Dados actualizados no início deste mês pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) mostram que se contabilizaram em Portugal menos suicídios em 2020 e 2021, face aos anos anteriores, embora informações do Eurostat mostrem que houve um aumento relevante nos menores de 25 anos. Porém, na Espanha a gestão da pandemia ‘bateu forte’, com um aumento de 28% no total das mortes auto-infligidas no biénio de 2020-2021 quando comparado com os dois anos anteriores à pandemia. Um estudo agora divulgado numa revista científica sobre a realidade espanhola disseca as causas e os grupos de risco, expondo os fortes danos causados por medidas que levaram ao isolamento social. Também uma recente revisão sistemática que analisou 34 estudos científicos recomenda uma análise mais aprofundada aos anos pós-pandemia para se avaliar os verdadeiros impactes das restrições impostas durante a pandemia, com perda de laços sociais e degradação da situação económica.
Afinal, Portugal registou menos suicídios nos dois primeiros anos da pandemia, mantendo inalterada a tendência decrescente da última década, mas na vizinha Espanha – que foi alvo de um exaustivo estudo sociodemográfico agora publicado numa prestigiada revista científica – os números aumentaram, ultrapassando a fasquia das 4.000 mortes em 2021.
Os dados portugueses foram agora actualizados pelo Instituto Nacional de Estatística, no passado sábado com a divulgação da causa de morte em 2021, e indicam que afinal foram 934 as pessoas que tiraram a sua própria vida. Estes números são ligeiramente mais baixos (menos 18 óbitos) do que os avançados pelo Instituto de Medicina Legal para o mesmo período, que em 2022 divulgou que, no ano anterior, se tinham registado 952 suicídios. Certo é que os números agora indicados pelo INE são os mesmo que constam no Eurostat. Os números de 2021 são também inferiores aos de 2020, que contabiliza 945. Comparando este biénio com o de 2018-2019, observa-se um decréscimo de 5,5%.
Esta descida nos suicídios em território nacional ocorreu num período de confinamentos, encerrament0 de escolas e outras medidas políticas geraram um forte impacto negativo na saúde mental da população. Embora os dados do INE não mostrem informação por grupo etário, a base de dados do Eurostat revela que em Portugal tiraram a vida 80 jovens com menos de 25 anos no biénio 2020-2021, quando esse número se situou nos 66 no biénio 2018-2019. Recorde-se que Portugal optou por seguir a maior parte dos países europeus e impor fortes medidas restritivas, enquanto a Suécia manteve a sua economia a funcionar e, em geral, com ligeiras excepções, não impôs confinamentos, nem fechou escolas nem comércio e não recomendou o uso de máscara facial. Note-se que no caso da Suécia, o suicídio jovem (menos de 25 anos) diminuiu durante a pandemia, embora este seja um país tradicionalmente com uma muito elevada prevalência mortes auto-infligidas (oficialmente, cerca de três vezes superior à portuguesa=.
A tendência observada pelos dados do INE está também em forte contraciclo com os suicídios registados em Espanha durante a pandemia. Segundo um estudo científico da edição do próximo mês de Maio, mas já online, da revista revista European Neuropsychopharmacology as mortes por suicídio em Espanha nos dois primeiros anos da pandemia foram de 3.941 em 2020 e de 4.003 em 2021. Estes são os números mais elevados pelo menos desde 2013, de acordo com a base de dados do Eurostat. Comparando 2020-2021 com os dois anos anteriores à pandemia, a subida é de 28%.
O estudo sociodemográfico elaborado por uma equipa multidisciplinar de Espanha, Estados Unidos e México confirma “um número crescente de vítimas de suicídio na Espanha durante a pandemia”, concluindo que “a influência da covid-19 nos factores de risco de suicídio [por exemplo, falta de redes de apoio social] desempenha[ram} um papel crítico na tendência crescente de grupos sociodemográficos específicos”.
Evolução do número de suicídios na Espanha (esquerda) e em Portugal (direita) entre 2013 e 2022. Fonte: Eurostat. Nota: A população espanhola é 4,59 vezes a portuguesa.
Apesar de os investigadores terem observado “um aumento global, independentemente dos principais grupos sociodemográficos”, concluíram que se registou “um número significativamente maior de suicídios também foi observado para adultos de meia-idade, grandes áreas urbanas e pessoas solteiras”.
Os investigadores destacaram ainda que, “as medidas de distanciamento social permitiram reduzir as oportunidades de fazer e fortalecer as redes sociais em pessoas solteiras”. Recordaram que “as medidas de distanciamento social foram mais rigorosas nas capitais de província e nas grandes áreas urbanas, aquelas com acesso limitado a espaços verdes ao ar livre”. Assim, “a implementação de medidas de distanciamento social levou definitivamente a uma redução drástica dos contactos sociais através do distanciamento físico, confinamentos domiciliários e o encerramento temporário de muitas atividades sociais nas grandes áreas urbanas (restaurantes, bares, ginásios,…)”.
O impacte da gestão da pandemia nas doenças mentais e na promoção de factores de risco do suicídio tem vindo a merecer uma reforçada atenção da investigação científica. Por exemplo, uma recente revisão sistemática, publicada em Fevereiro passado na revista Social Psychiatry and Psychiatric Epidemiology concluiu, após analisar 34 estudos realizados em mais de 40 países e regiões, que “nenhuma mudança significativa nas taxas de suicídio foi observada durante a pandemia de covid-19 de uma perspectiva global para os períodos examinados”. Mas os autores do estudo intitulado sugeriram que fosse realizado “um acompanhamento mais longo pode fornecer informações adicionais sobre essas tendências de suicídio globalmente”.
Para a psicóloga Joana Amaral Dias, ainda é prematuro tirar conclusões destes dados divulgados pelo INE relativos a Portugal. “Como investigadora e especialista, não confio nos novos dados. Por um lado, sabemos que foram baralhadas as mortes por covid-19 com as mortes por outras causas. Por outro lado, os dados estiveram escondidos e demoraram tempo a ser divulgados”, afirmou em declarações ao PÁGINA UM.
Primeira página do artigo científico da edição de Maio da revista European Neuropsychopharmacology, já disponível online desde o mês passado, aborda em detalhe o forte impacte da pandemia nos suicídios em Espanha durante a pandemia.
Salientando que a aparente tendência de descida dos suicídios em Portugal na pandemia, indicada pelos números oficiais, não batem certo com a epidemia de doenças do foro mental, a psicóloga relembra que “as pessoas foram sujeitas a pressão sobre a sua saúde mental devido às restrições impostas”. “Houve um acréscimo brutal de casos de ansiedade e depressão na população, que é a base que leva aos suicídios”, salientou.
Para Joana Amaral Dias defende a necessidade de aguardar pelos dados de 2022 e 2023 para se poder tirar alguma conclusão, referindo que em 2020 e 2021 a população entrou em “modo de sobrevivência devido ao medo imposto, nomeadamente através da comunicação social”, havendo consequências que demoram a surgir. “É como quando estamos a correr e caímos e magoamos o joelho. Inicialmente, porque o corpo está quente, conseguimos levantar e andar e quase não sentimos dores. Mas, quando ficamos frios, aí as dores surgem e vamos dar-nos conta dos reais danos”. No caso dos suicídios em Portugal, “temos de esperar pelos dados de 2022 e 2023 para ver o que realmente aconteceu na pandemia”. Para a psicóloga, os dados divulgados pelo INE “são insuficientes para se traçar um perfil” do que sucedeu na pandemia em matéria de evolução dos suicídios.
Por outro lado, Joana Amaral Dias recordou que muitos portugueses recorreram ao consumo de álcool ou de estupefacientes para lidar com os confinamentos e as fortes restrições impostas à população. “Disparou o consumo de antidepressivos e ansiolíticos e somos campeões no consumo de benzodiazepinas”, lembrou.
Com efeito, um relatório do Conselho Internacional de Controlo de Narcóticos colocou Portugal no grupo de países com maior consumo de psicotrópicos, como o diazepam, que começou a ser comercializado sob a marca Valium. Já o relatório anual deste organismo da Nações Unidas refere que, em 2022, o Uruguai registou o maior nível de consumo de zolpidem (um fármaco hipnótico) a nível mundial, seguido de Portugal. O mesmo relatório aponta que de acordo com dados sobre a cetamina (um anestésico não barbitúrico) detectada nas águas residuais, as quantidades mais elevadas foram encontradas em cidades da Dinamarca, Itália, Portugal e Espanha.
Joana Amaral Dias (Foto: Júlia Oliveira/PÁGINA UM)
Quanto ao consumo de estupefacientes, o relatório anual de 2022 sobre ‘A Situação do País em Matéria de Drogas e Toxicodependência‘, o número de casos de overdoses em 2021 atingiu o valor mais alto deste 2009, tendo ocorrido 81 mortes em 2021, mais 29% do que em 2020, o valor mais elevado dos últimos sete anos. E destacou ainda que, “em relação aos 339 óbitos registados em 2021 com a presença de substância ilícita ou seu metabolito e atribuídos 119 a outras causas de morte (acidente, morte natural, homicídio e suicídio), a cannabis foi predominante, tendo sido detectada em 159 casos (47%)”.
Já os dados referentes a 2022, referem que as outras mortes com a presença de drogas (367) – atribuídas a morte natural (41%), acidentes (26%), suicídio (15%) e homicídio (6%) – têm vindo a aumentar desde 2016, atingindo em 2022 o valor mais alto desde 2008.
Também no consumo de álcool, as medidas impostas acabaram por ter consequências na saúde mental e comportamentos aditivos. Segundo o relatório anual de 2022 sobre ‘A Situação do País em Matéria de Álcool‘, “vários indicadores ultrapassaram já em 2021 os níveis pré-pandémicos, entre eles, os readmitidos em tratamento por problemas relacionados com o uso de álcool (o valor mais elevado desde 2012), os internamentos hospitalares com diagnóstico principal ou secundário atribuíveis ao consumo de álcool e as sinalizações e diagnósticos de exposição de crianças/jovens a comportamentos relacionados com o consumo de bebidas alcoólicas que afetam o seu bem-estar e desenvolvimento (ambos com os valores mais altos dos últimos cinco anos)”.
(Foto: D.R.)
Para Joana Amaral Dias, além de ser relevante uma maior transparência nos dados sobre suicídios divulgados em Portugal, também sublinha a importância de se debater publicamente o tema para melhorar o nível de literacia da população e melhor prevenir os suicídios. A psicóloga classifica de “completamente idiota a posição de não se divulgarem os casos de suicídio na comunicação social por receio de serem copiados”. “Tudo é contágio social! É preciso perceber que o próprio temor induzido pelos media na covid-19 causa contágio social”, alertou.
Segundo a psicóloga, “não se noticiar e não se falar no tema causa mais prejuízo, porque é preciso desmistificar” e também defende a “criação de uma política pública mais responsável de abordar o tema de forma séria”.
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Se um Governo quiser impedir o acesso a documentos da sua função político-administrativa tem agora um bom argumento ‘fornecido’ por um acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS): basta que diga que possuem natureza política. No decurso de uma intimação do PÁGINA UM para acesso ao inquérito sobre incompatibilidades preenchido por Caleia Rodrigues antes de assumir funções de secretário de Estado da Agricultura em Fevereiro do ano passado – o único que o fez ainda durante o Governo Costa –, três desembargadores do TCAS, entre os quais um ex-inspector-geral da Administração Interna, vieram agora confirmar uma sentença de há um ano do Tribunal Administrativo de Lisboa. Para os desembargadores, aqueles inquéritos – que terão sido agora também preenchidos pelos membros do Governo Montenegro – são de natureza política, o que implica o seu imediato secretismo. Como a Lei do Acesso aos Documentos Administrativos, criada em 1993, se mostra ambígua sobre os documentos que não são administrativos, significa que esta tese do TCAS, a fazer jurisprudência, concede o direito a qualquer membro do Governo alegar que todos os ofícios, estudos, relatórios e pareceres têm um cunho político, evitando assim a sua divugação. E mesmo o acesso a jornalistas.
Um acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS), aprovado no final do mês passado, concede, de forma indirecta, a receita para qualquer Governo, no contexto da actual Lei do Acesso aos Documentos Administrativos (LADA), fugir à transparência: alegar que relatórios, inquéritos ou outras quaisquer decisões escritas ou em formato digital são documentos políticos. Esse ‘truque’ transforma-os em documentos secretos, independentemente de qualquer classificação.
Em causa estava um processo de intimação do PÁGINA UM para o acesso aos inquéritos dos convidados a integrarem os Governos, designadamente ministros e secretários de Estado, uma prática introduzida por uma Resolução de Conselho de Ministros no início do ano passado, mas que foi apenas usada no Governo de António Costa uma única vez. Gonçalo Caleia Rodrigues, antes de assumir funções de secretário de Estado da Agricultura em 15 de Fevereiro de 2023, foi o único que preencheu o inquérito, ao qual o PÁGINA UM pedira o acesso, que foi recusado pelo Governo de António Costa. Com a entrada em funções dos novos ministros e secretários de Estado do Governo de Luís Montenegro, terão sido, eventualmente, preenchidos novos inquéritos, embora com este acórdão não seja possível sequer conseguir confirmar documentalmente a sua existência.
