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  • Acórdão demolidor obriga ERC a mostrar razões para conceder confidencialidade no Portal da Transparência

    Acórdão demolidor obriga ERC a mostrar razões para conceder confidencialidade no Portal da Transparência

    Uma luta de David contra Golias, ainda mais porque a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) fiscaliza e supervisiona o PÁGINA UM. Perante a recusa do regulador em mostrar os processos de decisão sobre os pedidos de confidencialidade de determinadas empresas de media – que assim ficavam isentos de mostrar contas e indicadores sobre clientes e credores relevantes -, o PÁGINA UM intentou uma acção no Tribunal Administrativo de Lisboa. A ERC foi obrigada por uma sentença de Novembro de 2022 a ser transparente, mas recorreu para a instância superior, chegando mesmo a alegar que o director do PÁGINA UM, mesmo se tivesse direito de acesso, deveria este ser-lhe recusado por alegadamente estar em causa um pedido abusivo. Um acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul – simbolicamente concluído na semana das comemorações dos 50 anos da Revolução dos Cravos (que concedeu direitos reforçados aos jornalistas) – veio porém dar uma forte machadada na política obscurantista do regulador dos media, reiterando a obrigação de ser escrutinada por jornalistas. Este processo de intimação, patrocinado pelos leitores do PÁGINA UM através de donativos ao FUNDO JURÍDICO, iniciou-se em Julho de 2022, e pode ainda não terminar se a ERC decidir ainda gastar mais dinheiro dos contribuintes e recorrer ao Supremo Tribunal Administrativo.


    Foi lento, mas mais vale tarde do que nunca. Mais de 21 meses depois da recusa da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) em disponibilizar ao PÁGINA UM o acesso aos pedidos de empresas de media para lhes ser permitido a confidencialidade de informação e de indicadores financeiros no Portal da Transparência, bem como à respectiva análise, um acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS) dá mais uma machada contra a política de obscurantismo do regulador.

    Assinado pelos três desembargadores deste tribunal superior nos dias 24 e 26 de Abril – simbolicamente no dia antes e no dia posterior aos 50 anos do início do regime democrático que concedeu teoricamente liberdade de imprensa e de acesso à informação –, o acórdão reforça uma sentença já emitida em Novembro de 2022 pelo Tribunal Administrativo de Lisboa, mas que não foi acatado pela ERC, que recorreu para o TCAS.

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    Os argumentos do recurso da ERC são, aliás, completamente arrasados pelos três desembargadores – Marcelo Mendonça, Ricardo Ferreira Leite e Pedro Figueiredo. O regulador tentou argumentar que os pedidos e a respectiva análise numa lei – que, saliente-se, pretende dar transparência à gestão dos media – não estavam abrangidos pela Lei do Acesso aos Documentos Administrativos, pelo que deveriam ser considerados secretos, além de que, segundo o regulador, deveriam ser ouvidas as partes contrainteressadas, ou seja, todas as empresas que fizeram o pedido. Algo que iria eternizar qualquer processo de decisão.

    Os desembargadores, contudo, consideraram que os documentos são mesmo administrativos e que um “entendimento diverso obstaria ao princípio da administração aberta, constitucionalmente consagrado”. Também concluíram que “não se vislumbra prejuízo” das empresas de media em que o acesso a essa informação seja concedida.

    Aliás, o acórdão é bastante cáustico quanto à interpretação da ERC de que existindo a possibilidade de, arbitrariamente, conceder secretismo a determinada informação, o processo de decisão para tal seja também secreto. Os desembargadores salientam que essa norma da Lei da Transparência dos Media “[não] permite extrapolar que as decisões da ERC de excecionar a publicidade de determinados documentos entregues, repise-se, se encontrem à margem de qualquer escrutínio, e em particular do regime de acesso à informação administrativa”.

    Mas o regulador, não satisfeito em tentar interpretações abusivas dos diplomas legais para impedir o acesso a informação relevante por um órgão de comunicação social, ainda alegou que o pedido do PÁGINA UM, mesmo se fosse legítimo, “não poderia ser exercido de forma abusiva”, e como tal deveria ser recusado o acesso.

    Primeira página do acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul.

    “Novamente não se alcança o sustento desta invocação”, salientam a este respeito os três desembargadores, acrescentando que, se a ERC decidiu 101 pedidos de confidencialidade entre 2019 e 2021 – estimando assim que haja 404 documentos administrativos –, “não se vê como se alvitra encontrarmo-nos perante um caso de exercício abusivo do direito de acesso à informação”. Até porque, destacam ainda, “está em causa uma pesquisa necessariamente contextualizada, cingindo-se aos pedidos de confidencialidade, com a necessária limitação temporal”, além de que “os pedidos formulados pelo recorrido não implicam a criação ou adaptação de documentos, sendo certo que a entidade recorrente [ERC] nada concretiza quanto a este excesso, nem o mesmo se afigura notório quanto ao acesso a cerca de 404 documentos”.

    Apesar desta decisão demolidora para os argumentos da ERC, o regulador agora dirigido por Helena Sousa pode ainda recorrer para o Supremo Tribunal Administrativo ou proceder ao expurgo abusivo de alegada informação comercial – o que obrigaria a uma execução de sentença, um expediente moroso e oneroso.

    Recorde-se que aquilo que está em causa é uma excepção absurda, mas aproveitada nos últimos anos, de isentar determinadas empresas de media de cumprirem os princípios da Lei da Transparência dos Media, que estipula a obrigatoriedade de comunicar à ERC a informação relativa aos principais fluxos financeiros daquelas entidades (com contabilidade organizada). Esta obrigação deveria, por lei, incluir “a relação das pessoas individuais ou coletivas que tenham, por qualquer meio, individualmente contribuído em, pelo menos, mais de 10% para os rendimentos apurados nas contas de cada uma daquelas entidades ou que sejam titulares de créditos suscetíveis de lhes atribuir uma influência relevante sobre a empresa”, mas em “termos a definir no regulamento da ERC”.

    Sede da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, na Avenida 24 de Julho, em Lisboa.

    Efectivamente, a ERC criaria um regulamento em Outubro de 2020, onde, além de estabelecer a obrigação do envio do relatório anual de governo societário (RGS), concedia excepções arbitrárias que, na prática, destruíam o princípio da transparência. Com efeito, no artigo 8º do regulamento – que não teve de passar pela Assembleia da República – refere-se que “atendendo à sensibilidade e ao caráter sigiloso de alguns dados solicitados, as entidades poderão solicitar à ERC a aplicação do regime de exceção”.

    Em 6 de Julho passado, no decurso de um pedido de confidencialidade da TVI S.A. – empresa detentora da TVI e da CNN Portugal –, que o PÁGINA UM noticiou em primeira mão, a ERC não quis identificar quais as outras empresas que solicitaram igual tratamento.

    O regulador adiantou então apenas que “os pedidos podem incidir sobre informação muito específica ou cumulativamente sobre vários elementos comunicados em cumprimento das obrigações legais da transparência”, acrescentando ainda que “os requerentes invocam, genericamente, (…) a sensibilidade dos dados e antecipam impactos negativos resultantes da sua divulgação, relacionados com estratégias de negócio, estruturas de receitas e a sustentabilidade económico-financeira do meio, em particular em mercados locais.”

    A PÁGINA UM decidiu então em finais de 2022 solicitar formalmente mais informação à ERC sobre os pedidos de confidencialidade. Segundo o regulador, no quinquénio 2017-2021, mais de três quartos dos pedidos de confidencialidade (77%) tinham sido indeferidos pelo Conselho Regulador, “que entendeu que os argumentos apresentados não justificavam a não disponibilização da informação”.

    Perto de 12% dos pedidos tinham sido deferidos, “salientando-se que uma parte incidia sobre uma informação muito específica, como a percentagem que representa um cliente relevante”. Em perto de 11% das situações o Conselho Regulador concedeu deferimento parcial. No entanto, nessa altura nem sequer se sabia o número absoluto que esses 23% representavam nem que dados ficaram assim escondidos e porquê.

    Exemplo de informação que surge quando a ERC analisa pedidos de confidencialidade.

    Ao longo dos últimos dois anos, o PÁGINA UM tem sistematicamente falhas graves na gestão do Portal da Transparência dos Media, designadamente com omissões ou informação falsa na base de dados, designadamente informação errada sobre clientes, detentores do passivos e outras falhas nos indicadores financeiros, onde não constavam, por exemplo, dívidas à Autoridade Tributária e Aduaneira. Exemplos dessas falhas foram reveladas para a Global Media – dona do Diário de Notícias e Jornal de Notícias –, a Trust in News – dona da Visão -, a Inevitável e Fundamental – dona do Polígrafo -, Observador on Time – dona do Observador – e a Parem as Máquinas – dona do Tal&Qual.

    Num caso absurdo relacionado com a atribuição de confidencialidade sobre informação da IURD – onde, na sua deliberação, a ERC recusava revelar a que indicadores diziam respeito, embora mantivesse os dados financeiros omissos no Portal da Transparência dos Media -, o regulador chegou a apresentar uma queixa à Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) contra o director do PÁGINA UM. O Secretariado desta entidade liderada pela jornalista Licínia Girão decidiu então instaurar um processo disciplinar, que viria entretanto a ser arquivado.


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  • Chuva de milhões da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa já chega também ao Facebook e ao Google

    Chuva de milhões da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa já chega também ao Facebook e ao Google

    Continuam a aparecer mais contratos de publicidade para promover os jogos da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), bem como a própria instituição, que está envolta num escândalo com investimentos ruinosos no Brasil. Nas últimas duas semanas foram assinados mais oito contratos e a factura de gastos em publicidade até Dezembro já vai em 8,3 milhões de euros, mas há grandes empresa de media ainda de fora, como a Medialivre. No lote de novos ‘contemplados’ surgem agora duas multinacionais de redes sociais: as donas do Facebook e do Youtube. A Meta de Zuckerberg vai receber 600 mil euros no primeiro contrato com uma entidade pública portuguesa e a Google 400 mil. Ambos os contratos não estão escritos. Um pouco mais do que a soma destes dois valores receberá a RTP: 1.030.000 euros, num contrato assinado na quarta-feira passada, não estando ainda incluídas as rádios da empresa pública. O jornal Público e a Bola também assinaram contratos, integrados num plano anual não revelado pela SCML.


    Continua a distribuição de milhões de euros em publicidade da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) sem se conhecer publicamente qualquer plano que estipule montantes e justificação da distribuição pelas diferentes plataformas e órgão de comunicação social. Nos diversos contratos surge a referência a um plano anual de repartição do investimento publicitários dos jogos e da própria instituição, aprovado por uma deliberação aprova pela Mesa desta instituição liderada por Ana Jorge em 16 de Fevereiro, mas o PÁGINA UM, depois de ter abordado uma primeira leva de contratos de publicidade, ainda não obteve quaisquer informações. Embora ainda seja expectável a existência de mais contratos, a factura vai por agora nos 8,3 milhões de euros para serviços de publicidade até ao final de Dezembro deste ano.

    Para a generalidade destes contratos é invocada uma norma de excepção do Códigos dos Contratos Públicos – a contratação excluída -, aplicável “à formação de contratos cujo objecto abranja prestações que não estão nem sejam susceptíveis de estar submetidas à concorrência de mercado, designadamente em razão da sua natureza ou das suas características, bem como da posição relativa das partes no contrato ou do contexto da sua formação”. Um argumento que terá ainda de passar pelo ‘crivo’ do Tribunal de Contas, pelo menos nos contratos de maiores montantes. Em alguns dos contratos, esta justificação serve para nem sequer ser apresentado contrato escrito.

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    Empresa do Facebook vai ganhar 600 mil em publicidade da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.

    Certo é que, por agora, são já 28 os ‘contemplados’ pela SCML – e já se saltou fronteiras: a Meta – dona do Facebook -, o Google – dono do Youtube – e a Walt Disney -dona de diversos canais por cabo – estão agora incluídos no lote de oito novos contratos divulgados no Portal Base entre os dias 19 e 26 deste mês.

