Etiqueta: Destaque Notícias

  • Vida de cão

    Vida de cão


    As queixas de lisboetas relativas a problemas com cães, incluindo devido a dejectos na rua e também ao ruído, levaram o jornalista Rui Araújo a fazer uma reportagem sobre o tema, a qual foi publicada n’ O Jornal Ilustrado em 1989.

    Mas o que fica gravado na mente do leitor não são as queixas dos munícipes, mas o olhar de cães abandonados vistos pela lente de Inácio Ludgero, que generosamente disponibilizou as fotos originais para a republicação desta reportagem no PÁGINA UM.


    «O cão está a mijar-me na jante, mas se mando vir sou logo tratado de mafioso ou de facho… tá bem tá, isto é uma indecência, pá!»

    O rapaz até é capaz de ter razão. E não é o único revoltado. Há cada vez mais lisboetas a queixarem-se da chatice dos cães. Aos vizinhos e amigos. À PSP, à GNR e à Câmara. Cartas e mais cartas. Um rol de críticas e insultos.

    Um cão é algo estimulante. vivo, próximo.
    (Foto: Inácio Ludgero)

    O problema canino é, hoje em dia, uma das principais causas de protesto epistolar ao município. As mesmas críticas, os mesmos apelos… e as mesmas respostas à reportagem traduzem uma revolta generalizada. Há mesmo gente em situação desesperada. Muitas das missivas enviadas ao Departamento de Higiene Urbana e Resíduos Sólidos da Câmara Municipal de Lisboa já não denunciam apenas o chichi, o cocó, as doenças, o ruído ou o medo: «… no 2 dt.º habita uma senhora chamada Odete e um filho de 11 ou 12 anos em que têm desde há 4 anos um casal de cães, e agora desde uns meses para cá mais 2 cães filhos do casal que já tinha, portanto desde há 4 anos que habita esta casa, nunca levou qualquer dos animais a rua, fazendo estes todas as necessidades em casa, o que ocasiona além do ladrar e uivar a toda a hora, um cheiro horrível, o que torna impossível viver ali nessa situação. A Polícia já veio aqui pela 3.ª vez a meu pedido, julgando eu que a senhora resolveria as coisas sem grande problema, mas em vão, pois ela nem sequer abre a porta a ninguém. Numa altura em que as doenças desconhecidas como a CIDA (sic) e outras aparecem e desenvolvem—se em ritmo acelerado como as combater? Com uma higiene assim não se pode esperar outra coisa. (1) Termino pedindo…»  Ou fazendo sugestões.

    Porque também há quem as faça. Algumas são até bem imaginativas. «Porque não rebocar também os animais e as pessoas acompanhantes; quando andam pela Avenida de Roma e Rua Frei Amador Arrais a fazer aquelas porcarias? Montes de fezes de cães — ou cadelas, claro está — em plenos passeios, que quase não nos deixam espaço para pôr os pés. As crianças, então, espezinham tudo, que é nojento! Como se pode tolerar tais cenas…?»

    É verdade. Apesar de 10% das queixas recebidas na Câmara — na opinião de Manuel Boavida, responsável do Departamento de Higiene Urbana e Resíduos Sólidos da CML — não terem qualquer fundamento.

    Os funcionários da CML apanhavam os animais com estas redes…
    (Foto: Inácio Ludgero)

    Os cães devem estar a aumentar. À medida da cruzada anti canina. E ninguém sabe ao certo quantos rafeiros — do Alentejo ou não —, perdigueiros, caniches e demais bicharada canina existem por essa Lisboa fora. Um elemento do Instituto Nacional de Estatística (INE) confessa exasperado que contar os cães (era só o que faltava). A contagem do gado já dá um «trabalhão». Sondagens e estimativas, é coisa que não existe. A Câmara Municipal de Lisboa anuncia apenas 5 mil licenças em 1988. Os cães não licenciados e/ou não vacinados tanto podem ser 20 mil como 200 mil. É como as taxas da RTP… Mas pouco importa, agora. Não haverá assim tantos cachorros como isso. A única certeza é que o número de cães está directamente associado ao nível de vida. Daí que os países da Europa com mais cães sejam a França, a Grã—Bretanha e a Alemanha.

    O número de cães e gatos continua a aumentar.
    (Foto: Inácio Ludgero)

    Ai solidão!

    E as razões conscientes — ou não — para terem bicho? Os citadinos europeus têm cão por necessidade de companhia, snobismo, segurança ou aventura. É o que afirmam os psicólogos. É o que dizia McLuhan: as pessoas têm cão para relembrarem que também vivem… Pelo menos, nas cidades: num prédio de 15 andares é mesmo uma necessidade vital. Seja como for, por cá as razões serão as mesmas.

    «O desejo de adquirir um cão pode estar ligado ao consumismo: o cão torna—se então um objecto exibitório. A sua raça é importante», resume um psiquiatra do Hospital Militar de Lisboa. Mas há ainda outras motivações. «O cão funciona como algo que aumenta a segurança» e é conveniente não esquecer que para muita gente a presença do animal «anuIa a sensação de impotência social». É uma explicação. Não será porventura a única. Há também quem tenha cão por razões de tradição ou mais prosaicamente de eficácia. É o caso dos cães de guarda no campo. Joaquim Manuel Pedro, proprietário de meia dúzia de terras de cultivo dispersas lá para as bandas de Pernigem (Sintra) desde sempre teve cães de guarda. Cães de raça e agora rafeiros. Labuta fora. Os animais guardam casa e terreno. «A minha Paquita e o meu Pantufas são dos rafeiros mas para me guardar a casa serão até bem melhores do que muitos cães de raça», afirma sorridente, sem complexos, enquanto os animais saltitam à sua volta. Contentes. Com o repórter do outro lado do muro.

    Mas os cachorros podem significar mais do que simples elementos do modo de vida: uma imagem de marca. Carolina de Mónaco possui o Onyx, um pastor e a Tiffany, um Yorkshire, que as colunas sociais apadrinharam.  A pacatez lisboeta não vai, contudo, tão longe. Aníbal Cavaco Silva não tem, oficialmente, cão. Mário Soares idem. Torres Couto tem um cocker de um mês (ainda sem nome) que parece não ter. Só Carlos Carvalhas reconhece ter um animal.

    O cão é o companheiro dos tais laços profundos de dedicação. «E o cão pode ainda funcionar como o elemento anti—solidão, o filho, o companheiro tanto dos solitários como dos marginais, crianças e velhos, gente com genuína disponibilidade afectiva», acrescenta o psiquiatra. Um cão é algo estimulante, vivo, próximo. Os publicitários utilizam de resto extremamente bem essa imagem para nos convencer a comprar latas de comida, jornais ou tão simplesmente votar num general com cão emprestado para o efeito. Mas afinal onde termina a moda e começa a necessidade? O desenvolvimento dos cães na cidade poderia traduzir uma recusa da forma de sociedade — a da urbe. Mas se a tal existência harmoniosa é para muitos citadinos um mito não é menos certo que a cidade não está nada preparada para a presença de tantos animais domésticos: cães, gatos, pássaros, etc. E ninguém faz praticamente nada…

    A ineficácia das leis

    O Governo está, aparentemente, pouco preocupado com o fenómeno da proliferação dos cães nas cidades. E mais concretamente em Lisboa. A Lei Base do Ambiente (11/87 de 7 de Abril) é um extenso documento de 52 artigos. Ignora pura e simplesmente a questão da poluição canina. A legislação complementar (Artigo 51) necessária à regulamentação (eventualmente dos resíduos sólidos) será «obrigatoriamente» publicada no prazo de «um ano» a partir da data de entrada em vigor do diploma: 1987. Já lá vão mais de 2 anos e nada…

    Os avisos nos passeios de pouco ou nada servem.
    (Foto: Inácio Ludgero)

    Resta o Decreto—Lei 317/85 (2 de Agosto) (2), ou, por outras palavras, um insólito documento sobre Raiva, Abandono, Crueldade e Sevícias. Em teoria, as câmaras municipais «sempre que razões de salubridade ou tranquilidade da vizinhança o imponham, poderão determinar a remoção de quaisquer cães ou outros animais de companhia». É o artigo 10.º. É o mais problemático. Até hoje — e já lá vão mais de 3 anos — nenhuma ordem da Câmara foi cumprida… E ainda não há qualquer penalização por não acatamento da decisão da Câmara. Os homens da Câmara não podem entrar em casa dos donos ou detentores dos animais. Os recursos — possíveis — nem sequer chegam a ser elaborados. «Uma solução talvez possa ser o crime de desobediência», adianta Manuel Boavida sem grande convicção. É que o problema — esquecido até 1988 — não é de fácil resolução. Desde o princípio do ano a Câmara já instaurou uns 80 processos. A Polícia Municipal também terá alguns… Sem resultados concretos. Pelo menos até agora…

    O número de cães em Lisboa não será, apesar de tudo, preocupante. A gravidade da situação resulta sobretudo da inexistência de condições. A capital dispõe de 1.600 quilómetros de passeios cuja largura média ronda os 2,25 metros. O orçamento da Câmara Municipal para a limpeza urbana — resíduos sólidos— tem vindo progressivamente a aumentar no último triénio: 2.179.845 contos em 1985, 2.689.254 contos em 1986 e 3.932.723 contos em 1987 — últimos dados disponíveis (3). Estes valores reflectem as imputações de Despesas com Pessoal, Despesas Correntes e Despesas de Capital. Limpeza, limpeza… o dinheiro nem é assim tanto como isso.

    «A questão dos animais esteve adormecida durante largos anos e as verbas que nos são agora destinadas estão de acordo com aquilo que se fazia: muito pouco», comenta Manuel Boavida para quem o problema não é político mas técnico. E está decidido a pedir mais meios. Para limpar mais e melhor. E sensibilizar a população — à semelhança do que foi feito com os caixotes do lixo cor de laranja. Uma operação com algum sucesso.

    Pernas de carteiro, um petisco

    É um cálculo curioso. E impossível. Ninguém sabe quantas toneladas de resíduos sólidos e líquidos (de cães) são depositadas diariamente na via pública. Mas qualquer pessoa dirá quais os inconvenientes da negligência. Os mais infelizes poderão mesmo apresentar a factura da clínica ou do hospital onde foram tratados por terem sido mordidos ou vergonhosamente escorregado no cócó de cão. As companhias e o Instituto de Seguros ignoram a dimensão do drama. Até porque em Portugal «o fenómeno da responsabilidade civil ainda é um mito», como costuma dizer Vasco Pardal, um especialista de seguros. A esperança — também neste domínio — é 1992. Até agora não foi formulado um único pedido de indemnização. «Mas estamos a encarar a hipótese de ir mais longe através da criação de um seguro de vida para cães.» A sua instauração depende da prontidão com que o Instituto de Seguros de Portugal despache o pedido.

    As raras estatísticas existentes referem apenas as inesperadas aventuras dos carteiros dos CTT. Trinta e cinco carteiros acidentados por causa dos cães em 1988 — contra 45 no ano anterior. Consequências: 19 carteiros incapacitados ou 394 jornadas de trabalho perdidas. Os homens do giro apeado são injustamente as principais vítimas dos cães: 26. Os carteiros motorizados são muito menos maltratados: 5. A maioria dos acidentes teve lugar na via pública, Os cães preferem — visivelmente—os membros inferiores (25 agressões) e pouca apetência parecem ter pelo tronco…

    Os CTT criaram mesmo instruções para evitar problemas aos carteiros provinciais. «Os CTT podem determinar a suspensão da distribuição postal domiciliária em locais situados dentro de recintos vedados e protegidos por cães à solta que possam ameaçar a segurança dos carteiros». Esta medida tem sido pouco aplicada. Toda a gente sabe que os homens que não gostam dos cães parecem feitos de uma matéria seca e duvidosa…

    Um canil privado nos arredores de Lisboa…
    (Foto: Inácio Ludgero)

    Direito à vida

    E animais maltratados há muitos. Embora António Nunes, encarregado do canil municipal afirme que os animais sejam mais vítimas do desleixo do que dos maus tratos o facto é que as poucas posturas e leis são letra morta para muitos donos.

    Os portugueses seriam mesmo — na opinião de um veterinário da Linha — um dos povos que «pior» trata os cães. «Muitos nem sequer sabem educar e tratar dos filhos, quanto mais dos pobres dos animais…», conclui. Cães abandonados em autoestradas, atropelados e voluntariamente estropiados perto da Docapesca (Pedrouços), enforcados na linha de Sintra, envenenados ou abatidos a tiro.. uma triste banalidade.

    «Há os amigos dos animais e o amigo do animal», conta Francisco António da Silva, presidente da Sociedade Protectora dos Animais. O amigo do animal «quando lhe aparece um rafeiro pela frente prega-lhe um valente pontapé, dá-lhe uma chicotada, tira-lhe uma perna!».

    Alguns dos exageros da Sociedade Protectora dos Animais são confirmados nomeadamente pelas cartas recebidas na Câmara. «A inquilina do 1.º andar direito tem 5 corpulentos cães, sem quaisquer condições sanitárias tanto de higiene como de vacinação que não existe, provocando cheiro nauseabundo muito difícil de suportar dado que fazem todas as necessidades dentro da habitação. Alguns dos cães encontram-se bastante doentes» e a dona nada faz.

    A Sociedade tenta ajudar como pode. Mas os 3.000 sócios, os parcos meios também não dão para muito: um canil de 20 lugares na Barão de Sabrosa, alguma assistência jurídica e um centro de saúde onde uma consulta — de psiquiatria, ainda não as há em Portugal (4)— custa 300 escudos, uma extracção de dentes 140 escudos, uma amputação de dedos entre 70 e 170 escudos, um parto entre 300 escudos e 420 escudos. Para sócios. Os outros pagam um pouco mais caro. Mas será sempre mais barato do que nos raros canis privados existentes e logicamente sempre cheios — de Lisboa e arredores.

    São apanhados durante a noite, vão para os canis municipais, onde, se ninguém os reclamar dentro do prazo estipulado, morrerão por choque eléctrico ou com duas injecções.
    (Fotos: Inácio Ludgero)

    O Canil Municipal (Hipódromo do Campo Grande) apesar de decadente — a sua transferência já está prevista há mais de 10 anos — (5 ) também oferece alguns serviços clínicos como a vacinação anti-rábica ou a esterilização das cadelas. (6 ) Ou ainda a morte. Por injecção ou electrocução. Teoricamente, três dias depois de serem apanhados sem identificação. Ou 8 dias depois, para aqueles que trazem uma coleira. 28 cães para abater aguardam num pátio de cimento dividido em terreiros cúbicos com um metro. Há de tudo. Cães de raça e rafeiros. Animais velhos saudáveis e doentes. Animais novos. E Eduardo Figueiredo, tratador/apanhador.

    — O senhor trabalha aqui no canil…

    — Os prazos aplicados pela gente não são bem esses. O costume é só abatê-los 5 dobros (sic) depois da data prevista. Eu estou nos bichos há 20 anos. Sou até a favor que os bichos andem em liberdade…

    — Mas…

    — Eles têm o direito a viver como qualquer pessoa.

