar de estar prevista a possibilidade de trabalhos suplementares, ou descontos em situação de ausência de trabalhadores em determinados piquetes, o contrato tem, para já, uma duração de dois meses, mas prorrogável mensalmente até ao final de Dezembro deste ano. Por cada mês, o Metropolitano de Lisboa pagará cerca de 326 mil euros, acrescidos de IVA, o que resulta em 401 mil euros por mês. Se o contrato continuar em vigor até ao final de 2024, custará cerca de 4,4 milhões de euros, incluindo IVA.
Esta aquisição por ajuste directo – uma prática cada vez mais habitual para serviços de limpeza em empresas públicas, que passaram a preferir, mesmo se com maiores encargos para a Fazenda Pública, a contratação externa – deverá ser interrompido muito em breve, uma vez que já foi adjudicado o contrato saído de um concurso público aberto em Junho do ano passado. Este concurso recebeu propostas até 6 de Julho e foi recentemente adjudicado à Acciona Facility Service por um valor total de 11,7 milhões de euros por três anos. Com IVA, o montante total chegará quase aos 14,4 milhões de euros, o que dá um valor mensal próximo do montante do ajuste directo em curso.
Apesar de aparentar ser um serviço bastante oneroso, certo é que área a limpar todos os dias haverá com fartura. Por exemplo, só na estação da Reboleira a limpeza envolve um átrio de 2.000 metros quadrados, dois cais de 1.100 metros quadrados, 10 escadarias fixas, uma galeria de ligação à estação ferroviária com 1.350 metros quadrados e ainda um gabinete de apoio à operação, um posto de vendas, duas salas de pessoal, 11 vestiários e afins, e ainda cinco instalações sanitárias.
O contrato por ajuste directo celebrado entre o Metropolitano de Lisboa e a Accional Facility Services integra o Boletim P1 da Contratação Pública e Ajustes Directos que agrega os contratos divulgados nos dias 22 a 24 de Março de 2024. Desde Setembro de 2023, o PÁGINA UM apresenta uma análise diária aos contratos publicados no dia anterior (independentemente da data da assinatura) no Portal Base. De segunda a sexta-feira, o PÁGINA UM faz uma leitura do Portal Base para revelar os principais contratos públicos, destacando sobretudo aqueles que foram assumidos por ajuste directo.
PAV
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Nos últimos três dias, de sexta-feira até ontem, no Portal Base foram divulgados 1174 contratos públicos, com preços entre os 8,00 euros – para aquisição de medicamentos, pelo Hospital da Senhora da Oliveira Guimarães, ao abrigo de acordo-quadro – e os 15.855.379,00 euros – para fornecimento de electricidade, pelo Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central, também ao abrigo de acordo-quadro.
Com preço contratual acima de 500.000 euros, foram publicados 20 contratos, dos quais 12 por concurso público, cinco ao abrigo de acordo-quadro, dois por ajuste-directo e um por consulta prévia simplificada.
Numa das campanhas mediáticas ‘mais sujas’ contra um fármaco comercialmente pouco interessante para a Big Pharma, por já não ter patente, a ivermectina chegou a ser apodada como um mero desparasitante para cavalos ou vacas durante a pandemia da covid-19, quando alguns resultados se mostravam auspiciosos. A Food & Drug Administration ‘ajudou ao festim’ com um comunicado e posts nas redes sociais em que apelava de forma sensacionalista ao não uso de fórmulas veterinárias, sem relevar o potencial interesse na prescrição por médicos de fórmulas humanas. Numa acção judicial intentada por três médicos, a FDA acabou esta semana por aceitar eliminar o comunicado e todos os textos nas redes sociais, entre os quais um que se intitulava “Tu não és um cavalo. Tu não és uma vaca. A sério, pessoal. Parem de tomar ivermictina para a covid.” A autoridade norte-americana do medicamento tem agora um prazo de três semanas para “tirar o cavalinho da chuva”; neste caso, os seus polémicos conteúdos da Internet.