    No caso da empresa de Mark Zuckerberg, a SCML vai pagar 600 mi euros por publicidade na rede social Facebook, não existindo qualquer contrato que estipule preços nem condições. Este será o primeiro contrato da Meta com entidades públicas portuguesas, de acordo com o Portal Base. No caso do Google, o montante é um pouco mais baixo: 400 mil euros, embora também não se saiba se o investimento publicitário será exclusivamente no YouTube, uma vez que o contrato também não foi reduzido a escrito. No caso da sucursal portuguesa da Walt Disney, o montante em causa atinge os 350 mil euros, e até existe contrato escrito, apesar de nada dizer sobre quais os canais onde a publicidade será colocada. A empresa tem vários canais televisivos por cabo, entre os quais o Disney Channel, Disney Junior, Baby TV e NationalGeographic.

    A grande novidade – até pelo montante – é, porém, o valor do contrato da Rádio Televisão Portuguesa, que atinge os 1.030.000 euros, assinado na passada quarta-feira e revelado anteontem. Praticamente todo este investimento publicitário será para a televisão (um milhão de euros), sendo que 30 mil euros são para o online. Estão de fora, ainda, as rádios da estação pública.

    Além destes contratos, destacam-se ainda aqueles que beneficiam duas das principais empresas de publicidade outdoor. A J. C. Decaux arrecadará 600 mil euros, enquanto a Cemark 200 mil euros. No lote destes mais recentes contratos surgem também mais dois grupos de media: a empresa do Público – que garante 230 mil euros de publicidade da SCML – e a Sociedade Vicra Desportiva – dona do jornal A Bola, que está em processo de redução de dois terços dos seus trabalhadores -, que vai receber 400 mil euros.

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    Empresa do jornal A Bola fez um despedimento colectivo no final do ano passado. Recebe agora 400 mi euros da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa em publicidade até Dezembro de 2024.

    Conforme já referido pelo PÁGINA UM, é a primeira vez que a SCML apresenta contratos desta natureza -que constituirá um plafond para se ir gastando ao longo do ano – no Portal Base, assumindo assim os montantes gastos na promoção instituição e na promoção dos jogos que constituem a principal receita desta instituição de solidariedade social.

    Conforme o PÁGINA UM revelou no passado dia 15, a SCML tem vindo a assinar chorudos contratos de publicidade desde Março, encontrando-se agora, entre as empresas beneficiadas, oito empresas que trabalham sobretudo em marketing digital, sendo que a Mol 2 será a que mais receberá (600 mil euros). Esta empresa de publicidade e marketing é detida por Rui Manuel da Costa Rodrigues, que foi administrador da Global Media (dona do Diário de Notícias e Jornal de Notícias) até dia 1 de Abril, embora a sua demissão tenha sido anunciada apenas anteontem. Curiosamente, a Mol 2 celebrou o contrato com a SCML exactamente no dia 1 de Abril, sendo que a razão apontada por Rui Rodrigues para a sua saída daquele grupo de media foram “motivos pessoais“.

    Ana Jorge, ao centro, provedora da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.

    Com um pouco menos vão ficar a Quinta Avenida (525 mil euros). As restantes empresas de marketing beneficiadas pela SCML – ignorando-se porque foram estas estas as escolhidas e não outras – são a Netscreen (250 mil euros), a Kwanko (130 mil euros), a Filomena Moreira Lda. e a ADF Network (100 mil euros, cada), a Clickprofit (60 mil euros) e a Azerion Portugal (50 mil euros)

    Quantas às empresas de media, são agora 13, sem se conhecer também as razões da escolha e sobretudo os montantes. Atrás da RTP, a segunda maior beneficiada nos contratos da SCML é a sucursal portuguesa do grupo alemão Bauer Media, dona da Rádio Comercial, M80, Cidade FM, Smooth FM e Batida FM. Prometidas estão, desde já, 766 mil euros em publicidade da SCML.

    Contudo, em termos de grupo de media, a Global Media fica próxima dos valores da RTP. Directamente para o grupo liderado por Marco Galinha, que vive uma situação financeira catastrófica, a SCML vai entregar publicidade no valor de 560 mil, mas pode também incluir mais 260 mil euros a receber da sua subsidiária Rádio Notícias, que gere a TSF. Deste modo, a Global Media encaixará da instituição liderada pela antiga ministra socialista da Saúde um total de 820 mil euros. E então o seu administrador Rui Manuel da Costa Rodrigues só pode tecer loas, por via das verbas a receber da Mol 2.

    A distribuição da maior fatia à Global Media não deixa de surpreender ainda mais tendo em conta também a circulação dos seus principais diários, mesmo incluindo a componente digital. Por exemplo, a Impresa ‘só’ vai receber 350 mil euros. Este montante incluirá, em princípio, apenas os títulos da imprensa escrita, uma vez que a SIC é gerida por uma empresa própria. Como a SCML não quis revelar se houve mais contratos ainda não publicados no Portal Base, ignora-se se o grupo de media fundado por Pinto Balsemão terá mais razões para agradecer a bondade da SCML.

    Também por agora não se sabe se a componente de publicidade televisiva irá beneficiar os canais da Media Capital, designadamente a TVI e a CNN Portugal. O único contrato já celebrado entre a SCML e o grupo liderado por Mário Ferreira envolve a Media Capital Digital, que é proprietária da TVI Player (serviço audiovisual a pedido) e os sites noticiosos MaisFutebol, Away Magazine e V Versa por outro lado. Daqui já ficam garantidos até ao fim do ano 300 mil euros.

    De modo algo surpreendente, sobretudo pelo fraco alcance da rádio em questão e por envolver indirectamente uma empresa com dívidas ao Estado, é o contrato para publicidade que a SCML celebrou com a empresa da Rádio Amália, que envolve o pagamento de 176.800 euros, que representa 40% dos rendimentos que obteve em 2022. Esta empresa – a Rádio Nova Loures – pertence a Luís Montez, através da Música no Coração que, como o PÁGINA UM já revelou, nem apresentou contas em 2022, estando no ano anterior com capitais próprios negativos de quase 6,2 milhões de euros.

    Luís Montez saiu-se duplamente beneficiado neste selecto grupo de adjudicatários para prestação de serviços de publicidade á SCML. Com efeito, a SIRS – a empresa que detém a Rádio Nova, onde ele possui 25% do capital, sendo que outro tanto é de Álvaro Covões e 50% pertence ao Público – vai receber até ao final do ano por serviços de publicidade um total de 62.400 euros.

    Marco Galinha, chairman da Global Media. Para a empresa em dificuldades económicas, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa vai mesmo ser ‘a santa casa da misericórdia’ entregando 820 mil euros em publicidade até ao final de 2024.

    Quem também não se pode queixar é a Observador on Time, dona do jornal digital Observador e da Rádio Observador, que conseguiu um contrato de publicidade no valor de 151.200 euros. Qual a razão para os contratos destas duas últimas empresas não estarem arredondados aos milhares de euros é uma incógnita, tal como se ignora a formação de preços. E também a escolha dos outros órgãos de comunicação social que ficaram, porém, apenas com migalhas.

    Assim, a Time Out só vai ver 20 mil euros em publicidade da SCML, enquanto a Newsplex (proprietária do i e do Sol) e a Parem as Máquinas (proprietária do Tal&Qual) se terão de contentar com 15 mil euros, cada, mesmo assim mais do que a Multipublicações – proprietária da Marketeer e da Executive Digest, entre outros títulos –, a quem se destinou 5.000 euros. O PÁGINA UM vai continuar a acompanhar este assunto, até para confirmar se as empresas de televisão e a Medialivre (dona do Correio da Manhã e da CMTV) foram excluídas deste pacote, bem como os órgãos de comunicação social regional. Saliente-se que a Lei da Publicidade Institucional do Estado prevê que as entidades devem investir em “órgãos de comunicação social regionais e locais uma percentagem não inferior a 25% do custo global previsto de cada campanha de publicidade institucional do Estado de valor unitário igual ou superior a 5.000 euros”.


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  • Vacina contra a covid-19: Ex-jogador do Marítimo processa Pfizer, BioNTech e Federação Francesa de Futebol

    Vacina contra a covid-19: Ex-jogador do Marítimo processa Pfizer, BioNTech e Federação Francesa de Futebol

    François-Xavier Fumu Tamuzo, antigo jogador de futebol do Marítimo, quer tirar as dúvidas sobre se as lesões que levaram ao fim prematuro da sua carreira foram provocadas ou não pela vacina contra a covid-19. O jogador do francês Stade Lavallois vai processar quatro entidades: a Pfizer e a alemã BioNTech, que desenvolveram a vacina que o jogador tomou, a Pfizer França e a Federação Francesa de Futebol. A audiência no Tribunal Judicial de Paris está marcada o dia 2 de Julho. Em França, como em muitos países, atletas foram obrigados a tomar a vacina contra a covid-19, sob pena de ficarem afastados da equipa e da competição.


    Terminou a sua carreira como futebolista aos 29 anos na sequência de uma série de lesões, quando estava ao serviço do Stade Lavallois, na segunda divisão francesa. François-Xavier Fumu Tamuzo, um antigo jogador do Marítimo, suspeita que as suas lesões se deveram às vacinas contra a covid-19 que tomou. Por isso, anunciou que vai processar a Pfizer e a BioNTech, que fabricaram a vacina e reforços que tomou, bem como a Pfizer França e a Federação Francesa de Futebol.

    “Gostaria de entender por que meu corpo parou de funcionar”, disse o jogador citado pela France Bleu, que avançou com a notícia que já está a ter eco em alguma imprensa francesa e italiana, além de meios desportivos online.

    François-Xavier Fumu Tamuzo, jogador no Stade Lavallois de 29 anos, anunciou o fim prematuro da sua carreira no futebol em Abril. (Foto: D.R./Stade Lavallois)

    A notícia sublinha que o jogador natural da França não é um anti-vacinas nem um teórico da conspiração, mas decidiu tomar medidas depois de sofrer uma sucessão de lesões que levaram este antigo internacional sub-20 a anunciar o fim da sua carreira de forma prematura, a 18 de Abril.

    A audiência no Tribunal Judicial de Paris está agendada para o dia 2 de Julho e deverá ser decidido se será nomeado um painel de especialistas para estabelecer ou não um nexo de causalidade entre a vacina contra a covid-19 e as lesões sofridas pelo jogador.

    Fumu Tamuzo foi vacinado pela primeira vez com uma dose da Pfizer em 30 de julho de 2021. Na altura, a vacina não era ainda obrigatória para os jogadores profissionais em França, o que mais tarde veio a acontecer, em Janeiro de 2022. O jogador tomou a segunda dose da vacina em 23 de agosto e foi aí que começaram os seus problemas de saúde, de acordo com o jogador.

    Primeiro, sentiu dores no joelho esquerdo e depois uma tendinopatia em outubro. Em Março de 2022, após a toma da terceira dose da vacina, o atleta sofreu uma ruptura do tendão de Aquiles que o retirou de actividade. O jogador queixa-se que “a caminhada longa é quase insuportável, correr é impossível” e quando quer “dar um impulso, por exemplo, para subir escadas ou […] descer escadas, a dor é aguda”.

    O jogador assinou pelo Marítimo em Agosto de 2020, mas em Julho de 2021 regressou a França, seu país natal, para cumprir um contrato de dois anos com o Laval. (Foto: D.R./C.P.Marítimo)

    O advogado de Tamuzo, Éric Lanzarone, considera haver espaço para dúvidas sobre se, de facto, as vacinas estão na origem dos problemas físicos do futebolista. O advogado, que é especialista em direito público e direito da saúde e membro da Ordem dos Advogados de Marselha, disse à France Bleu que “nos últimos dois anos, meu cliente esteve num limbo médico e ninguém expressou qualquer dúvida sobre os efeitos adversos da vacina”. “Embora saibamos que eles existem hoje, ninguém pode negá-lo. E à medida que estes problemas foram surgindo, François-Xavier foi consultar especialistas em medicina interna que acabaram por manifestar essa dúvida. Tem de ser levantada”, afirmou.

    Tamuzo procurou um especialista em imunologia e infecciologia, considerando a possibilidade que os seus problemas físicos que se revelaram fatais para a sua carreira foram causados pela vacina.