    — Mas quem os mata é o senhor?

    — Pois sou! Mas não gosto disto! Não gosto mesmo nada disto…

    (Foto: Inácio Ludgero)

    Os cães são apanhados sempre durante a noite. E são apanhados cada vez mais. Exactamente 1.273 em 1987 e no ano seguinte 1.379. Uma pequena percentagem é restituída aos donos: 197 em 1987 contra 253 em 1988. Os outros são abatidos. (7 ) Sempre às seis da madrugada. Através de choque eléctrico ou de duas injecções: uma para anestesiar e outra para provocar uma paragem cardíaca. Se não houver atraso ou ninguém os recuperar. . Momentos antes.

    Dona Maria Manuela: «As pessoas são ingratas, um animal nunca nos abandona.»
    (Foto: Inácio Ludgero)

    Melhores que as pessoas

    Maria Manuela, 59 anos, reformada, benfeitora da União Zoófila já recuperou muitos porque «matar os nossos melhores amigos é o crime mais horrível que se possa imaginar». Também não se conforma com o facto de os animais do canil apenas receberem uma refeição por dia.

    Apareceu mais uma vez no canil da CML para «salvar» um pastor alemão «velhinho e abandonado». Em casa tem um cão. Confessa que na sua rua apoia mais cinco ou seis animais «desprotegidos». Aproveita para lançar uma mensagem aos «homens de boa vontade»: «os portugueses precisam de alguma ajuda educacional para tratar bem dos animais. Gostam deles quando são pequenos. Depois, abandonam-nos. São atrasadíssimos… Devem tratar bem os cães!» Ouso perguntar se também ajuda pessoas.

    — Ajudar pessoas? Ora essa! As pessoas são ingratas. Um animal nunca nos abandona… São verdadeiros. Profundos. Amigos. Até têm uma alma se bem que diferente da nossa— segundo a teoria de S. Francisco de Assis.

    Só morrem quando nos esquecemos deles…
    (Foto: Inácio Ludgero)

    «Louvado sejas, ó meu Senhor, com todas as tuas criaturas». Cântico do Irmão Sol. S. Francisco de Assis. A lápide é peremptória. E no Cemitério dos Cães do Jardim Zoológico raras são as campas sem lápides a louvar a docilidade — a amizade — dos cães ou o Senhor. Lorde, Lady, Cracky, Paju, Pantufinhas, Palhaço, Faruk, Kimba, Boby «grande amigo jamais te esqueceremos», Lorde «amigo dócil e fiel, como tu não há, a nossa saudosa homenagem», Carocha «minha querida, a saudade não tem fim nos nossos corações, a casa está vazia, tudo nos fala de ti», Pushak (Born Saigon, Vietnam 10-1969. Died Lisbon, Portugal 1-1983».

    Há algumas campas em que o número do anonimato é quebrado por um cravo ou um malmequer de plástico. E se os cães tivessem alma? Mesmo sem ser no sentido teológico…

    Há quem se reserve o direito de acreditar que os cães têm alma e lhes reserve uma última morada condigna. (Foto: Inácio Ludgero)

    Acertar o passo

    Entretanto os cães lá se vão propagando apesar da acção do Munícipio. E da legislação inadaptada — Código Penal (o animal é uma “coisa”), Código Civil (propriedade) e Decreto—Lei 3 17/85. A esterilização não tem sucesso. A sujidade aumenta. Ao contrário do que sucede por essa Europa fora.

    Exemplos: campanhas de contracepção na Holanda e Noruega. Taxas específicas na Áustria, Bélgica e Suíça. Multas por poluição nos EUA (100 contos de multa por deixar o cão fazer cocó nos passeios de Nova Iorque) e, na Suíça… (Os «azulejos» para cães instalados nos passeios das Avenidas Novas em Lisboa tiveram um êxito relativo). A Islândia optou por uma solução deveras radical: baniu completamente os cães da capital. «A deportação maciça provocou ulteriormente a morte de muitos animais porque os exilados devastavam o gado». Outras políticas dissuasoras: a URSS adoptou uma severa taxa especialmente para cães — porventura por razões de penúria. Derradeira solução: em muitos países asiáticos como a China, Tailândia, Filipinas, Vietname (para não citar o caso de Macau) os cães são abatidos por uma questão puramente gastronómica.

    Toneladas de resíduos sólidos e líquidos (de cães) são depositados diariamente na via pública, apesar dos avisos, que se não dirigem, claro, aos caninos… (Foto: Inácio Ludgero)

    Cócó de cão, rasteira traiçoeira…

    Soluções? Até agora em nome do interesse geral (ou talvez mais prosaicamente dos votos) ninguém teve vontade e coragem para contrariar os proprietários. Agir. O responsável do Departamento de Higiene Urbana e Resíduos Sólidos da CML afirma que não tem de se «limitar a apanhar cães». É preciso fazer mais. Dispor de uma legislação coerente. Sensibilizar rapidamente a população e técnicos — através de uma operação conjunta da Associação dos Municípios, Direcção-Geral da Pecuária e da Liga Portuguesa dos Direitos dos Animais. Apelar para a responsabilidade das pessoas. Para que não sejam uma vez mais os animais a pagar o preço da nossa inconsciência cultural. Como dizia um «chien» francês: «Lâchez-nous les pattes!» (Deixem-nos em paz…).

    O JORNAL ILUSTRADO n.º 749 – 30 de Junho a 6 de Julho de 1989
    (Foto: Inácio Ludgero)

    CUIDADOS

    Os animais são nossos companheiros, devemos tratá-los bem e respeitá-l0s. Não abandone o seu cão ou gato, eles são seres vivos que sofrem. Mesmo quando for de férias, se não os puder levar consigo, peça a um amigo que cuide deles ou instale-o num hotel para animais. e deveres

    E DEVERES

    Registe os seus cães e tire a licença na Câmara Municipal da sua residência. Coloque a chapa metálica na coleira. Caso o seu cão se perder e os serviços da câmara municipal o apanharem, o proprietário será rapidamente contactado. Desparasite e vacine os seus animais. Dê—lhes condições de higiene e de habitação. Mais vale ter um animal bem tratado de que vários mal estimados.

    No canil municipal de Lisboa há vacinas à disposição de todos os cães. Foto: Inácio Ludgero

    ILEGALIDADES

    «Amarrar aos cães (…) objectos que os mortifiquem e façam correr (…), e bem assim lançar fogo a animais, untando—os com petróleo ou verter sobre eles substâncias corrosivas, água quente, etc…». DL 5864.

    «Para evitar o bárbaro processo de envenenamento empregado frequentemente na extinção dos cães vadios, e para incutir no sentimento público o respeito pela vida de todos os seres: manda o Governo (…) recomendar às autoridades competentes que, quando seja necessário a extinção de cães vadios, se usem meios rápidos e suaves, em recintos apropriados e ocultos» . DL 3512.

    «É proibido ao pessoal empregado na apanha de animais de raça canina usar para com eles de maus tratos, e a sua apreensão será feita, sempre que seja possível pelos membros menos sensíveis, de forma a proporcionar-lhes o menor sofrimento» . CPM.

    «Considera-se como maus tratos aos animais (…) obrigar cães a acompanhar veículos em marcha». SPA.

    «O abandono de cães e de gatos por parte dos seus proprietários ou detentores, para além das sanções previstas neste diploma, constitui contra-ordenação contra a saúde pública e animal e de desprezo censurável pelos animais e como tal punível com coima de 1.000$ [escudos] a 200.000$ [escudos] a aplicar pela Direcção—Geral da Pecuária». DL 317/85.

    O abandono… (Foto: Inácio Ludgero)

    NOTAS:

    (1) Os cães podem transmitir ao homem doenças parasitárias — as mais frequentes — como a equinococose (quisto hidático) ou a ascanidiose (lombrigas) e doenças infecciosas como o tétano (mordedura ou arranhão) ou a raiva (irradicada em Portugal).

    (2) Rectificado no «Diário da República», 1.ª Série, n.º 251, de 31/10/85, 3.º sup.

    (3) Orçamento global da CML: 12.561.952 contos em 1985, 15.393.593 contos em 1986, 18.915.846 contos em 1987.

    (4) Os cães e gatos já dispõem, contudo, de cabeleireiro e manicure em Lisboa. Psiquiatra para cães, só nos EUA. Professor de yoga para gatos, só no Japão. Restaurantes macrobióticos ou vegetarianos para cães, só nos EUA.

    (5) Há 3 anos foi lançado o processo visando a empreitada de recuperação. Já se pensava nessa altura na construção de um novo canil adaptado às realidades caninas. A opção foi feita: Monsanto, onde foram efectuadas as terraplanagens. A Comissão de apreciação das propostas está neste momento a apreciar o projecto que prevê um canil — hotel para cães e gatos, incinerador, pavilhão de quarentenas, laboratório e centro médico—veterinário. Ao todo, uns 80 lugares contra os 50 do actual canil. Tudo depende agora da burocracia. De qualquer modo os prazos adiantados pela Câmara para a sua concretização parecem altamente utópicos.

    (6) As cadelas não esterilizadas sofrem um agravamento (20%) da taxa camarária.

    (7) Foram ainda apanhados mortos 1 101 cães em 1987 e 1287 em 1988.


    Reportagem originalmente publicada n’ O Jornal Ilustrado n.º 749 – 30 de Junho a 6 de Julho de 1989, da autoria de Rui Araújo com fotografias de Inácio Ludgero, a quem o PÁGINA UM agradece a autorização de republicação.

    NOTA POSTERIOR DE RUI ARAÚJO: Inácio Ludgero teve a a amabilidade de me facultar os originais das fotos de ilustração. O meu bem-haja a um grande Senhor da Fotografia com quem tive o prazer de trabalhar.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • ‘Fumos de cartelização’ em negócios de transporte de doentes na região do Médio Tejo

    ‘Fumos de cartelização’ em negócios de transporte de doentes na região do Médio Tejo

    Na região do Médio Tejo abrem-se todos os anos concursos públicos para transporte de doentes, mas já se sabe antecipamente o resultado: ninguém ganha, porque ninguém concorre. Fica tudo deserto. Depois, também já se sabe o que se segue: dezenas de ajustes directos negociados entre a administração da actual Unidade Local de Saúde (ULS) do Médio Tejo e as empresas e corporações de bombeiros. Todos ganham, menos os contribuintes. Este ano, os ajustes directos já atingem para o transporte de doentes cerca de 4,6 milhões de euros, quando os três concursos públicas tinham, no total, um preço base de menos de três milhões de euros. O maior ajuste directo é de 1,2 milhões de euros e a quilometragem contratada dá para 50 voltas ao Mundo. Até a corporação do presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses, António Nunes, ganhou um ajuste directo de 250 mil euros, apesar de distar cerca de 150 quilómetros do ‘coração’ do Médio Tejo.


    Nos últimos quatro anos, os sucessivos concursos públicos abertos pela actual Unidade Local de Saúde (ULS) do Médio Tejo para transporte de doentes não urgentes têm ficado desertos – ou seja, ninguém se manifesta interessado –, mas depois surgem mais de uma dezena de associações de bombeiros voluntários, empresas do sector e mesmo a Cruz Vermelha Portuguesa interessadas nos chorudos ajustes directos, onde os preços e condições são definidas caso-a-caso.

    Os contornos, até pela recorrência e pelos intervenientes, indiciam uma possível prática ilegal de cartelização – também conhecida, nesta tipologia, por cambão –, com o objectivo de concertar preços ou estratégias em detrimento do interesse e finanças públicas, estando a fiscalização sob a alçada da Autoridade da Concorrência.

    Foto: Médio Tejo.

    De acordo com um levantamento do PÁGINA UM, só este ano a ULS do Médio Tejo – que integra agora três hospitais (Abrantes, Tomar e Torres Novas) e 34 centros de saúde – já celebrou 19 ajustes directos para transporte de doentes não urgentes que totalizam quase 4,6 milhões de euros, a que acresce IVA. O maior dos ajustes directos atinge o impressionante montante de 1,25 milhões de euros, com a empresa Ambulâncias Crespo, com sede em Fátima, que tem como referência transportar doentes entre unidades de saúde num total de 1.984.127 quilómetros durante nove meses, entre Abril e Dezembro deste ano. Contas feitas, o equivalente a quase 50 voltas ao Mundo. Acresce a este contrato um outro de 250 mil euros referente aos primeiros três meses deste ano.

    O segundo maior ajuste directo beneficia outra empresa privada: a Ambulâncias 111, uma empresa de Sintra, detida por Hélder Paiva, também presidente da Associação Portuguesa dos Transportadores de Doentes, que conseguiu um ajuste directo de 745 mil euros para transportar doentes em trajectos equivalentes a quase 30 voltas ao Mundo. Curiosamente, em Agosto do ano passado, este empresário assegurava que não se candidatava em concursos públicos, porque “os critérios não se adaptam à postura da [sua] empresa no mercado”, dizendo que os hospitais escolhiam sempre quem cobrava menos em detrimento da qualidade.  E, de facto, é mesmo verdade: a Ambulâncias 111 nunca ganhou um concurso público, embora conte 13 contratos, todos por ajuste directo – e todos, desde 2019, ao Centro Hospitalar do Médio Tejo, antecessor da ULS. O ‘maná’ dos ajustes directos apenas com este centro hospitalar já lhe granjeou uma facturação de mais de 5,3 milhões de euros.

    Foto: Médio Tejo

    A Ambulâncias 111 não é a única a fugir dos concursos públicos da ULS do Médio Tejo como o diabo da cruz, mas segue logo para o ‘beija-mão’ quando está na hora de negociar ajustes directos com a mesma entidade pública. A Ambulâncias Infante – denominada até meados do ano passado por Ambulâncias de Santa Maria de Alcobaça, desde que passou a sede para Tomar – ‘sacou’ um ajuste directo de 500 mil euros há cerca de um mês e meio, depois de se desinteressar pelos concursos públicos. Este é, no entanto, o sexto contrato, sempre por ajuste directo, que esta empresa celebra com a ULS do Médio Tejo para transporte de doentes não urgentes desde meados de 2022. Em menos de dois anos já facturou com este centro hospitalar mais de um milhão de euros. Não tem contratos com outra qualquer entidade pública até agora. Ou seja, também aparenta ter-se tornado numa ‘empresa da casa’.

    Na lista deste ano de ajustes directos para transporte de doentes surge também a Cruz Vermelha Portuguesa com três contratos assinados em Março: um de três meses por 30 mil euros; outro de um ano por 60 mil euros e outro de um ano por 200 mil euros. Contudo, a maioria das entidades contratadas são associações de bombeiros voluntários ou de socorros, quase todas da região centro. Este ano, contam-se ajustes directos para transporte de doentes com 11 associações de bombeiros ou de socorro, destacando-se os 500 mil euros com os bombeiros de Constância, os 300 mil euros com a Associação de Socorros da Freguesia da Encarnação, os 150 mil com os bombeiros de Fátima e os 250 mil euros com os bombeiros de Oeiras, apesar de distarem cerca de 150 quilómetros do coração do Médio Tejo. Saliente-se que a Associação Humanitária de Bombeiros Voluntários de Oeiras é a entidade a que pertence António Nunes, o actual presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses.