Aprovado por unanimidade, o acórdão do TCAS assinado por três desembargadores, o primeiro dos quais é Pedro Figueiredo, inspector-geral da Administração Interna entre 2015 e 2019, tendo recebido um louvor do então ministro Eduardo Cabrita aquando da sua saída daquelas funções. Os outros dois desembargadores foram Marcelo Mendonça e Carlos Araújo.
A decisão do tribunal é muito lacónica e nem se perde sequer em grandes considerações. Ocupa pouco mais de duas páginas e confirma uma sentença de Abril do ano passado do Tribunal Administrativo de Lisboa com 10 páginas. O PÁGINA UM alegara que, embora se estivesse perante acto preparatório de uma decisão política – a posterior nomeação de governantes –, o inquérito (o documento em si) constituía o cumprimento de um requisito administrativo, emanado de uma lei, tanto mais que era preenchido por alguém que não exercia ainda funções governativas, sendo antes um pré-requisito de um cidadão para ser nomeado pelo primeiro-ministro ou por um ministro. Além disso, o PÁGINA UM salientava que, tendo a dita Resolução do Conselho de Ministros, justificado o inquérito pela “importância de assegurar a transparência e o controlo da integridade do sistema democrático”, o secretismo em redor do seu conteúdo era incongruente para esse propósito.
Recorde-se que a Resolução do Conselho de Ministros estipula que “uma vez preenchido, o questionário [pelos candidatos a membros do Governo] tem a classificação de Nacional Secreto”, e que haverá lugar à sua destruição “caso a personalidade que o preencheu não seja nomeado membro do Governo ou no momento em que cesse funções.” A classificação especial de documentos administrativos – que são todos aqueles que caem na esfera da Administração Pública – carece, na maioria dos casos, de leis da Assembleia da República, além de que a restrição de acesso a estes inquéritos, colocando-os como “Nacional Secreto”, se mostra completamente abusiva, porque os equipara a “segredo de Estado”.
Contudo, de acordo com a Lei Orgânica nº 2/2014, o regime do segredo de Estado abrange somente “os documentos e as informações cujo conhecimento por pessoas não autorizadas é suscetível de pôr em risco interesses fundamentais do Estado”, sendo que esses se encontram explicitamente explanados, a saber: “interesses fundamentais do Estado os relativos à independência nacional, à unidade e à integridade do Estado ou à sua segurança interna ou externa, à preservação das instituições constitucionais, bem como os recursos afetos à defesa e à diplomacia, à salvaguarda da população em território nacional, à preservação e segurança dos recursos económicos e energéticos estratégicos e à preservação do potencial científico nacional.”
Na mesma linha seguem também até as instruções para a segurança nacional, a salvaguarda e a defesa das matérias classificadas, designadamente as credenciações do Gabinete Nacional de Segurança, onde melhor se explicita que a classificação de Nacional Secreto abrange apenas “as informações, documentos e materiais cuja divulgação ou conhecimento por pessoas não autorizadas possa ter consequências graves para a Nação ou nações aliadas ou para qualquer organização de que Portugal faça parte”.
Em concreto, diz-se que essa classificação de Nacional Secreto – que implica fortes restrições de acesso – só se verificam se fizerem “perigar a concretização de empreendimentos importantes para a Nação ou nações aliadas ou para organizações de que Portugal faça parte”, ou ainda se “comprometerem a segurança de planos civis e militares e de melhoramentos científicos ou técnicos de importância para o País ou seus aliados ou para organizações de que Portugal faça parte”, ou ainda se “revelarem procedimentos em curso relacionados com assuntos civis e militares de alta importância.”
Em todo o caso, esta justificação nem sequer seria necessária, na interpretação dos juízes e desembargadores do Tribunal Administrativo. No acórdão, que confirma a linha de uma primeira sentença, conclui-se que “o preenchimento do dito ‘questionário de apreciação prévia’ insere-se no processo de escolha dos membros do Governo, pelo Primeiro-Ministro, tal actividade é política, não administrativa e visará salvaguardar o prestígio do Governo”. E dizem ainda os desembargadores que “as restantes preocupações referidas pelo recorrente [PÁGINA UM], nomeadamente o desejo de averiguar se o Governo deu cumprimento à Resolução Fundamentada referida nos autos, não são susceptíveis de alterar o decidido, porquanto a LADA [Lei do Acesso aos Documentos Administrativos] não o permite”.
Este acórdão abre, deste modo, uma panóplia de possibilidades a qualquer Governo em considerar político todos os pareceres, relatórios ou mesmo troca de comunicações elaborados para a posterior tomada de uma decisão ministerial ou do Conselho de Ministros, prejudicando assim a transparência tão propagandeada na teoria mas pouco evidente na prática. Aliás, ao contrário do que sucede em diversos países europeus, a legislação portuguesa na transparência nas decisões políticas é pouca.
Nesse âmbito, a LADA é, intencionalmente ambígua, permitindo interpretações à la carte como as do acórdão do TCAS, na definição do que não é documento administrativo. Nesse diploma, cuja primeira versão tem 31 anos, salienta-se que estão excluído do acesso “as notas pessoais, esboços, apontamentos, comunicações eletrónicas pessoais e outros registos de natureza semelhante, qualquer que seja o seu suporte” – ou seja, não são, em princípios, acessivos mensagem de e-mail ou de WhatsApp –, ainda “os documentos produzidos no âmbito das relações diplomáticas do Estado português” e também “os documentos cuja elaboração não releve da atividade administrativa, designadamente aqueles referentes à reunião do Conselho de Ministros e ou à reunião de Secretários de Estado, bem como à sua preparação”.
Ora, este “designadamente” permite ambiguidades, porque não exclui outras actividades para além das que se referem às reuniões formais de governantes. No limite, se um qualquer governante assim desejar pode, a partir de agora, se a interpretação dos desembargadores fizer jurisprudência, alegar que todos os documentos, mesmo que aparentem ser de índole administrativa, constituem actividade política, até porque um Governo tanto administra como exerce funções políticas sendo a fronteiras entre estas funções bastante ténue ou mesmo inexistente.
Saliente-se que o PÁGINA UM, conhecendo à partida a possibilidade de insucesso desta intimação, avançou mesmo assim para que, em caso de indeferimento – como se confirmou agora –, pelo menos ficasse patente a hipocrisia de uma medida política de evidente populismo: decretou-se um inquérito prévio, em prol da transparência, para averiguar da idoneidade de futuros governantes, mas depois publicamente fica tudo secreto. No limite, pode nem sequer haver inquéritos preenchidos. E mesmo que existam, no fim das funções dos governantes, ou se os candidatos não forem aceites, a Resolução do Conselho de Ministros determina a sua destruição. Nem para os historiadores ficam. Na verdade, existirem ou não existirem os ditos inquéritos é ‘igual ao litro’. Nem servem ‘para inglês ver’.
As iniciativas do PÁGINA UM junto do Tribunal Administrativo são financiadas pelo FUNDO JURÍDICO, com apoios dos nossos leitores. Em situações como a desta intimação, desfavorável ao PÁGINA UM, os encargos acabam por ser maiores por ser impostas as custas. Para manter a possibilidade de continuar as iniciativas em prol de uma maior transparência administrativa e política, apoie oFUNDO JURÍDICO do PÁGINA UM. Neste momento, está em preparação a entrada de mais três intimações por recusa de documentação administrativa.
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Num braço de ferro cada vez mais forte com Elon Musk, dono do X (ex-Twitter), o Brasil abriu a porta para entrar na lista de países com regimes totalitários, como a China e a Coreia do Norte, que promovem a censura e que proibiram aquela rede social de funcionar nos seus territórios. Após a recusa de Musk em continuar o bloqueio de contas sem justificação plausível exigida pelo Supremo Tribunal Federal, o juiz Alexandre de Moraes abriu de imediato um processo ao empresário por obstrução à justiça, inclusive em associação crminosa, e por incitação ao crime, havendo já o cenário de proibir o acesso ao X no Brasil. O presidente da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) terá já instruído as principais operadoras do Brasil para, caso surja uma ordem judicial de suspensão do serviço, seja cumprida imediatamente. Apesar das ameaças, Elon Musk não se amedrontou e sugeriu hoje uma alternativa em caso de bloqueio desta rede social no Brasil, através de VPN, uma rede privada virtual que protege a navegação na Internet. E até goza com Alexandre de Moraes, alcunhando-o de Darth Vader, o vilão da Guerra da Estrelas, e esta tarde imaginou-o num consultório de psicanalista.
O Brasil, liderado por Lula de Silva, poderá ser, em breve o quinto país a integrar a lista de nações que proíbem que os seus cidadãos acedam à rede social X (antigo Twitter). Alexandre de Moraes, juiz do Supremo Tribunal Federal do Brasil, terá já auscultado a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) sobre os procedimentos necessários para proibir o Twitter no país.
Segundo a jornalista Andreza Matais, do UOL, o presidente do regulador cas telecomunicações, Carlos Baigorri, terá instruído as principais operadoras brasileiras para que estejam prontas caso surja uma ordem judicial de proibição de acesso ao X, para que a ordem “seja cumprida imediatamente”. O contacto com a Anatel foi feito, alegadamente, através do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que tem como presidente Alexandre de Moraes desde Agosto de 2022.
A ser executado este bloqueio, o Brasil irá juntar-se às ditaduras da China, Irão, Coreia do Norte e Turquemenistão na lista de países que proíbem o acesso ao X nos seus territórios.
Alexandre de Moraes (Foto: Carlos Moura/SCO/STF)
Entretanto, Moraes também abriu um inquérito para que seja feita uma investigação ao dono da Tesla e do X e também incluiu Musk na lista dos investigados no inquérito já existente das denominadas “milícias digitais”. Esta decisão surgiu na sequência da recusa de Musk em acatar mais as ordens de Moraes para bloquear contas pessoais.
Segundo o comunicado oficial sobre a decisão anunciada hoje, Alexandre de Moraes determinou que “o dono da rede social X (ex-Twitter), Elon Musk, seja incluído como investigado no inquérito das milícias digitais (INQ 4874)”. O juiz “também instaurou inquérito para apurar as condutas de Musk quanto aos crimes de obstrução à Justiça, organização criminosa e incitação ao crime”.
Na decisão, é argumentado que “na data de 6/4/2024, o dono e CEO (Chief Executive Officer) da provedora de rede social “X” – anteriormente “Twitter” -, ELON MUSK, iniciou uma campanha de desinformação sobre a atuação do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL e do TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL”.
Ainda segundo a decisão, a mesma acção de Musk “foi reiterada no dia 7/4/2024, instigando a desobediência e obstrução à Justiça, inclusive, em relação a organizações criminosas (art. 359 do Código Penal e art. 2º, § 1º, da Lei 12.850/13), declarando, ainda, que a plataforma rescindirá o cumprimento das ordens emanadas da Justiça Brasileira relacionadas ao bloqueio de perfis criminosos e que espalham notícias fraudulentas, em investigação nesta SUPREMA CORTE”.
O juiz determinou ainda aplicar uma multa diária de 100 mil reais por cada perfil que a rede X recuse bloquear. Recorde-se que Elon Musk denunciou ontem que as autoridades judiciais brasileiras, lideradas por aquele juiz, deram ordens ao X para bloquear contas sem sequer identificarem os motivos para o bloqueio.
Roberto Barroso e Alexandre de Moraes. (Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF)
Além de ter recusado a cumprir a censura e bloquear contas de utilizadores, Musk acusou Alexandre de Moraes de trair “descaradamente a Constituição” brasileira, chegando mesmo a declarar que o juiz devia “renunciar ou ser demitido”. Além disso, Musk ameaçou que, em breve, divulgará as exigências de Alexandre de Moraes.
Hoje, para salientar que esta não é uma ‘batalha’ de um só juiz, o presidente do STF, Luís Roberto Barroso, deixou um aviso a Musk e ao X. Respondendo à recusa do dono do X em acatar as ordens de bloqueio de contas, numa nota oficial Barroso declarou que as “decisões judiciais podem ser objeto de recursos, mas jamais de descumprimento deliberado”. Também frisou que “toda e qualquer empresa que opere no Brasil está sujeita à Constituição Federal, às leis e às decisões das autoridades brasileiras”.
Contudo, sem mostrar qualquer recuo na sua decisão de enfrentar a política de censura no Brasil, Musk encorajou os utilizadores do X a recorrerem a redes privadas virtuais (VPN) para contornar a proibição que possa ser implementada. Num tweet publicado hoje com um vídeo explicativo de como se pode usar uma VPN, Musk escreveu: “Usar uma VPN é muito fácil”.
Ontem, como o PÁGINA UM noticiou, de um modo formal, a X Corporation – a empresa dona da rede social – informou que “foi forçada por decisões judiciais a bloquear determinadas contas no Brasil”, mas que nem sequer sabem “os motivos pelos quais essas ordens de bloqueio foram emitidas” nem sequer “quais postagens [que] supostamente violaram a lei”. Além disso, a rede social está também proibida de informar “qual tribunal ou juiz [que] emitiu a ordem, ou em qual contexto”, e nem sequer podem listar publicamente as contas afectadas.