    O jogador pretende obter pelo menos uma compensação financeira e também analisa um projecto de conversão profissional relacionado com o futebol. Tamuzo chegou a reunir com responsáveis do Laval para se manter ligado profissionalmente ao clube em outras funções, mas, apesar de os executivos “terem apoiado bastante a ideia” inicialmente, o presidente do clube acabou por rejeitar essa possibilidade, num contacto com o advogado do atleta.

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    A covid-19 é uma doença que tem como grupos de maior risco os mais idosos e pessoas com comorbilidades graves. Ainda assim, a toma da vacina foi imposta em diversos países, nomeadamente aos atletas profissionais de alta competição no activo, um grupo onde a taxa de mortalidade causada pelo SARS-CoV-2 foi virtualmente zero. As sequelas da COVID-19 em atletas são também fenómenos raríssimos. As vacinas contra a covid-19 podem causar reacções adversas, como qualquer medicamento. Entre os efeitos adversos constam miocardites, coágulos sanguíneos, AVC e tromboses, sindrome de Guillain-Barré e herpes zooster.

    As autoridades de saúde têm, porém, insistido de que os efeitos adversos da vacina contra a covid-19 são raros e que existem vantagens na vacinação, apesar da generalidade dos países ter excluido a necessidade de reforços na população jovem, incluindo obviamente atletas de alta competição.

    A pressão para os atletas se vacinarem foi enorme a nível mundial. Por exemplo, na NBA, os basquetebolistas não podiam jogar sem comprovativo vacinal. Entre os atletas de alta competição que se abstiveram de tomar a vacina contra a covid-19, o caso mais célebre é o de Novak Djokovic, que teve de enfrentar a proibição de participar em competições, como o Open da Austrália de 2022. O tenista manteve a sua decisão, mesmo tendo perdido dinheiro e sido ostracizado como negacionista, além de ter perdido a liderança no ranking ATP naquele ano, chegando a descer para oitavo lugar.

    Djokovic regressou à Austrália no ano seguinte, já sem qualquer restrição, para vencer categoricamente esta prova. Aos 36 anos recuperou já a liderança do ranking ATP, desde Setembro do ano passado, estando à frente do italiano Jannik Sinner (22 anos) e do espanhol Carlos Alcaraz (20 anos). Já o espanhol Rafael Nadal, que no auge da polémica do Open da Austrália criticou Djokovic por não se vacinar – e era o seu grande opositor competitivo (número 2 do ATP) – está em fim de carreira, ocupando agora o lugar 512 no ranking do ténis mundial.


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  • Gestão da pandemia agravou cobertura médica hospitalar na população vulnerável

    Gestão da pandemia agravou cobertura médica hospitalar na população vulnerável

    Ate 2019, o crescimento do número de médicos hospitalares era evidente e compensava o aumento da população mais idosa, aquela que mais necessita de cuidados em urgência e internamento. Mas com a pandemia, entre os anos de 2020 e 2022, com a decisão política de suspender consultas e cirurgias programadas, e com o incentivo a não se usarem os hospitais a não ser para a covid-19, inverteu-se o rejuvenescimento do corpo clínico enquanto a população com mais de 65 anos continuou a aumentar. Através de novos dados, relativos a 2022, divulgados ontem pelo Instituto Nacional de Estatística, o PÁGINA UM analisou a evolução do corpo clínico dos hospitais e confrontou com o aumento da população mais vulnerável. Resultado: entre 2013 e 2022 – e por via do triénio da pandemia – só se registou um aumento de 3.246 médicos hospitalares (+14,8%) para cuidar de um país que viu a população idosa aumentar 20,1%, isto é, mais 416 mil pessoas. A região Centro teve a pior evolução, e o Alentejo apresentou uma melhoria significativa, mas continua a ser a parte do país onde os idosos dispõem de menos médicos hospitalares.


    A estratégia governamental durante a pandemia de incidir as prioridades na covid-19, desinvestindo em todos os outros sectores da Saúde Público, tem mostrado agora efeitos desastrosos. Os dados revelados ontem pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) mostram que, durante o triénio da pandemia (2020-2022) houve reduções significativas na ‘procura hospitalar’– leia-se, dias de internamentos por todas as causas, no decurso da decisão de suspender cirurgias programadas –, pelo que se inverteu o crescimento do número de médicos hospitalares e se agravou assim a prestação de cuidados de saúde à população potencialmente vulnerável.

    De acordo com os mais recentes dados do INE, divulgados ontem no site desta entidade, apesar de um ligeiro crescimento do número de médicos nos hospitalares entre 2021 e 2022 (passando de 24.648 para 25.163), ainda se está aquém dos valores contabilizados no ano imediatamente anterior à pandemia. Em 2019 estavam contabilizados 25.783 médicos hospitalares em todo o país. Apesar deste número já ser ligeiramente inferior ao de 2018 (26.901 médicos), mantinha-se uma tendência de crescimento desde 2013. No período de 2013 e 2019, o crescimento nacional até tinha sido relevante: 17,7%, atingindo os 37,9% no Algarve (681 para 939), os 21,5% na Madeira (409 pata 497), os 20,3% na região Centro (4.256 para 5.119) e os 19,6% na região Norte (7.871 para 9.412). Nenhuma região registou qualquer decréscimo, embora no Alentejo o crescimento tivesse sido ténue (3,7%).

    side view of man's face

    Com a chegada da pandemia, inverteu-se por completo a tendência. A menor procura hospitalar – em função da suspensão de cirurgias e de consultas, bem como do activo incentivo das autoridades de Saúde para que não se fosse às unidades de saúde excepto por covid-19 – implicou um menor grau substituição dos médicos que se foram reformando.

    Assim, entre 2019 e 2022, apanhando o triénio da pandemia, o saldo foi de perda de 630 médicos hospitalares a nível nacional, um decréscimo relativo de 2,4%, apresar de crescimentos na Madeira (14,9%, com mais 74 médicos), nos Açores (14,4%, com mais 64 médicos), no Alentejo (11,2%, com mais 101 médicos) e no Algarve (5,5%, com mais 52 médicos). A região Centro foi, na verdade, a principal responsável pelo decréscimo verificado neste triénio, perdendo 620 médicos (12,1%). A Área Metropolitana de Lisboa perdeu 150 (-1,8%) e a região Norte 151 (-1,6%).

    Mesmo nas regiões que registaram ligeiros aumentos na pandemia, a evolução do quadro clínico hospitalar desde 2013 não conseguiu acompanhar, bem pelo contrário, o aumento da população potencialmente mais vulnerável, isto é, dos mais idosos. Com efeito, o envelhecimento populacional – que, numa perspectiva favorável significa que há cada vez mais pessoas a alcançarem e a superarem a idade da reforma – tem estado em crescimento significativo, mesmo com o impacte da covid-19 e da gestão da pandemia. Por exemplo, considerando os números apontados pelo INE, entre 2019 e 2022 a população com mais de 80 anos aumentou 4,2% (mais 29.405 pessoas), enquanto no grupo etário dos 65 aos 79 anos registou-se um crescimento bem superior: 7,9%, que resultou de mais 128.229 pessoas neste intervalo de idade.

    Evolução por região do número de médicos hospitalares e da população com mais de 65 anos entre 2013 e 2022. Fonte: INE.

    Caso se confronte, no período entre 2013 e 2022, a evolução da população com mais de 65 anos com a evolução do corpo clínico hospitalar, constata-se um evidente agravamento causado pelos anos de gestão pandémica. Se entre 2013 e 2019 o aumento relativo de médicos hospitalares (+17,7%) superava o crescimento relativo da população idosa (+12,5%), sendo assim um sinal bastante positivo, os anos subsequentes (2020, 2021 e 2022) inverteram completamente essa tendência. Assim, de acordo com os dados do INE, entre 2013 e 2022 – e por via do triénio da pandemia – só se registou um aumento de 3.246 médicos hospitalares (+14,8%) para, em certa medida, cuidar de um país que viu a população com mais de 65 anos aumentar 20,1%, tendo passado de 2,07 milhões de pessoas para cerca de 2,48 milhões, isto é, mais 416 mil idosos.

    Analisando em detalhe, por região, somente o Alentejo, o Algarve e a Madeira registaram um aumento dos médicos hospitalares superior ao aumento da população idosa. No Alentejo, os médicos nas unidades hospitalares cresceram 15,3% no período de 2013-2022, com a população idosa a aumentar apenas 3,1%, enquanto no Algarve esses aumentos relativos foram, respectivamente, de 45,5% e 26,1%, e na Madeira foram de 39,6% e 27,9%. Convém, contudo, salientar que o Alentejo continua a ser a pior região em termos de rácio de cobertura médica hospitalar: em 2013 havia somente 476 médicos por 100 mil idosos (44,9% da média nacional), e em 2022 subiu para 523 (51,6% da média nacional).

    A região Centro foi aquela onde se observa um maior agravamento da cobertura hospitalar face à população idosa, uma vez que o aumento do número de médicos entre 2013 e 2022 foi de apenas 5,7%, o que confronta com um aumento dos maiores de 65 anos de 16,6%. Nesta região, a população idosa cresceu quase 88 mil pessoas, enquanto os médicos aumentaram apenas em 243. Significa isso que o rácio de cobertura médica hospitalar em função da população potencialmente mais vulnerável (mais de 65 anos) se agravou significativamente: em 2013 era de 808 médicos por 100 mil idosos (76,2% da média nacional), e em 2022 cifrava-se em 732 por 100 mil idosos (72,3% da média nacional).

    Evolução da cobertura médica hospitalar em função da população potencialmente vulnerável (número por 100 mil idosos). Fonte: INE. Análise: PÁGINA UM.

    Nas duas regiões mais populosas – Área Metropolitana de Lisboa e Norte –, o agravamento da cobertura médica hospitalar é inferior, mas também evidente. No caso da região que engloba a capital, o rácio em 2022 situava-se em 1.310 médicos por 100 mil idosos, ligeiramente abaixo dos 1.360 registados em 2013, mas bastante abaixo dos 1.596 por 100 mil idosos em 2018, o que demonstra a fraca aposta em dotar os hospitais com uma realidade previsível: incremento da população potencialmente mais vulnerável. Na Área Metropolitana de Lisboa havia em 2022 mais 91 mil pessoas idosas do que em 2013 (+16,8%), mas somente mais 924 médicos.

    No caso da região Norte, o crescimento de 1.389 médicos (+17,6%) entre 2013 e 2022 fica aquém do necessário para um incremento da população idosa, nesse período, de 28,6%, devido a um aumento de 186 mil pessoas na faixa etária acima dos 65 anos. Por isso, o rácio de cobertura hospitalar passou de 1.208 por 100 mil idosos em 2013 para 1.105 em 2022.


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  • Da Rússia com amor: Os diplomatas expulsos, espiões e os outros que se seguem…

    Da Rússia com amor: Os diplomatas expulsos, espiões e os outros que se seguem…


    A invasão da Ucrânia pela Rússia, iniciada a 24 de Fevereiro de 2022, levou a uma vaga de expulsões de diplomatas em vários países — incluindo Portugal. Não foi a primeira vez.

    Viagem pela história recente, pelo jornalista Rui Araújo.


    O governo português expulsou 10 “funcionários” russos considerados “personæ non gratæ” no passado dia 5 de Abril de 2022. O ministro dos Negócios Estrangeiros, João Cravinho, considerou que foi “a decisão adequada” porquanto desenvolviam actividades “contrárias à segurança nacional” que eram “contraditórias com o seu estatuto diplomático”.

    A expulsão de, pelo menos, 394 russos nos países ocidentais desde o início da invasão da Ucrânia, em Fevereiro de 2022,  é sobretudo uma operação concertada dos países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e da União Europeia (UE).

    Com efeito, 24 dos 30 Estados membros da OTAN expulsaram agentes secretos russos. Alguns Estados europeus, que não integram a organização (como a Suécia, a Áustria ou a Irlanda), fizeram o mesmo.

    A expulsão de diplomatas genuínos e de espiões (permitida, aliás, pelo Artigo 9.º da Convenção de Viena desde 1961) não é inédita, mas esta é quantitativamente a mais importante desde o final da Guerra Fria.