    De entre os contratos celebrados pela ULS do Médio Tejo para transportes, há porém um único que foi precedido de concurso público, ganho pela Rodoviária do Tejo, tendo havido a concorrência de outra empresa. Mas, neste caso, a prestação de serviços, num montante de cerca de 227 mil euros entre Fevereiro e Dezembro deste ano, não será por ambulância (nem para doentes propriamente), mas sim de pessoas para os diversos hospitais, através de autocarros com uma capacidade mínima de 25 lugares. Contudo, a Rodoviária do Tejo teve ainda direito para o mês de Janeiro a um ajuste directo para esse serviço no valor de 27 mil euros.

    Foto: Médio Tejo

    A administração da ULS do Médio Tejo confirmou ao PÁGINA UM que todos os anos, desde 2021, os concursos ficam desertos, não adiantando quaisquer medidas para evitar uma prática com aparentes características de cartelização. Segundo se apurou, em Novembro do ano passado, ainda pelo Centro Hospitalar do Médio Tejo, foram abertos três concursos públicos, todos para transportes de doentes não urgentes: um com o preço base de 1.417.500 euros, outro de 630 mil euros e outros ainda de 945 mil euros. Para um negócio público que, no conjunto, envolvia quase três milhões de euros, não houve qualquer interessado. Mas depois, para ajustes directos, distribuídos por quase duas dezenas de entidades e empresas, já houve interesse. Pudera: a ULS abriu os cordões à bolsa na fase dos ajustes directos, celebrando contratos no valor de 4.565.000 euros.

    No ano passado, em 2022 e em 2021, os esquemas foram similares. Concursos desertos, ajustes directos cheios. A actual ULS gastou quase 3,1 milhões em contratos de ‘mão-beijada’ para transporte de doentes não urgentes em 2023, no ano anterior gastara cerca de 2,6 milhões de euros, e em 2021 cerca de 2,5 milhões de euros. O único concurso público que surge no Portal Base para este centro hospitalar foi celebrado em meados de 2016, e findou em Dezembro de 2018, tendo sido ganho pelos bombeiros de Constância, com um preço contratual de 4,8 milhões de euros, ou seja, um pouco menos de dois milhões de euros em média anual.

    O aumento dos custos – cerca do dobro do que se gastava antes da pandemia – é justificado pela ULS do Médio Tejo por via da fusão dos centros de saúde com o centro hospitalar decidido pelo anterior Governo, e também por razões conjunturais pós-pandemia. “Temos ainda de considerar o pico inflacionário e o próprio aumento do preço por diploma […] para este tipo de serviço”, refere o gabinete de comunicação da ULS, destacando o aumento da actividade entre 2022 e 2023, com “mais 21% de cirurgias e mais 18% de partos, 8% de internamentos e 5% de atendimentos na sua urgência mais diferenciada, em Abrantes”.

    Francisco Casimiro Ramos, presidente da Unidade Local de Saúde do Médio Tejo. Foto: Médio Tejo.

    A administração da ULS não explica quais são os critérios para a escolha das entidades que beneficiam dos ajustes directos, apenas elencando duas dezenas e meia de associações de bombeiros e de empresas de transporte de doentes a que lançaram “convite”. Na lista entregue ao PÁGINA UM encontram-se entidades que acabaram por não assinar qualquer contrato por ajuste, desconhecendo-se como foi feita, na fase de negociação, a distribuição das verbas e o estabelecimento das condições contratuais. Em todo o caso, analisando alguns contratos, o preço por quilómetro é, por regra, de 63 cêntimos, havendo outros encargos a considerar caso a caso.

    Sobre o contrato com a associação de bombeiros de Oeiras, a ULS do Médio Tejo diz ser uma ‘herança’ vinda de um contrato celebrado com a extinta Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo para transporte de doentes de hemodiálise, mas garante que “nunca foi pedido qualquer transporte a esta corporação enquanto Centro Hospitalar, e que sempre que é necessário recorrer a corporações fora da nossa área geográfica por falta de resposta dos operadores locais é sempre solicitada a devida autorização ao Conselho de Administração, com a devida fundamentação para tal”.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • Santa Casa da Publicidade: contratos ‘chovem’ e já atingem 16,5 milhões de euros

    Santa Casa da Publicidade: contratos ‘chovem’ e já atingem 16,5 milhões de euros

    Enquanto continua sem divulgar os critérios para a escolha das empresas, e atribuição dos distintos montantes, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) está a transformar-se numa autêntica Santa Casa da Publicidade. Hoje, foi revelado no Portal Base mais um contrato a ultrapassar a fasquia de um milhão de euros, a beneficiar a Medialivre, o grupo de media que detém o Correio da Manhã e a CMTV. Desde Março, a factura de publicidade da SCML já vai em 16,5 milhões de euros, mais de cinco vezes o montante total da publicidade institucional do Estado durante todo o ano passado. Mas como esta instituição não é já considerada um instituto público, apesar de tutelada pelo Governo, os valores que gasta, e como gasto, nem sequer são controlados pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Nem sequer tem de fazer publicidade em órgãos de comunicação regional ou local; escolhe quem lhe apetecer.


    Continua a ‘chuva’ de contratos milionários de publicidade da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), cuja Mesa liderada por Ana Jorge foi exonerada na semana passada pelo Governo. Hoje foi publicado mais um contrato avultado, que já anunciava por beneficiar a Medialivre, o grupo de media detentora, entre outros títulos do Correio da Manhã e da CMTV, preparando-se para lançar o novo canal Now. Apesar de assinado ainda em Abril, este contrato com o grupo media que tem Cristiano Ronaldo como principal accionista atingirá um pouco mais de 1,5 milhões de euros, dos quais 615 mil na imprensa escrita, quase 443 mil no online e cerca de 448 mil nos canais televisivos.

    Além deste contrato, no presente mês de Maio foram ainda divulgados mais três contratos para emissão de publicidade à SCML e à promoção dos seus jogos: 726 mil euros à Intervoz, uma empresa do grupo Rádio Renascença; 430 mil euros à MEO – que, como empresa de comunicação social, detém o Sapo e é distribuidor de canais por cabo –; e 15 mil euros à plataforma OLX.

    Por agora, são 35 as empresas de comunicação social e do sector publicitário, que beneficiaram de contratos que, na generalidade têm efeitos retroactivos, porque iniciaram o sey efeito em Janeiro e se prolongam até Dezembro. Apesar do PÁGINA UM ter pedido informação à SCML sobre este contratos e os critérios para escolha e distribuição das verbas, nunca se obteve resposta. No total, pelas contas do PÁGINA UM, a SCML vai assumir custos de publicidade de 16.532.920 euros, que não incluem a produção dos conteúdos.

    Estes valores são extraordinariamente elevados face aos investimentos publicitários assumidos, regra geral, pelo Estado. De acordo com o levantamento feito pelo PÁGINA UM aos relatórios mensais da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) relativos à publicidade institucional do Estado foram gastos entre Janeiro e Dezembro de 2023 um total de 3.068.589 euros. Ou seja, os custos em publicidade da SCML é, por agora, mais de cinco vezes superior a todas as entidades governamentais e estatais ao longo do último ano.

    No entanto, a SCML está num ‘mundo à parte’ e estes contratos nem sequer serão enviados à ERC, nem sequer têm de cumprir a obrigação de uma lei da publicidade institucional que determina que 50% do investimento do Estado se aplique em órgãos de comunicação social. Com efeito, apesar de ser tutelado pelo Governo, a SCML foi classificada como pessoa coletiva de direito privado e utilidade pública administrativa, o que a exclui desse ‘incómodo’. Somente num curto períoda da democracia, entre 1979 e 1983, a SCML foi considerada um instituto público.

    De acordo com os contratos já conhecidos, através do Portal Base, a SIC – Sociedade Independente de Comunicação, do Grupo Impresa, e a TVI – Televisão Independente, apanharam as maiores fatias do bolo publicitário: 3 milhões e 2,5 milhões de euros, respectivamente. Estes contratos, revelados em primeira-mão peloo PÁGINA UM, foram assinados na tarde da exoneração da Mesa da SCML, através do seu vogal João Correia. Acima de um milhão de euros estão os contratos da Medialivre e da RTP, que amealhará 1,05 milhões.

    Ana Jorge, ainda provedora da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (Foto: D.R./SCML)

    Note-se que a forma pouco transparente com que têm sido distribuídos os montantes causa perplexidade. Os contratos têm vindo a ser assinados desde Março, a conta-gotas, abrangendo tanto empresas de gestão de outdoors, como agências de comunicação e de publicidade digital (entre as quais as empresas donas do Facebook e do YouTube) e empresas de media, mas nunca se revelaram os critérios para a distribuição das maquias. Na verdade, os contratos funcionam como um plafond a gastar, caso a caso, desde o início de Janeiro passado até ao final do próximo mês de Dezembro.

    Para a generalidade destes contratos é invocada uma norma de excepção do Códigos dos Contratos Públicos – a contratação excluída -, aplicável “à formação de contratos cujo objecto abranja prestações que não estão nem sejam susceptíveis de estar submetidas à concorrência de mercado, designadamente em razão da sua natureza ou das suas características, bem como da posição relativa das partes no contrato ou do contexto da sua formação”. Um argumento que terá ainda de passar pelo ‘crivo’ do Tribunal de Contas, pelo menos nos contratos de maiores montantes. Em alguns dos contratos, esta justificação serve para nem sequer ser apresentado contrato escrito.

    Entre os contemplados estão também empresas estrangeiras: a Meta – dona do Facebook -, o Google – dono do Youtube – e a Walt Disney – dona de diversos canais por cabo. No caso da empresa de Mark Zuckerberg, a SCML vai pagar 600 mil euros por publicidade na rede social Facebook, não existindo qualquer contrato que estipule preços nem condições. Este será o primeiro contrato da Meta com entidades públicas portuguesas, de acordo com o Portal Base.

    No caso do Google, o montante é um pouco mais baixo: 400 mil euros, embora também não se saiba se o investimento publicitário será exclusivamente no YouTube, uma vez que o contrato também não foi reduzido a escrito. No caso da sucursal portuguesa da Walt Disney, o montante em causa atinge os 350 mil euros, e até existe contrato escrito, apesar de nada dizer sobre quais os canais onde a publicidade será colocada. A empresa tem vários canais televisivos por cabo, entre os quais o Disney Channel, Disney Junior,Baby TV e National Geographic.

    Valor dos contratos (em euros) para emissão de publicidade celebrados pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa em vigor ao longo de 2024. Fonte: Portal Base.

    Quanto às empresas de media, são agora 20 as beneficiadas, sem sequer se conhecer nem compreender as razões das escolhas e sobretudo dos montantes. Atrás das empresas com canais televisivos, a maior beneficiada nos contratos da SCML é a sucursal portuguesa do grupo alemão Bauer Media, dona da Rádio Comercial, M80, Cidade FM, Smooth FM e Batida FM. Prometidas estão, desde já, 766 mil euros em publicidade da SCML. Segue-se a Intervoz, a empresa de publicidade do grupo Rádio Rensacença, que tem como sócios o Patriarcado de Lisboa e a Conferência Episcopal Portuguesa. Receberá, como já referido, 726 mil euros.

    Contudo, se se somar os contratos da subsidiária que controla a TSF, a Global Media fica próxima dos valores da RTP. Directamente para o grupo liderado por Marco Galinha, que vive uma situação financeira catastrófica, a SCML vai entregar publicidade no valor de 560 mil, mas pode também incluir mais 260 mil euros a receber da sua subsidiária Rádio Notícias. Deste modo, a Global Media encaixará da instituição liderada pela antiga ministra socialista da Saúde um total de 820 mil euros.

    A distribuição da maior fatia à Global Media não deixa de surpreender ainda mais tendo em conta também a circulação dos seus principais diários, mesmo incluindo a componente digital. Por exemplo, a Impresa ‘só’ vai receber 350 mil euros. Este montante incluirá, em princípio, apenas os títulos da imprensa escrita, uma vez que a SIC é gerida por uma empresa própria. Como a SCML não quis revelar se houve mais contratos ainda não publicados no Portal Base, ainda se ignora se o grupo de media fundado por Pinto Balsemão terá mais razões para agradecer a bondade da SCML.

    Polémicos também são os contratos que beneficiam o empresário Luiz Montez. De modo algo surpreendente, sobretudo pelo fraco alcance da rádio em questão e por envolver indirectamente uma empresa com dívidas ao Estado, é o contrato para publicidade que a SCML celebrou com a empresa da Rádio Amália, que envolve o pagamento de 176.800 euros, que representa 40% dos rendimentos que obteve em 2022. Esta empresa – a Rádio Nova Loures – pertence a Luís Montez, através da Música no Coração que, como o PÁGINA UM já revelou, nem apresentou contas em 2022, estando no ano anterior com capitais próprios negativos de quase 6,2 milhões de euros.

    Luís Montez saiu-se duplamente beneficiado neste selecto grupo de adjudicatários para prestação de serviços de publicidade á SCML. Com efeito, a SIRS – a empresa que detém a Rádio Nova, onde ele possui 25% do capital, sendo que outro tanto é de Álvaro Covões e 50% pertence ao Público – vai receber até ao final do ano por serviços de publicidade um total de 62.400 euros.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • Covid-19: AstraZeneca retira ‘vacina problemática’ que este ano começou a dar prejuízo

    Covid-19: AstraZeneca retira ‘vacina problemática’ que este ano começou a dar prejuízo

    Mesmo a dar problemas desde o início, com efeitos adversos graves detectados logo em Abril de 2021, foram necessários três anos para que, de uma forma discreta, a AstraZeneca retirasse do mercado a sua vacina contra a covid-19, evitando uma decisão, sempre sensível politicamente, da Agência Europeia do Medicamento. Apesar da gravidade dos efeitos adversos, a AstraZeneca ainda conseguiu facturar em 2021 quase quatro mil milhões de dólares com a sua Vaxzevria, mas depois foi sendo ‘ostracizada’ e, nos anos seguintes, começou o descalabro. No primeiro trimestre deste ano até já registou prejuízos, da ordem dos 17 milhões de dólares, que estrarão associadas às eventuais indemnizações de meia centena de processos judiciais em curso no Reino Unido. Na União Europeia, a AstraZeneca não tem de se preocupar com responsabilidades, pois a Comissão von der Leyen negociou a isenção de pagamento de indeminizações para as farmacêuticas. A retirada de medicamentos associados à covid-19 não é inédito, e a própria AstraZeneca viu já colapsar o chorudo negócio de um anticorpo monoclonal depois de a Food & Drug Administration lhe ter suspendido a licença de comercialização nos Estados Unidos.