A empresa alegou que foi ameaçada com multas diárias se não cumprir as ordens de Moraes e prometeu que vai agir legalmente, por tais medidas judiciais serem contrárias ao Marco Civil da Internet e à Constituição do Brasil.
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Tantas foram as exigências de bloqueio de contas no X, que o ‘cântaro’ se quebrou. Depois de ontem a empresa proprietária do X (ex-Twitter) ter denunciado que as autoridades judiciais brasileiras, lideradas pelo juiz Alexandre de Moraes, nem sequer identificam os motivos para as ordens de bloqueio contas na rede social, Elon Musk prometeu hoje não acatar mais as ordens e exigiu mesmo a demissão der Alexandre de Moraes. No braço de ferro com a Justiça, que ameaça com multas à rede social, Musk garante que, por uma questão de princípio, não pode apoiar a censura e até admite já perder as receitas no mercado brasileiro.
Elon Musk, o proprietário da rede social X (ex-Twitter), promete que não vai mais respeitar as exigências de Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal do Brasil, para bloquear contas de utilizadores, e acusa aquele magistrado de trair “descaradamente a Constituição” daquele país, acrescentando que “deveria renunciar ou ser demitido”. Musk diz ainda que, em breve, divulgará as exigências de Alexandre de Moraes, que no Brasil tem um poder que extravasa o ciclo judiciário.
Ontem, de um modo formal, a X Corporation – a empresa dona da rede social – informou que “foi forçada por decisões judiciais a bloquear determinadas contas no Brasil”, mas que nem sequer sabem “os motivos pelos quais essas ordens de bloqueio foram emitidas” nem sequer “quais postagens [que] supostamente violaram a lei”. Além disso, a rede social está também proibida de informar “qual tribunal ou juiz [que] emitiu a ordem, ou em qual contexto”, e nem sequer podem listar publicamente as contas afectadas.
Elon Musk abriu ‘guerra’ contra a Justiça brasileira por exigirem bloqueio contas sem sequer informar quais os posts que violaram as leis.
A empresa diz ainda que foram ameaçados com multas diárias se não cumprirem as ordens. Apesar de prometer agir legalmente, por tais medidas judiciais serem contrárias ao Marco Civil da Internet e à Constituição do Brasil, hoje em diversos posts Elon Musk manifestou que não vai mais acatar ordens de Alexandre de Moraes que tem usado de forma arbitrária bloqueios de contas alegando que estas apoiam movimentos subversivos ou discurso de ódio. Mas, na verdade, acabam por ser casos de censura de opinião.
Não acreditamos que tais ordens estejam de acordo com o Marco Civil da Internet ou com a Constituição Federal do Brasil e contestaremos legalmente as ordens no que for possível.
Hoje, Musk denunciou a “censura agressiva [que] parece violar a lei e a vontade do povo do Brasil”, aproveitando para compartilhar publicações do jornalista norte-americano Michael Shellenberger. Tendo já escrito sobre os Twitter Files, relacionadas com práticas de censura durante a pandemia, este jornalista norte-americano é um conhecido activista climático, co-fundador do Breakthrough Institute e fundador da organização ambiental Environmental Progress, tendo sido foi nomeado um dos Heróis Ambientais pela revista Time e foi ainda vencedor do Green Book Award de 2008.
BRAZIL IS ON THE BRINK
I’m reporting to you from Brazil, where a dramatic series of events are underway.
At 5:52 pm Eastern Time, today, April 6, 2024, X corporation, formerly known as Twitter, announced that a Brazilian court had forced it to “block certain popular accounts in… pic.twitter.com/GjdAgmkCBo
— Michael Shellenberger (@shellenberger) April 7, 2024
Conhecedor da realidade brasileira, por ter vivido no Brasil nos anos 90, Shellenberger fez hoje um longo depoimento em português alertando que “não é um exagero dizer que o Brasil está à beira da ditadura nas mãos de um ministro totalitário do Supremo Tribunal Federal chamado Alexandre de Moraes”, acrescendo que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva participa neste suposto “impulso em direção ao totalitarismo”. O jornalista acrescenta ainda que “o Brasil está envolvido num caso de ampla repressão da liberdade de expressão” liderada por Moraes.
Ontem, num simples post, Elon Musk escreveu que “sem liberdade de expressão, nós somos apenas uns escravos na matrix”, e aparenta querer levar o braço de ferro até ao fim com as autoridades judiciais do Brasil, mesmo que tal implique a sua saída daquele país. A imprensa brasileira, apesar de estar em causa sobretudo questões de liberdade de expressão, tem dado forte destaque a esta polémica, mas dando um cunho ideológico, destacando os apoios de bolsonaristas à postura de Elon Musk.
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Nos últimos seis anos, além de gestor em empresas do sector têxtil, o vimaranense Rui Armindo Freitas, empossado ontem como secretário de Estado-adjunto e da Presidência, tem estado ligado a empresas de media. Teve mesmo de abandonar agora a administração da Media Capital, dona da TVI. Mas foi na Swipe News, dona do jornal digital ECO, que Rui Freitas pôde mostrar o seus dotes por mais tempo, integrando a administração desde 2018 e a presidência entre 2020 e Setembro de 2023. Não se pode dizer que se saiu bem: a Swipe News nunca teve qualquer ano com lucros e acumula prejuízos que deverão atingir, com as contas de 2023, os cinco milhões de euros. No seu mandato, a empresa passou mesmo a estar em falência técnica, algo que se manterá mesmo com um aumento de capital de 1,3 milhões de euros no mês passado assumido pelas três dezenas de accionistas, onde se destacam o Grupo Mota-Engil e também Mário Ferreira.
Luís Montenegro estará a partir desta semana, se não estava antes, bastante sensível às dificuldades financeiras dos grupos de media portugueses. O novo secretário de Estado-adjunto e da Presidência, Rui Armindo Freitas tem larga experiência em empresas de media deficitárias.
Saindo directamente da administração da Media Capital (o seu nome ainda constava ontem à noite no site da empresa liderada por Mário Ferreira), este licenciado em Economia e gestor no secter têxtil esteve também desde 2018 como vogal e desde 2020 até Setembro do ano passado como presidente da administração da Swipe News, a empresa proprietária do jornal ECO e de outras publicações online centradas em branded content, como a Capital Verde, a ECOseguros, a Fundos Europeus, a Local Online, a +M e a Trabalho by ECO.
Rui Armindo Freitas é o novo secretário de Estado adjunto e da Presidência no ministério liderado por António Leitão Amaro.
E o ‘melhor’ que Rui Freitas conseguiu foi durante esse triénio foi transformar uma empresa de media que nunca apresentara lucros numa empresa em falência técnica, ou seja, com capitais próprios negativos, que significa que o dinheiro metido pelos accionistas se ‘esfumou’ e quem a sustenta são os bancos ou os ‘calotes’ aos fornecedores. A situação financeira insustentável deixada pela administração presidida por Rui Armindo Freitas – substituído em Setembro do ano passado por Luís Lopes Guimarães –, obrigou os accionistas a injectarem, há duas semanas, 1,3 milhões de euros para suprir necessidades de tesouraria, através de um aumento de capital.
Criada em 2016, a Swipe News – que lançaria o jornal Eco em meados desse ano – é um daqueles casos paradigmáticos da imprensa portuguesa que faz jus ao adágio popular: “quem nasce torto, tarda ou nunca se endireita” – neste caso aplicando-se à parte económica, ou seja, os prejuízos são a norma, que se acumulam sem que ninguém, aparentemente, questione a sustentabilidade.
No primeiro ano completo em funcionais, no exercício de 2017 a Swipe News – que tinha Rui Freitas como vogal – apresentava-se com um capital social de 1,2 milhões de euros, mas os prejuízos desse período (mais de 800 mil euros) ‘comeram-lhe’ logo dois terços do investimento inicial dos accionistas. Resultado: em 2018 houve dois aumentos de capital, o primeiro em Abril de 250 mil euros e o segundo em Novembro de 453.750 euros.
Jornal digital ECO nasceu em meados de 2016, sendo, desde sempre, dirigido por António Costa.
Nesse ano, contudo, os lucros foram ‘coisa’ arredada desta empresa de media que noticiava sobretudo os sucessos empresariais dos outros. No final de 2018, por mor de resultados líquidos negativos de mais de 691 mil euros, restava como capitais próprios uns meros 91.071 euros (arredondado para cima). Ou seja, um pouco mais de 95% do investimento dos accionistas tinha-se ‘esfumado’ sem se vislumbrar indicadores de sustentabilidade, até porque os activos se cifravam então em 636 mil euros, apenas um terço do investimento.
Em 2019, um ano antes da passagem de Rui Freitas para a presidência da Swipe News, a empresa até superou, pela primeira vez, a fasquia de um milhão de euros, mas os gastos também dispararam, acabando o ano com um prejuízo de mais de 847 mil euros. Foi esse o último ano com os capitais próprios positivos, de acordo com a informação constante no Portal da Transparência dos Media.
No primeiro ano da pandemia, com Rui Freitas como presidente do Conselho de Administração, a Swipe News até aumentou a facturação (cerca de 1,22 milhões de euros), mas também os encargos, o que resultou num prejuízo de mais de 656 mil euros. Em resultado, todo o investimento dos accionistas se ‘esfumou’ – os capitais próprios passaram a negativos em 314 mil euros – e o passivo mais do que duplicou, passando de 486 mil euros para 1,14 milhões de euros.
O segundo ano de presidência de Rui Freitas à frente deste grupo de media não foi melhor: em 2021, a Swipe News registou o mesmo diapasão, com um significativo aumento dos rendimentos (acima de 1,5 milhões de euros), mas com prejuízos de 456 mil euros. Deste modo, os capitais próprios negativos subiram para 893 mil euros e a dívida a terceiros superava então os 1,55 milhões de euros.
O terceiro ano da presidência de Rui Freitas teve mais do mesmo, agravado pelos capitais próprios negativos a duplicarem, passando a 1,64 milhões de euros, fruto de mais um prejuízo, desta vez de quase 749 mil euros. Nas contas de 2022, analisadas pelo PÁGINA UM, mostra-se notório que a Swipe News ‘vive’ de sucessivas injecões de financiamento bancário sofre de uma falta de liquidez confrangedora. Só em 2022, contabilizou financiamentos externos de quase 800 mil euros, mas toda essa verba foi ‘sugada até ao tutano’ para conseguir suportar pagamentos de salários e a alguns fornecedores. Tanto assim que a caixa (contas bancárias e o ‘mealheiro’ para a redacção apresentava no final desse ano uns míseros 350 euros menos oito cêntimos.
Tudo somado – e numa altura em que ainda não são conhecidos os resultados do ano de 2023, mas que deverão confirmar um prejuízo acima de meio milhão de euros, como tem sucedido –, a Swipe News já acumulou prejuízos de mais de 4,6 milhões de euros. Ou seja, mostra-se expectável que os capitais próprios negativos nas contas de 2023 superem largamente os 2 milhões de euros.
Por esse motivo, o aumento de capital de 1.302.647 euros determinado no passado dia 21 de Março apenas aliviará um pouco a situação de falência técnica. E desse modo, alegremente, o ano de 2024 perspectiva-se como o quinto sucessivo em falência técnica.
Tomada de posse dos secretários de Estado do Governo Montenegro decorreu ontem. Foto: Mário Lopes Figueiredo / Presidência da República.
Tendo 34 accionistas individuais e empresariais – com destaque para a Mota Gestão e Participações (23,4%), a Palopique (13,0%) e a Valens Private Equitity integralmente detida pelo principal accionista da TVI, Mário Ferreira (8,2%) –, a Swipe News encontra-se assim no rol de grupos de media em fortes dificuldades financeiras, das quais se destacam a Global Media, a Trust in News, a Impresa e as rádios do universo de Luís Montez.
Mas agora, por certo, o Governo social-democrata – que integra Rui Armindo Freitas e também o ministro Pedro Reis (que presidiu o conselho editorial do jornal Eco) e ainda a secretária de Estado da Gestão da Saúde, Cristina Vaz Tomé (que tinha entrado em Janeiro para directora financeira da Swipe News) –, se renovará o debate para eventualmente salvar com dinheiros públicos (leia-se dinheiro dos contribuintes) modelos de negócio de empresas de comunicação social com resultados económicos desastrosos.
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É um ‘escândalo das águas minerais’ por agora apenas em França, mas que poderá vir a ter repercussões em todas as marcas. A Agência Francesa para a Segurança Alimentar, Ambiental e da Saúde no Trabalho (ANSES) concluiu, num relatório oficial confidencial divulgado ontem pelo jornal Le Monde, que as nascentes da Nestlé Waters, líder mundial do mercado de águas minerais, apresentam problemas de poluição bacteriológica e de contaminantes persistentes, e acusa o grupo suíço de recorrer a técnicas não autorizadas de purificação. Em declarações ao PÁGINA UM, a directora de comunicação da Nestlé Waters na França defende que as águas comercializadas pelo grupo suíço são “regularmente” testadas pelas autoridades, mas não quis comentar o relatório, alegando desconhecer o seu conteúdo. Apesar de uma presença residual da Nestlé Waters no mercado nacional, onde comercializa sobretudo a marca Aquarel (engarrafada em Espanha), na França este caso está a causar grande polémica, e a eurodeputada Marie Toussaint, do partido Les Écologistes, já exigiu que sejam retiradas das prateleiras dos supermercados as garrafas de águas minerais deste grupo suíço, como a Hépar, Contrex, Vittel e Perrier, que provêm de nascentes de Vosges e Vergèze.