Em situações normais, um fármaco demora anos a fio, por vezes diversas décadas, até estabelecer um consenso entre os investigadores, e as decisões das autoridades do medicamento em manter ou não a sua comercialização depende de um contínuo avolumar de ensaios clínicos e de acompanhamento da sua aplicação pelos médicos em doentes reais.
Mas durante a pandemia, esse ‘circuito natural’ da Ciência foi modificadode forma drástica. Enquanto novos fármacos foram rapidamente aprovados e quase ‘endeusados’, resultando em negócios chorudos – como sucedeu com o remdesivir, o Paxlovid e molnupiravir, este último já retirado do mercado, por ser ineficaz e até promover mutações do SARS-CoV-2 –, outros foram metidos foram difamados em três tempos, mesmo se vários médicos os foram prescrevendo quase às escondidas, temendo represálias.
O caso mais conhecido sucedeu com a ivermectina, que, até ao início de 2020, era um dos fármacos mundiais mais amado pela Organização Mundial de Saúde, elogiada por médicos e investigadores. Os louvores vinham de todos os lados, sobretudo da comunidade de farmacologia, e logo no título de artigos científicos, que a consideravam uma wonder drug, um fármaco maravilhoso, ao lado da penicilina e da aspirina.
Entre 1990 e 2019, o Google Scholar contabiliza cerca de 16.400 artigos sobre a ivermectina. Nenhum a maldiz. Pudera: o seu descobridor, o japonês Satoshi Omura e o irlandês William Campbell – que a “purificou” – foram galardoados com o Prémio Nobel da Medicina em 2015, pelas maravilhas produzidas por este “milagre da terra”.
Mas, no decurso da pandemia, quando vários médicos começaram a testar diversos fármacos já existentes para outras doenças, a ivermectina foi estranhamente amaldiçoada, e metida no mesmo ‘saco’ da cloroquina e da hidrocloroquina.
Apesar de vários médicos a nível mundial continuarem, durante os anos da pandemia, a prescreverem a ivermectina – e em alguns países, como no Peru, chegou-se a usar de forma preventiva, embora fosse depois abandonada, com efeitos que não foram os melhores –, muitas autoridades e ‘peritos’ associados a farmacêuticas montaram, com o apoio da imprensa mainstream, uma das mais eficazes campanha de difamação de um fármaco.
Um dos eventos mais relevantes sucedeu em Agosto de 2021, quando a Food & Drug Administration decidiu lançar um comunicado para recomendar que não fosse feita auto-medicação com ivermectina, sobretudo através de fórmulas usadas para tratamento veterinário.
A autoridade norte-americana destacava o “interesse crescente num medicamento chamado ivermectina para a prevenção ou tratamento da covid-19 em humanos”, referindo que, além de “certas formulações para animais”, e acrescentava que, no caso de uso humano, “os comprimidos de ivermectina são aprovados em doses muito específicas para tratar alguns vermes parasitas, e existem formulações tópicas (na pele) para piolhos e doenças de pele como rosácea”. E a FDA alertava que tinha recebido “vários relatos de pacientes que necessitaram de cuidados médicos, incluindo hospitalização, após automedicação com ivermectina destinada a gado”.
Salientando então não haver ainda conclusões sobre a eficácia do fármaco, a FDA fazia recomendações sobre os perigoso de tomar “grandes doses de ivermectina”, remetendo para a necessidade de ser um médico a prescrever uma receita, se assim fosse por ele determinado, e a toma ser “exactamente como prescrito”. E concluía: “nunca use medicamentos destinados a animais em si ou em outras pessoas. Os produtos de ivermectina para animais são muito diferentes daqueles aprovados para humanos. O uso de ivermectina animal para prevenção ou tratamento de covid-19 em humanos é perigoso”.