    A anterior ocorreu em 2021. A República Checa expulsou 63 diplomatas russos. Os oficiais dos serviços de Informações estão associados a duas explosões num paiol de munições, que fizeram dois mortos.

    Em 2018, os EUA e seus parceiros da OTAN expulsaram dezenas de diplomatas e espiões russos depois de Moscovo ter recorrido a substâncias químicas (agentes nervosos) para assassinar o agente duplo, Sergei Skripal, ex-coronel do serviço russo de informações militares GRU, e a sua filha, em Salisbúria (Grã-Bretanha).

    Os serviços britânicos associaram este caso ao homicídio, em 2006, do ex-agente do KGB (denominado FSB em 1995), Alexander Litvinenko, que foi assassinado com polónio-210 (radioactivo), em Londres.

    Foram, então, expulsos mais de 150 oficiais de Informações em 20 países.

    O MNE não divulga a identidade nem a natureza das actividades dos 10 russos expulsos de Portugal, denominados propiciamente “funcionários”. Também não se pronuncia sobre uma eventual retaliação russa (expulsão de diplomatas portugueses em Moscovo).

    Tanto a embaixada da Federação da Rússia (Lisboa) como o ministério russo dos Negócios Estrangeiros (Moscovo) não responderam às perguntas da CNN Portugal.

    PORTUGAL 1982

    É a maior vaga de expulsões que teve lugar em Portugal. No espaço de três meses, em 1982, o governo da Aliança Democrática (AD) exigiu a “partida antecipada” de 16 diplomatas da então URSS e de outros países do Leste.

    A Europa expulsou nesse ano 25 dos 34 representantes da União Soviética acusados, então, de espionagem. Um ano depois, em 1983, este número subiu para 148.

    21 “diplomatas” do Leste foram obrigados a deixar Portugal entre Abril de 1974 e 1982 ao abrigo do artigo 9.º da Convenção de Viena. URSS, 12; RDA, 3; Polónia, 3; Checoslováquia, 2 e Cuba, 1.

    Flagrante delito de espionagem – A Leste nada de novo…

    Lisboa, Abril de 1980.

    Igor Alexandrovich Evlampiev, Tenente-Coronel da Força Aérea e Adido Militar da União Soviética, estaciona o Citroën CX prateado na Avenida 5 de Outubro, em Lisboa. A mulher, Nelly, e o neto acompanham-no. Depois de verificar que não está a ser seguido, Evlampiev atravessa a artéria e penetra com a família no supermercado Pão de Açúcar. Depois das compras, o casal regressa ao apartamento na Rua Eiffel, número 15.

    O espião Igor Evlampiev e Nelly, a mulher, em Lisboa. (Foto: D.R.)

    Evlampiev volta a sair. Para evitar ser seguido — e quiçá por uma questão de hábito — opta pelo itinerário menos directo. Começa por um passeio na zona da Feira Popular. Em seguida, mete-se no carro e desaparece. Cerca das 19:30, abandona o veículo e dirige-se a uma das paragens de autocarro de Entrecampos. Ao fim de um quarto de hora, muda de lugar. Entra no supermercado Modelo e queda-se entre portas, a olhar para o exterior. A seguir, dá mais uma volta. Entra no automóvel e regressa a casa.

    Foi muito certamente para reconhecer um local ou avistar-se com algum “contacto” e o encontro falhou… — conclui um seguidor da Divisão de Informações (DINFO) do Estado-Maior General das Forças Armadas (EMGFA).

    Passada uma semana, Evlampiev vai de novo às compras com a família ao mesmo supermercado. Enquanto Nelly e o neto enchem o carrinho de compras, Evlampiev passeia com ar preocupado. Procura detectar eventuais seguidores, em vão.

    Apesar do peso dos anos, o espião soviético (nascido a 24/9/1928) sobe as escadas até ao primeiro andar, sem grande esforço, carregando os sacos. Espreita pela janela e sai cinco minutos mais tarde. Deambula pelas ruas da capital mais de meia hora e estaciona o carro no mesmo local da semana anterior. Dirige-se à mesma paragem da CARRIS, os olhos pregados no relógio. Está adiantado. Pelo sim pelo não, dá uma volta à praça e mergulha na boca do metropolitano da Avenida da República. Desce até ao cais e dá meia volta.

    O espião Igor Evlampiev: duas vezes no mesmo local em dias certos. (Foto: D.R.)

    Envolto numa samarra castanha, um português de meia idade, conhecido do serviço de Informações, caminha a passos lentos, mas compassados, rumo a Evlampiev. Um militar da DINFO assiste à cena. Os dois homens disfarçam, mas têm encontro marcado. Ao cruzar-se, estacam e abraçam-se efusivamente. Aí, Evlampiev espalma a mão larga no ombro do seu “contacto” e obriga-o a mudar de sentido. Andam, assim, uma centena de metros até se separarem brusca e friamente. Esboçam apenas um discreto cumprimento de despedida e cada um segue o seu caminho.

    Evlampiev terminara a sua jornada de trabalho e até certo ponto a sua actividade em Portugal. Tinha sido apanhado em flagrante delito de espionagem. Cometera o erro de estar duas vezes no mesmo local em dias certos. O excesso de confiança é imperdoável, sobretudo para uma alta patente do serviço militar de informações GRU.

    O espião foi, entretanto, promovido a Tenente-General e destacado para Paris. Exerceu as funções de Adido Militar. Foi a sua terceira presença em terras de França (1960-1964, 1969-1974 e depois de 1980), acompanhada de perto pela Direction de la Surveillance du Territoire (DST), a contra-espionagem francesa e a DINFO, entre outras.

    Em 1982, o governo da AD expulsou 16 diplomatas de países do Leste (oito da ex-URSS e outros tantos do Bloco do Leste) por razões que os militares consideraram politicamente correctas, mas tecnicamente erradas. 

    Com efeito, os 16 agentes estavam “marcados” assim como os seus respectivos contactos enquanto que os inevitáveis substitutos implicavam o recomeço de todo o processo de investigação e localização.

    Aeroporto da Portela, 4 de Maio de 1982: os “diplomatas” checos abandonam Portugal. (Foto: ANOP)

    Contra-espionagem – uma operação dos checos

    Corre o mês de Fevereiro de 1982. 

    Os “diplomatas” checos Jan Janik e o seu adjunto Ladislav Kolackovsky instalam-se, tranquilamente, no Grande Hotel Batalha, no Porto, e contactam pessoas ligadas ao PCP. Os dois homens recebem as “visitas” durante escassos minutos. Não lhes interessa perder tempo com palavreado inútil nem mendigar intimidades que sabem de antemão impossíveis.

    Os militares da Divisão de Informações (DINFO) do Estado-Maior General das Forças Armadas (EMGFA) que efectuam o seguimento, associam os encontros à situação política do momento e decidem apertar a vigilância. Os checos abandonam a capital nortenha na manhã seguinte e dirigem-se a Viseu, onde se instalam no Hotel Grão Vasco. Janik e Kolackovsky mandam chamar os seus “contactos” e a cena do Porto repete-se.

    Os checos não estão contentes com a forma com que a Greve Geral (marcada para 12 de Fevereiro, a primeira desde a Revolução dos Cravos) convocada pela CGTP (com a oposição da UGT) está a ser preparada. Fazem algumas “sugestões” práticas. Os planos existem. E são para ser seguidos à letra. Garantem que não há lugar para amadorismo e que já estão fartos de brincadeiras. A “palestra” é escutada pelos militares da DINFO.

    O embaixador da República Socialista da Checoslováquia, Jan Janik, e o seu secretário, Ladislav Kolackovsky, são expulsos de Portugal a 4 de Maio de 1982, considerados “personæ non gratæ”. Um motorista da delegação checa, Stanislav Kejmar, é aconselhado a sair do país nesse mesmo dia.

    Os checos tomam medidas de retaliação e expulsam de Praga o embaixador Baptista Martins.

    1982 — Nem todos os espiões são expulsos. O indivíduo de óculos à direita na foto é um deles. (Foto: ANOP)

    Um caso de espionagem que podia ter tido repercussões semelhantes ocorreu pouco tempo depois. 

    Dois outros “diplomatas” checos, o Adido Militar e Aeronáutico, Tenente-Coronel Vladimir Mohyla, e o seu adjunto, Major Vladimir Mitás, tentaram aliciar militares portugueses para obter documentos secretos da OTAN. Pertenciam à StB checa (Státní Tajná Bezpečnost), o departamento de segurança do Estado, mas…

    Portugal — o antigo paraíso dos espiões

    Portugal já não é o paraíso dos espiões da Segunda Guerra, mas ainda continua a ser um país aberto para muitos operacionais dos serviços secretos estrangeiros (incluindo os do Ocidente!) com cobertura diplomática ou consular e não só.

    “A Direcção da contra-espionagem do SIS é a DO 3, que sofreu mudanças significativas há uns anos, quando uma directora foi afastada a pretexto da sua mentalidade de Guerra Fria. Na DO 2 e na DO 4 também houve algumas mudanças…”, disse uma fonte ligada ao mundo das Informações que solicitou o anonimato.

    Segundo o SIS, “em Portugal, existem dois Serviços de Informações: o Serviço de Informações de Segurança (SIS) e o Serviço de Informações Estratégicas de Defesa (SIED)”. O SIS “atua em território nacional, contribuindo para a salvaguarda da segurança interna através da prevenção da sabotagem, do terrorismo, da espionagem (NDR: “clássica”), da criminalidade organizada, da proliferação e das ciber-ameaças, bem como da prática de atos que, pela sua natureza, possam alterar ou destruir o Estado de Direito constitucionalmente estabelecido.”

    Para o serviço português de Informações, “o reconhecimento da necessidade de criar um sistema de informações foi largamente influenciado pela sucessão de atentados registados em território nacional:

    • Em 1979 o atentado à Embaixada de Israel que se saldou em um morto e vários feridos;

    • Em 1981 o assassinato do adido comercial da Embaixada da Turquia por um comando arménio;

    • Em 1983 regista-se o assassinato de Issam Sartawi, em Montechoro/Algarve e em Julho desse mesmo ano um comando arménio ataca a Embaixada de Turquia, do qual resultam 7 mortos (NOTA: Uma história mal contada até hoje…).

    O referido contexto, coadjuvado pela primeira revisão constitucional, de 1982, pela extinção do Conselho da Revolução e pela subordinação do poder militar ao poder civil, bem como a publicação da Lei de Defesa Nacional tornaram-se factores decisivos para a futura criação de um sistema de informações nacional, que se viria a constituir à luz da Lei-Quadro do Sistema de Informações da República Portuguesa (Lei-Quadro 30/84)”.

    O SIS iniciou funções em Fevereiro de 1986, sob a Direcção de Ramiro Ladeiro Monteiro.

    Há quem questione, por exemplo, o facto de um serviço de Informações ter nas suas funções a pesquisa de dados sobre criminalidade organizada, independentemente da reconhecida qualidade dos seus homens e mulheres.

    A sabotagem, hoje, está, por outro lado, sempre incluída no terrorismo.

    Os objectivos da actuação do SIS baseiam-se num conceito OTAN com décadas.

    E depois do adeus – a retaliação continua

    A retaliação de Moscovo começou pouco depois das primeiras expulsões de agentes secretos russos do Ocidente.

    Foram considerados “personæ non gratæ” diplomatas da Alemanha, Bulgária, Holanda, Japão, Missão da União Europeia em Moscovo, Noruega, Polónia. A lista não é  exaustiva.

    Portugal é o país que se segue?


    Reportagem originalmente publicada na CNN Portugal a 6 de Maio de 2022.

    NOTA POSTERIOR DO JORNALISTA: A actuação do GRU e FSB em Portugal continua a ser uma realidade. Militares portugueses foram, aliás, alertados para a vulnerabilidade do país face a uma operação russa nos… 


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  • As estórias (pouco contadas) do 25 de Abril

    As estórias (pouco contadas) do 25 de Abril


    Numa edição especial do HORA POLÍTICA, Pedro Almeida Vieira e Frederico Duarte Carvalho juntam-se para falar sobre as pequenas e grandes estórias nem sempre contadas que fizeram a Revolução dos Cravos, mas também conversam sobre o presente e o futuro de um país (e os sonhos perdidos) que já desperdiçou 50 anos de uma democracia em crise.