A multinacional Nestlé, líder mundial no sector das águas minerais, está sob a mira das autoridades francesas depois de ser revelado um relatório oficial que alerta para a “qualidade sanitária” das águas minerais engarrafadas pelo grupo suíço. Apesar de ser um segmento residual, com 3,5% do total das vendas do grupo, as águas da Nestlé representaram vendas de 3,4 mil milhões de euros em 2023 a nível mundial, embora a quota em Portugal seja marginal, vendendo sobretudo as marcas Aquarel e Perrier.
O jornal Le Monde e a France Info revelaram ontem que um relatório da Agência Francesa para a Segurança Alimentar, Ambiental e da Saúde no Trabalho (ANSES) afirma que as águas minerais do Nestlé Waters não têm garantida de qualidade sanitária. Esta conclusão surge depois de um outro relatório desta entidade enviado ao Ministério da Saúde em Outubro do ano passado recomendar uma monitorização mais intensa aos procedimentos de captação e engarrafamento das águas minerais. Apesar de ter outras nascentes, em diversas países, as principais fontes da Nestlé Water, que comercializa sobre as marcas Hépar, Contrex, Vittel e Perrier, entre outras, localizam-se em Vosges e Vergèze, em território francês. Em Portugal, a Nestlé comercializa a Aquarel, proveniente de nascentes em Herrera del Duque, na Extremadura, e no Parque Natural de Montesny, na Catalunha.
Foto de uma garrafa de água mineral da marca ‘Vittel’, da Nestlé. (Foto: D.R.)
As aguas minerais naturais (AMN) são águas de circulação subterrânea, consideradas bacteriologicamente próprias, com características físico-químicas estáveis na origem, distinguindo-se das águas de nascentes que, para serem comercializadas apenas necessitam de ser bacteriologicamente puras. Por lei, com excepção de alguns tratamentos físicos específicos, nenhuma destas águas pode ter qualquer adição de produtos de purificação ou de alteração das características organolépticas, como cor e sabor.
As suspeitas sobre a qualidade das águas da Nestlé surgiram depois de um denunciante do Grupo Alma em 2021 ter desencadeado sucessivas investigações por parte da agência de controlo do consumidor francesa (DGCCRF) sobre as práticas dos produtores franceses de água engarrafada. Da investigação, saiu a descoberta de que a Nestlé Waters utilizaria métodos de desinfecção proibidos, como purificação por luz ultravioleta, tratamentos com carvão activado e microfiltração inadequada. Esses métodos são geralmente usados em tratamento de água para torneira, vendida obviamente a preços mais muitíssimo mais baixos.
De acordo com o Le Monde, as autoridades públicas francesas passaram meses a desvendar gradualmente até que ponto os fabricantes de águas minerais engarrafadas estavam a usar tratamentos proibidos para lidar com a deterioração da qualidade das nascentes. Em teoria, o interesse comercial, e de marketing, das águas minerais é de serem provenientes de zonas isentas de poluição bacteriana ou química.
(Foto: D.R.)
No documento da ANSES, ontem citado pela imprensa francesa, confirmava-se a contaminação generalizada com bactérias, pesticidas, produtos perfluoroalquiladas (PFAS) – considerados contaminantes sintéticos de longa duração – das fontes naturais de água mineral exploradas pelo grupo Nestlé em França. Os especialistas apontam também um “nível de confiança insuficiente” para garantir “a qualidade sanitária” das águas minerais naturais engarrafadas das marcas Perrier, Contrex, Vittel e Hépar, entre outras, propriedade do grupo.
Já no final de Janeiro deste ano, a Radio France e o Le Monde revelaram que um relatório da Inspeção-Geral dos Assuntos Sociais, apresentado ao Governo em Julho de 2022, que estimava que pelo menos 30% das marcas de água engarrafada utilizavam tratamentos proibidos por regulamentos, incluindo todas as marcas operadas pela Nestlé.
O PÁGINA UM colocou questões à Nestlé Portugal sobre estas revelações e sobre os impacte no mercado nacional. As respostas vieram, porém, da própria directora de comunicação da Nestlé Waters em França, Elodie Lemeunier, não esclarecendo as questões concretas sobre as águas comercializadas em Portugal. Segundo esta responsável, “nos últimos três anos, a Nestlé Waters France empreendeu um plano de transformação com total transparência e sob o controlo das autoridades, partilhando com elas todos os dados relativos às nossas águas minerais naturais nas nossas duas unidades de produção em Vosges e Vergeze”, acrescentando que ainda não tiveram acesso ao relatório da ANSES “referenciado nos meios de comunicação social, pelo que não estamos em posição de comentá-lo”.
Partido Les Ecologistes exige retirada das águas da Nestlé.
E reitera que “a Nestlé Waters France sempre operou sob um sistema integrado de gestão da qualidade”, baseando-se “num sistema de filtragem combinado com um programa rigoroso de limpeza das tubagens de água e na análise de mais de 1.500 parâmetro, incluindo parâmetros físico-químicos, microbiológicos e sensoriais, para garantir a segurança das águas minerais naturais durante todo o processo produtivo”.
Elodie Lemeunier garante também que houve reforços no controlo através de análises que “são constantemente partilhados com as autoridades que testam regularmente as nossas águas minerais, tanto na origem como no produto acabado, para confirmar a conformidade com os requisitos regulamentares aplicáveis, incluindo padrões de segurança e qualidade alimentar”.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
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O filme de uma tragédia que ceifou a vida a jovens bombeiros.
No Verão de 2013 morreram na Serra do Caramulo bombeiros por causa de um fogo de origem criminosa.
— 29 de Agosto (de 2013) começou com uma manhã igual a muitas outras… Mais um dia numa altura em que temos muitos incêndios. Mais uma chamada como muitas outras para um incêndio no Caramulo.
— O incêndio começou às 09:53. Começou muito forte. Lembro-me de ter enviado para lá o helicóptero de Santa Comba Dão. E quando cheguei aqui à sala, apercebi-me que isto estava tudo muito mau. Foi muito rápido. Tudo muito rápido. Começou muito forte. Achei que foi das piores horas que vivi nesta sala. Depois de Alcafache, foi o pior.
— Aquelas mortes abalaram a vila toda. Abalaram, além dos bombeiros, a vila toda. Todas as pessoas não deixavam de falar nos dois meninos. Nos nossos bombeiros.
— Continuam a ser heróis porque estão cá na mesma dentro de nós, mas… Mas é muito complicado para uma pessoa tirar isto da cabeça. Muito complicado…
(Foto: Rui Araújo)
Serra do Caramulo.
Cai a tarde, serena. Agora, aquilo que resta do arvoredo e do mato é uma paisagem petrificada, cinzenta, mutilada.
O resto, aquilo que é invisível ao olhar, é desgraça, amargura e dor. A mesma mágoa de sempre, que atiça os ressentimentos. A morte é a morte! E, aqui, morreram dois miúdos. E nós, estremunhados, acabamos por render-nos ao absurdo. Recusamos a fatalidade da morte. Não há aconhego que nos valha, nem o luto sequer. Mas não perdemos o sentido da realidade.
Dois jovens bombeiros perderam, aqui, nesta curva a vida. Era uma missão que lhes infundiu coragem, mas que acabou por ser uma cilada. Não havia salvação. Foram sacrificados para nada, mas o destino a cumprir, esse, cumpriram-no anónima e humanamente.
29 de Agosto. São Marcos. Muna. Santiago de Besteiros. 09:53 da manhã. É este o cenário…
— Preciso urgentemente de meios aéreos. O fogo está a bater nas casas! Nós não temos acesso. Não conseguimos passar para lá. Preciso urgentemente de meios aéreos. — grita um bombeiro de rádio na mão.
A Serra do Caramulo está em chamas.
Mas a história começa antes. Mais exactamente na noite de 20.
Eis o filme de um fogo que até agora já matou, aqui, quatro bombeiros e deu cabo da vida de dois outros jovens, sem contar com a destruição e não foi coisa pouca. Hectares e mais hectares de floresta, pinheiro, carvalho, eucalipto sobretudo. Mato: muita giesta e carqueja.
(Foto: Captura a partir de imagem de Tiago Ferreira/TVI)
20 DE AGOSTO
23:57
Faltam três minutos para a meia-noite quando um popular alerta, via 117, o CDOS de Viseu — é o Centro de Operações de Socorro — para um incêndio perto da aldeia de Nogueira de Alcofra.
21DE AGOSTO
00:25
Passados 28 minutos, a sala de operações do CDOS recebe outra chamada. Mais um incêndio, desta vez é na freguesia de Silvares. É fogo posto. Só pode ser, mas já lá iremos.
São despachados meios para uma primeira intervenção no local, mas os bombeiros não conseguem dominar as chamas.
22 DE AGOSTO
15:30
A Serra do Caramulo continua a arder. Há um bombeiro desaparecido. É dado o alerta.
22 DE AGOSTO
18:00
A bombeira Ana Rita Abreu Pereira dos Voluntários de Alcabideche, uma corporação dos arredores da capital, é encontrada carbonizada. Tem 24 anos. Hora do óbito: 15:46. Nessa mesma tarde são encontrados bombeiros feridos. Alguns são evacuados de helicóptero. Bernardo Figueiredo do Estoril é um deles. Tem 23 anos. Morre passados cinco dias. Não resiste às queimaduras.
A bombeira Ana Rita Abreu Pereira. (Foto: Captura a partir de imagem de Tiago Ferreira/TVI)
29 DE AGOSTO
09:53
Era uma vez os horizontes infindos apesar da luz da manhã.
Cinco bombeiros de Carregal do Sal avançam por este caminho exíguo, fugídio e penoso — é sempre a subir, curvas e mais curvas seguidas. É sempre a subir. É o único acesso, está tudo dito. As horas passam, aqui, lentamente porque as chamas continuam a propagar-se serra adentro. É preciso voltar, mas o raio do fogo, covarde, sem dono, tem, por vezes, a última cartada mesmo quando já perdeu a guerra.
— O grande ditador dos incêndios é o clima. Quando nós temos temperaturas aí nos 30º, humidade relativa abaixo dos 30% e ventos superiores a 70 quilómetros por hora estão criadas as condições para que haja mais incêndios e para que eles progridam de forma mais violenta. Este ano tivemos muito tempo com condições mais gravosas que estas que eu enunciei. — explica o militar da GNR Eduardo Gonçalves Lima.
E o incêndio da Serra do Caramulo não escapa a esta regra: temperatura elevada, humidade baixa, ventania. E um isqueiro. Em causa, dois rapazes das redondezas.
O primeiro incêndio é ateado na noite de 20 no caminho entre Nogueira de Alcofra e o estradão da Eólicas, a seguir à Capela de São Barnabé.
O segundo ocorre menos de meia hora depois perto daí, mais exactamente ao lado da Barragem de Meruge. De motorizada levaram minutos a lá chegar.
Em seguida, regressam à aldeia pelo mesmo estradão e ateiam mais cinco fogos aqui, que estão na origem da tragédia.
O bombeiro Bernardo Figueiredo não resistiu aos ferimentos. (Foto: Captura a partir de imagem de Tiago Ferreira/TVI)
29 de Agosto: São Marcos, Muna, Santiago de Besteiros.
A missão é atribuída aos bombeiros de Carregal do Sal nessa manhã pelo comandante dos Voluntários de Campos de Besteiros. A informação é que no local se encontram Sapadores Florestais. mas há mais gente… E há mais meios, incluindo um helicóptero da Empresa de Meios Aéreos (EMA).
— Pensámos que era um fogo muito pequenino, de pouca importância embora reunisse características com alguma preocupação no meu ponto de vista. Portanto, era uma zona com muita inclinação, fogo muito rasteiro e o vento estava na encosta contrária. Portanto, naquela situação parecia inofensivo, mas uma mudança de vento podia deitar tudo a perder. — diz João Santos, piloto de um helicóptero da EMA.
E foi o que sucedeu. No local, há para além dos Sapadores Florestais, bombeiros de Santa Comba Dão, voluntários de Campo de Besteiros e ainda oito militares da Guarda Nacional Republicana (GNR), todos do Grupo de Intervenção, Protecção e Socorro, o GIPS que não estão sequer referenciados.
— A brigada ficou aqui no campo da bola. O helicóptero aterrou aqui. Eles ficaram aqui. Depois eles acabaram por vir por esta estrada, por aqui fora, e tudo isto de passou, aqui, nesta zona. — complementa o piloto.
O jipe dos voluntários de Carregal do Sal pára aqui nesta curva do vale encaixado com encostas abruptas à frente de um carro de Santa Comba Dão. A umas dezenas de metros encontram-se os militares da GNR e, mais acima, os Sapadores Florestais e os bombeiros de Campo de Besteiros, cuja presença desconheciam.
— O incêndio estava a progredir de uma forma muito lenta. Tanto assim que nós conseguimos até entrar na linha de fogo e começámos, portanto, a combater o incêndio, mas entretanto o próprio incêndio começou a criar essas correntes de convexão, começou a criar vento, começou a ganhar mais intensidade. — conta o militar da GNR Ricardo Lucas.