Mas aquilo que seria uma recomendação óbvia para a generalidade dos fármacos com uso humano e veterinário – ou seja, uma pessoa não deve automedicar-se e ainda menos com fórmulas ou doses usadas em animais – acabou por ser um ‘ferrete’ na ivermectina que passou a ser usado pela imprensa e pelos promotores de medicamentos novos. E a a culpa foi inteiramente da FDA, que usou a mensagem do seu comunicado nas redes sociais de modo enviesado.
Tanto no Facebook como no Twitter (actual X) e no LinkedIn, a FDA apelava ao não uso de ivermectina veterinária de forma sensacionalista: “Tu não és um cavalo. Tu não és uma vaca. A sério, pessoal. Parem de tomar ivermictina para a covid.” E assim foram lançados os dados para continuamente maldizer a ivermectina, confundindo-se uso veterinário com uso humano.
Em pleno ano de 2024, ainda se está longe de um consenso sobre a eficácia da ivermevtina no combate ao SARS-CoV-2, mas o seu interesse científico é por demais evidente. Só desde Janeiro deste ano, o Google Scholar regista a publicação de 719 artigos científicos; alguns não encontrando eficácia, outros apontando vantagens. O mais recente foi publicado há duas semanas na revista científica Heliyon, da conceituada Elsevier, da autoria de três investigadores chineses que, numa meta-análise envolvendo 33 outros artigos com dados quantitativos sobre a ivermectina, concluíram que este fármaco “pode reduzi o risco de necessidade de ventilação mecânica e de efeitos adversos em doentes com covid-19 sem aumento de outros riscos”, acrescentando que “na ausência de melhor alternativa, os médicos podem usá-la com precaução”.
Ora, mas do ponto de vista mediático a ivermectina continuava ‘conspurcada’ pelo comunicado e posts de Agosto de 2021 da FDA, algo não foi suportado de forma indiferente por alguns médicos. Três deles – Mary Talley Bowden, Paul Marik and Robert Apter, medicos no Estado norte-americano de Louisiana – interpuseram uma acção contra a FDA por extravasar as suas atribuições.
Anteontem, numa decisão histórica, num acordo firmado em tribunal, a FDA aceitou retirar no prazo de 21 dias – e nunca mais republicar – os controversos conteúdos colocados nas redes sociais sobre a ivermectina em 21 de Agosto de 2021, bem como a apagar o seu comunicado de imprensa daquele mês, cuja primeira versão é de 5 de Março de 2021.
Comunicados e posts nas redes sociais da FDA ajudaram a criar a ideia de a ivermectina ser um mero medicamento de uso veterinário.
De igual modo, também será apagado um post do Twitter de 26 de Abril de 2022 com o sugestivo título: “Hold your horses, y’all. Ivermectin may be trending, but it still isn’t authorized or approval to treat covid-19”, onde a autoridade norte-americano do medicamento não escondia o entusiasmo em manter a artificial má-fama de um fármaco de já não tem patente e é, por isso, bastante barato, ao contrário do remdesivir, comercializado pela Gilead, e do Paxlovid, comercializado pela Pfizer.
Em declarações ontem à revista norte-americana Newsweek, fonte oficial da FDA defendeu que “a agência optou por resolver este processo em vez de continuar a litigar sobre declarações com entre dois e quase quatro anos”, mas acrescentou que “não admitiu qualquer violação da lei ou qualquer irregularidade, discordando de que “excedeu a sua autoridade ao emitir as declarações contestadas no processo”, e dessa forma, mantém “autoridade para comunicar com o público sobre os produtos regula.”
Em Agosto do ano passado, uma análise revista pelos pares (peer review) publicada na revista científica Cureus – que integra a editora Springer Nature, a dona da Nature – concluiu que a decisão do antigo presidente peruano Francisco Sagasti de suspender em Novembro de 2020 o uso de ivermectina como terapêutica preventiva contra a covid-19 terá causado uma escalada de mortes naquele país sul-americano.
Trecho do acordo judicial onde a FDA aceita retirar o seu comunicado e os posts das redes sociais sobre a ivermectina.