    Acesso: LIVRE, mas subscreva o P1 PODCAST com um donativo mensal de 2,99 euros. Ajude o PÁGINA UM a amplificar o seu trabalho.

  • IGAS ‘protege’ Gouveia e Melo, deputado Miguel Guimarães e ministra Ana Paula Martins

    IGAS ‘protege’ Gouveia e Melo, deputado Miguel Guimarães e ministra Ana Paula Martins

    Em Janeiro do ano passado, a Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) abriu formalmente um “processo de esclarecimento” sobre a vacinação contra a covid-19 de quase quatro mil médicos não-prioritários em Fevereiro de 2021, no decurso de uma combinação, ao arrepio das normas da Direcção-Geral da Saúde, entre o almirante Gouveia e Melo e o então bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães. O acordo envolveu também um pagamento de mais de 27 mil euros ao Hospital das Forças Armadas, mas apesar da factura ter sido emitida em nome da Ordem dos Médicos, o pagamento saiu de uma conta pessoal co-titulada por Miguel Guimarães e Ana Paula Martins, actual ministra da Saúde, que geriram, numa contabilidade paralela e pejada de ilegalidades, cerca de 1,4 milhões de euros doados sobretudo de farmacêuticas. Catorze meses depois do início do “processo de esclarecimento”, aproximando-se uma prescrição, e face ao silêncio do inspector-geral Carlos Carapeto, o PÁGINA UM entrou com uma intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa para saber que ‘investigação’ a IGAS andou a fazer. Ou a não fazer.


    A Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) está a esconder as conclusões de um “processo de esclarecimento”, aberto há 14 meses, sobre a forma pouco ortodoxa como Miguel Guimarães – antigo bastonário da Ordem dos Médicos e actual deputado do PSD – e o agora almirante Gouveia e Melo – antigo líder da task force durante a pandemia e actual Chefe de Estado-Maior da Armada – combinaram a vacinação contra a covid-19 de médicos não-prioritários desrespeitando as normas em vigor da Direcção-Geral da Saúde. E o caso também envolve indirectamente a actual ministra da Saúde, Ana Paula Martins, uma vez que foi ela que, no âmbito de uma campanha de solidariedade, concedeu autorização para um pagamento às Forças Armadas para compensar pela ajuda na administração das vacinas fora dos procedimentos legais.

    O processo de esclarecimento é uma das quatro tipologias inspectivas da IGAS, sendo a fase prévia que pode avançar, consoante os casos, para processo disciplinar, processo de inquérito ou processo de inspecção. No ano passado, segundo o mais recente relatório da IGAS, foram abertos 28 processos de esclarecimentos, que têm um prazo de 18 meses para conclusão, de contrário beneficiam de uma prescrição automática. Deste modo, o processo de esclarecimento às vacinas prescreverá, se não for arquivado ou avançar para outra fase, no próximo mês de Julho.

    Gouveia e Melo, actual Chefe do Estado-Maior da Armada, foi coordenador da task force e permitiu vacinações em Fevereiro de 2021 ao arrepio de uma norma da DGS. O Hospital das Forças Armadas beneficiou do esquema.

    O desbloqueio de mais uma obstrução à transparência por parte da IGAS está agora nas mãos do Tribunal Administrativo de Lisboa, por via de uma nova intimação do PÁGINA UM com vista a obrigar o inspector-geral Carlos Carapeto a libertar todos os documentos produzidos sobre esta matéria desde 15 de Janeiro do ano passado, data em que “foi determinada a abertura de um processo de esclarecimento, com o objectivo de avaliar se existe matéria que deva e possa ser avaliada”. Saliente-se que é a terceira vez que o PÁGINA UM tem de recorrer ao Tribunal Administrativo de Lisboa para que a IGAS faculte documentos administrativos em assuntos politicamente comprometedores.

    De acordo com a lei, mesmo em processos não concluídos, como será este o caso, o acesso por terceiros ” acesso aos documentos administrativos preparatórios de uma decisão ou constantes de processos não concluídos “pode ser diferido até à tomada de decisão, ao arquivamento do processo ou ao decurso de um ano após a sua elaboração, consoante o evento que ocorra em primeiro lugar”. Ora, muitas das diligências já terão mais de um ano, se é que foram feitas.

    O anúncio em Janeiro do ano passado deste processo de esclarecimento por parte da IGAS surgiu após a investigação do PÁGINA UM à gestão de uma campanha de solidariedade publicamente dinamizada pelas Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos, mas minada de ilegalidades, que envolveu cerca de 1,4 milhões de euros da indústria farmacêutica, sendo a contabilidade feita de forma paralela, com facturas falsas e outras ilegalidades fiscais, através de uma conta pessoal co-detida por Miguel Guimarães e Ana Paula Martins, actual ministra da Saúde. Foi no decurso dessa investigação que o PÁGINA UM detectou na documentação – cuja consulta foi possível somente após uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa – que, em Fevereiro de 2021, Miguel Guimarães e Gouveia e Melo reuniram e conversaram várias vezes para contornar a Norma 002/2021 da Direcção-Geral da Saúde (DGS).

    Ana Paula Martins e Miguel Guimarães foram os co-titulares de uma conta pessoal que geriu 1,4 milhões de euros de uma campanha de solidariedade pejada de irregularidades e ilegalidades, incluindo facturas falsas e fuga ao Fisco. Também serviu para pagar ao Hospital das Forças Armadas uma factura passada em nome da Ordem dos Médicos pelo serviço de vacinação.

    Esta norma, publicada em 30 de Janeiro de 2021, determinava então que na Fase 1 deveriam ser vacinados apenas os “profissionais de saúde diretamente envolvidos na prestação de cuidados a doentes”, os profissionais de lares (ERPI) ou de instituições similares e da rede de cuidados continuados, as pessoas com 80 ou mais anos, as pessoas de mais de 50 anos com determinadas comorbilidades e ainda “os profissionais das forças armadas, forças de segurança, serviços críticos e titulares de órgãos de soberania e altas entidades públicas”. Para a Fase 2, que então não estava ainda a decorrer em Fevereiro de 2021, estava prevista a vacinação do grupo etário dos 65 aos 79 anos e pessoas dos 50 aos 64 anos com determinadas comorbilidades. Somente no final da Primavera de 2021 começaram a ser vacinados os menores de 50 anos, quando já não se colocavam problemas de escassez de doses. Essa ‘hierarquia’ não agradava ao actual deputado do PSD que, não conseguindo como bastonário convencer a DGS a alterar a norma, encontrou em Gouveia e Melo, que geria a disponibilização das vacinas, alguém mais prestimoso. Aliás, meses mais tarde, Gouveia e Melo seria homenageado pela Ordem dos Médicos pelo “novo fôlego” que deu à campanha de vacinação que, obviamente, incluiu a violação da norma da DGS para benefício dos médicos não-prioritários.

    Assim, no seguimento dessas conversações em Fevereiro de 2021 – para as quais Gouveia e Melo não detinha então sequer competências para as fazer – , acabou por se acordar a disponibilização de vacinas (entregues por ordem do agora almirante) e a sua administração em instalações militares para cerca de quatro mil médicos não-prioritárias, dos quais 1.382 no pólo do Porto do Hospital das Forças Armadas, 2.004 no de Lisboa, 623 no Centro de Saúde Militar de Coimbra e 189 no centro hospitalar do Algarve. Em vésperas do processo de vacinação destes médicos não-prioritários – e que deveriam aguardar pela vacina em função da idade –, Miguel Guimarães até quis que a comunicação social acompanhasse toda a operação, mas esta acabou por se realizar de forma discreta. Foram vacinados quase 3.700 médicos. Obviamente, as vacinas tiveram de ser “desviadas” do circuito oficial num período então de grande escassez.

    Este processo paralelo, e perfeitamente irregular – uma repetição de situações ocorridas no Hospital da Cruz Vermelha, que causara a demissão de Francisco Ramos, substituído em Gouveia e Melo –, teve ainda contrapartidas financeiras que beneficiaram as Forças Armadas. Apesar das vacinas serem gratuitas, e a sua administração ser assegurada pelo Serviço Nacional de Saúde, somente foram disponibilizadas contra a cobrança unitária de 3,7 euros para supostamente suportar custos do Hospital das Forças Armadas. No Portal Base não consta que esta entidade tenha contratado quaisquer serviços externos para vacinar os médicos. Recorde-se que, apesar de liderar a task force, Gouveia e Melo continuava com altas funções na hierarquia das Forças Armadas – e não na Marinha, de onde provinha –, uma vez que acumulava então as funções de Adjunto para o Planeamento e Coordenação do Estado -Maior-General das Forças Armadas, mostrando-se tecnicamente improvável desconhecer as contrapartidas financeiras envolvidas nesta vacinação à margem das normas da DGS.  

    Carlos Carapeto, inspector-geral das Actividades em Saúde. Pela terceira vez, o PÁGINA UM recorre ao Tribunal Administrativo para consultar documentação.

    A factura do Hospital das Forças Armadas, num total de 27.365 euros – pela administração de 7.396 doses – foi emitida em 18 de Julho do ano passado para pagamento pela Ordem dos Médicos, e a forma como este pagamento foi processado e pago tem contornos de ilegalidade, neste caso envolvendo mesmo a actual ministra da Saúde, Ana Paula Martins. De facto, a Ordem dos Médicos quis ficar com os louros de vacinar associados não-prioritários, mas também com o dinheiro nos seus cofres. E assim, em 26 de Abril de 2021, a tesoureira do Conselho Nacional, Susana Garcia de Vargas, escreveu um ofício aos gestores do fundo e titulares da conta bancária (Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves) pedindo-lhes 30.000 euros para custear o processo de vacinação aos médicos não-prioritários. Era expectável que o pedido fosse aceite – por via do próprio bastonário da entidade que pedia apoio ser uma das três pessoas que decidia se era concedido –, e assim sucedeu.

    Porém, como a factura passada pelo Hospital das Forças Armadas pelas operações de administração estava em nome da Ordem dos Médicos, deveria ter sido esta entidade a proceder ao pagamento, e depois receber o donativo de 30.000 euros da conta solidária. Porém, não foi isso que sucedeu.

    Na verdade, apesar de a factura se manter na Ordem dos Médicos, e em seu nome, o pagamento ao Hospital das Forças Armadas proveio do fundo “Todos por Quem Cuida”, de acordo com o pedido de operação bancária assinado em 4 de Agosto do ano passado pela actual ministra da Saúde, Ana Paula Martins, e por Eurico Castro Alves, como co-titulares da conta pessoal (e não institucional). Mais tarde, a Ordem dos Médicos tratou de passar declarações a quatro farmacêuticas, entre as quais a Gilead – onde então já trabalhava Ana Paula Martins – como se estas tivessem feito donativos directos para a vacinação. Estas declarações são absolutamente falsas, porque nunca houve qualquer transferência bancária das quatro farmacêuticas para uma conta titulada pela Ordem dos Médicos.

    Uma vez que ao fim de mais de 14 meses desde o anúncio do início do processo de esclarecimento, a IGAS nada comunicou ao PÁGINA UM – e ignorou um pedido formal no mês passado –, a intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa visa a libertação dos documentos para conhecer as diligências tomadas por esta entidade agora tutelada por Ana Paula Martins. Tal como sucedeu com um processo disciplinar ao pneumologista Filipe Froes – que acabou arquivado em vésperas de prescrição, com diligência medíocres ao longo de quase ano e meio –, a probabilidade de este “processo de esclarecimento” ter ficado em ‘banho-maria’ desde Janeiro de 2023 é bastante elevada.

    Na verdade, o incómodo político e judicial sobre esta matéria tem-se mostrado patente também no facto de, ao longo de mais de um ano, a Procuradoria-Geral da República não ter jamais respondido às solicitações do PÁGINA UM sobre esta matéria e sobretudo sobre a gestão da campanha ‘Todos por uma Causa’, pejada de facturas falsas, fuga ao fisco, abuso de benefícios fiscais e contabilidade paralela.  