O incêndio alastra. No espaço de escassos segundos o panorama muda radicalmente de feição. A avidez do fogo não tem limites. As perspectivas são sombrias, degraçadamente.
— Quando já estava quase com a minha autonomia esgotada, o chefe de brigada comunica comigo que de repente começou a ficar muito calor na zona onde eles estavam e precisava de uma descarga. Eu avaliei que realmente o calor que eles estavam a receber não era da encosta onde eles estavam a combater, mas da linha de água do vale encaixado onde realmente estava-se a gerar temperaturas elevadíssimas. Iniciei a aproximação a baixa altitude. Não conseguir baixar muito porque senti que o helicóptero começou a perder altitude devido ao calor que se estava a gerar e à densidade do ar, que era muito baixa. Efectuei imediatamente a descarga. Apercebi-me imediatamente pelo espelho do helicóptero que a água evaporou rapidamente antes de chegar à zona das chamas e senti o helicóptero como que a levar um pontapé e a subir muito rapidamente. Comuniquei com a brigada e disse para saírem imediatamente daquele sítio porque estavam-se a gerar temperaturas muito altas com tendência eventualmente a subir. — recorda, João Santos, o piloto do helicóptero.
João Santos. (Foto: Captura a partir de imagem de Tiago Ferreira/TVI)
Os bombeiros de Carregal do Sal também combatem as chamas apesar de desconhecerem o plano estratégico de acção a nível da missão a executar e das comunicações existentes, cujos sistemas são independentes. Ninguém os informou. Tentam, por outro lado, contactar o comandante das operações de socorro. Teoricamente seria o sapador florestal referenciado, mas acabam por encontrar só o GIPS (Companhia de Intervenção de Proteção e Socorro).
— Estávamos a fazer um combate directo ao incêndio e eu avistei, lá ao fundo do vale, que o incêndio de propagava pelo vale acima, entrando no dito vale encaixado. Avisei o pessoal que estava comigo, a equipa. Saímos. Eu fui o primeiro a sair. Chego à zona de segurança… Quando chego à zona de segurança, avisto a viatura dos bombeiros no meio do vale encaixado. Também tinham uma viatura como estavam a fazer o combate… — refere o militar da GNR Bruno Correia.
A zona de segurança — a única que há, aqui — é a terra queimada, as cinzas. O que havia para arder, já ardeu. Os bombeiros de Carregal do Sal, esses, prosseguem a sua faina. Combatem o fogo ou protegem o veículo ou… protegem-se.
— Eu decidi tentar ajudá-los ou elucidá-los para eles saírem do local. Fui-me deslocar para o local, choco com alguém que era bombeiro. Depois, veio uma… a concentração de fumo é tão grande que eu deixo de ver. Foi quando eu me desloquei para baixo, sempre na tentativa de avisar os bombeiros. — Saiam! Saiam! Saiam!, só que eles não ouviam. Aquilo foi tudo tão rápido… — acrescenta o guarda Bruno Correia.
A fraga tosca arde. A fúria do fogo corre o penhasco, a encosta, a passos lestos. O guarda Bruno Correia tenta acudir os cinco bombeiros desamparados. Avança para eles, não obedece a nenhum plano. É preciso um milagre para se salvarem.
Bruno Correia, militar da GNR. (Foto: Captura a partir de imagem de Tiago Ferreira/TVI)
— Cheguei ao pé deles. Foi quando se dá tipo uma explosão de fogo. As chamas passam por cima de nós. O céu é chamas. O que se vê à volta é tudo laranja: chão, inclusive. Tudo laranja! Dá a impressão que uma pessoa está dentro de qualquer coisa em chamas. E o fumo é intenso. Não se consegue ter a percepção de nada. É muito cerrado. Não se consegue avistar… consegue-se avistar pouco. Pouco. Um ou dois metros, talvez. Foi aí que consegui, se calhar, passar um bocadito o fumo. Consegui avistar a dita mina onde eu me refugiei. — complementa o militar.
Os bombeiros não encontram saída para aquele inferno. Por entre chamas e fumo o caminho transforma-se em segundos numa laje funerária.
— Dei a volta. Ia dar a volta. Apercebo-me, então, que uma tragédia se desenrolou ali. Senti rolos… vi rolos de chama a subir a encosta. Dez segundos depois tinha um dos elementos do GIPS a comunicar via rádio para pedir ajuda porque havia mortos, feridos e um carro destruído. — narra o piloto do helicóptero.
No meio das labaredas e da fumarada os bombeiros buscam uma saída. Tentam arrancar o jipe, mas o motor vai-se abaixo. Embatem, aqui, contra esta parede rochosa.
— Um dos elementos do GIPS chama pelo meu nome. — “Socorro, Marília. Socorro”. Imediatamente, peguei no rádio do jipe. Identifiquei-me. Ele identificou-se. Não sei se posso dizer o nome… Eu disse: Sargento, eu estou aqui. Diga rapidamente. Ele disse: — “Marília, tenho aqui cinco elementos de bombeiros”. Ele na altura não disse quem era. Eu não sabia quem era. — “Estão cercados pelo incêndio. Temos cinco elementos da equipa helitransportada também cercados pelo incêndio”. Eu deduzi na altura que havia ali vários mortos. De imediato, fiz também uma ligação ao CODU pelo mesmo rádio e o CODU também estava a ouvir o que ele me estava a dizer e o que eu estava a transmitir. Isto facilitou porque eu estava a ouvi-lo. Ele dizia: — “Já encontrei um.” E conforme ele ia encontrando os corpos… — “Eu encontrei um elemento.” O CODU ia ouvindo. E ia enviando as ambulâncias e o que era necessário. Depois, ele ia-me dizendo: — “Encontrei mais um. E aquilo foi terrível.” Ele ia encontrando e eu dizia: — Sargento, força! Avance. Ainda vai encontrar os outros porque ainda nos faltava. Eram 10. E aquilo ele ia reduzindo. — “Seis. Sete…” Até que chegou uma altura que nos faltava um. Ele disse-me assim: — “Marília, ainda falta um. Ainda falta um!” E eu disse: — Caminhe, Sargento. Força! Você vai conseguir. Há-de encontrar. E quando ele chegou. Esse um, ele disse: — “Marília, já não tenho hipótese. Encontrei um, mas está carbonizado…” — diz Marília Moita, da Protecção Civil.
É a amarga realidade. O jipe dos voluntários ficou neste estado. Os pormenores não valem nada, mas dão a noção do drama. Eram cinco. Três ficaram feridos e no meio da serra há, pelo menos, uma vida que se escoa.
(Foto: Captura a partir de imagem de Tiago Ferreira/TVI)
Cátia, uma jovem bombeira de 3ª classe, acaba de viver a segunda hora da sua vida. São 11:00 da manhã.
— Era meio-dia e tal. E batemos à porta da casa dos pais da Cátia. Eu e a enfermeira Joana, que é a 2ª Comandante, aqui, no quartel. E o pai da Cátia atendeu-nos. Abriu a porta e apercebeu-se logo que alguma coisa se passava. Nós dissemos que iamos-lhe dar uma notícia. Que tinha acontecido alguma coisa com a Cátia. Ele perguntou: — “Mas o que é que se passou? Ela ficou muito queimada?” Perguntou logo. E nós também começámos a enrolar as palavras porque foi uma situação assim muito complicada, não é? Ao mesmo tempo eu acho que nem uma nem outra estávamos preparadas para dar aquela notícia, mas tivemos que a dar e tínhamos que estar ali para dar uma força àqueles pais apesar da má notícia que íamos dar. Ele continuou a perguntar: — “Mas o que é que se passa? Como é que ela está?” E nós dissemos que houve um acidente, que… que o carro tinha ardido, que os bombeiros estavam feridos, que a Cátia não estava muito bem… Entretanto, o pai disse: — “Mas vocês não me estão a contar tudo, pois não?” E nós mais uma vez engolimos em seco e… e dissemos: — Pois, se calhar, o senhor é que não se está a aperceber de tudo. E ele perguntou: — “O quê? Ela morreu? Não pode ser.” E nós… E a partir daí foi… foi uma revolta. Foi um desespero. Foi muito duro. Foi muito duro… — recorda Camy Cristo, dos Bombeiros Voluntários de Carregal do Sal.
Os jovens bombeiros Cátia e Bernardo. (Foto: D.R./Captura a partir de imagem de Tiago Ferreira/TVI)
JORNAL DA UMA – TVI – Pedro Pinto
“É a sexta vítima mortal dos incêndios deste ano. Bernardo Cardoso era bombeiro da corporação de Carregal do Sal e não resistiu aos ferimentos do fogo da Serra do Caramulo.”
Tinha 19 anos. Era estudante, aqui, na escola secundária da vila. Estava a tirar um curso profissional de óptica ocular. Estaria, agora, no 12º ano. Estaria… E a grande força da vida, aqui como lá fora, é a memória.
— Eu lembro. Eu vou falar como colega de turma, mas não é como bombeira. Eu e o Bernardo conhecemo-nos, aqui, na escola. Estivemos na mesma turma quatro anos. E o Bernardo era uma pessoa… (SILÊNCIO PROLONGADO) Era uma pessoa muito boa. O Bernardo era uma pessoa muito simples. Bom companheiro. Era um amigo. Era um colega. O Bernardo estava sempre ali. O Bernardo, quando ouvia a sirene, para ele era uma alegria. Podia estar alguém em situações diversas, aqui, o Bernardo era o primeiro a socorrer, era o primeiro a aparecer… E eu admirava isso muito no Bernardo. O Bernardo… à maneira dele, ele fazia as coisas de uma forma natural. Por mais que ele não quizesse e que quizesse abster-se da situação, o Bernardo não conseguia. O Bernardo tinha que lá estar. O Bernardo, aqui na escola, quando ouvia uma ambulância tinha que ir a correr. O Bernardo era um rapaz cheio de vida, sempre foi. E a imagem que nós guardamos dele e que vamos sempre guardar, o Bernardo era o Bernardo, ninguém pode substituir o Bernardo. Ele não morreu. Ele está aqui connosco. Vai estar sempre! — conta a jovem Maria.
É o que a vida consente, independentemente do desfecho irreal.
— O Bernardo tinha duas coisas essenciais: queria ser bombeiro e jogador de basket. Sempre nos intervalos e horas livres o Bernardo estava nos campos de futebol e de basket a jogar. Ele até estava numa equipa e era o que ele queria seguir. Além disso, queria ir para os bombeiros. Foi sempre o sonho dele, toda a gente sabe. Já estava em bombeiro de 3ª. Agora, queria era subir e chegar ao máximo que ele pudesse. — recorda Alexandra, uma colega de turma.
A disposição da sala de aulas foi mudada para apaziguar a dor e o vazio.
(Foto: Captura a partir de imagem de Tiago Ferreira/TVI)
— O meu filho… eu vou-lhe explicar como é que começou. O meu filho começou com um cinturão que eu tinha da tropa. E um bivaque antigo. Eu tinha aquilo pendurado. Pronto, foi uma recordação que eu tenho. O meu filho, coitadinho, andava na escola. Viu-me aquilo pendurado, volta e meia — “Ó Pai, deixe-me andar com aquilo.” Volta e meia: — “Deixe-me andar com aquilo…” E tenho lá aquilo pendurado. Está no quarto dele. — Ó Pai, o que é que tu fazias com isto? Ó Filho, aquilo era um cinturão do camuflado. Tenho um camuflado, sabe como é que era lá na tropa. Ele então, coitadinho, punha aquilo, ficava-lhe grande. Lá conseguia apertar-lhe aquilo para ele andar com aquilo. E daí começou… — desabafa António Cardoso, o pai de Bernardo.
Desapossado do único filho. O retrato que faz de Bernardo é, necessariamente, pungente.
— Ele morreu porque, para mim, ele foi o herói daquilo. (SILÊNCIO) Mas também lhe digo uma coisa. Eu gostava de saber os pormenores disso. Quem é que os mandou lá para dentro naquele momento…
Poderá estar em causa a organização, o comando das operações, quem é quem, quem ordenou o quê, e os meios humanos e materiais, incluindo no plano das comunicações e dos equipamentos, para o combate a este incêndio florestal.
— Sobre isso, eu não vou falar. Não lhe vou dar nenhuma explicação. Está a decorrer um inquérito e eu não vou fazer qualquer tipo de comentário sobre isso. — responde Miguel Ângelo David, dos Bombeiros Voluntários de Carregal do Sal.
Os bombeiros recusam pronunciar-se.
— Sabe que um incêndio florestal é sempre muito complicado e, portanto, é natural que num teatro de operações desta dimensão, desta violência, haja sempre razões ou sempre momentos em que as decisões não sejam as melhores, mas quem tem alguma responsabilidade neste domínio e quem alguma experiência como eu tenho de 30 anos nos bombeiros, não fazia uma relação directa porque isso seria injusto para quem está no Comando, para quem está no teatro de operações, para quem tem de coordenar, para quem tem de combater, não fazia uma relação directa nestes termos de falta de Comando e perda de vidas ou falta de formação e mortes de bombeiros. — afirma Rebelo Marinho, da Federação de Bombeiros do Distrito de Viseu.