O Peru destacou-se nas estatísticas internacionais como o país com maior taxa de mortalidade atribuída à covid-19 com um espantoso rácio de 6.572 óbitos por milhão de habitantes – que corresponde a 0,65% da população –, quase duas vezes mais do que o valor registado em Portugal.
Os autores daquele estudo relataram também os bons resultados do uso de ivermectina na província indiana de Uttar Pradesh, e denunciam também a manipulação e erros em ensaios clínicos que acabaram por afectar a reputação deste fármaco de baixo custo.
“Nas últimas décadas, os medicamentos genéricos geralmente se saíram mal perante a concorrência com ofertas patenteadas, com base na infeliz vulnerabilidade da Ciência à mercantilização e à captura regulatória”, alertaram os autores, exemplificando com o caso de uma terapia tripla para úlceras pépticas, que apresenta uma eficácia de 96%, e que agora é o padrão terapêutico, mas cujo uso foi sendo adiado até que as patentes de dois medicamentos paliativos mais vendidos para esse problema gástrico expirassem.
E apontam ainda que “tal viés potencial contra a ivermectina foi sugerido por um comunicado de imprensa de 4 de Fevereiro de 2021 da Merck, de que estava desenvolvendo sua própria terapêutica patenteada para covid-19”, alegando que havia “uma relativa falta de dados de segurança” para a ivermectina.
Peru foi um dos países que começou a usar ivermectina como prevenção da covid-19, mas uma posterior decisão política abandonou a campanha de medicação. Resultado: a mortalidade total aiumentou.
Com efeito, a norte-americana Merck – que oferecera a patente da ivermectina para o Programa Africano de Controle da Oncocercose (cegueira dos rios) – haveria de conceber um fármaco, o molnupiravir, sob a marca comercial Lagevrio, que obteve autorização em finais de 2021 na Europa e foi logo bastante elogiado por vários especialistas, estando à cabeça, em Portugal, o actual bastonário da Ordem do Farmacêuticos, Hélder Mota Filipe, e o pneumologista Filipe Froes, um médico do SNS, consultor da Direcção-Geral da Saúde e um dos mais promíscuos consultores de farmacêuticas.
Recorde-se, porém, que o molnupiravir acabou ingloriamente os seus dias em Julho passado, depois de evidência da sua completa ineficácia. Mas antes da retirada do mercado, confirmada pelo Infarmed em 17 de Julho, a Merck embolsou com este “embuste”, e com a conivência de reguladores e o apoio de influencers de Medicina, um total de 5,7 mil milhões de dólares em receitas só no ano passado.
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Dois dias depois da primeira notícia do PÁGINA UM, a Câmara Municipal de Portimão, liderada pela socialista Isilda Gomes, apagou o registo original do Portal Base sobre o ajuste directo para programação das comemorações do centenário da cidade, e criou um novo, acrescentando-lhe o caderno de encargos. Com isto, fez-se mais luz sobre a polémica e irregular escolha do italiano Giacomo Scalisi para programar as comemorações dos 100 anos da cidade algarvia: além da ausência de fundamentação adequada para evitar um concurso público, o caderno de encargos para um contrato de 910 mil euros é um chorrilho de banalidades que nem sequer defende o município em caso de incumprimento. E muito menos consegue justificar a razão de Giacomo Scalisi (com a sua cooperativa) ser a única pessoa (entidade) capaz de programar e gerir as festividades. Além disso, o caderno de encargos tem uma cláusula de confidencialidade e sigilo, o que contaria a Lei do Acesso aos Documentos Administrativos, e o director artístico trabalhou pelo menos dois meses sem qualquer suporte legal.
São apenas catorze as linhas com palavras a sustentar um ajuste directo de 910 mil euros. Ontem, o município de Portimão decidiu colocar no Portal Base o caderno de encargos que acompanha (e integra) o contrato celebrado pela presidente da autarquia, a socialista Isilda Gomes, e o director artístico da cooperativa Lavrar o Mar, o encenador italiano Giacomo Scalisi, para a aquisição de serviços de criação e execução de um denominado “projecto artístico” que consiste na programação e pagamento de eventos comemorativos dos 100 anos daquela cidade algarvia.