    No meio de 51 processos judiciais no Reino Unido sobre os efeitos adversos da sua vacina contra a covid-19, a AstraZeneca pediu à Comissão Europeia uma autorização para a retirada voluntária do mercado. Oficialmente, a Vaxzevria – nome comercial da vacina da farmacêutica anglo-sueca – vai deixar de ser comercializada a partir de amanhã, por razões de quebra da procura, mas essa costuma ser a ‘desculpa’ para antecipar uma expulsão pré-anunciada pelo regulador, neste caso a Agência Europeia do Medicamento (EMA).

    Com efeito, desde Abril de 2021, a Vaxzevria começou a dar indicações de graves efeitos adversos, mas a EMA manteve a autorização, embora mantendo uma monitorização adicional, que, neste momento, inclui ainda as vacinas contra a covid-19 da Pfizer, Janssen, Moderna e Hipra (uma farmacêutica espanhola que somente conseguiu aprovação no ano passado). Contudo, apesar de os peritos, como o pneumologista Filipe Froes – que colabora regularmente com a AstraZeneca –, tenham menorizado o problema, de uma forma discreta as autoridades de saúde na Europa foram descartando novas compras da Vaxzevria, mas sem assumirem os graves problemas na administração das doses já compradas ao abrigo dos acordos secretos da Comissão Europeia promovidos por Ursula von der Leyen.

    A AstraZeneca foi criada em 1999 pela fusão da sueca Astra com a inglesa Zeneca, tendo o seu core business nos fármacos no sector da oncologia.

    Na verdade, em Portugal, na Primavera de 2021, as autoridades manifestaram um completo desnorte. Depois de uma breve suspensão da administração da Vqaxzevria – que antes dos problemas detectados era administrada a menores de 65 anos –, a Direcção-Geral da Saúde decidiu que afinal se passaria a injectar aos maiores de 60 anos. E quem não a quisesse receber – porque nunca houve o ‘direito’ de se escolher a marca, mesmo se a incidência de efeitos adverso era distinta –, arriscava perder a tona, segundo para o fim da lista de prioridades.

    Em todo o caso, muito por causa destas polémicas, a vacina da Astrazeneca perdeu ‘força’ para a concorrência. De acordo com os dados do European Centre for Disease Prevention and Control (ECDC), foram administradas até 5 de Outubro do ano passado 2.303.477 doses de Vaxzevria, cerca de 8,1% do total. As vacinas da Pfizer dominaram largamente com 74% das 28,3 milhões de doses administradas.

    A ostracização, embora discreta, a que a sua vacina foi votada – embora com ‘paninhos quentes’ para evitar uma ‘contaminação’ de má fama para as vacinas das outras farmacêuticas – reflectia-se já nas contas da AstraZeneca em 2022. Estando ainda a beneficiar dos acordos de compra secretos da Comissão Europeia, a Astrazeneca facturou ainda conseguiu facturar em 2021 com a sua vacina um total de 3.941 milhões de dólares em todo o Mundo, de acordo com o seu relatório financeiro anual.

    person holding white and orange plastic bottle

    No ano de 2022, já com o ‘ferrete’ dos efeitos adversos conhecidos, as receitas da Vaxzevria sofreram uma queda nas receitas de quase 55%, situando-se em 1.798 milhões de dólares. No ano passado confirmou-se o descalabro, já que quase ninguém comprou a vacina da AstraZeneca, que registou uma facturação para este fármaco de apenas 12 milhões de dólares, uma queda de 99,7% face a 2021. Os resultados do primeiro trimestre de 2024 da AstraZeneca, divulgados no passado dia 25 de Abril, indicam mesmo que a Vaxzeria já deu um prejuízo de 17 milhões de dólares, provavelmente devido a políticas de devoluções ou mesmo pela necessidade de assumir provisões para fazer face a eventuais indeminizações no Reino Unido.

    Saliente-se, contudo, que daquilo que se conhece dos acordos secretos da Comissão von der Leyen – que não se aplica ao Reino Unido –, as farmacêuticas que produziram vacinas contra a covid-19 estão desoneradas de qualquer responsabilidade para qualquer efeito adverso. Essas responsabilidades são assumidas pelos Estados, mas torna-se complexo provar esses efeitos quando os próprios reguladores, como o Infarmed, são tutelados pelos Governos, e mantêm a informação confidencial. Recorde-se, aliás, que o PÁGINA UM tem, desde finais de 2021, tentado obter informação detalhada (e anonimizada) da base de dados das reacções adversas, estando o processo de intimação agora em recurso no Tribunal Central Administrativo Sul há mais de um ano.

    A retirada do Vaxzeria do mercado comunitário por iniciativa do próprio fabricante, antes de a EMA a impor, não é a primeira envolvendo medicamentos contra a covid-19. Em Julho do ano passado, a Merck Sharpe & Dohme retirou também de forma voluntária do mercado o seu antiviral molnupiravir, convenientemente dois meses antes de estudos científicos revelarem que afinal não só era ineficaz como até promovia mutações do SARS-CoV-2.

    a person in a red shirt and white gloves

    Já no mercado norte-americano, a Food & Drug Administration não teve contemplações e retirou do mercado em Janeiro do ano passado, por ineficaz, um anticorpo monoclonal da AstraZeneca supostamente para tratamento de pessoas vulneráveis contra a covid-19.

    Este medicamento ineficaz da AstraZeneca –que em Portugal tinha Filipe Froes como uma espécie de ‘embaixador’ – tinha facturado em 2022 uma maquia fabulosa: 2.185 milhões de dólares. No ano seguinte, por via da decisão do regulador do mercado norte-americano, a factura do anticorpo monoclonal da AstraZeneca derrapou para os 132 milhões de dólares, uma queda de 94%. No primeiro trimestre deste ano valeram uma facturação de apenas 2 milhões de euros, mostrando bem a forma como os ‘humores’ e ‘rigores’ dos reguladores podem causar a ‘sorte grande’ ou o ‘desastre financeiro’ de qualquer fármaco.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • Tratado Pandémico ganha ‘inimigo’ de peso nos Estados Unidos

    Tratado Pandémico ganha ‘inimigo’ de peso nos Estados Unidos

    As recentes alterações propostas ao plano de preparação para pandemias da Organização Mundial de Saúde (OMS) foram insuficientes para tranquilizar os maiores receios em torno do que está a ser planeado. Além de haver apelos para que seja adiado o prazo para a aprovação do polémico plano, um novo revés surgiu nos Estados Unidos. Todos os senadores do Partido Republicano estão contra a adesão do país ao plano que poderá dar mais poderes à OMS em caso de pandemia ou crise sanitária. Os 49 senadores Republicanos enviaram uma carta a Biden e avisam que qualquer acordo ou convenção sobre preparação para pandemias será considerado um tratado e terá de ter dois terços de votos a favor para passar no Senado. Os senadores pedem também que sejam feitas reformas na OMS antes de ser criado qualquer tratado. O plano da OMS envolve a criação de um acordo ou tratado e também alterações ao Regulamento Sanitário Internacional. Ambos estão em discussão e podem ser aprovados já no final de Maio. Entre os principais receios existentes está o alargamento dos poderes da OMS, o desrespeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais, bem como ameaças à liberdade de expressão.


    O que nasce torto será que se endireita? O plano da Organização Mundial da Saúde (OMS) para preparar o Mundo para novas pandemias enfrenta um novo obstáculo. Apesar de ter sofrido profundas alterações recentemente, as dúvidas em torno do plano persistem, incluindo nos Estados Unidos, onde todos os senadores do Partido Republicano mostraram estar contra a adesão do país ao plano da OMS.

    Esta semana, os 49 senadores Republicanos enviaram uma missiva ao presidente norte-americano pressionando Joe Biden a rejeitar o plano que poderá dar mais poderes à OMS em futuras e pandemias crises sanitárias.

    Na carta, os senadores deixam um apelo a Biden: “Pedimos fortemente que não adira a nenhum tratado, acordo ou convenção relacionados com pandemias que estejam a ser considerados”. Os países irão adoptar ou rejeitar o novo plano da OMS na 77ª Assembleia Mundial de Saúde, que tem início a 27 de Maio.

    (Foto: D.R.)

    O plano da OMS consiste na criação de um acordo ou convenção – o chamado Tratado Pandémico – e também envolve alterações ao Regulamento Sanitário Internacional (RSI). A oitava reunião do grupo de trabalho que está a negociar as alterações ao Regulamento, que decorreu na semana passada, ficou em standby e será concluída numa última sessão de dois dias, a 16 e 17 de Maio, anunciou a OMS. No total, o RSI envolve 196 países – os 194 países membro da OMS, o Liechtenstein e o Vaticano.

    No caso do Tratado Pandémico, a nona reunião foi suspensa a 28 de Março e os países acordaram retomar os trabalhos para concluir as negociações do texto entre 29 de Abril e 10 de Maio.

    Na carta datada de 1 de Maio, os senadores Republicanos recordaram que qualquer acordo do género seria considerado um tratado, pelo que exige “a concordância de dois terços do Senado nos termos do artigo I, secção 2, da Constituição”.

    Os senadores sublinham que “o fracasso da OMS durante a pandemia de covid-19 foi tão total quanto previsível e causou danos duradouros ao nosso país”. Por isso, frisam que o país “não se pode dar ao luxo de ignorar esta última incapacidade da OMS para desempenhar a sua função mais básica e deve insistir em reformas abrangentes da OMS antes mesmo de considerar alterações ao Regulamento Sanitário Internacional ou qualquer novo tratado relacionado com a pandemia que aumente a autoridade da OMS”.

    O Senator Republicano Ron Johnson liderou a iniciativa de pedir a Biden a não adesão ao plano pandémico da OMS. (Foto: D.R.)

    “Em vez de abordar as deficiências bem documentadas da OMS, o tratado concentra-se em transferências obrigatórias de recursos e tecnologia, destruindo direitos de propriedade intelectual, infringindo a liberdade de expressão e reforçando a OMS”, alertam os senadores na carta enviada a Biden.

    Mas os senadores também elencam uma série de falhas formais: “O artigo 55.º do RSI exige que o texto de qualquer alteração ao RSI seja comunicado aos Estados-Membros pelo menos quatro meses antes da WHA [World Health Assembly] em que devem ser considerados”. Frisam que, “uma vez que a OMS ainda não forneceu o texto final de alteração aos Estados-Membros, consideramos que as alterações relativas ao RSI podem não ser consideradas na WHA do próximo mês”.

    Na carta, é também destacado que “algumas das mais de 300 propostas de alterações feitas pelos Estados-membros aumentariam substancialmente os poderes de emergência sanitária da OMS e constituiriam violações intoleráveis à soberania dos EUA”. Assim, consideram que “era essencial que a OMS respeitasse o período de pré-aviso de quatro meses para dar tempo aos Estados-Membros para garantir que nenhum vestígio de tais propostas fosse incluído num pacote final de alterações para apreciação pela WHA”, contudo, “não o tendo feito, as alterações não são corretas”.

    “À luz dos elevados riscos para o nosso país e do nosso dever constitucional, apelamos a que (1) retire o apoio da sua Administração às atuais alterações do RSI e às negociações do tratado sobre a pandemia, (2) mude o foco da sua Administração para reformas abrangentes da OMS que resolvam os seus fracassos persistentes sem expandir a sua autoridade, e (3) caso ignore estes apelos, submeta qualquer acordo relacionado com a pandemia ao Senado para parecer e aprovação”, refere a carta.

    Sob a liderança de Joe Biden, os Estados Unidos estiveram no grupo de países que aplicou medidas radicais na pandemia de covid-19, muitas das quais sem fundamento na evidência científica. Além de impor confinamentos e fecho de escolas, foi imposta vacinação obrigatória contra a covid-19, mesmo sabendo-se que as vacinas não impedem nem a infecção nem o contágio. (Foto: D.R.)

    Outra preocupação dos senadores Republicanos é de que “avançar com um novo tratado de preparação e resposta à pandemia ignora o facto de que ainda não temos certeza das origens da covid-19 porque Pequim continua a bloquear uma investigação independente legítima”.

    Uma das hipóteses fortes levantadas desde o início da pandemia é de que a covid-19 teve origem numa fuga de um laboratório, uma tese que a administração Biden ordenou que as redes sociais censurassem em 2021, como o PÁGINA UM noticiou ontem. Ainda esta semana, Peter Daszak, presidente da EcoHealth Alliance, esteve a ser ouvido no Subcomité sobre a Pandemia de Coronavírus, nos Estados Unidos, sobre as ligações da organização a pesquisa conduzida num laboratório em Wuhan, na China. A EcoHealth tem sido também financiada pelo National Institutes of Health dos Estados Unidos, que chegou a ter Anthony Fauci – que foi o rosto da estratégia da covid-19 da Casa Branca – como director.

    Desde cedo que os textos do novo Tratado e as alterações ao RSI levantaram dúvidas e desconfiança por mutilarem o conceito de direitos humanos e liberdades fundamentais do Regulamento e por reforçarem os poderes da OMS em caso de novas pandemias, entre outros temas controversos, incluindo em torno do tema de financiamento de projectos de saúde em países mais pobres. Além disso, teme-se que o plano pandémico represente uma forte ameaça à liberdade de imprensa e liberdade de expressão, com medidas que podem ser adoptadas com a justificação do combate à ‘desinformação’.

    Mas o director-geral da OMS, Tedros Adhanom, tem tentado, em diversas declarações públicas, pressionar os países a rubricar o plano, tentando afastar os receios em torno do reforço dos poderes da OMS em futuras pandemias face à soberania dos diversos países.

    Imagem da primeira página da carta enviada a Biden assinada por todos os senadores Republicanos.

    Recentemente, os textos sofreram alterações de fundo, tendo sido reposto o conceito de defesa dos direitos humanos e das liberdades fundamentais em saúde, como o PÁGINA UM noticiou, mas as mudanças foram insuficientes e crescem os apelos para que a votação do plano seja adiada para que os países tenham mais tempo para preparar textos mais sólidos e que respeitem a autonomia dos países e a defesa dos direitos humanos e civis em futuras pandemias.

    Existem receios de que, com o plano pandémico que está a ser desenhado na OMS, acabe por ser criada uma indústria de pandemias focada na venda de produtos e medicamentos à custa de dinheiros públicos. Recorde-se que na covid-19, os países da União Europeia, incluindo Portugal, tiveram de pagar vacinas que vão para o lixo, entre outros desperdícios e gastos com equipamento e medicamentos que eram desnecessários ou até contraproducentes.

    Também se teme que se repita o desastre que foi a gestão da pandemia de covid-19 na maioria dos países. A estratégia seguida pela maior parte dos países foi um fracasso o que é comprovado, nomeadamente, pelo enorme excesso de mortalidade registado em países que seguiram indicações da OMS e aplicaram medidas radicais e, muitas vezes, sem fundamentação na evidência científica. Além dos danos causados na economia, o que levou a um aumento do nível de pobreza, os mais vulneráveis foram muito prejudicados, incluindo crianças e jovens, devido ao fecho de escolas, mas também os mais idosos e doentes que ficaram sem acesso a tratamentos.