Certezas: há dois suspeitos de crime de incêndio florestal detidos em preventiva.
(Foto: Captura a partir de imagem de Tiago Ferreira/TVI)
— Já morreram quatro bombeiros! Assassino. Assassino! Filho da p… — grita o povo aquando da detenção.
O primeiro está na cadeia de Viseu. O outro, na de Lamego.
Nogueira de Alcofra.
Mais uma tarde triste na aldeia. O ar parece encobrir ou toldar as feridas anacrónicas da alma. Esta gente não percebe. Não pode. Os dois suspeitos detidos são filhos desta terra.
Um, Patrick, emigrante no Luxemburgo, terá agido por vingança. Em causa: uma multa.
O outro, Fernando, foi atrás. Morava aqui. É o mais novo.
— É triste! É triste uma pessoa com sentido fazer uma coisa destas. É triste uma pessoa ter um filho onde tem, não é? É triste para ele, onde ele está, que é um jovem, pronto, e já está na mocidade dele. E é triste para a família. Fica chocada também. É… — lamenta-se Norbinda Marques Marinho, a mãe de Fernando.
Era um moço sem perspectivas, aparentemente conformado com a sua sina. Não quebrava nem morria… até passar-se uma noite.
— Ele andava lá com o senhor de ali de baixo, com o Patrick, não sei, não sei, não sei de mais nada…
— Nunca mais falou com ele?
— Não. Não. Tenho falado. Temos lá ido à prisão e falamos, mas… Pronto: se ele o fez ou mais o outro têm de cumprir, não sei.
A mulher deixa-se prender na trama ou no enredo das palavras e não é caso para menos.
— Haverá responsabilidade maior do que a morte de pessoas inocentes? Eu penso que a palavra “responsabilizar” pode ser associada a preparar melhor, a mudar o tipo de abordagens que é feito no combate aos incêndios, nas políticas de prevenção, nas políticas de fiscalização e digo mais: a nível de formação, que sejam encontrados exemplos de circunstâncias em que tenhamos nós estado não tem bem e que eventualmente possam ser dados como ensinamentos para evitar situações futuras. Deveremos agir preventivamente na resolução de um problema, este sim, nosso grande desígnio nacional porque os incêndios florestais para a dimensão do nosso país é uma guerra, mas não é uma guerra dos bombeiros. É uma guerra do país. E contra o país. — conclui Miguel Ângelo David, dos Bombeiros Voluntários de Carregal do Sal.
(Foto: Captura a partir de imagem de Tiago Ferreira/TVI)
Fernando foi detido uns dias depois, fora de flagrante, aqui, pela Polícia Judiciária, que o apresentou ao tribunal de Vouzela. Terá confessado a autoria de cinco fogos. Patrick, que terá ateado os outros dois, entregou-se posteriormente às autoridades.
Cátia e Bernardo estão enterrados no Cemitério de Currelos.
Sabino, o outro bombeiro ferido na manhã de 29 de Agosto, recupera lentamente, sobretudo a nível psicológico.
Nuno, o terceiro ferido, continua internado no Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Está em estado de coma. O seu prognóstico é reservado.
NOTA:
Reportagem emitida originalmente no programa “Repórter TVI” da TVI, em 18 de Novembro de 2013 [VER AQUI].
A equipa da reportagem “Cruel Agosto” era composta por Tiago Ferreira (Imagem), Sofia Rebola (Montagem), Ricardo Rodrigues (Grafismo) e Rui Araújo (Reportagem).
“Cruel Agosto” conquistou no dia 24 de Maio de 2014 o Prémio Prestígio Media TV da Associação Nacional de Bombeiros Profissionais, apesar de a equipa não se ter candidatado ao mesmo.
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Ana Paula Martins, a nova ministra da Saúde, teve um papel determinante numa campanha solidária durante a pandemia em parceria com a Ordem dos Médicos e o seu bastonário Miguel Guimarães, actual deputado do PSD, que angariou mais de 1,4 milhões de euros; destes cerca de 1,3 milhões vieram de farmacêuticas. Mas apesar das boas intenções, as irregularidades e ilegalidades marcaram a gestão dos dinheiros. Em vez de uma conta institucional, foi criada uma conta pessoal, tendo Ana Paula Martins como um dos três co-titulares, e não foi pago um imposto de selo devido de mais de 125 mil euros. Além disso, embora os pagamentos de géneros se realizassem através dessa conta pessoal, as facturas foram emitidas em nome da Ordem dos Médicos, podendo dar azo a um ‘saco azul’. Para as farmacêuticas terem benefícios fiscais, também foram promovidas centenas de falsas declarações, incluindo até de hospitais e da Associação Nacional de Farmácias e da Liga dos Bombeiros. Esta é uma investigação do PÁGINA UM iniciada ainda em 2022, e ainda não concluída; tal como não concluída parece estar uma auditoria externa prometida há dois anos.
A nova ministra da Saúde vai entrar em funções com um ‘elefante na sala’ que muitos tentam negar a existência, apesar do seu volume. Durante a pandemia, em colaboração com a Ordem dos Médicos, Ana Paula Martins foi, enquanto bastonária da Ordem dos Farmacêuticos, co-gestora de uma campanha de solidariedade que amealhou, entre outros pequenos donativos, mais de 1,3 milhões de euros da indústria farmacêuticas, mas a contrário daquilo que seria expectável, a entrada e saída de dinheiro vivo foi feita através de uma conta por si titulada, em nome pessoal, em parceria com Miguel Guimarães – antigo bastonário dos médicos e actual deputado do PSD – e Eurico Castro Alves, ex-secretário de Estado da Saúde no curto segundo mandato de Passos Coelho.
Apesar da suposta bondade desta campanha – atribuir sobretudo material e equipamentos de protecção contra a covid-19 a instituições de solidariedade social e unidades hospitalares –, de entre as irregularidades e ilegalidades detectadas pelo PÁGINA UM – que investiga a gestão do fundo “Todos por uma causa” desde 2022, estando ainda a aguardar-se o cumprimento de uma sentença do Tribunal Administrativo por parte da Ordem dos Médicos – incluem-se contabilidade paralela, fuga ao fisco e falsas declarações para obtenção de benefícios fiscais e facturas falsas.
Ana Paula Martins e Miguel Guimarães foram protagonistas de uma campanha solidária cheia de irregularidades e ilegalidades (D.R./Ordem dos Médicos)
Criada logo no início da pandemia em Portugal, a campanha “Todos por Quem Cuida” teve por base um protocolo assinado em 26 de Março de 2020 entre as Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos e a Apifarma, que apresentava toda a aparência de um fundo solidário com bons propósitos, e que serviria numa primeira fase apenas para canalizar “contributos monetários (…) ou em espécie” de farmacêuticas para “o apoio à aquisição de equipamentos hospitalares, equipamentos de protecção individual e outros materiais necessários aos profissionais de saúde que se encontra[ssem] a trabalhar nas instituições de saúde”.
Porém, no início do mês de Abril de 2020 – e também por via de um despacho do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais que alargava a possibilidade de benefícios fiscais por donativos aos hospitais –, as três entidades decidiram alargar o âmbito da campanha para um “fundo solidário” público, nomeando, de acordo com os documentos consultados pelo PÁGINA UM, Manuel Luís Goucha como “embaixador da iniciativa”.
E foi aqui que começaram as irregularidades. Ao invés da conta solidária ser assumida pelas duas ordens profissionais – ou apenas por aquela com maior protagonismo, a Ordem dos Médicos – foi decidido que a conta com o NIB 003506460001766293021, aberta no balcão da Caixa Geral de Depósitos na Portela de Sacavém seria titulada por três pessoas: José Miguel Castro Guimarães, Ana Paula Martins Silvestre Correia e Eurico Castro Alves.
Ana Paula Martins, ontem, na tomada de posse como ministra da Saúde.
A partir daqui as irregularidades surgiram em catadupa. Sendo que a conta não era institucional – mas sim de três pessoas, independentemente dos cargos ocupados –, o pedido de autorização ao Ministério da Administração Interna para a angariação de fundo omite o facto de que o NIB em causa não era das entidades promotoras: a Ordem dos Médicos e a Ordem dos Farmacêuticas. Aliás, são indicadas no final do pedido duas contas que nunca foram usadas na angariação. Ou seja, os donativos em vez de segurem para uma conta institucional das entidades anunciadas como promotoras destinaram-se afinal para uma conta de três pessoas.
Por outro lado, o pedido de autorização apenas foi feito em 27 de Julho de 2020, quando a angariação de donativos se iniciou em 6 de Abril daquele ano, ou seja, mais de três meses antes. À data do pedido de autorização ao Ministério da Administração Interna já a conta titulada por Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves tinha um saldo de 716.501,51 euros. Por lei, a angariação deve ser precedida da autorização ministerial.
Por outro lado, nessas circunstâncias jamais se poderia aplicar a lei do mecenato ou outro tipo de benefício na obtenção de donativos, porque em termos formais estava-se perante uma recolha de donativos para uma conta de três pessoas. Nessa medida, Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves deveriam ter pago solidariamente o imposto de selo no valor de 10% de todos os donativos recebidos acima dos 500 euros.
Pedido de autorização para angariação de donativos omite que a conta solidária não era titulada pela Ordem dos Médicos e Ordem dos Farmacêuticos.
Ora, face aos montantes das diversas transferências da Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (Apifarma), todas individualmente acima dos 500 euros, a actual ministra da Saúde e os seus parceiros deveriam ter declarado à Autoridade Tributária e Aduaneira o recebimento de 1.2561.251 euros, o que implicaria o pagamento de 125.125,10 euros de imposto de selo. Na documentação consultada pelo PÁGINA UM, nomeadamente extractos bancários, não existe qualquer saída de dinheiro para esse cumprimento fiscal.
Existiram pelo menos mais 13 transferências bem acima de 500 euros que também não terão sido declaradas às Finanças nem pago o imposto de selo, a saber: ASPAC (35.000 euros), Bial (20.000 euros), Bene (20.000 euros). Ipsen (12.000 euros), Atral (10.000 euros), Falinhas Mansas (10.000 euros), Angelini (10.000 euros), Apormed (5.000 euros), Rial Engenharia (5.000 euros), Medicina G Medeiros Marques (1.500 euros), Forex ACI (1.500 euros), Gin Lovers (1.080 euros) e Multiclínicas Far (1.000 euros).
Contas feitas, segundo os cálculos do PÁGINA UM com base nos extractos bancários, Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves receberam 41 donativos superiores a 500 euros e deveriam ter pagado 138.333,10 euros de imposto de selo. E nunca o fizeram.
Confirmação de que a conta solidária tinha como titulares Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves, ou seja, não era uma conta institucional.
Além desta grave falha fiscal – independentemente dos objectivos da da campanha –, os três titulares da conta solidária deveriam ter declarado no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed, por serem profissionais de saúde, todos os donativos de farmacêuticas, incluindo da Apifarma, que ultrapassaram mais de 1,3 milhões de euros. Ana Paula Martins – que, depois de abandonar a liderança da Ordem dos Farmacêuticos, ainda passou vários meses na Gilead –, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves nunca fizeram essa declaração obrigatória. Saliente-se que Ana Paula Martins terá a partir de agora a tutela do Infarmed.
Além destas irregularidades e incumprimentos fiscais, o uso da conta solidária em nome de três pessoas permitiu uma estranha e ilegal contabilidade paralela de todas as operações de aquisição, designadamente de facturação e pagamentos, dos equipamentos e materiais a serem doados.
Na consulta à documentação contabilística da campanha “Todos por Quem Cuida”, o PÁGINA UM identificou 34 facturas no valor total de 978.167,15 euros que entraram na contabilidade da Ordem dos Médicos (pela aquisição de equipamento de protecção individual, câmaras de entubamento e ventiladores), mas sem que esta entidade tenha alguma vez feito qualquer pagamento. Na verdade, quem pagou foi a conta titulada por Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves. As facturas assumidas pela Ordem dos Médicos, mas que foram afinal pagas com a conta solidária (à margem da Ordem dos Médicos) podem ser consultadas AQUI.
Uma das ordem de pagamento assinadas por Ana Paula Martins foi para transferir 27.365,20 euros ao Hospital das Forças Armadas como contrapartida pela disponibilização de locais e pessoal de enfermagem para vacinar, contra as regras da Direcção-Geral da Saúde, médicos considerados não-prioritários em Fevereiro de 2021, uma iniciativa pessoal de Miguel. Esta decisão, com a concordância do então coordenador da task force Gouveia e Melo, após diversas reuniões, continua a ser analisada (há mais de um ano) pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS). A factura das Forças Armadas foi, contudo, emitida em nome da Ordem dos Médicos. E a Ordem dos Médicos viria depois a emitir declaração (falsas) de recepção de donativos por parte de quatro farmacêuticas. Uma dessas falsas declarações de donativo, no valor de 3.725,20 foi passada em Março de 2022 à Gilead. Nesta altura, Ana Paula Martins – que terminara o mandato em Fevereiro na Ordem dos Farmacêuticos – já ocupava o cargo de directora dos negócios governamentais desta farmacêutica norte-americana.