Conforme o PÁGINA UM revelou na passada segunda-feira, para programar eventos culturais do primeiro centenário da cidade de Portimão, a autarquia local contratou a cooperativa algarvia Lavrar o Mar, presidida pelo encenador italiano Giacomo Scalisi, por um valor de 740 mil euros, que ascende a 910 mil euros com IVA incluído. O contrato celebrado no final de Fevereiro, e divulgado no início da semana passada, invocava um falso argumento previsto pelo Código dos Contratos Públicos, para um ajuste directo desta natureza, porque equipara a programação e gestão de 38 eventos culturais e festivos – que se iniciaram no passado mês, e se prolongam até ao final do presente ano – à aquisição (compra) de obra de arte, contratação de um artista ou de um espectáculo.
Um cumprimento sorridente entre Isilda Gomes e Giacomo Scalisi a selar um ajuste directo de 910 mil euros de dinheiros públicos inundados de irregularidades.
O registo inicialmente inserido no Portal Base (com o número de identificação 10605060) foi integralmente apagado pela autarquia de Portimão – porventura, numa tentativa de negar a veracidade de alguns aspectos da primeira notícia do PÁGINA UM sobre este assunto – e, em sua subsituição, criou ontem um novo registo nesta plataforma oficial dos contratos público (com o número de identificação 10626097) onde acrescentou algumas peças procedimentais antes não divulgadas, designadamente a carta convite e o caderno de encargos.
Este último documento, apesar de possuir 14 páginas, ‘gastas’ com generalidades e cláusulas habituais que acabam repetidas no contrato, somente dedica 14 linhas às especificações técnicas. Por norma, seria de esperar num caderno de encargos para um contrato de programação cultural que nas especificações técnicas estivesse listados e discriminados os eventos ou tipologias de eventos a ser obrigatoriamente executados, até pelo simples facto de assim se justificar o valor do contrato e, em certa medida, poder avaliar-se à posteriori se o adjudicatário cumpriu integral ou apenas parcialmente o contrato.
Porém, as singelas 14 linhas das especificações técnicas, que fazem parte da cláusula 14º do caderno de encargos com 14 páginas, diz apenas que a autarquia pretende a “concepção e operacionalização do projecto artístico de comemorações do centenário da Cidade de Portimão”, acrescentando que “a entidade a contratar [sabendo a autarquia que seria a Lavrar o Mar] deverá, em coerência com o projecto artístico para as Comemorações, a apresentar até Novembro de 2023 e após a aprovação do mesmo pelo Executivo, planear as tarefas necessárias à operacionalização do programa, designadamente coordenando a sua pré-produção e produção, assegurando a contratação dos espectáculos programados e a assistência técnico-artísticas aos mesmos, realizando o acompanhamento das companhias e artistas e promovendo a sua interação com os públicos”.
Isilda Gomes lidera a autarquia de Portimão há 10 anos.
E terminam, as ditas especificações técnicas, referindo que “as tarefas atrás indicadas serão acompanhadas pelo Município através de reuniões regulares com o Director artístico do Projecto e com outros colaboradores e da elaboração e apresentação de relatórios e memorandos escritos”, assumindo que “todos os encargos inerentes à execução do projecto que venha a ser aprovado serão da responsabilidade da entidade a contratar”.
Além de se assumir, neste aspecto, que o ajuste directo que se pretende sustentar numa criação artística foi, na verdade, a contratação de um programador, sob a denominação de “Director artístico do Projecto”, nada nas curtas e vagas especificações técnicas do caderno de encargos se pode encontrar uma razão para a escolha da autarquia de Portimão, com dinheiros públicos, pelo programador Giacomo Scalisi.