    A excepção foi a Suécia, que implementou o habitual protocolo, não impôs confinamentos nem uso de máscara, em geral, não encerrou a generalidade das escolas e manteve a economia a funcionar. É um dos países com o menor nível de excesso de mortalidade, desde 2020.

    white and black printer paper
    A maioria dos países seguiu as recomendações da OMS na pandemia de covid-19 com resultados desastrosos, incluindo um grande excesso de mortalidade, além dos danos causados nos mais vulneráveis, incluindo crianças e jovens, os mais idosos e os mais pobres. (Foto: D.R.)

    Tal como aconteceu durante a pandemia de covid-19, no caso do Tratado Pandémico, em vez de estar a ser debatido publicamente, tem estado envolto numa polarização política, o que tem impedido um debate e análise profundos e sérios do tema, incluindo nos media. A imprensa, em geral, tem ignorado as negociações em curso na OMS e também tem abafado a polémica em torno de algumas propostas controversas que estão na mesa.

    O tema do Tratado Pandémico não tem sido alvo de debate público, incluindo em Portugal, e os mass media também têm ignorado o tema, apesar da sua relevância. A polémica e as propostas controversas em torno do plano têm sido abafados pelos media mainstream, chegando pouca ou nenhuma informação ao público em geral. Por exemplo, em Portugal, as poucas notícias sobre o tema – incluindo uma recente da agência Lusa que foi amplamente difundida pela generalidade dos media – escondem o facto de terem caído as propostas mais controversas e não mencionam as dúvidas e críticas existentes face ao plano.

    Em Portugal, o plano pandémico foi alvo de debate no Parlamento, como o PÁGINA UM noticiou, por força de uma petição que obrigou os deputados a discutir o tema, mas acabou por ser debatido de forma superficial, com deputados a fugir completamente à discussão em concreto das propostas que estão na mesa para os textos do plano da OMS. Uma proposta do partido Chega para recomendar ao governo que Portugal não adira ao Tratado Pandémico foi rejeitada, tendo tido apenas o apoio da Iniciativa Liberal.

    Agora, com a oposição do Partido Republicano, resta saber se os Estados Unidos vão acabar por ser a pedra final no sapato de Tedros Adhanom e fica no ar a dúvida sobre como a OMS vai agora conseguir descalçar esta bota em que se tornou o controverso plano para preparar o mundo para futuras pandemias.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • Governo Biden coagiu Big Techs a censurarem até livros e sátira, diz relatório

    Governo Biden coagiu Big Techs a censurarem até livros e sátira, diz relatório

    Mostrando um cenário ‘orwelliano’, o Comité Judiciário da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos revelou dezenas de milhar de e-mails e documentos oficiais que provam que a Casa Branca pressionou com coacção as grandes tecnológicas para censurarem livros, informação verdadeira e até sátira no auge da pandemia da covid-19. Num relatório de 881 páginas, tornado público esta semana, entre os documentos divulgados estão mensagens entre responsáveis do Governo Biden e executivos de grandes tecnológicas. Segundo o relatório, houve pressão para censurar conteúdos que não violavam as regras das plataformas online. Em consequência, a Casa Branca impediu que houvesse debate sobre temas de relevo, impondo políticas desastrosas adoptadas na pandemia, diz o relatório que acusa a Administração Biden de violação da Primeira Emenda “em conluio com terceiros”, ao condicionar a liberdade de expressão. A investigação daquele Comité vai prosseguir, até porque ainda faltam documentos pedidos e ainda não entregues pelo Governo Federal norte-americano.


    A Casa Branca coagiu grandes tecnológicas, incluindo a Meta – dona do Facebook – , a Alphabet – dona do Google e YouTube – e a Amazon para censurarem informação verdadeira, livros, vídeos e até sátira, em 2021, durante a pandemia de covid-19.

    As provas de censura constam de um extenso e detalhado relatório de 881 páginas, publicado na passada quarta-feira nos Estados Unido pelo Comité Judiciário da Câmara de Representantes, em conjunto com o Subcomité sobre a instrumentalização do Governo Federal. Tanto o comité como o subcomité tem maioria republicana. O título do relatório não poderia ser mais expressivo: “The censorship-industrial complex: how top Biden White House officials coerced Big Tech to censor Americans, true information, and critics of the Biden Administration”, ou seja, em tradução livre para português, “Complexo industrial de censura: como os funcionários de topo da Casa Branca coagiram as grandes tecnológicas a censurarem os norte-americanos, a informação verdadeira e os críticos da Administração Biden”.

    O relatório vem confirmar, para já, que a pressão da Casa Branca visou a censura de informação e conteúdos que nem sequer violavam os termos de utilização das plataformas tecnológicas, e acabou por ter um efeito duradouro, uma vez que “no final de 2021 o Facebook, o YouTube e a Amazon tinham alterado as suas políticas de moderação (de conteúdos) de forma a responder directamente a críticas feitas pela Administração Biden”.

    Segundo o relatório, “a campanha de censura da Casa Branca de Biden teve como alvo a informação verdadeira, sátira, e outros conteúdos que não violaram as políticas das plataformas”. “Ao contrário das seus alegações de querer combater a suposta desinformação, a Administração Biden pressionou as empresas a censurar informações verdadeiras, sátiras, memes, opiniões e experiências pessoais dos americanos”, acusa o relatório do Comité.

    Saliente-se que este Comité da Câmara de Representantes dos Estados Unidos tem vastos poderes, sendo responsável pela supervisão da administração da Justiça nos tribunais federais, mas também no acompanhamento de temas como liberdades e direitos civis. A maioria dos actuais membros do Comité (24 contra 18) são do Partido Republicano, adversário do Partido Democrata e da presidência de Biden. Na sequência de intimações, o Comité obteve dezenas de milhar de e-mails e documentos oficiais que se serviram de base para este relatório detalhado.

    person holding silver iphone 6
    O Facebook começou a censurar informação sobre a possível origem do SARS-CoV-2 ser uma fuga de um laboratório em Wuhan, onde era conduzida investigação com coronavírus. Uma entidade financiada pelos Estados Unidos, a polémica EcoHealth Alliance, tem estado no centro das atenções desde 2020, por estar ligada a investigação naquele laboratório na China.
    (Foto: Solen Feyissa/ D.R.)

    No documento agora divulgado fica claro que, “embora a campanha de pressão da Casa Branca de Biden tenha sido amplamente bem-sucedida, os seus efeitos foram devastadores”, pois “ao suprimir a liberdade de expressão e distorcer intencionalmente o debate público, ideias e políticas, deixaram de ser razoavelmente testadas e debatidas pelos seus méritos”. O relatório adianta ainda que, “em vez disso, os decisores políticos implementaram uma série de medidas de saúde pública que se revelaram desastrosas para o país”.

    O relatório é, aliás, taxativo em expor medidas erradas: “De encerramentos prolongados desnecessários de escolas a mandatos inconstitucionais de vacinação que obrigaram os trabalhadores a tomar uma recém-desenvolvida vacina ou corriam o risco de perder os seus empregos, a Administração Biden e outros funcionários impuseram desnecessariamente danos e sofrimento aos americanos em todo o país”.

    Para o seu trabalho, o Comité da Câmara dos Representantes viu-se obrigado a emitir dezenas de intimações às Big Tech, ao Governo, às agências e a diversas entidades de relevo para obter dezenas de milhares de documentos para assim apurar “os detalhes da campanha de pressão da Casa Branca de Biden”. Contudo, o relatório considera que “os documentos mais importantes para entender os esforços de censura da Casa Branca de Biden são e-mails internos das empresas que receberam ameaças e coacção”. E estas visavam a censura em concreto de “informações verdadeiras, sátiras e outros conteúdos que não violavam as políticas das plataformas” tecnológicas. Além disso, salienta-se que a Casa Branca também “promoveu a censura de livros”, nomeadamente os vendidos pela Amazon.

    O relatório de 881 páginas revela o conteúdo de e-mails e documentos oficiais que provam a coacção e exigências feitas pela Casa Branca em 2021.

    Mas, segundo o relatório, o governo norte-americano “também travou a sua campanha de pressão contra as livrarias online”. Ou seja, como mostram “documentos obtidos pelo Comité, a Casa Branca de Biden tentou censurar o discurso de uma das formas mais antigas de comunicação: os livros”.

    Com efeito, em Março de 2021, funcionários da Casa Branca chegaram a criticar a Amazon, a maior livraria online mundial, por vender livros que questionavam a segurança ou eficácia das vacinas, incluindo das vacinas covid-19 recentemente desenvolvidas. “Pressionada pela Casa Branca, a Amazon reagiu rapidamente, implementando uma nova política, no prazo de uma semana, para adicionar restrições” a livros sobre vacinas.

    Como exemplo, é relatado no relatório que, em Março de 2021, um funcionário da Amazon enviou um e-mail a outras pessoas dentro da empresa sobre o motivo da nova mudança na política de moderação de conteúdos da livraria Amazon: “[O] impulso para este pedido é a crítica da Administração Biden sobre a sensibilidade de livros aos quais estamos a dar uma posição de destaque”.

    Um e-mail enviado por um assessor da Casa Branca à Amazon a pedir a censura de livros sobre vacinas. (Foto: Captura a partir do Relatório do Comité)

    Numa secção do relatório com o título ‘Amazon Files’, é relatado que, em Março de 2021, a Casa Branca enviou um e-mail ao vice-presidente de Políticas Públicas da Amazon, pedindo para haver uma discussão sobre os “altos níveis de propaganda e desinformação” na empresa de venda de produtos online. O Governo de Biden alegava então que vários membros da Casa Branca tinham feito pesquisas na Amazon com a palavra-chave “vacinas” e enviou capturas de ecrã por e-mail da página de resultados de pesquisa para a Amazon, observando que se se adicionasse um aviso do Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) seria insuficiente para censurar adequadamente os livros.

    Imediatamente, a Amazon começou a acelerar internamente a análise de implementar uma nova política que desfavoreceria os livros considerados anti-vacina ou críticos de vacinas. No dia 9 de Março, apenas uma semana após o contacto inicial por parte de Andy Slavitt, um alto funcionário da Casa Branca, e após um encontro entre responsáveis da Amazon e da Administração Biden, a empresa implementou uma nova política e adicionou o rótulo “Não promover” aos livros considerados ‘anti-vacina’.

    Em conversas com a Casa Branca, a livraria da Amazon criou uma secção para livros sobre vacinas a “não promover” e organizou uma lista de 43 livros para ficarem ‘marcados’. (Foto: D.R.)

    Por sua vez, na secção ‘Facebook Files’, é demonstrado que, em Fevereiro de 2021, a maior rede social do Mundo aumentou a censura de conteúdos considerados ‘anti-vacina’, bem como as alegações sobre fuga laboratorial como estando na origem da pandemia causada pelo SARS-CoV-2, devido a “conversas tensas com a nova Administração [Biden]” e como parte de um esforço para responder a exigências da Casa Branca para “fazer mais” no combate a alegada desinformação.

    Contudo, adianta o relatório do comité da Câmara dos Representantes, o Facebook percebeu, um meses mais tarde, que a Casa Branca “preocupava-se mais em censurar conteúdos anti-vacina” e assim foi levantada a censura sobre conteúdos relativos à fuga laboratorial como origem da covid-19. Surge mesmo referido que, em Julho de 2021, um executivo do Facebook, Nick Clegg, perguntou num e-mail a um funcionário do Facebook a razão de se censurar a teoria da criação do vírus SARS-CoV-2 em laboratório, que obteve a seguinte resposta: “Porque estávamos sob pressão do Governo [Biden] e de outros para fazer mais. . . . Não deveríamos ter feito isso”.

    E-mail de Mark Zuckerberg em resposta a um outro e-mail, em que o Facebook assumia que, afinal, já não iria classificar como falsa a tese de que o SARS-CoV-2 pode ter tido origem numa fuga de laboratório. Zuckerberg escreveu: “Parece ser um bom lembrete de que, quando comprometemos os nossos padrões devido à pressão de uma administração em qualquer direção, muitas vezes arrependemo-nos mais tarde”. Mas o Facebook continuou a ceder a novas exigências de censura de informação por parte da Casa Branca.

    Num outro exemplo, em Agosto de 2021, um e-mail interno do Facebook explicava por que a empresa estava a desenvolver e, em última análise, a implementar novas políticas de moderação de conteúdos:
    “A liderança [do Facebook] pediu a Misinfo Policy (…) para debater algumas outros alavancas políticas que podemos puxar para sermos mais agressivos contra a desinformação. Isto decorre das críticas contínuas à nossa abordagem por parte da Administração [Biden]”.

    Também a Alphabet, dona do Google e do Youtube, não escapou à campanha de censura do Governo norte-americano. Em Setembro de 2021, após receber críticas por não eliminar conteúdo não violador dos termos de uso, o YouTube compartilhou com a Casa Branca uma nova “proposta de política” para censurar mais conteúdos que criticassem a segurança e eficácia das vacinas, e pedia “qualquer feedback” que a Administração Biden pudesse fornecer antes de a política ser finalizada. A Casa Branca respondeu: “À primeira vista, parece um grande passo”.

    O relatório frisa que os comportamentos em termos de colaboração das três Big Techs “são impressionantes”. Em cada caso, as empresas identificaram os pedidos de censura da Casa Branca de Biden como “pressão” ou recearam que pudessem entrar numa “espiral e ficar fora de controlo”. Apesar de o Comité ter detectado diferenças temporais de actuação e também na forma como cada empresa sucumbiu à pressão da Casa Branca, basicamente, em Setembro de 2021, tanto o Facebook como o YouTube e a Amazon tinham adoptado novas políticas de moderação de conteúdo que “removeram ou reduziram pontos de vista e conteúdo visto como como desfavorável por Biden”.

    A Casa Branca pediu ao Facebook para eliminar um meme com uma imagem de Leonardo DiCaprio onde se lê a frase “Daqui a 10 anos vai estar a ver TV e vai ouvir: Você ou um familiar tomaram a vacina contra a covid? Pode ter direito a uma compensação”.

    As investigações deste Comité sobre o crime de violação da Primeira Emenda por parte do Governo norte-americano vão continuar e no relatório sublinha-se que “a Primeira Emenda proíbe o Governo de condicionar a liberdade de expressão” e que “qualquer lei ou política governamental que reduza essa liberdade nas [redes sociais] plataformas viola a Primeira Emenda”.

    Este relatório, apesar da sua relevância, tem sido largamente ignorado pelos mass media norte-americanos e também pelos media portugueses, os quais alinharam, em geral, nas mesmas práticas de censura durante a pandemia.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • Mórmons estão a microfilmar os arquivos portugueses

    Mórmons estão a microfilmar os arquivos portugueses


    O Governo português autorizou a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias – ou Sociedade Genealógica do Utah – a microfilmar os assentos paroquiais dos portugueses. Mas esta autorização foi legal? Quais são as suas implicações para os portugueses?