Sendo legal que um terceiro possa proceder ao pagamento de facturas de uma determinada entidade – ou seja, era legítimo que Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves usassem a sua conta solidária para saldar as compras dos géneros a doar –, essa informação teria, porém, de constar na contabilidade da Ordem dos Médicos. Como tal não sucedeu – ou pelo menos, nunca foi apresentado ao PÁGINA UM qualquer documento comprovativo –, na prática significa que a Ordem dos Médicos foi acumulando despesas – até chegar aos 978.167,15 euros – sem ter saído qualquer verba dos seus cofres.
Esse ‘crédito informal’ criou condições, pelo menos em teoria, para se formar um ‘saco azul, ou mesmo um desvio de verbas. Para tal, bastaria que responsáveis da Ordem dos Médicos com acesso às contas oficiais fossem retirando os valores exactos das facturas que iam recebendo dos fornecedores dos bens comprados no âmbito da campanha “Todos por Quem Cuida”.
Através da conta pessoal de que era co-titular, Ana Paula Martins assinou uma ordem de transferência bancária ao Hospital das Forças Armadas num acordo com a task force liderada por Gouveia e Melo para pagar a vacinação contra a covid-19 de médicos não-prioritários numa altura de escassez de vacinas. Mas a factura das Forças Armadas foi emitida em nome da Ordem dos Médicos.
Vejamos um exemplo. A factura nº 551 passada pela Clotheup em 2 de Outubro de 2020 pela aquisição de batas descartáveis no valor de 110.700 euros foi emitida à Ordem dos Médicos. Tendo sido uma aquisição a pronto de pagamento, não houve saída de dinheiro da Ordem dos Médicos, porque quem a pagou foi a conta solidária de Ana Paula Martins e dos outros dois co-titulares. Ora, nesse dia, poderia ter sido “desviada” a verba de 110.700 euros da conta bancária oficial da Ordem dos Médicos, não havendo assim o mínimo sinal de qualquer desfalque, uma vez que existia uma factura a suportar essa saída. Esse expediente pode aplicar-se a qualquer outra das 31 aquisições identificadas pelo PÁGINA UM.
Houve, porém, mais irregularidades fiscais. Apesar de todos os donativos terem tido como destinatário a conta solidária – titulada, repita-se, por Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves –, as farmacêuticas quiseram aproveitar os benefícios fiscais da Lei do Mecenato, que um despacho do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais alargou, em Abril de 2020, também para os hospitais públicos.
Nessa medida, os serviços operacionais da Ordem dos Médicos instruíram as largas dezenas de IPSS e outras entidades – que incluíram mesmo a PSP, a Liga dos Bombeiros, a Associação Nacional de Farmácias e até hospitais públicos e privados – a passarem declarações atestando que, afinal, receberam donativos em géneros das farmacêuticas, que lhe eram especificamente indicadas.
Deste modo, um dos trabalhos (mais meticulosos) da equipa da Ordem dos Médicos, que Miguel Guimarães colocou na gestão operacional da “sua campanha”, passou por preencher intrincados “puzzles” entre os donativos em dinheiro fornecidos à conta solidária e os valores dos géneros recebidos pelas instituições. Assim, em vez das declarações de recepção dos donativos pelas diversas entidades beneficiadas serem passadas à conta solidária – em termos formais, aos três titulares da conta – ou à Ordem dos Médicos, foram encaminhadas para determinadas farmacêuticas.
Ana Paula Martins, actual ministra da Saúde, e Miguel Guimarães, actual deputado do PSD, ganharam protagonismo com a pandemia. A gestão de um ‘bolo’ de 1,4 milhões de euros numa campanha solidária, financiada sobretudo pelas farmacêuticas, deu uma ajuda.
Logo, a título de exemplo – e é mesmo um só exemplo, porque existem largas centenas de casos, reportados e fotografados pelo PÁGINA UM durante a consulta dos dossiers contabilísticos e operacionais da campanha “Todos por Quem Cuida” –, é falsa a declaração de 23 de Março de 2021 da Liga dos Bombeiros Portugueses, bem como a competente carta de agradecimento do então presidente Jaime Marta Soares, de que foi a farmacêutica Gilead que lhes entregou 4.984 batas cirúrgicas, 1.661 litros de álcool gel, 831 máscaras cirúrgicas, 2.492 óculos reutilizáveis, 664 fatos integrais tamanho M e 664 tamanho L, e ainda 4.153 viseiras, tudo no valor de 103.400,60 euros.
Neste caso particular – que é extensível a todas as outras farmacêuticas envolvidas nesta campanha –, a Gilead terá sim apenas entregado, através da Apifarma, um donativo de valor desconhecido, para uma campanha solidária, titulada por três pessoas. Formalmente, teriam de ser as três titulares dessa conta (Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves), e não as entidades beneficiadas com os géneros doados, a passar uma declaração de recepção desse donativo à Gilead (e às outras farmacêuticas). Porém, se assim fosse, as farmacêuticas não teriam hipóteses de usufruir de qualquer benefício fiscal, uma vez que o Estatuto do Mecenato não abrange donativos a pessoas singulares – e nem a Ordens profissionais, acrescente-se.
Outro caso paradigmático passou-se com a Associação Nacional de Farmácias que em 10 de Fevereiro de 2021 declarou que a Merck Sharpe & Dohme lhe doou 107.574 máscaras cirúrgicas no valor total de 50.000 euros. Nada poderia ser mais falso. Aquilo que sucedeu foi a Merck Sharpe & Dohme ter doado 50.000 euros a Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves que, depois aproveitaram para usar esse dinheiro para pagar máscaras a uma empresa – que emitira uma factura à Ordem dos Médicos –, sendo esses equipamentos de protecção individual entregues então à Associação Nacional de Farmácias.
Documento na posse da Ordem dos Médicos, consultado pelo PÁGINA UM após uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa, com a lista de entidade que concederam donativos à conta solidária titulada por Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves.
A emissão de centenas de declarações falsas – trata-se mesmo de centenas, que englobam muitas pequenas IPSS – configura até fraude fiscal, porque as entidades beneficiadas assumiram que os donativos em géneros vieram directamente de farmacêuticas, algo que não é verdade, nem as farmacêuticas conseguirão comprovar qualquer compra através de facturas. Certo é que, com este estratagema, as farmacêuticas conseguiram enquadrar os seus donativos no mecenato social – e, em casos específicos, no mecenato ao Estado – para levar a custos um valor correspondente a 130% ou 140% do valor entregue. Algo que não sucederia se tivesse sido tudo feito como sucedeu: os donativos foram entregues a três pessoas (Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves), foram feitas compras e entregues os géneros às IPSS, associações e unidades hospitalares.
Assim, com este esquema falso as farmacêuticas terão conseguido declarações num montante total de cerca de 1,3 milhões de euros, e terão acabado por assumir, em termos contabilísticos, custos da ordem dos 1,82 milhões de euros, Em conclusão, este expediente – a utilização abusiva de um benefício fiscal – terá lesado o Estado, segundo estimativas do PÁGINA UM, em cerca de 145 mil euros. Note-se que este esquema, profundamente à margem da lei, envolveu também hospitais públicos, conforme o PÁGINA UM revelou detalhadamente no final de 2022.
Apesar da logística desta campanha ter sido protagonizada sobretudo pela Ordem dos Médicos, e pelo então seu bastonário Miguel Guimarães, a actual ministra teve um papel bastante activo, e não apenas como co-titular da conta. Ana Paula Martins procedeu a várias ordens de pagamento de géneros – cujas facturas foram encaminhadas para a Ordem dos Médicos – e também participou em diversas reuniões específicas da campanha. De acordo com as actas consultadas pelo PÁGINA UM, a actual ministra da Saúde participou em pelo menos oito reuniões da comissão de acompanhamento entre 11 Maio de 2020 e 5 de Maio de 2021. Mesmo depois da sua saída da liderança da Ordem dos Farmacêuticos em Fevereiro de 2022, manteve-se como titular da polémica conta solidária.
Além de ser co-titular e co-gestora da conta solidária, e autorizar transferências de dinheiro para pagamento de facturas que, afinal, eram emitidas à Ordem dos Médicos, Ana Paula Martins acompanhou pelo menos durante um anos as operações logísticas da campanha ‘Todos por Quem Cuida’.
Aquando da primeira notícia desta investigação do PÁGINA UM, em Dezembro de 2022 – após uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa que obrigou as Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos a disponibilizar os documentos integrais da campanha solidária –, Ana Paula Martins não responder a um conjunto de 11 perguntas a si dirigidas, optando por uma resposta conjunta com Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves através de advogada.
Nessa resposta são omissas quaisquer justificações para a não abertura de uma conta institucional nem qualquer argumento para o não-pagamento de impostos de selo nem sobre as declarações falsas nem sobre as facturas assumidas pela Ordem dos Médicos quando não foi esta a entidade que pagou os géneros.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
As duas principais empresas de rádio e de promoção de festivais de Verão de Luís Montez estarão em falência técnica com capitais próprios negativos de 12 milhões de euros. E usa-se o verbo ‘estar’ na forma condicional porque esse montante ser o último passível se conhecer, pois a Música no Coração e a Rede A não registaram as demonstrações financeiras de 2022 na Base de Dados das Contas Anuais, como é obrigatório por lei. Em todo o caso, a evolução dos últimos anos mostram uma crescente descapitalização e um aumento dos passivos que indiciam que o conhecido genro de Cavaco Silva transformou as suas empresas em ‘fábricas de calotes’.
O outrora pujante ‘império de rádios’ do empresário Luiz Montez, também conhecido por ser genro de Cavaco Silva, está a desmoronar-se por completo, com indícios de gestão danosa, com descapitalização das suas empresas e um assombrosa acumulação de dívidas aos fornecedores e até ao Estado, em especial da Música no Coração (também promotora de espectáculos) e da Rede A – Emissora Regional do Sul, que detém a Rádio Sudoeste, associado ao festival na Zambujeira do Mar.
A gravidade da situação financeira atinge tamanha dimensão, segundo apurou o PÁGINA UM, que Luiz Montez – que criou o seu ‘império, assente no sucesso das promoções de festivais de música como o Super Bock Super Rock e o Festival Sudoeste – nem sequer inseriu até agora a Informação Empresarial Simplificada do ano de 2022 daquelas duas empresas na Base de Dados das Contas Anuais (BDCA). As contas de 2023 ainda estão em fase de elaboração.
Conforme ontem foi noticiado pelo PÁGINA UM a pretexto da venda de duas rádios de Luís Montez à Medialivre (a dona do Correio da Manhã e da CMTV), quase todas as sete empresas radiofónicas detidas pela ‘holding’ Música do Coração estão em situação de falência técnica. No caso da Sociedade Franco Portuguesa de Comunicação – que será uma das adquiridas pela Medialivre – está em falência técnica pelo menos desde 2017, consultando os registos do Portal da Transparência dos Media. No mais recente exercício com contas fechadas, a empresa que tem a filha e a neta de Cavaco Silva na administração apresentava capitais próprios negativos de quase 200 mil euros e um passivo total de mais de 2,3 milhões de euros.
Este último montante inclui 407.273,99 euros de dívidas o Estado e outros entes públicos, que serão dívidas à Autoridade Tributária e Aduaneira, ainda por cima não declaradas no Portal da Transparência dos Media, uma vez que ultrapassa os 10% do passivo.
A segunda empresa que vai ser vendida à Medialivre tem uma a situação financeira bastante similar, apesar dos capitais próprios negativos serem menos baixos (-8.777 euros). Em todo o caso, o passivo ultrapassa a fasquia de um milhão de euros, dos quais quase 482 mil euros será empréstimos (com juros) do próprio Luís Montez e 319 mil euros são dívidas ao Estado.
Luís Montez vai livrar-se de duas empresas de rádios que são ‘máquinas de fazer calotes’.
Contudo, apesar de Luís Montez esconder intencionalmente as contas de 2022, a situação da ‘holding’ Música do Coração ainda é mais problemática do que as suas subsidiárias. No final de 2021, a ‘holding’ estava com capitais próprios negativos de quase 6,2 milhões de euros, registando, nesse ano, um pouco mais de um milhão de euros de prejuízos. Saliente-se que as contas da Música no Coração não estão consolidadas.
Na verdade, somente por via de alguma engenharia financeira, o colapso da Música no Coração não se mostrava mais patente, pois existem sinais de exagero na avaliação dos activos financeiros e excedentes de revalorização. Além disso, em 2021, esta ‘holding’ de Luís Montez tinha uma liquidez praticamente nula, inconcebível numa empresa promotora de espectáculos: em caixa apenas se registaram 3.099 euros. Grande parte dos activos (cerca de 11,2 milhões de euros) estavam então contabilizados em participações financeiras através do método da equivalência patrimonial, mas, na verdade, esse montante poderá estará fortemente inflacionado face à actual situação financeiras das subsidiárias.
Além disso, o endividamento da Música no Coração era, já em 2021, asfixiante, com empréstimos bancários de longa duração de 14,6 milhões de euros, mais quase 2,8 milhões de euros de contas a pagar a fornecedores, mais 1,4 milhões de euros de dívidas ao Estado e mais cerca de 6,3 milhões de euros em outros compromissos. Neste caso, não deixa de ser curioso que, apesar de ter uma empresa em falência técnica, com capitais próprios negativos de quase 6,2 milhões de euros, Luís Montez ainda tinha 786 mil euros emprestados a juros. A ‘sangria’ á sua própria empresa ‘moribunda’.