    N.D. Amanhã comemora-se os 50 anos da Revolução dos Cravos, que concedeu, antes de mais, a Liberdade e, por consequência, a liberdade de imprensa (e de expressão), ao qual estaria também associado o acesso à informação. Pode-se comemorar uma efeméride, em números redondos ou quadrados, ou de outra configuração geométrica, mas não existem muitos motivos para festejar uma efectiva liberdade de acesso à informação quando um jornal tem, para aceder a documentos detidos por entidades públicas, de recorrer mais de duas dezenas de vezes nos últimos dois anos ao Tribunal Administrativo, que ainda por cima é lento nas decisões. O caso da IGAS é um paradigma: é a terceira vez que o PÁGINA UM apresenta uma intimação para obter documentos. Não é admissível que tal suceda numa democracia. Talvez o objectivo seja cansar o PÁGINA UM (que é o único órgão de comunicação social que recorre por sistema aos tribunais face a uma recusa no acesso à informação), mas não nos cansaremos enquanto, do lado dos nossos leitores, nos derem força e apoios financeiros através do FUNDO JURÍDICO.


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  • Debate sobre Tratado Pandémico fez subir a temperatura no Parlamento

    Debate sobre Tratado Pandémico fez subir a temperatura no Parlamento

    Os ânimos exaltaram-se, ontem, no Parlamento, durante um debate sobre o plano de preparação para pandemias que está a ser negociado pelos países no âmbito da Organização Mundial de Saúde (OMS). Acusações de “negacionismo” e discussões entre bancadas dos partidos, evitou um debate profundo sobre o Tratado. O tema chegou ao Parlamento por força de uma petição e também de um Projecto de Resolução do Chega, que defendia a não adesão de Portugal ao Tratado, mas que teve apenas o apoio da Iniciativa Liberal. Já os partidos da esquerda acusaram os peticionários de serem negacionistas – um dos insultos que foi muito usado durante a pandemia de covid-19. A autora da petição, a médica dentista Marta Gameiro, lamentou os insultos aos peticionários, mas disse estar “contente” porque a iniciativa “foi um sucesso”, já que forçou os partidos a debater o plano pandémico da OMS, que sofreu profundas alterações últimos dois meses. Afinal, os direitos humanos e as liberdades fundamentais já não vão ser ‘riscados’ do plano pandémico, o qual poderá ser adoptado pelos países já no final de Maio, se não houver um adiamento.


    Muita parra e pouca uva. Ainda não foi desta que houve no Parlamento um debate profundo sobre o plano de preparação para pandemias que está a ser negociado no âmbito da Organização Mundial de Saúde (OMS). O debate agendado para ontem descambou em insultos e altercações, com o presidente da Assembleia da República a ter de dar vários ‘puxões de orelhas’ aos deputados.

    Os deputados foram ontem obrigados a debater o chamado Tratado Pandémico da OMS por força de uma petição, da autoria da médica dentista Marta Gameiro, que pedia um referendo para decidir a adesão de Portugal ao plano. Também foi debatido um Projecto de Resolução do partido Chega que recomendava ao Governo a não adesão ao Tratado e que só mereceu o apoio da Iniciativa Liberal.

    Num clima aceso e intenso, geraram-se discussões cruzadas entre deputados de diferentes bancadas, mostrando que está hoje ainda bem viva a polarização observada na pandemia de covid-19, cuja gestão acabou por ser politizada, nem sempre com a imposição de medidas fundamentadas em pressupostos científicos. O ruído e desordem obrigaram à intervenção do presidente da Assembleia da República, José Pedro Aguiar-Branco, que teve de impor ‘ordem na casa’, chegando mesmo a levantar o tom de voz para conseguir acalmar os ânimos, que estavam exaltados.

    O presidente da AR (ao centro), num dos momentos em que se viu forçado a intervir para impor ‘ordem’ no Parlamento. (Foto: Captura de imagem do Canal Parlamento)

    “Senhores deputados: apelo ao sentido de autodisciplina e de auto-responsabilidade para que não tenha de ser o presidente da Assembleia da República a ter que fazer o condicionamento do uso da palavra, que eu não desejo, não gosto e não sou assim”, afirmou Aguiar-Branco após uma das altercações entre bancadas.

    “Mas, se vossas excelências me obrigarem a isso, eu tenho que ir para outro tipo de intervenção que é aquela que vai ao encontro sequer da minha personalidade para que nesta Assembleia possamos fazer um debate democrático e fazer um debate democrático tem como pressuposto ouvir os outros”, salientou.

    Mas, afinal, para quê tanta celeuma em torno do chamado Tratado Pandémico? Em causa está um plano da OMS que tem vindo a ser negociado pelos diversos países e envolve duas partes – alterações ao Regulamento Sanitário Internacional e a criação de um Tratado para pandemias. As últimas versões do plano já excluem as propostas mais extremistas e polémicas, como a eliminação do conceito de direitos humanos e das liberdades fundamentais do Regulamento, tal como o PÁGINA UM noticiou na segunda-feira.

    A petição de Marta Gameiro, que foi assinada por cerca de 7.500 pessoas e já tinha sido debatida em sede de comissão da Saúde, foi criada antes das alterações recentes ao plano da OMS.

    Os apoiantes da petição que pedia um referendo sobre a adesão de Portugal ao Tratado Pandémico preencheram simbolicamente de ‘branco’ as galerias da Assembleia da República durante o debate. (Foto: Captura de imagem do Canal Parlamento)

    O debate começou com a deputada Rita Matias do Chega a apresentar a proposta do seu partido. A deputada aproveitou para criticar a gestão da pandemia de covid-19 em Portugal, dizendo, nomeadamente, que “falta fiscalizar, falta apurar, falta escrutinar a má gestão da pandemia, o excesso de mortalidade”. “Acima de tudo, falta julgar a passadeira vermelha para a corrupção e para o tráfego de influências que foi estendida durante a pandemia”, disse na sua intervenção.

    A Iniciativa Liberal indicou que votaria favoravelmente a proposta do Chega, mas foi o único partido a fazê-lo.

    Dos partidos que formam o actual Governo, do lado PSD, o deputado Miguel Guimarães, antigo bastonário da Ordem dos Médicos, evitou o tema em concreto do debate, preferindo promover o plano “One Health” da União Europeia, que visa uma abordagem mais abrangente do que é a saúde humana.

    O deputado do CDS-PP foi a voz da moderação. João Pinho de Almeida defendeu que “temos que estar preparados” para uma pandemia e que “a discussão sobre isso deve ser feita com um princípio fundamental que é o princípio do bom senso, não extremarmos posições, não negarmos evidências e não enfiarmos a cabeça na areia para não assumirmos responsabilidades”.

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    A gestão da pandemia na maioria dos países – com excepção da Suécia – causou graves danos na população, incluindo um enorme excesso de mortalidade, e também na economia e muitas das políticas não tinham fundamentação na evidência científica. Além disso, foi censurada informação verdadeira, nomeadamente em torno de temas como imunidade natural, máscaras e vacinas contra a covid-19.

    Lembrou que na covid-19 “vivemos limitações à liberdade que nunca imaginámos viver e mal é que não questionemos sobre a pertinência e a adequação das mesmas”, salientando que “ninguém no seu perfeito bom senso pode dizer que todas as limitações foram perfeitamente justificadas e que não temos que debater nada sobre isso”.

    Recordou que “houve muita gente prejudicada, houve muitas empresas prejudicadas, houve muitas famílias desfeitas, houve pessoas que não se puderam despedir dos seus familiares que morreram nesse período” e questionou: “nós não nos questionamos sobre essas limitações à liberdade? Claro que temos de questionar”. Defendeu que “quando discutirmos soluções para eventualmente lidarmos com estas situações no futuro nós temos que estar preparados para saber o que é mais ou menos adequado”, tendo sempre “o princípio da liberdade” presente.

    Na conclusão da sua intervenção, o deputado centrista lembrou que o Tratado Pandémico não está aprovado na OMS mas, “se disser aquilo que é dito na petição e se disser aquilo que vem no projecto do Chega, vai muito para além daquilo que á aceitável do ponto de vista da soberania nacional”. Disse que “o que temos de fazer é manter o bom senso e pronunciarmo-nos no momento próprio e, sobretudo, não entrarmos em limitações de liberdade nem limitação do escrutínio, sem ter a responsabilidade e sem se ser avaliado”.

    Tedros Adhanom, diretor-geral da OMS, tem pressionado para que o plano pandémico seja assinado pelos países mas as dúvidas têm vindo a crescer e nos últimos dois meses as propostas mais polémicas acabaram por cair, incluindo a tentativa de eliminação dos direitos humanos e liberdades fundamentais do Regulamento Sanitário Internacional. (Foto: D.R.)

    A postura moderada do deputado do CDS-PP contrastou com a de outros partidos e o clima tenso. Os partidos da esquerda foram unânimes no uso do ‘chavão’ habitual na pandemia de covid-19, acusando de “negacionismo” os peticionários. Sentada na galeria, Marta Gameiro teve ainda de ouvir a deputada Isabel Pires do Bloco de Esquerda a tentar ‘colar’ os peticionários a movimentos ‘anti-vacinas’. A deputada bloquista dedicou boa parte do seu discurso a enumerar a evolução da aplicação de vacinas em Portugal, sem, contudo, endereçar os aspectos concretos em causa na negociação do plano pandémico da OMS.

    A deputada do Bloco acabou por lançar ‘farpas’ ao Chega, dizendo tratar-se de um debate de “mentiras e hipocrisia” e acusou o partido de André Ventura de ter ficado do lado das farmacêuticas na covid-19, por ter chumbado uma iniciativa do Bloco que propunha ‘levantar’ as patentes das vacinas. Isabel Pires defendeu que “as vacinas não deviam ser um negócio milionário”, que a “saúde não devia ser um negócio milionário” e que a “Pfizer não devia ter lucros de 22 mil milhões de euros à custa da vacina”.

    O deputado único do Livre, Rui Tavares, também mencionou o tema das vacinas e não fez referências específicas ao que está na mesa de negociações na OMS.

    Marta Gameiro, médica dentista, defensora da medicina baseada na evidência científica e autora da petição, esteve na comissão de Saúde a defender a petição. A médica organizou já dois congressos internacionais, em 2022 e 2023, um sobre a gestão da pandemia e outro sobre saúde mental e propaganda durante a covid-19.
    (Foto: Captura de imagem do Canal Parlamento)

    O deputado socialista João Paulo Correia elogiou a gestão da pandemia que foi feita pelo seu partido quando era governo e criticou a petição e a proposta do Chega.

    Outros deputados recorreram ao termo pejorativo “negacionismo”, incluindo o deputado do PCP António Filipe e a deputada única do PAN, Inês Sousa Real. “De facto, o negacionismo e o populismo têm alguns aspectos curiosos, é que negam as evidências científicas”, disse Sousa Real no início da sua intervenção, sem, contudo endereçar o conteúdo concreto da petição ou as propostas que estão na mesa na elaboração do plano da OMS.

    No final do debate, foi a vez de André Ventura, presidente do Chega, reagiu às críticas e insultos de alguns deputados. “Se fosse transparência, senhor deputado Rui Tavares, nós hoje sabíamos onde estão aquelas vacinas encomendadas e pagas pelo Estado português, (…) sabíamos onde foram parar os ventiladores que pagaram com o dinheiro dos contribuintes e nunca aqui puseram em Portugal, (…) sabíamos porque é que a presidente da Comissão Europeia não dá à polícia as mensagens sobre a compra de vacinas em toda a União Europeia, como lhe foi pedido”.

    Dirigindo-se ao deputado socialista, Ventura afirmou que “não deixa de ser caricato que o PS termine a sua intervenção dizendo o mundo precisa “deste Tratado Pandémico”. “Senhor deputado, tenho uma grande novidade para si, olhos nos olhos: não é o mundo que precisa de um Tratado Pandémico, são os grandes grupos económicos que dominam o mundo, que querem encher as carteiras à custa da liberdade dos cidadãos”, concluiu.

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    Marta Gameiro alertou que está a ser criada uma “indústria de pandemias” focada na venda de produtos e medicamentos a nível global. (Foto: D.R.)