    Uma reportagem do jornalista Rui Araújo publicada na Revista ABC, em Dezembro de 1983 (com fotos actualizadas).


    O carteiro, habituado às deambulações oficiais, entra no n.º 23 da Avenida António Serpa, em Lisboa, e deposita na caixa da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias uma carta dirigida à Sociedade Genealógica do Utah.

    «A Sociedade Genealógica do Utah está autorizada a microfilmar os assentos paroquiais dos arquivos distritais, referentes a baptismos, casamentos, óbitos, e outros registos de fundo genealógico, do período compreendido entre as datas mais antigas e o ano de 1900».

    Este poderia bem ser o texto do ofício enviado em 19 de Julho de 1979 pelo então Secretário de Estado da Cultura, David Mourão Ferreira, à seita religiosa norte-americana, em resposta a um pedido nesse sentido.

    Mas, afinal, em que ficamos? Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias ou Sociedade Genealógica do Utah? Seita religiosa ou instituto de estudos genealógicos?

    Entrada do ‘Granite Mountain Records Vault’, localizado nas montanhas que rodeiam Salt Lake Valley (Estados Unidos) (2010). (Foto: D.R.)

    De facto, o pedido dirigido à Secretaria de Estado da Cultura fora feito pela Sociedade Genealógica do Utah. Mas a Sociedade é apenas um instituto criado pela Igreja, a forma institucional assumida pelos mórmons.

    Hoje, passados três anos, os mórmons já microfilmaram os registos dos distritos de Aveiro, Évora, Faro, Leiria, Portalegre, Setúbal e Viseu. Estão a negociar os últimos detalhes relativos a Lisboa.

    E, dentro de alguns meses, todos os portugueses com mais de 82 anos, bem como os seus antepassados, (pelo menos estes) terão a sua ficha na fita magnética de um computador instalado em Granite Mountain, Salt Lake City, Estados Unidos.

    E porquê? A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias — ou a Sociedade Genealógica do Utah — dizem utilizar os microfilmes para «funções de tipo cultural», embora não tenha havido qualquer referência prévia ao facto de que os dados obtidos constituem parte importante de um ficheiro computorizado.

    «Funções de tipo cultural»: para que, como nos disse o responsável americano da Igreja em Portugal, Harold G. Hillam, cada pessoa possa reconstituir a história da sua vida. «Os Profetas antigos da Bíblia guardavam suas histórias e nós devemos considerar os registos do Passado como Sagrados», adiantou Hillam, num português ainda tímido.

    Vantagens dos cidadãos portugueses? As que resultam do facto de, dentro de alguns anos, os portugueses terem «a possibilidade de obter a sua genealogia, porque vivem num país onde a liberdade religiosa é uma realidade.» — acrescenta Hillam.

    Harold G. Hillam. (Foto: Imagem capturada de um vídeo de um sermão proferido em Abril de 2005)

    Porém, as operações de microfilmagem custam muitos milhões de dólares. O dinheiro vem das caixas americana e alemã da Igreja Mórmon. São, aliás, técnicos da RFA que estão a dirigir os trabalhos em território português. Os filmes impressionados são imediatamente enviados para a sede da seita, em Salt Lake Ciry, onde serão revelados. O original vai para o cofre da montanha e a cópia (excepto em alguns casos) para o arquivo de origem.

    «Na minha opinião, é a história do pobre e do rico», disse à ABC a Conservadora dos Arquivos do Distrito de Viseu, Dra. Maria Fernanda Mota, uma das raras pessoas que em Portugal têm conhecimento do assunto.

    Mas se esta história «é positiva, em alguma medida, para os arquivos nacionais — dado o estado de penúria em que se vive — não é menos verdade que há elementos subjectivos para além dos que estão no contrato, e o interesse do Arquivo não seria certamente idêntico ao da Sociedade Genealógica do Utah».

    Elementos subjectivos? E quais? A Conservadora não o disse, mas é possível analisar alguns, mais adiante. Em todo o caso, a «ofensiva» mórmon já atingiu praticamente o conjunto da Europa Ocidental e, seguramente, a Polónia. O que coloca algumas perguntas: afinal, quem são os mórmons? Ou, por outras palavras: Quais os seus objectivos?

    Uma funcionária a converter microfilme para formato digital no ‘Granite Mountain Records Vault’ (2011). (Foto: D.R.)

    Era uma vez uma vez um adolescente visionário…

    A história dos mórmons é, ao mesmo tempo, uma Epopeia lírica e uma aventura de «cowboys». O desafio lançado pela Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias começa numa manhã primaveril de 1820, quando um jovem camponês, Joseph Smith, tem uma rara visão: Joseph isolara-se uma vez mais num bosque perto de Palmyra para, «sob o olhar vigilante de Deus», meditar sobre as disputas entre as várias formações religiosas e a sua adesão a esta ou aquela doutrina.

    Dois anjos apareceram diante dos seus olhos. Foi-lhe «dito» que não se unisse a nenhuma igreja, porque todas estavam «erradas». Os credos eram «abomináveis» e os mestres «corruptos». Anunciaram-lhe que seria chamado para «reconstituir a Igreja Cristã Primitiva na sua integralidade», uma vez que esta tinha perdido a Verdade.

    Um dos anjos volta a surgir exactamente três anos depois. Desta vez revela-lhe algo deveras surpreendente. «Disse que havia um livro despotiado, escrito sobre placas de ouro, acerca dos antigos habitantes deste continente, assim como sobre a origem da sua precedência», escreveria ulteriormente Smith.

    Depois de uma terceira visão, em 1827, Smith recebeu as duas pedras mágicas que lhe davam o conhecimento necessário para poder traduzir o Livro de Ouro.

    «A tradução foi concluída em 1829. O anjo veio então recuperar as pedras mágicas e as placas de ouro. E é por essa razão que nunca ninguém as conseguiu ver, excepto um fazendeiro e dois colegas amigos de Smith, futuros membros da ainda inexistente Igreja Mórmon.

    A partir daqui, a história das primeiras décadas da Igreja Mórmon é a história de uma quase interminável migração.

    Como a Igreja Mórmon precisava de uma base geográfico-política para ser reconhecida, o Profeta decretou a edificação de «um Estado teocrático dirigido pelos dignatários da Igreja assistidos pelo clero, formando um governo descendente de Deus» e com um poder real.

    Profetas e fiéis partiram do Estado de Nova Iorque com destino ao Ohio. Chegam a Kirtland em 1831. Mas a simpática povoação será, no fim de contas, apenas uma etapa. Apesar da criação de uma Estaca. O destino reservara-lhes outros êxodos.

    Foram para o Missouri. Mas lá, o nortista era um homem suspeito. E suspeito era o mórmon. Que aparecia com teorias revolucionárias. Com idealismos. Em suma, era um anti-esclavagista…

    No Inverno de 1833/34 é dada a ordem de partida. Conseguem chegar a Independance, mais tarde denominada Nova Jerusalém. Mas voltam a ser expulsos. Vão para Oeste e criam a cidade de Far West. E, desta vez, são as revoltas internas que põemem causa a paz da comunidade. Agitação. Desordem. E nova partida para longe.

    Em nome do ideal fundam Nauvoo. E eis que Terra Prometida lhes dá por fim acesso ao Estado teocrático sonhado. Com o poder executivo, legislativo e judiciário. Com uma universidade e um templo. Comum exército comandado pelo guia supremo da Igreja, Joseph Smith, que, por  falta de inimigos, vai dedicar o seu tempo à organização espiritual. Aquela que ainda hoje está em vigor.

    À cabeça da Igreja está o «Presidente, Profeta, Vidente e Revelador». Ele é assistido por dois conselheiros. As visões são aceites pelo «Conselho dos Doze Apóstolos», responsável da obra missionária mundial. Em seguida, há os sete presidentes do «Conselho dos Setenta», criado em Fevereiro de 1835.

    O credo mórmon decretado por Smith não foi modificado. Tal como Moisés, o Profeta Smith constituiu a sua «Tábua da Lei».

    (Foto: D.R.)

    E Deus criou a poligamia

    Joseph Smith era, sem dúvida alguma, um visionário. Com algumas particularidades: por exemplo, de Deus «recebeu» a obrigação de introduzir, na casta Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, nada mais nada menos que a poligamia. E ainda hoje há quem diga que aquela revelação era dos diabos…

    Emma Hele é talvez a «culpada» da visão do Profeta. Emma, uma mulher bonita e inteligente, era a esposa de Smith. O marido apontava-lhe um único defeito: a sua falta de apetite. Sexual, está claro. Emma não conseguir jugular a grande sensualidade do marido.

    O mórmon que se respeita diz que a poligamia (denominada oficialmente «casamento plural») foi criada para garantir a existência da colónia e contentar as mulheres, que são em número superior ao dos homens.

    As más línguas sustentam que, como Smith não tinha bastante ousadia para ultrapassar, tanto as tentações como o terror do adultério, decidiu um dia fazer um apelo a Deus para o livrar de todos os escrúpulos possíveis.

    E quem espera, sempre alcança… No dia 12 de Julho de 1843 teve uma visão sobre a «Eternidade do Convénio Matrimonial e do Casamento Plural».

    A argumentação da Igreja relativamente a esta questão é um excelente pedaço de antologia místico-macho-sexual. Senão, vejamos: «Durante anos, depois de ter conhecimento de tal doutrina através da revelação Divina, Joseph sentiu-se impossibilitado de pô-la em prática ou ensiná-la a outros. (…) Muitas mulheres teriam de viver e morrer solteiras, privadas da oportunidade de desenvolvimento proporcionado pelo casamento. (…) Os melhores membros da Igreja e as melhores pessoas do Mundo surgiram através do casamento plural».

    Smith aconselhou, portanto, os seus discípulos a seguirem as leis do Senhor. E eles obedeceram. Por Brigham Young, o sucessor de Smith, homem de acção e de muitas mulheres que, curiosamente, contribuíram de forma significativa para a sua fortuna.

    Estátua de Joseph Smith e Hyrum (Illinois, Estados Unidos). (Foto: D.R.)

    Joseph Smith e o seu irmão Hyrum faleceram em 1844 na cidade de Nauvoo no decorrer de uma manifestação antipoligamista. Os mórmons partiram para perto do Lago Salgado, no ano de 1847. Durante 22 anos, vão criar as bases de um estado independente: o «Deseret» (abelha), que será integrado na União em 1850, depois da construção da via férrea do Pacífico, sob o nome de Território do Utah.

    A poligamia viria a ser retirada das obrigações religiosas por imposição da lei federal e por decisão do Profeta Young em 1890. Mas 65 anos depois, alguns dissidentes excomungados restabeleciam a poligamia no México e nos EUA. Com algum sucesso, aliás.

    Seis homens telecomandados pelo Papa dissidente Ervil Le Baron, chefe de um grupo polígamo, mataram no dia 10 de Maio de 1977 o seu rival do Utah, Alfred Vernon, fazendo sete viúvas e trinta crianças orfãs. Na cidade de Colorado, no Estado do Arizona, a Polícia teria descoberto recentemente mais de 5 mil homens polígamos.

    Mas se é verdade que a poligamia desapareceu quase por completo da comunidade ortodoxa mórmon, que se desenvolveu rapidamente e tem hoje cerca de 6 milhões de membros espalhados pelos cinco continentes (com uma taxa de crescimento de 150 % desde 1963), não é menos certo que ser mórmon em 1982 é ser ainda, em larga medida, machista.

    A esposa virtuosa deve ter, pelo menos, 5 filhos. Deve ficar em casa e efectuar todas as tarefas caseiras. A feminista Sonia Johnson foi excomungada em Dezembro de 1979, ao pôr em causa determinadas regras impostas às suas congéneres, como a necessidade de serem boas mães. Boas vizinhas. Boas donas-de-casa. E virgens antes do casamento.

    Uma fonte de poder

    Honestos, metódicos e rigorosos por natureza os mórmons têm boas situações e representam uma força política importante, sobretudo nos Estados Unidos. Eisenhower teve um ministro mórmon. Kennedy, idem. Nixon, três.

    «Ainda não há de momento nenhum ministro mórmon em Portugal…», confidenciou-nos o Presidente Hillam. Sorrindo. E tem de quê. A adesão dos portugueses à Igreja mórmon está em progressão. Em Novembro de 1975, data da sua instalação no nosso país eram uns seis. Hoje, são mais de 6 mil. E dois milhares de pessoas aderem cada ano à Igreja. São, na sua maioria, médicos, advogados, e algumas pessoas de origem mais modesta.

    O Irmão Xavier, 22 anos, natural do Porto, solta um «Puxa Vida» e retira a folha da máquina de escrever. É mórmon há três anos. Antes, era empregado de escritório e estudava à noite. Andava a tirar um curso de «Artes do Fogo« na Escola Soares dos Reis. Deixou a terra, a família, o emprego e a religião católica, «por amor à mesma religião, mas por melhores princípios».

    «Contactaram-me na rua. Depois, assisti a sete palestras e aderi à Igreja. Embora os meus pais não compreendessem a minha atitude, devo dizer que o mesmo não aconteceu com os meus dois irmãos que também já cá estão», contou-nos o Irmão Xavier, antes de inserir outra folha na máquina. «E se os meus vizinhos não são mórmons é porque é difícil deixar de fumar e de beber…», concluiu.

    Se o mormonismo sobreviveu depois de tantas peripécias e acabou por se desenvolver de forma tão notória em muitos países, não foi devido unicamente à sua arte de comunicar a palavra de Deus. Há também o «sucesso da colonização do Utah (onde 75 % da população é mórmon), o trabalho, a riqueza e uma vida familiar digna», como afirma uma especialista francesa.

    O Templo de Kirtland (Ohio, Estados Unidos) foi o primeiro templo construído pelos mórmon (Foto: D.R.)

    A taxa de divórcios no Estado do Utah é a mais baixa dos EUA; a delinquência juvenil a mais reduzida. A taxa de frequência escolar e universitária é das mais elevadas do país. A Universidade Brigham Young, em Provo, no Utah, com 15 mil estudantes, é a maior universidade norte-americana pertencente a uma igreja.

    Mas a Igreja Mórmon representa também um poder financeiro indiscutível. É muito rica. Os seus rendimentos anuais ultrapassam os mil milhões de dólares, só com os 10 % dos ordenados anuais dos membros. A Igreja possui ainda 160.000 hectares de terrenos, uma grande parte dos prédios de Salt Lake City, 383 milhões de dólares nas companhias de seguros, um jornal, várias revistas, 11 estações de rádio, 2 canais de TV, uma sociedade de produção de açúcar, acções num grupo de grandes armazéns, etc, etc.