Também promotora de festivais de Verão, a Música no Coração está em falência técnica e acumula ‘calotes’.
No caso da Rede A, a situação financeira mostra-se em tudo similar. Apesar de Luís Montez não ter entregado as contas de 2022 no BDCA, enviou, porém, alguns indicadores financeiros mais básicos para o Portal da Transparência dos Media. E a situação é, efectivamente, de pasmar: nesse ano, os capitais próprios eram negativos em quase 5,4 milhões de euros e o passivo seguia nos 5,6 mihões de euros. Significa isto que o activo (‘património’) da Rede A era já somente de um pouco menos de 240 mil euros.
Será de um optimismo desmesurado ter a esperança de, entretanto, ter ocorrido uma inversão da situação financeira da Rede A – que contabilizou em 2022 apenas rendimento de 14 mil euros e prejuízos de 184 mil euros. Pelo contrário, pela análise das contas de 2017 e 2021 (o último ano com contas disponíveis), feita pelo PÁGINA UM, esta empresa de Luís Montez está em franco processo de descapitalização e é um caso patológico de ‘maquina de fazer calotes’.
Com efeito, em 2017 a Rede A ainda deu lucro (44.688 euros) e tinha uma situação financeira equilibrada com capital próprios positivos (251 mil euros), activos não correntes de um pouco mais de 2 milhões de euros. O único indicador que destoava era uma dívida ao Estado de 467 mil euros. A partir de 2018 começaram os prejuízos e, sobretudo, a descapitalização da empresa, com uma diminuição absurda de activos que acabaram por fazer resvalar a empresa para um abrupto estado de falência técnica. Assim, se em 2019, a Rede A apresentava activos da ordem dos 3,8 milhões de euros com o capital próprio já no vermelho (-171.373 euros), no ano seguinte registou-se um ‘terramoto’ financeiro: os activos para apenas 182 mil eeros (um ‘rombo’ de mais de 3,2 milhões de euros) e os capitais próprios despencaram para arrepiantes valores negativos (5.016.762 euros).
Nas contas de 2021 da Rede A que constam na BDCA, analisadas pelo PÁGINA UM, torna-se evidente o desaparecimento completo dos activos não correntes da Rede A (que ultrapassavam os 2 milhões em 2017), e um aumento colossal da rubrica ‘Outras contas a pagar’ (5,3 milhões de euros) – que não se referem a dívidas a fornecedores nem ao Estado (neste caso, o valor situava-se então nos 91 mil euros).
Contas feitas, e descontando as contas escondidas de 2022 e também de mais um ‘ano de vida’ – que não terá, pela tendência histórica, sido muito favorável -, o ‘império das rádios’ e dos espectáculos de Luís Montez só existe ainda porque as empresas mesmo quando são ‘fábricas de calotes’ perduram enquanto houver alguém – leia-se, Governo e reguladores – que lhes permita docemente continuar a ‘safra’. Ou seja, a acumular dívidas indefinidamente ao estilo Ponzi. Alguém um dia ficará a ‘arder’. Pelo andar da carruagem, Luís Montez – que não se mostrou disponível para responder ao PÁGINA UM – ficará a salvo. As empresas são de responsabilidade limitada.
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O segredo é a alma do negócio, mas há negócios que, desvendando-se alguns pormenores, custa a acreditar que se concretizem. A Medialivre – que detém o Correio da Manhã e a CMTV, tendo Cristiano Ronaldo como principal accionista – vai adquirir, para ficar com estações de rádio em Lisboa e no Porto, duas empresas de Luís Montez, uma das quais tem como administradoras a filha e a neta de Cavaco Silva. Os montantes do negócio são desconhecidos, mas as contas públicas destas empresas do genro do ex-presidente da República mostram que têm sido ‘máquinas de fazer calotes’ sem ninguém as incomodar: capitais próprios negativos, prejuízos sucessivos, faltas de liquidez crónicas e existem mesmo indicadores de fluxos de caixa que indiciam atrasos em salários e fornecedores à míngua. E, claro, há dívidas ao Fisco, que parece ter-se tornado um ‘ponto de honra’ de certas empresas de media com o beneplácito do regulador (que nada vê) e do Estado (que fecha os olhos).
A Medialivre – o grupo de media que detém o Correio da Manhã e que tem Cristiano Ronaldo como principal accionista – está em processo de aquisição de duas rádios detidas por empresas em falência técnica de Luís Montez, genro de Cavaco Silva. Numa das empresas, as vogais do Conselho de Administração são a filha (Patrícia) e a neta (Mariana) do ex-presidente da República e ex-primeiro-ministro.
Os montantes envolvidos não são revelados – o PÁGINA UM aguardou uma semana por comentários oficiais da Medialivre –, mas, na verdade, se este fosse um ‘puro negócio’ ao estilo capitalista, na verdade deveria ser Luís Montez – que detém a Sociedade Franco Portuguesa de Comunicação (tendo a mulher e a filha na administração) e a Rádio Festival do Norte – a dar dinheiro ao comprador, porque as duas empresas deram prejuízo nos últimos anos, estão com capitais próprios negativos e estão inundadas de dívidas, incluindo ao Estado.
Luís Montez vai livrar-se de duas empresas de rádios que são ‘máquinas de fazer calotes’.
O único activo apetecível destas duas empresas de Montez – que através da sociedade unipessoal Música no Coração detém sete empresas radiofónicas – encontra-se nas suas licenças radiofónicas, um ‘bem restrito’ a poucos e que podem ser mantidas mesmo por empresas que devem dinheiro ao Fisco. Para concretizar a sua estratégia de expansão, a Medialivre não se importou assim de manifestar interesse em comprar empresas falidas para obter as licenças da Rádio SBSR (que emite a partir de Lisboa) e da Rádio Festival do Norte, mesmo que tenha agora de assumir, em passivo, um passivo elevado.
As autorizações para a transmissão das licenças para a Medialivre, por aquisição das duas empresas de Montez, já foram concedidas pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social no final de Fevereiro, embora o negócio ainda não se tenha concretizado.
Embora seja expectável que a Medialivre tenha capacidade financeira para encaixar na sua estrutura o passivo das empresas das duas rádios que vai adquirir, não deixa de causar espanto a situação financeira do universo empresarial da família de Luís Montez. A Sociedade Franco Portuguesa de Comunicação está em falência técnica pelo menos desde 2017, consultando os registos do Portal da Transparência dos Media. No mais recente exercício com contas fechadas, a empresa que tem a filha e a neta de Cavaco Silva na administração apresentava capitais próprios negativos de quase 200 mil euros e um passivo total de mais de 2,3 milhões de euros, que vai assim passar, em princípio, a ser assumido pela Medialivre.
Este último montante inclui 407.273,99 euros de dívidas o Estado e outros entes públicos, que serão dívidas à Autoridade Tributária e Aduaneira, ainda por cima não declaradas no Portal da Transparência dos Media, uma vez que ultrapassa os 10% do passivo. As omissões e falsas declarações dos media perante a ERC é uma situação que se tem vindo a tornar banal.
Neta do ex-presidente da República, agora com 27 anos, já tem experiência de administração de uma empresa… em falência técnica e com dívidas ao Estado.
Mas o mais absurdo da contabilidade da Sociedade Franco Portuguesa de Comunicação – e que causa estranheza não ter sido motivo de preocupação por parte da Medialivre – é ter terminado o ano de 2022 com a rubrica Caixa e depósitos bancários literalmente a zeros. Ou seja, a conta bancária estava a zeros e nem sequer havia um mealheiro na sede da empresa com meia dúzia de tostões para o café da manhã de Janeiro de 2023. A ausência absoluta de liquidez desta empresa é de pasmar: apesar de ter declarado vendas e serviços prestados de 209.443,47 euros, no fluxo de caixa – que ‘mede’ a entrada e saída de ‘dinheiro vivo’ –, só entraram 11.841,53 euros.
No caso de saídas de dinheiro, está apenas contabilizado o pagamento ao pessoal de 31.654,69 euros, apesar de ter sido contabilizado gastos com pessoal de mais de 286 mil euros, o que denuncia salários em atraso. Também a empresa está a deixar fornecedores a ver navios. Apesar de contabilizar gastos de quase 33 mil euros em fornecimentos e serviços externos, os fornecedores só viram ser-lhe pagos 115,86 euros, o que, sabendo-se tratar de uma empresa de comunicação, até em electricidade se deu calote em 2022.
Quanto à Rádio Festival Norte – a empresa que detém rádio com o mesmo nome –, a situação financeira é bastante similar, apesar dos capitais próprios negativos serem menos baixos (-8.777 euros). Em todo o caso, o passivo ultrapassa a fasquia de um milhão de euros, dos quais quase 482 mil euros será empréstimos (com juros) do próprio Luís Montez e 319 mil euros são dívidas ao Estado. Também com esta empresa a ERC anda a ‘ver navios’, porque todos os detentores de mais de 10% do passivo de um órgão de comunicação social têm de ser identificados. Ora, Luís Montez detém 41% do passivo e o Estado 27,2% do total do passivo., mas nenhuma dessa informação se encontra registada no Portal da Transparência, incumprindo a mesma lei que determinou a suspensão dos direitos de voto de um obscuro fundo das Bahamas que controlava a Global Media.
Ao contrário da sua ‘irmã’ Sociedade Franco Portuguesa de Comunicação, a Rádio Festival Norte terminou o ano de 2022 com dinheiro em caixa, mas apenas 66,96 euros – dariam apenas para três espartanos almoços, talvez sem sobremesa, mas com café, seguramente. A falta de liquidez é, aliás, apanágio das empresas de Luiz Montez. Também a Rádio Festival Norte anuncia valores de vendas e serviços prestados que acabam por dar em pouco. Em 2022, a empresa declarou rendimentos de quase 315 mil euros, mas só foram efectivamente pagos nesse ano pouco mais de um terço (113 mil euros). Quanto aos pagamentos a fornecedores e ao pessoal foram custos que depois não se reflectiram em saídas de dinheiro, até porque a empresa não o tem, até porque já nem possui crédito junto da banca, como se intui do balanço e da demonstração dos fluxos de caixa.
Cristiano Ronaldo é, actualmente, o principal accionista da Medialivre, dona do Correio da Manhã e da CMTV, que agora está a apostar na rádio.
Com efeito, apesar de em 2022, esta empresa de Luís Montez – em que este surge como administrador único – ter contabilizado gastos de quase 132 mil euros em fornecimentos e serviços externos e cerca de 194 mil euros em gastos de pessoal, apenas assumiu pagamentos de 2,3% e 4,8% do total. Ou seja, comporta-se como uma ‘máquina de fazer calotes’.
Numa análise a partir do Portal da Transparência dos Media, gerido pela ERC – o que coloca sempre algumas dúvidas da completa veracidade da informação –, pode-se dizer que as outras cinco empresas do grupo da Música no Coração estão também em dificuldades financeiras ou apresentam indicadores ou pouco risonhos ou estapadúrdios.
A Radiodifusão – Publicidade e Espectáculos tem capitais próprios negativos (-83.182 euros), um passivo de quase 868 mil euros em 2022 e pelo menos desde 2017 nunca teve lucros. A Rádio Clube de Gondomar – que detém a rádio Meo Sudoeste – estava em 2022 com capitais próprios negativos de 90 mil euros e é uma empresa (se assim se pode chamar) muito sui generis: em 2017 o seu activo (‘património’) era de 23.017,11 euros; em 2022 era de 270 euros, sendo que teve um rendimento declarado de 1 euro e prejuízos de 4.025 euros.
Quanto à Rádio Voz de Setúbal – que detém a Rádio Amália –, está em pouco melhor estado do que a diva do fado que pretende homenagear. Apesar de recentemente ter realizado uma gala para comemorar os seus 14 anos, a empresa declarou no Portal da Transparência dos Media – e a ERC achou razoável suceder – um rendimento de apenas 2 euros e resultados líquidos de 1,50 euros. Esta estranha empresa tinha nesse ano, no entanto, capitais próprios negativos de 103.736 euros. E nos registos geridos pela ERC não há sombras de actividade, isto é, rendimentos entre 2017 e 2021.
A SBSR FM, actualmente detida pela Sociedade Franco Portuguesa de Comunicação, em falência técnica, estará em breve nas mãos do grupo de media do Correio da Manhã.
A Rádio Nova Loures tem, por sua vez, um capital próprio ainda positivo (158 mil euros), mas aumentou o passivo de 431 mil euros em 2017 para quase 1,5 milhões de euros em 2022.
A Rádio Nova Era é a única das empresas de Luiz Montez no sector da comunicação social com rendimentos em 2022 acima de um milhão de euros (1,7 milhões), e em até teve lucros nesse ano, apesar de magros (um pouco menos de 26 mil euros). Porém, em cinco anos, o passivo disparou de 1,2 milhões para 1,6 milhões de euros, e os capitais próprios baixaram de 114 mil euros para 95 mil.
O PÁGINA UM enviou há mais de uma semana diversas questões a Luís Montez, que não respondeu.
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