    O debate terminou com algumas manifestações por parte de pessoas presentes nas galerias, o que gerou mais um aviso de José Pedro Aguiar-Branco, que também acabou por ser um recado para os deputados: “as galerias não se podem manifestar e se nós, enquanto deputados, dermos o exemplo disso, seguramente não se manifestarão”.

    Apesar de ter de assistir aos insultos contra os peticionários, Marta Gameiro mostrou-se satisfeita com o resultado alcançado. “Estou contente. A petição acabou por ser um sucesso porque teve de haver um debate”, afirmou ao PÁGINA UM, após o debate. Lamentou os insultos e que não se tivesse antes discutido em concreto o que está em causa no plano da OMS. Respondendo à deputada do Bloco, disse que o que fez foi “extrapolar” e usar referências a vacinas que constam da petição para “atacar injustamente o mensageiro” em vez de debater o plano pandémico.

    Questionada sobre como vê os insultos e o uso da palavra “negacionismo”, Marta Gameiro disse que “de certa forma, já estava à espera”. Mas “esperava também ouvir dos deputados argumentos mais baseados em evidências”. Acusou alguns deputados de viveram “numa bolha” e não entenderem que hoje, a OMS “está focada em vender produtos, como testes, medicamentos, vacinas, apps de rastreio”. Disse ainda que não é “contra tratados internacionais”, mas criticou “a urgência” que está a haver para adopção do plano pandémico da OMS. “O que está a ser criada é uma indústria de pandemias”, afirmou.

    Na sua ida ao Parlamento, Marta Gameiro foi acompanhada de apoiantes da petição, vestidos de branco, incluindo Joana Amaral Dias, psicóloga e candidata às eleições europeias pelo partido ADN, bem como Bruno Fialho, presidente deste partido que foi uma das surpresas das últimas legislativas.

    Os países irão decidir na 77ª Assembleia Mundial da Saúde, que começa no dia 27 de Maio, se adoptam ou não o texto do ‘Tratado Pandémico’, bem como as emendas ao Regulamento Sanitário Internacional. Contudo, crescem os apelos para que a decisão sobre os dois textos seja adiada, para que os países possam ter tempo para rever as propostas que estão na mesa e construir textos mais sólidos.


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  • A Liberdade não tem preço, mas comemorá-la em Portugal não sai barato

    A Liberdade não tem preço, mas comemorá-la em Portugal não sai barato

    Poucas autarquias quiseram ficar arredadas das comemorações dos 50 anos da Revolução dos Cravos, e por isso houve uma ‘corrida’ aos ‘músicos de intervenção’ ainda no activo, como Paulo de Carvalho, Sérgio Godinho, Fernando Tordo, Vitorino, Janita Salomé e Brigada Vitor Jara. Mas, visto em detalhe mais de uma centena de contratos, constata-se que quem recebe os maiores cachets são os ‘do costume’. O PÁGINA UM decidiu percorrer mais de uma centena de contratações já celebradas e inseridas no Portal Base associadas aos espectáculos que marcam os 50 anos de uma revolução que nos concedeu a Liberdade, hoje algo limitada. E mostra que, apesar de todos os eventos promovidos por autarquias serem ‘vendidos’ como gratuitos, a conta pública já está acima dos 2,4 milhões de euros. E ainda só lá cantam alguns dos contratos de 72 municípios e de três juntas de freguesia.


    Além das comemorações de Estado, protagonizadas por uma comissão específica, quase não vai haver autarca que queira passar à margem das festividades do meio centenário do 25 de Abril de 1974. Em cada município, pelas redes sociais, pela imprensa, de norte a sul, de este a oeste, surgem apetitosas agendas culturais com debates, exposições, teatro, música e pirotecnia. Praticamente todo oferecido aos cidadãos para lembrá-los que a Liberdade não tem preço, e deve ser mantida como o mais valioso dos bens pessoais e colectivos.

    Porém, em abono da verdade, tal como nunca há almoços de borla, também não há comemorações sem custos – neste caso, monetários. E beneficiários – neste caso, os músicos, embora alguns, admita-se, ate o sejam muitos justamente.

    A Revolução dos Cravos está intimamente associada à música – e, em especial, nas fases posteriores à música de intervenção. Zeca Afonso a e a sua (nossa) ‘Grândola Vila Morena’ tornou-se um Hino da Liberdade, mesmo mais do que “E depois do adeus’, de Paulo de Carvalho, que serviu de primeira senha para o início do golpe que fez cair a ditadura do Estado Novo.

    Não surpreende assim que abundem agora os concertos ‘saudosistas’ (no bom sentido do termo) – e, felizmente, com uma parte daqueles que foram intervenientes nessa esperançosa fase em que se cantavam os amanhãs – ou que os amanhãs cantavam. Os portugueses já há muito não contam com a presença de Zeca Afonso, que partiu em 1987, cinco anos depois de Adriano Correia de Oliveira. Também a pena de Ary dos Santos se perdeu cedo, e já não está entre nós um dos ‘príncipes da canção de intervenção’, José Mário Branco, falecido em 2019.

    Mas ainda estão no activo, e bem no activo, um bom punhado de cantores de intervenção, já todos septuagenários – e talvez já algo acomodados, diga-se. Aos 76 anos, Paulo de Carvalho é um deles. No próximo dia 26 dará um concerto em Vizela, com músicos convidados, pelo qual o município pagará 21 mil euros, mas tem estado particularmente activo este ano com espectáculos associados ao 25 de Abril contratados por autarquias, nomeadamente as de Gondomar (21.702 euros), de Grândola (109.705 euros, neste caso também por causa do cachet do seu filho Agir), de Loures (63.850 euros) e de São João da Madeira (7.000 euros).

    Paulo de Carvalho, em 1974, cantando ‘E depois do adeus’, que se transformaria na primeira senha para o avanço da Revolução dos Cravos.

    Fernando Tordo – autor de ‘Tourada’ e ‘Adeus tristeza’ – , com a mesma idade de Paulo de Carvalho, ainda aparenta estar mais activo, embora com cachets mais baixos. Não vai parar de amanhã até sábado em concertos, um por dia. Primeiro na Sertã (8.500 euros), segue-se Moimenta da Beira (10.420 euros), depois Coruche (9.465 euros) e finaliza na Azambuja (7.00 euros). O cantor parece ter recuperado nos últimos anos um certo élan – desde o início de 2023 conta 12 contratos públicos no Portal Base com autarquia que já ultrapassam os 100 mil euros –, tendo chegado a emigrar para o Brasil em 2014 durante o Governo de Passos Coelho. Regressou poucos anos depois, mas em 2022 ameaçou sair de novo se a direito ganhasse as eleições. Não aconteceu nesse ano, sucedeu agora.

    O ‘decano’ Vitorino (81 anos) e o seu irmão Janita Salomé (76 anos), em registo com raízes alentejanas, também cantarão Abril nos próximos dias, sobretudo o primeiro e, pelo menos numa ocasião, em conjunto. Amanhã, no Teatro José Lúcio da Silva, na cidade de Leiria, o concerto dois irmãos, acompanhados de Filipe Raposo e pela Orquestra Filarmónica das Beiras, vai custar ao erário público 25 mil euros. No sábado passado, os dois irmãos estiveram na Marinha Grande num concerto de antecipação ao 25 de Abril, pelo qual a autarquia não pagou muito: apenas 5.950 euros, ainda por cima por incluir orquestra. Aliás, segundo os contratos já inseridos no Portal Base, Vitorino vai dar mais dois concertos nos próximos dias com cachets mais apreciáveis: na Sertã (amanhã) por 12 mil euros e no dia 26 em Castelo de Paiva por 23 mil euros.

    Quem também se mostra imparável nesta fase é Sérgio Godinho que, aos 78 anos, tem estado na estrada com o seu projecto musical Liberdade 25, que já o levou duas noites em Março passado ao Coliseu de Lisboa, estando agora a aproveitar o interesse de muitos municípios para abrilhantar as comemorações do meio centenário do 25 de Abril. Amanhã, o autor do célebre ‘Liberdade’ e ‘Com um brilhozinho nos olhos’ vai estar na eborense Praça do Giraldo num concerto com “entrada livre”, porque a Câmara Municipal de Évora desembolsou 18.200 euros. No dia 25 vai estar em Loulé e depois no Auditório Municipal de Lousada no sábado, regressando a Lisboa no domingo. Estes três últimos concertos, que terão sido pagos por municípios, deverão ter custado valores entre os 10 mil e os 18 mil euros, intervalo que, por regra, o músico pratica, o que nem se pode considerar demasiado elevado tendo em conta os músicos que o acompanham.

    Sérgio Godinho continua a ser um dos músicos mais associados ao 25 de Abril.

    Aliás, ao nível dos cachets, os músicos e grupos associados directamente ao 25 de Abril até se mostram como os mais baratos. Por exemplo, os Brigada Vítor Jara levam á autarquia local pelo concerto de amanhã na Marinha Grande menos de 32 mil euros – e convém referir que este histórico grupo fundado em 1975 tem nove membros. Talvez por serem de Coimbra, fizeram um preço mais em conta para o concerto no próprio dia 25 de Abril, cobrando apenas 7.100 euros ao município.

    Também Carlos Alberto Moniz não cobra em demasia. Os dois contratos associados ao 25 de Abril, na Chamusca (amanhã) em Castelo Branco (na quinta-feira) custaram, respectivamente, 6.175 e 7.000 euros aos municípios, de acordo com os contratos publicitados no Portal Base. Um outro histórico, Jorge Palma, que vai estar em Pombal no próximo sábado, irá cobrar, por sua vez, 12 mil euros.

    Na verdade, independentemente de ainda estarem no activo muitos dos músicos e cantores que vivenciaram a passagem da Ditadura para a Liberdade, os tempos são como são, e quem tem os maiores cachets são aqueles com maior popularidade actual.

    De acordo com a pesquisa feita hoje pelo PÁGINA UM aos contratos já celebrados e inseridos no Portal Base – e nos últimos dias têm-se somado muitos –, o espectáculo com o maior orçamento realizar-se-á em Lisboa e tem como cabeça de cartaz Rodrigo Leão, embora de forma virtual. Produzido pela empresa Idade das Ideias, e tendo como adjudicante a empresa municipal EGEAC, a Praça do Comércio será o palco para a Orquestra Sinfonietta de Lisboa, o Coro de Santo Amaro de Oeiras, o Coro da Escola Artística do Instituto Gregoriano de Lisboa e vários solistas interpretarem canções de José Afonso, José Mário Branco, Sérgio Godinho, Fausto, Adriano Correia de Oliveira, Fernando Lopes Graça e Carlos Paredes. Além de um videomapping composto por fotografias de Alfredo Cunha e música de Rodrigo Leão, haverá ainda um espectáculo piromusical. Tudo gratuito, apesar de a empresa do município liderado por Carlos Moedas ter de pagar, com dinheiros públicos, um total de 271 mil euros.

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    Praça do Comércio onde esta quarta-feira se pagará a maior factura por uma noite de comemorações.

    Sem especificar em concreto os gastos de forma discriminada, a factura das comemorações em Almada também não fica barata: 146 mil euros para um conjunto de eventos culturais que tem o apogeu amanhã à noite com um concerto de Dino d’Santiago. O músico algarvio de ascendência cabo-verdiana levará, porém, uma pequena parte deste montante, uma vez que os seus cachets em concertos individuais situam-se entre os nove mil e 13 mil euros.

    Bem mais elevados são os cachets de Rodrigo Leão, que amanhã se apresentará ao vivo num concerto em Matosinhos. A autarquia socialista fez dois contratos para este espectáculo: um para pagar directamente a actuação do ex-membro dos Madredeus, no valor de 51.297 euros, e outro para pagar um espectáculo multimédia em si mesmo, no valor de 66 mil euros. Ou seja, uma noite de comemorações em Matosinhos a custar mais de 117 mil euros. Se somarmos o concerto no dia 26 de Salvador Sobral com a Orquestra Jazz de Matosinhos, a conta pública alimenta mais 47.614 euros.