Recorde-se que o município de Portimão defendeu, na passada segunda-feira, que a escolha da Lavrar do Mar teve como pressupostos “o desenho e operacionalização de um programa de comemorações [que] exige que o mesmo seja acompanhado artisticamente por uma entidade de reconhecida competência no domínio da programação artística, visando assegurar a articulação entre os vários setores da produção e o acompanhamento de públicos em coerência com o programa artístico a conceber”, e também a necessidade de que a entidade escolhida possuísse “um conhecimento profundo não só de programação, mas também das companhias e artistas que possam vir a integrar o programa das Comemorações do centenário da Cidade de forma a potenciarem as interações artísticas e formativas entre os artistas e os públicos”.
As especificações técnicas de um ajuste directo de 910 mil euros ocupa 14 linhas cheias de nada.
E a mesma fonte oficial da autarquia liderada por Isilda Gomes salientou então ao PÁGINA UM que Giacomo Scalisi e a Lavrar o Mar seria a única entidade capaz para “colaborar, com valor acrescentado, face a outras eventuais opções [por exemplo, concurso público para se procurar alternativas de programação] , na conceção e operacionalização do projecto artístico de comemorações declinando-o através de um planeamento adequado num conjunto de tarefas de conceção, pré-produção e produção que lhe caberá, depois, coordenar”, será a entidade Lavrar o Mar”. Ou seja, para o município socialista o “serviço pretendido apenas pode ser confiado” à Lavrar o Mar, o que se mostra duvidoso face às especificidades técnicas do caderno de encargos.
De acordo com o programa já disponível pela Câmara Municipal de Portimão, apenas dois dos espectáculos do centenário da cidade serão produzidos pela Lavrar o Mar: o primeiro, em Outubro, é do próprio Scalisi; e o outro será um espectáculo que combina dança e música da autoria da bailarina e coreógrafa Madalena Victorino, co-diectora artística da cooperativa. Dos restantes eventos, que decorrem entre Fevereiro e Dezembro de 2024, encontram-se concertos, espectáculos circenses, exposições e outros eventos com a produção executiva ou organização por outras entidades, que foram programados pela cooperativa a partir do ajuste directo.
Uma outra evidente irregularidade deste contrato por ajuste directo está no facto de Giacomo Scalisi e a sua cooperativa – cujas contas não são públicas, ao contrário do que sucede com empresas – terem começado a trabalhar para a autarquia de Portimão, e a dar a cara publicamente pela programação do centenário da cidade, muito antes da assinatura do contrato de 910 mil euros, algo que o Código dos Contratos Públicos não permite. Com efeito, no passado 12 de Dezembro, dia da Cidade de Portimão, foi já Giacomo Scalisi o cicerone da apresentação do esboço da programação, prometendo então que haveria uma “forte presença de espectáculos de novo circo, de teatro, de música, de dança, das artes plásticas”, cuja intenção seria “construir uma ocupação progressiva da cidade de Portimão”.
Ora, uma das cláusulas do contrato refere que este somente “produz efeito a partir da data de aposição da última assinatura”, terminando no final do presente ano. Tanto Isilda Gomes como Giacomo Scalisi assinaram o contrato na tarde do dia 26 de Fevereiro, ou seja, o director da Lavrar o Mar esteve mais de dois meses a trabalhar para a autarquia sem qualquer suporte legal.
Saliente-se também que o caderno de encargos possui uma cláusula de sigilo e confidencialidade “sobre todos os assuntos previstos no objecto da contratação”. E acrescenta mesmo que as duas partes (autarquia e Lavrar o Mar) devem “tratar, como confidenciais, todos os documentos a que tenham acesso no âmbito do seu desenvolvimento, abrangendo essa obrigação os seus agentes, funcionários, colaboradores ou terceiros que se encontrem envolvidos na prestação de serviços ou no procedimento ao qual o mesmo deu origem”. Essa cláusula contraria, obviamente, a Lei do Acesso aos Documentos Administrativos.
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