    Em Portugal, o orçamento dos mórmons deve atingir centenas de milhares de contos. E como a Igreja não paga impostos e pouco gasta com o seu pessoal e instalações, como e onde é investido o dinheiro? Com que finalidade? Perguntas às quais não obtivemos qualquer resposta. Constantemente nos vimos confrontados com uma forma de segredo, que não é mais, afinal, do que a defesa «instintiva de toas as instituições contra o olhar do próximo». A seita parece ignorar o direito à Informação… concreta. Porque, quanto aos dados histórico-metafísicos, aí sim, ela é pródiga em detalhes.

    Bem-estar, sobrevivência e salvação

    18:10. Avenida Gago Coutinho, em Lisboa.

    Um dos 33 centros da Igreja em terra portuguesa. Três garotos brincam no átrio do palacete do número 93. Um cântico invade a obscuridade.

    Alguns dos 2.000 mórmons residentes em Lisboa assistem neste 13 de Novembro, um domingo, a mais uma reunião da seita. Depois do Hino e da Oração há o programa do Bem-Estar. Criado há alguns anos atrás para garantir a sobrevivência dos adeptos, «sobretudo em relação ao Governo». Na realidade, em relação à guerra.

    «O programa é tão bom que o governo americano estaria neste momento em negociações com a Igreja Mórmon com vista à adopção do Plano de Bem-Estar», diz-nos o Irmão Amorim, um jovem brasileiro mórmon.

    «Plano de Bem-Estar significa independência. Felicidade. Em primeiro lugar, a família é responsável pelo seu auto-sustento. Em segundo, é a Igreja».

    Mas o Plano de Bem-Estar, nesse domingo, é também a evocação dos Estados Emocionais, a Tranquilidade, o Armazenamento (de víveres), a Sobrevivência em qualquer situação, os homens do deserto, e… uns cantares e danças.

    Movimento messiânico (puro), o mormonismo anuncia para amanhã («ou depois de amanhã») o regresso de Cristo e prepara os seus membros para afrontar o Juízo Final. Em dados concretos, os mórmons como, sobretudo, muitos norte-americanos, vivem condicionados pelo medo, pelos novos medos. Como a ameaça atómica, por exemplo. Ou como a guerra, toda e qualquer espécie de guerra.

    Perante as ameaças de um mundo exterior, hostil e militarizado, como é possível alcançar a Salvação?

    «Quem crer e for baptizado será salvo; mas quem não crer será condenado». São Marcos. 16:16. O Presidente Hillam fecha o livro sagrado e desenvolve a ideia: «As pessoas têm de ser baptizadas pela Autoridade, mesmo os mortos, porque o que é essencial é a família».

    Hillam, meio businessman, meio padre (elegante) de província, insiste. Faz perguntas. «Se Deus é justo, o que vai acontecer às pessoas que não foram baptizadas ?» Silêncio. O monólogo continua. «Deus disse que sem baptismo não há Salvação. Por isso, nós devemos ter as informações sobre as pessoas».

    Perante o nosso pedido para gravar as suas declarações, Hillam desculpa-se com a má qualidade do seu português. E ataca de novo. Jesus volta à baila. «No tempo de Jesus, foi ensinado que nós temos uma responsabilidade para com os nossos antepassados. Cremos profundamente que eles são importantes e que não devem ser esquecidos».

    Esquecidos pela Igreja Mórmon? Hillam limita-se a dizer que não serão obrigatoriamente baptizados pelos mórmons. Então por quem? A reposta evasiva não faz sentido. «Por outras igrejas…»

    Surge então a questão das pessoas que não têm o seu nome nos arquivos existentes. Hillam replica como dever para todos os que «estão» nos arquivos. E sublinha uma frase do «Nosso Pai Celeste»: «Faz o que podes fazer». E os católicos? E os muçulmanos? E os ateus? Estarão interessados em ser baptizados, mesmo postumamente, pelos mórmons?

    Em plano século XX, os meios tecnológicos disponíveis facilitam o trabalho dos mórmons. Já ninguém se lembra de copiar pacientemente, linha após linha, os milhares de livros de registo civil existentes nos arquivos portugueses, desde que a obrigatoriedade do registo foi decretada em 1532.

    Por isso, a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, ou, directamente a Sociedade Genealógica do Utah, recorrem ao microfilme e, inevitavelmente, à computarização dos dados. Os objectivos parecem ser transparentes: são de natureza religiosa. Mas, nesse caso, porquê utilizar o nome de uma sociedade subsidiária da Igreja que constitui a sua razão de ser? Ou, inversamente, se a Sociedade Genealógica do Utah é um instituto cultural, como articular a sua actividade com os objectivos confessionais proclamados pelos mórmons?

    David Mourão Ferreira (1985). (Foto: D.R./António Duarte/Museu do Fado)

    A operação de microfilmagem dos arquivos e registos portugueses foi autorizada em 1979, pelo então Secretário de Estado da Cultura, David Mourão Ferreira. Mourão Ferreira fazia parte do Governo de Mota Pinto, mas quando o seu despacho relativo à pretensão da Sociedade Genealógica do Utah foi lavrado, em Julho de 1979, o escritor limitava-se a assegurar a gestão dos negócios correntes, já que o IV Governo perdera a confiança da Assembleia da República.

    Três anos depois, contactado por ABC, David Mourão Ferreira diz não se recordar desse despacho, nem das circunstâncias em que foi lavrado. Provavelmente, o secretário de Estado terá aposto a sua assinatura sobre uma informação de serviço que lhe foi preparada por um funcionário da Direcção-Geral do Património, hoje Instituto Português do Património Cultural.

    Aparentemente, a dúvida que se levanta é saber porque razão foi o Património chamado a informar sobre a pretensão dos mórmons. Mas é certo que o requerimento se referia apenas à microfilmagem dos registos «referentes a baptismos, casamentos, óbitos, e outros registos de fundo genealógico, do período compreendido entre as datas mais antigas e o ano de 1900». Tratar-se-ia, portanto, de uma investigação de natureza histórica, que só em muito pequena parte atingiria cidadãos portugueses ainda vivos.

    Gráfico de linhagem: só para fins culturais?
    (Foto: Documento em português dos mórmons)

    Algumas interrogações

    Acontece, porém, que nos registos paroquiais se assentam acontecimentos importante da vida do cidadão, para lá do nascimento. Concretamente: no registo é averbado o casamento, o que significa, desde logo, que os mórmons têm neste momento facilidades duplas duplas na identificação de todos os portugueses com mais de 80 anos — pelo menos. E, como de todos os actos públicos sujeitos a registo podem ser extraídas certidões, a pedido de qualquer interessado, logo se vê como qualquer investigação sobre cidadãos portugueses vivos pode ser feita a partir dos dados básicos recolhidos pela Sociedade Genealógica do Utah.

    Vejamos mais de perto o processo. Desde que são microfilmados os registos qual é o percurso seguido pelos microfilmes? Tomemos o exemplo do Arquivo Distrital de Viseu. As relações entre a Sociedade Genealógica do Utah e o Arquivo de Viseu estão regulamentadas num contrato-tipo «para a autorização da microfilmagem de documentos com interesse genealógico». O contrato é um extenso documento de 13 artigos, nos quais se estipulam minuciosamente condições, destino e contrapartidas à operação contratada.

    Um corredor no interior do ‘Granite Mountain Records Vault’ (2011). (Foto. D.R.)

    Aí se lê, no artigo 3.º, que a Sociedade Genealógica do Utah se obriga «a revelar por conta própria os microfilmes, nas suas instalações de Salt Lake City, Utah, ou em outro local sob a sua direcção, e compromete-se a guardar, preservar e conservar os negativos nos seus depósitos de Granite Mountain». Por outro lado, o artigo seguinte refere que a Sociedade fornecerá um duplicado da matriz de microfilme ao Arquivo Distrital que é parte contratante.

    Qualquer nova cópia só poderá ser fornecida pela Sociedade a outras pessoas ou instituições, mediante autorização da Direcção do Arquivo Distrital. Mas numa notícia datada de 27/08/80, redigida em inglês e distribuída aos órgãos de informação nos Estados Unidos, diz-se que na Biblioteca Genealógica de Salta Lake City existem microfilmes de arquivos de 37 países, «equivalentes a 4.927.000 volumes impressos de 300 páginas cada um, estando 157.000 volumes genealógicos disponíveis para investigação privada, quer de membros quer de não membros da Igreja». A investigação é feita com recurso a um centro informático onde se recolhem, devidamente tratadas, todas as informações recolhidas em microfilme. Em que medida é que uma interpretação extensiva destes dados não permitirá pôr em causa a reserva estabelecida no artigo 6.º do contrato tipo?

    No Arquivo de Viseu, as operações de microfilmagem estão hoje praticamente concluídas. Os últimos 12 livros foram fotografados ainda muito recentemente, mas o Arquivo já recebeu parte dos duplicados previstos no artigo 5.º do contrato. Que vai o Arquivo fazer com esse material? A Conservadora do Arquivo, Drª. Maria Fernanda Mota, diz que de momento, «não existe nenhum leitor de microfilmes» em Viseu. Os rolos de película estão armazenados nas instalações do Arquivo, em condições que estão longe de ser as melhores para a preservação de material desse tipo. «A casa já tem alguns séculos», confessou a Conservadora.

    E a Constituição Portuguesa não proíbe?

    As operações de microfilmagem foram efectuadas em Viseu por uma equipa de três pessoas, entre as quais um cidadão brasileiro. Dos microfilmes arquivados em Salt Lake City serão ulteriormente feitas cópias de trabalho para utilização da Sociedade — ou da Igreja — em Portugal.

    As fichas reproduzidas nestas páginas são fornecidas a quem as solicitar. Se, por exemplo, uma pessoa deseja conhecer informações «genealógicas« sobre outra, basta-lhe pedir. A resposta, dada pelos computadores, é lavrada nas fichas, editadas pela Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias.

    Como se vê, para lá das informações relativas à identificação do cidadão, constam espaços para dados sobre cônjuges, ascendentes e descendentes. Ora, se o acesso a esses dados é livre, a partir das instalações de Salt Lake City, e se deles é extraída cópia para utilização em Portugal, não é difícil nem exagerado afirmar que há pessoas que sabem ou que podem vir a saber tudo sobre a árvore genealógica, a ascendência, descendência e a vida civil de qualquer leitor de ABC.

    (Foto: Documento da seita)

    A preocupação com o destino dos dados recolhidos não é gratuita. Em França, por exemplo, ainda recentemente se levantou a questão de saber se as operações de microfilmagem deveriam continuar a ser autorizadas. Embora a decisão das autoridades francesas não tenha sido tomada, sabe-se que Henri Caillavat, presidente da Comissão Informática e Liberdade, está disposto a recomendar às autoridades que os arquivos franceses continuem disponíveis para a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, pelo menos, durante mais cinco anos.

    Caillavat manifestou-se «satisfeito» com as informações que lhe foram dadas, após uma visita realizada em 14 de Setembro às instalações e ao centro da informática dos mórmons, em Salt Lake City.

    Reportagem na revista ABC. (Foto: D.R.)

    Um último aspecto: se ninguém até hoje conseguiu distinguir entre o que são objectivos culturais e objectivos religiosos, talvez seja conveniente, para os mais esquecidos ou menos atentos, uma leitura do Art.º 35 da Constituição da República Portuguesa: «A Informática não pode ser usada para tratamento de dados referentes a convicções políticas, fé religiosa ou vida privada, salvo quando se trate de processamento de dados não identificáveis para fins estatísticos». Em que ficamos?

    Para um constitucionalista, que solicitou não ser identificado, «o problema fundamental — uma vez que os dados não são directamente referentes à fé religiosa — é o da legitimidade do fim.»

    Falta saber, portanto, se o fim é legítimo em face dos princípios: se não há violação da dignidade da pessoa (artigo 1.º da Constituição); nem dos princípios relativos à liberdade religiosa. «Baptizar as pessoas independentemente da sua vontade pode ser considerado um acto irrelevante como uma ofensa à liberdade religiosa», acrescentou o constitucionalista.

    De qualquer modo, cada cidadão português poderá perguntar à Igreja Mórmon e/ou à Sociedade Genealógica do Utah qual a finalidade destas operações. Mas, desde já, resta uma declaração e vontade: Rui Araújo, cidadão português, não está interessado em ter, agora ou no futuro, os dados pessoais num computador (de uma seita) — ainda que para fins de investigação cultural. Mais: desde já se declara que o jornalista não quer ser baptizado, ainda que postumamente, pela Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias.


    Reportagem originalmente publicada n Revista ABC, em Dezembro de 1983 (com fotos actualizadas).


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • Ser sócio de Cristiano Ronaldo é estar ao pé de um ‘porto seguro’ para branqueamento de capitais

    Ser sócio de Cristiano Ronaldo é estar ao pé de um ‘porto seguro’ para branqueamento de capitais

    Cristiano Ronaldo não é apenas um futebolista de excepção; é também um ‘empresário de excepção’, porque não precisa de registar-se como beneficiário efectivo das empresas onde é investidor relevante, uma identificação obrigatória para prevenir o branqueamento de capitais ou o financiamento do terrorismo. Para tal benefício, pediu uma excepção, aceite pelo Instituto dos Registos e do Notariado (IRN) para casos evidentes em que existe risco de fraude, extorsão ou outras ameaças físicas ou à propriedade. Certo é que, na generalidade dos casos, Cristiano Ronaldo nem sequer esconde onde investe, como sucedeu na sua entrada como accionista de referência na Medialivre (dona do Correio da Manhã e da CMTV), mas a restrição de acesso favorece os restantes sócios ou accionistas, o que o ‘transforma’ num potencial ‘porto seguro’ para investidores menos escrupulosos. Mas o PÁGINA UM detectou outros investimentos onde os gestores da fortuna nem sequer entregaram a declaração no Registo Central do Beneficiário Efectivo, e noutros casos existem dúvidas sobre a sua efectiva participação.


    Diversas empresas com investimentos de Cristiano Ronaldo, incluindo a Medialivre, no sector da comunicação social, estão a sair favorecidas por um polémico regime de excepção para não cumprir as regras de prevenção do branqueamento de capitais e de financiamento do terrorismo. No Registo Central do Beneficiário Efectivo – uma base de dados pública –, em nenhuma das suas empresas, incluindo na Medialivre – onde deterá um capital de 30% –, o mais celebrado futebolista português surge identificado. Invariavelmente, com duas únicas excepções, consultando as diversas empresas onde publicamente se sabe que existem capitais relevantes do jogador do Al-Nassr surge a informação: “O Beneficiário Efetivo seleccionado é menor, ou possui um pedido de restrição de acesso aos seus dados”. Essa restrição favorece outros eventuais beneficiários efectivos nessas empresas, ou seja, sócios de Cristiano Ronaldo.

    De acordo com uma directiva comunitária, que foi transposta para o direito nacional em 2017, tornou-se obrigatório identificar todas as pessoas físicas – o denominado beneficiário efectivo – que controlam empresas, associações, fundações, entidades empresariais, sociedades civis, cooperativas, fundos ou trusts. Esse controlo pode ser através da detenção de capital social (acima de 25%) de uma forma directa (propriedade) ou indirecta (direitos de voto), ou através de direitos especiais, como acordos parassociais secretos. Em casos especiais, onde não há accionistas ou sócios relevantes, com dispersão de capital, tem de se indicar a direcção de topo, como seja administradores, gerentes ou outros representantes legais.