    Em todo o caso, e talvez sem surpresa, os nomes grandes da música portuguesa levam os maiores cachets, independentemente de se tratar de comemorações em redor da liberdade ou não. Na lista de concertos nos próximos dias, os Xutos & Pontapés são reis & senhores na hora de desembolsar dinheiros públicos. Para o seu concerto de amanhã em Santiago do Cacém cobram 57.650 euros; no dia seguinte, descendo para a vizinha Odemira, levam um pouco menos: 42.385 euros. O município de Odemira, apesar de contar menos de 30 mil habitantes, ainda vai pagar 28 mil euros pelo concerto de amanhã de Richie Campbell, e mais 25.500 euros à banda de hip hop Wet Bed Gang, que foi escolhida em votação pela população local, e 12.500 euros aos Capitão Fausto.

    Xutos & Pontapés: são os mais bem pagos, sempre.

    Por sua vez, Pedro Abrunhosa também não se pode queixar de Abril. Nem de Isaltino de Morais. A autarquia de Oeiras já celebrou o contrato de 40 mil euros para o seu concerto da noite desta quinta-feira. Também aqui o concerto é considerado “gratuito”. Para contratar Mariza Liz, António Zambujo e os Wet Bed Gang a autarquia de Setúbal teve de desembolar, em pacote, cerca de 104 mil euros.

    Na lista entretanto inventariada pelo PÁGINA UM constam mais nomes de peso com cachets relevantes, destacando-se Rui Veloso (32 mil euros pelo concerto de amanhã em Alcácer do Sal) e José Cid (30.100 euros pelo concerto de amanhã no Portimão Arena). Abaixo dos 30 mil euros, D.A.M.A. e Bandidos do Cante repartem os 28.250 euros que a Câmara de Beja vai gastar num concerto na noite de quinta-feira, enquanto Luís Represas, que se notabilizou nos finais do século passado como vocalista dos Trovante, vai receber 23.250 euros por um concerto na Moita, um pouco mais do que os 18.675 euros que cobrará por similar apresentação em Moura. Pelo concerto em Arronches, no próximo sábado, Represas receberá um cachet de um pouco menos de 16 mil euros. Por sua vez, os Anjos levam para casa 20 mil euros depois de actuarem em Aljustrel na noite de amanhã.

    Já abaixo da fasquia dos 20 mil euros estão outros músicos ou grupos conhecidos como os GNR (concerto em Odivelas por 19.500 euros), The Gift (concerto em Alcochete por 18 mil euros), Quinta do Bill (concerto na alentejana vila de Cuba por 17 mil euros), Carminho (concerto em Sernacelhe por 16 mil euros), David Fonseca (concerto em Leiria por 13.250 euros). Gisela João (concerto em Amarante por 12.500 euros), João Gil (concerto em Carnide por 12.425 euros), Ana Bacalhau (concerto em Silves por 12.000 euros), Sofia Escobar (concerto em Montalegre por 11.900 euros. em parceria com o cantor FF), Cristina Branco (concerto na Póvoa de Varzim por 11.500 euros, a que acresce outro, no valor de 10 mil euros, na Covilhã), Camané (concerto em Castro Verde por 11.000 euros) e os históricos Taxi (concerto nos Olivais por 10.500 euros, a que acresce outro, no valor de 9.250 euros, em Castelo Branco).

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    Além destes espectáculos musicais, o PÁGINA UM detectou outros eventos culturais – onde se destaca uma estranha ópera para jovens escrita pelo humorista Diogo Faro, pela qual a autarquia de Palmela pagou quase 37 mil euros – e também um vasto conjunto de contratos para serviços exclusivamente de pirotecnia, isto é, fogo de artifício. Para já, são oito – Setúbal, Almada, Oeiras, Moura, Beja, Castro Verde, Cuba, Vila Viçosa – que totalizam quase 185 mil euros. Na parte da logística são, por agora, uma dezena, que chegam aos 116 mil euros.

    Assim, estando ainda a procissão no adro – ou seja, ainda haverá muitos contratos em falta no Portal Base –, a conta das comemorações apurada até hoje á noite pelo PÁGINA UM para eventos sobretudo musicais das comemorações do meio centenário da Revolução dos Cravos ultrapassa os 2,4 milhões de euros, estando apenas contabilizadas despesas de 72 municípios e de três juntas de freguesia.


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  • Tratado Pandémico: Propostas mais polémicas caem mas risco de ‘cheque em branco’ mantém-se

    Tratado Pandémico: Propostas mais polémicas caem mas risco de ‘cheque em branco’ mantém-se

    O plano de acção em futuras pandemias, em discussão na Organização Mundial de Saúde (OMS), sofreu novas e profundas alterações na semana passada, a segunda vez nos últimos dois meses. As novas propostas para as emendas ao Regulamento Sanitário Internacional incluem importantes cedências aos defensores dos direitos humanos e das liberdades fundamentais. Mas, em compensação, o texto do chamado Tratado Pandémico ‘chuta’ para o futuro muitas definições, o que está a ser visto como perigoso, por ser um ‘cheque em branco’ à OMS. Se não houver adiamento, as propostas podem ser adoptadas já em Maio. Em Portugal, este tema vai ser alvo de apreciação em reunião plenária no Parlamento, por força de uma petição que forçou os deputados e os partidos a debater publicamente um tema que vai afectar todos os portugueses no futuro. Por agora, só o Chega tomou uma posição contrária ao polémico Tratado Pandémico, propondo a não-assinatura pelo Governo português.


    Será bom demais para ser verdade. É assim que defensores dos direitos humanos e das liberdades fundamentais estão a ver as recentes cedências que constam das propostas para a criação de um plano que visa preparar o mundo para futuras pandemias e crises de saúde públicas.

    Se as novas propostas para as emendas ao Regulamento Sanitário Internacional, originalmente criado em 2005, traduzem um forte recuo nas polémicas intenções iniciais – e mantêm os direitos humanos e liberdades individuais -, já o novo texto para aprovar um ‘Tratado Pandémico’ – uma espécie de plano de acção concreto – mostra-se vago e perigoso por deixar eventualmente os países sujeitos à ‘politização’ de medidas, que podem ser mesmo adicionadas ‘à la carte’.

    Os receios em torno das propostas que estão na mesa surgem numa era pós-covid-19, em que medidas que foram impostas na generalidade dos países – com a excepção da Suécia – deixaram um rasto de danos e desconfiança. Medidas como confinamentos, fecho de escolas, imposição ou pressão para a vacinação e adopção de um passe de ‘segregação’ deixaram um rasto de excesso de mortalidade e outros efeitos negativos na população, sobretudo os mais frágeis, além dos danos causados na economia.

    Tedros Adhanom, diretor-geral da OMS, tem pressionado para que o Tratado e as emendas ao Regulamento sejam aprovados já em Maio, mas há dúvidas sobre as propostas que estão na mesa e sobre a pressa na sua aprovação.

    As novas propostas ao texto do Tratado, saídas das reuniões do ‘Intergovernmental Negotiating Body’ da OMS, foram colocadas ‘preto no branco’ a 13 de Março. Este organismo está encarregue de negociar e definir o texto do futuro Tratado que, por agora, é denominada “Convenção da OMS, Acordo ou outro Instrumento de Prevenção, Preparação e Resposta a Pandemias”. A ideia deste Tratado surgiu no auge da pandemia e já foram realizadas nove reuniões formais, sendo que a última reunião foi suspensa e será retomada na próxima segunda-feira, prevendo-se a sua conclusão em 10 de Maio.

    Em todo o caso, apesar de alguns recuos em propostas iniciais que davam demasiado poder à OMS – um organismo não-democrático e permeável aos lobbies farmacêuticos, políticos e de financiadores e investidores –, mantêm-se as críticas ao novo texto. “É, na prática, um cheque em branco que é passado à OMS”, defendeu Marta Gameiro, autora da petição que pede um referendo à adesão de Portugal ao Tratado, e que será amanhã debatida em plenário no Parlamento português.

    Curiosamente, mesmo a indústria farmacêutica aponta críticas ao texto. “Temos três preocupações chave que podem levar a incerteza e iriam beneficiar de critérios claros científicos e de evidência científica para evitar politização”, afirmou hoje a International Federation of Pharmaceutical Manufacturers and Associations (IFPMA) em comunicado. Entre as suas preocupações, esta federação considera, por exemplo, serem “excessivamente vagas” as definições de conceitos como “Pandemias”.

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    Quanto às novas propostas de alteração ao Regulamento, foram conhecidas apenas na passada quarta-feira, dia 17, sendo que durante esta semana decorrerá a última reunião do Grupo de Trabalho que se debruça sobre o novo texto do Regulamento.

    Das alterações propostas são evidentes algumas cedências, como a manutenção de conceitos como os “direitos humanos” e “liberdade fundamentais das pessoas”, nomeadamente no Artigo 3º. Por outro lado, fica garantido que as recomendações da OMS serão “não vinculativas” (‘non-binding’) para os países. Ou seja, cada país mantém a autonomia de aceitar as recomendações do organismo nacional sem temer quaisquer penalidades se definir uma estratégia própria – como, aliás, fez a Suécia na pandemia da covid-19.

    Contudo, o actual texto em discussão mantém diversas propostas polémicas, nomeadamente a necessidade dos países reforçarem “capacidades” para prevenir e combater riscos para a saúde pública, onde são incluídos “riscos de comunicação” e “desinformação”, não se sabendo sequer quem define o rigor científico que por definição, é dinâmico.

    Recorde-se que, durante a pandemia de covid-19, foram classificados como sendo ‘desinformação’ factos e estudos científicos verídicos e foi censurada informação verdadeira, incluindo em torno de temas como a imunidade natural ou a vitamina D. Por isso, alguns críticos ficam de pé atrás e aplicam o ditado ‘gato escaldado de água quente tem medo’, já que, numa futura crise ou pandemia, consideram que pode ficar aberta a porta a uma nova politização da crise e a perseguição e repressão de informação verídica, mas que não é ‘aprovada’ pela OMS ou ou outras autoridades de saúde ou governos.

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    Ainda há outros temáticas que levantam celeuma, nomeadamente em torno de questões como financiamento específico, incluindo aos países mais pobres. Os críticos da medida falam em ‘novo colonialismo’ e desconfiam da ‘bondade’ na disponibilização de dinheiro para a aplicação de recomendações na área da saúde. “No fundo, teme-se que estas alterações venham, sobretudo, permitir às farmacêuticas criar um gigante mercado, usando fundos públicos para escoarem os seus produtos”, disse Marta Gameiro.

    Os países irão decidir na 77ª Assembleia Mundial da Saúde, que começa no dia 27 de Maio, se adoptam ou não o texto do ‘Tratado Pandémico’, bem como as emendas ao Regulamento Sanitário Internacional. Contudo, crescem os apelos para que a decisão sobre os dois textos seja adiada, para que os países possam ter tempo para rever as propostas que estão na mesa e construir textos fundamentados e sólidos.

    Para já, em Portugal, onde a questão do Tratado Pandémico e o poder da OMS pós-pandemia da covid-19 passou ao lado do debate eleitorial nas recentes legislativas, tem sido a sociedade civil a obrigar os políticos a falarem deste assunto. Amanhã será, aliás, apreciada em reunião plenária na Assembleia da República uma petição para referendar a adesão de Portugal ao Tratado Pandémico da OMS, uma iniciativa dinamizada pela médica dentista Marta Gameiro e que contou com quase 7.500 assinaturas. Esta petição foi analisada na comissão de Saúde, no Parlamento, em 16 de Fevereiro do ano passado, então com fraca adesão dos deputados. Apesar disso, Marta Gameiro defende que “o objectivo da petição foi cumprido, porque queríamos ver os partidos a debater o tema” e isso foi atingido”.

    Nos últimos meses, o Chega tem mostrado um maior interesse sobre estas matérias, e na próxima quarta-feira será mesmo debatido um seu projecto de resolução para “recomendar que o Estado português não adira ao Tratado Pandémico. André Ventura até prometeu constituir uma comissão de inquérito sobre os efeitos da pandemia e o excesso de mortalidade, embora já não possa ‘obrigar’ tão depressa o Parlamento a ‘concordar’, através de um direito potestativo, uma vez que já gastou até ao próximo ano essa possibilidade com o caso das gémeas luso-brasileiras.


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