    Contudo, há duas excepções nessa obrigatoriedade: se o investidor for menor ou incapaz e se se verificar que a divulgação dessa informação “é suscetível de expor a pessoa assim identificada ao risco de fraude, ameaça, coação, perseguição, rapto, extorsão, ou outras formas de violência ou intimidação”. Nesta última situação, sendo requerida, a decisão final é assumida pelo presidente do Conselho Directivo do Instituto dos Registos e do Notariado (IRN).

    Tem sido uma alegada ameaça física ou ao património do jogador – que faz, geralmente, ‘gala’ pública dos seus investimentos – que justifica a confidencialidade nos registos sobre o beneficiário efectivo. Entre as diversas empresas conhecidas publicamente por serem investimentos de Cristiano Ronaldo, apenas em dois casos não foi solicitada confidencialidade, embora a participação e influência do jogador português seja omitida como verdadeiro beneficiário efectivo.

    No primeiro caso, trata-se da 7egend, uma agência digital sedeada em Vila Nova de Gaia publicamente criada em 2017 e assumida por Cristiano Ronaldo, mas que terá, de acordo com o registo no RCBE, uma participação de 69% de Luís Parafita. Contudo, o domínio do e-mail institucional da empresa – .cr – pertence ao goleador português, indiciando que a participação e influência de Cristiano Ronaldo será maior do que a declarada. Situação similar sucede com a empresa Thing Pink, fundada em 2006 por Martina Magalhães, mulher de Luís Parafita, e sobre a qual foi entretanto anunciada a compra de uma posição maioritária por Cristiano Ronaldo. Certo é que na base de dados do RCBE nada surge a esse respeito, e Martina Magalhães surge como detentora a 100% do capital da empresa, o que não será verdadeiro. No RCBE, a única ‘impressão digital’ de Cristiano Ronaldo está no facto de o endereço electrónico institucional ser ana.gamelas@7egend.cr.

    Cristiano Ronaldo, através da CR7 S.A. é, claramente, beneficiário efectivo da Medialivre S.A., mas pediu restrição de acesso aos seus dados.

    Se estas são pequenas empresas, já na recente mediática participação de Cristiano Ronaldo da Medialivre – a empresa que actualmente detém o Correio da Manhã, a CMTV, a Sábado, o Record e o Jornal de Negócios e que está a lançar o canal Now –, o pedido de confidencialidade surge em cascata e ‘protege’ outros potenciais accionistas com mais de 25% ou eventuais relações de domínio saídos de acordos parassociais. Com efeito, por via da sua conhecida participação de 30% – apenas através do valor indicado no Portal da Transparência dos Media por parte da sociedade anónima CR7–, Cristiano Ronaldo será, sem margem para dúvidas, um beneficiário efectivo da Medialivre, mas por via da sociedade gestora de participações sociais (SGPS) Expressão Livre II, que por sua vez detém  e a Expressão Livre, outra SGPS, que domina integralmente a Medialivre. Ora, no RCBE todas as três entidades têm escondida quer a identidade de Cristiano Ronaldo – e o seu efectivo peso – quer a identidade de outros investidores relevantes (até por acordos parassociais) quer a identidade de administradores ou outros responsáveis. Ou seja, quem consulta o registo da Medialivre, ou da Expressão Livre II ou da Expressão Livre, vai encontrar o mesmo: nada.

    Atendendo apenas aos dados do Portal da Transparência dos Media, analisados pelo PÁGINA UM em Dezembro passado, não haverá outros accionistas individuais com mais de 25%, sendo que Domingos Vieira de Matos é aquele que mais se aproxima dessa fasquia (16,1%), através da Livrefluxo. Convém, contudo, salientar que esta base de dados gerida pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) tem um controlo de rigor algo desajustado.

    Mesmo a própria empresa que Cristiano Ronaldo usou para investir nos media – a CR7 – tem o beneficiário efectivo escondido. Esta empresa, inicialmente criada no Funchal, em 2016 como unipessoal – ou seja, detida exclusivamente pelo jogador – tinha como objecto social a organização de actividades lúdicas, recreativas, de animação turística, desportivas e culturais, destinadas predominantemente a turistas, podendo igualmente fornecer alojamento. Tinha então um curioso capital social: 7.777 euros. Passou depois a ser sociedade anónima há quatro anos, com reformulação integral dos estatutos, e um aumento de capital social para meio milhão de euros. Cristiano Ronaldo concedeu quotas simbólicas de 1 euro à sua filha Alana, ao seu irmão Hugo, ao seu gestor Manuel Marques e ao seu amigo de longa data Miguel Paixão (que é um dos administradores da Medialivre). Em todo o caso, mesmo que algumas informações constem em registos públicos, não se sabe se existem acordos parassociais, nem se conhece em detalhe uma alteração ao contrato no passado dia 19 de Fevereiro, que teve ainda um estranho aumento de capital de um euro, ou seja, a empresa passou de um capital social de 500.000 euros para 500.001 euros.

    Em outras empresas do ‘universo CR7’ – quer através da CR7 quer directamente por Cristiano Ronaldo –, em alguns casos nem sequer existe registo na base de dados dos beneficiários efectivos, noutros surge a nota do pedido de confidencialidade. Por exemplo, na CR7 Footwear – que comercializa equipamento desportivo – e Categorychallente – na área da construção civil, exploração de empreendimentos turísticos e aluguer de embarcações turísticas – nem sequer foi apresentada qualquer declaração, obrigatória por lei, no RCBE. Estas duas empresas são integralmente detidas por Cristiano Ronaldo. Mas  não houve qualquer indicação no RCBE.

    O PÁGINA UM contactou, há já mais de um mês, a Medialivre pedindo esclarecimentos sobre a estranha situação de todos os accionistas e administradores deste grupo de media aproveitarem-se de um regime de confidencialidade por associação a Cristiano Ronaldo. E esta semana pediu também esclarecimentos a Miguel Paixão no sentido de compreender quais os verdadeiros riscos – nomeadamente de fraude, de ameaça, de coação, de perseguição, de rapto, de extorsão, ou de outras formas de violência ou intimidação – a que Cristiano Ronaldo estaria sujeito se assumisse aquilo que é obrigatório para a generalidade dos empresários da União Europeia. Não se obteve resposta em ambos os casos.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • Na tarde da exoneração, Santa Casa da Misericórdia de Lisboa ainda entrega 5,5 milhões à SIC e TVI

    Na tarde da exoneração, Santa Casa da Misericórdia de Lisboa ainda entrega 5,5 milhões à SIC e TVI

    Não pára de crescer o pacote milionário de contratos de publicidade que a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) tem andado a distribuir por empresas de media para promover os seus jogos e a própria instituição, que está envolta num escândalo com investimentos ruinosos no Brasil. Na tarde de ontem, João Correia, administrador da SCML e antigo secretário de Estado do governo de Sócrates, assinou mais três contratos com grandes grupos de media: a SIC recebe 3 milhões de euros; a TVI arrecada 2,5 milhões de euros; e a Trust in News, dona da revista Visão, encaixa 50 mil euros. No total, com mais estes três contratos, os gastos em publicidade da SCML aproximam-se já dos 14 milhões de euros, sendo provável que ainda aumentem mais, uma vez que, por exemplo, ainda nem sequer está divulgado o previsível contrato com a Medialivre, dona do Correio da Manhã, da CMTV e do futuro canal Now. A forma pouco transparente com que têm sido distribuídos os montantes de gastos com publicidade da SCML tem causado perplexidade.


    Na tarde de ontem, em que o Governo decidiu exonerar a Mesa da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, liderada por Ana Jorge – acusada de “actuações gravemente negligentes” -, o vogal João Correia ainda teve tempo para assinar mais três contratos de publicidade com empresas de comunicação social. Dois deles milionários.

    De acordo com os contratos a que o PÁGINA UM teve acesso – e que integrarão um plano anual com vista à promoção dos jogos e da própria instituição, mas que nunca foi divulgado -, o vogal da SCML João Correia, antigo secretário de Estado da Justiça do Governo de José Sócrates, assinou em dois minutos os contratos milionários com a SIC – Sociedade Independente de Comunicação, do Grupo Impresa, no valor de três milhões de euros, e com a TVI – Televisão Independente, no valor de 2,5 milhões de euros. Os contratos foram também assinados, pelo lado da SIC, por Francisco Pedro Pinto Balsemão, e pelo lado da TVI, por Pedro Morais Leitão. Um terceiro contrato beneficiou ainda a Trust in News, dona da Visão e de outros títulos, mas com um montante muito mais pequeno: apenas 50 mil euros. Os contratos com as duas empresas de televisão foram assinados por volta das 15 horas e 30 minutos.

    black plastic frame on brown wooden floor

    Aliás, a forma pouco transparente com que têm sido distribuídos os montantes causa perplexidade. Os contratos têm vindo a ser assinados desde Março, a conta-gotas, abrangendo tanto empresas de gestão de outdoors, como agências de comunicação e de publicidade digital (entre as quais as empresas donas do Facebook e do YouTube) e empresas de media, mas nunca se revelaram os critérios para a distribuição das maquias. Na verdade, os contratos funcionam como um plafond a gastar, caso a caso, desde o início de Janeiro passado até ao final do próximo mês de Dezembro.

    Com mais estes três contratos, os gastos em publicidade a pagar pela SCML aproximma-se já dos 14 milhões de euros, sendo provável que ainda aumentem mais, uma vez que, por exemplo, ainda nem sequer está divulgado o previsível contrato com a Medialivre, dona do Correio da Manhã, da CMTV e do futuro canal Now, e que tem Cristiano Ronaldo como principal accionista.

    Para a generalidade destes contratos é invocada uma norma de excepção do Códigos dos Contratos Públicos – a contratação excluída -, aplicável “à formação de contratos cujo objecto abranja prestações que não estão nem sejam susceptíveis de estar submetidas à concorrência de mercado, designadamente em razão da sua natureza ou das suas características, bem como da posição relativa das partes no contrato ou do contexto da sua formação”. Um argumento que terá ainda de passar pelo ‘crivo’ do Tribunal de Contas, pelo menos nos contratos de maiores montantes. Em alguns dos contratos, esta justificação serve para nem sequer ser apresentado contrato escrito.

    Ana Jorge (Foto: D.R./SCML)

    A SIC e a TVI, com os contratos ontem assinados, passam a liderar o bolo publicitário da SCML, ultrapassando assim, largamente, a RTP que, na semana passada, teve direito à promessa de entrega de 1,03 milhões de euros. Mas entre os, por agora, 31 os ‘contemplados’ pela SCML, estão agora também empresas estrangeiras: a Meta – dona do Facebook -, o Google – dono do Youtube – e a Walt Disney – dona de diversos canais por cabo.

    No caso da empresa de Mark Zuckerberg, a SCML vai pagar 600 mil euros por publicidade na rede social Facebook, não existindo qualquer contrato que estipule preços nem condições. Este será o primeiro contrato da Meta com entidades públicas portuguesas, de acordo com o Portal Base. No caso do Google, o montante é um pouco mais baixo: 400 mil euros, embora também não se saiba se o investimento publicitário será exclusivamente no YouTube, uma vez que o contrato também não foi reduzido a escrito. No caso da sucursal portuguesa da Walt Disney, o montante em causa atinge os 350 mil euros, e até existe contrato escrito, apesar de nada dizer sobre quais os canais onde a publicidade será colocada. A empresa tem vários canais televisivos por cabo, entre os quais o Disney Channel, Disney Junior,Baby TV e National Geographic.

    No caso das empresas de media, são agora 16 as beneficiadas, sem se conhecer também as razões da escolha e sobretudo dos montantes. Atrás da SIC, TVI e RTP, por agora a quarta maior beneficiada nos contratos da SCML é a sucursal portuguesa do grupo alemão Bauer Media, dona da Rádio Comercial, M80, Cidade FM, Smooth FM e Batida FM. Prometidas estão, desde já, 766 mil euros em publicidade da SCML.

    Contudo, se se somar os contratos da subsidiária que controla a TSF, a Global Media fica próxima dos valores da RTP. Directamente para o grupo liderado por Marco Galinha, que vive uma situação financeira catastrófica, a SCML vai entregar publicidade no valor de 560 mil, mas pode também incluir mais 260 mil euros a receber da sua subsidiária Rádio Notícias. Deste modo, a Global Media encaixará da instituição liderada pela antiga ministra socialista da Saúde um total de 820 mil euros. E então o seu administrador Rui Manuel da Costa Rodrigues só pode tecer loas, por via das verbas a receber da Mol 2.

    A distribuição da maior fatia à Global Media não deixa de surpreender ainda mais tendo em conta também a circulação dos seus principais diários, mesmo incluindo a componente digital. Por exemplo, a Impresa ‘só’ vai receber 350 mil euros. Este montante incluirá, em princípio, apenas os títulos da imprensa escrita, uma vez que a SIC é gerida por uma empresa própria. Como a SCML não quis revelar se houve mais contratos ainda não publicados no Portal Base, ignora-se se o grupo de media fundado por Pinto Balsemão terá mais razões para agradecer a bondade da SCML.

    Polémicos também são os contratos que beneficiam empresas de Luiz Montez. De modo algo surpreendente, sobretudo pelo fraco alcance da rádio em questão e por envolver indirectamente uma empresa com dívidas ao Estado, é o contrato para publicidade que a SCML celebrou com a empresa da Rádio Amália, que envolve o pagamento de 176.800 euros, que representa 40% dos rendimentos que obteve em 2022. Esta empresa – a Rádio Nova Loures – pertence a Luís Montez, através da Música no Coração que, como o PÁGINA UM já revelou, nem apresentou contas em 2022, estando no ano anterior com capitais próprios negativos de quase 6,2 milhões de euros.

    João Correia, o administrador da SCML que assinou ontem os contratos com a SIC, TVI e a Trust in News, foi secretário de Estado da Justiça no Governo socialista liderado por José Sócrates, entre Novembro de 2009 e Novembro de 2010. (Foto: D.R.)

    Luís Montez saiu-se duplamente beneficiado neste selecto grupo de adjudicatários para prestação de serviços de publicidade á SCML. Com efeito, a SIRS – a empresa que detém a Rádio Nova, onde ele possui 25% do capital, sendo que outro tanto é de Álvaro Covões e 50% pertence ao Público – vai receber até ao final do ano por serviços de publicidade um total de 62.400 euros.

    Nos despachos hoje publicados pelo Governo, assinados pela ministra do Trabalho e Solidariedade Social, a exoneração da Mesa da SCML é justificada por não ter prestado “e “informações essenciais ao exercício da tutela, nomeadamente, a falta de informação à tutela sobre o relatório e contas de 2023, mesmo que em versão provisória, sobre a execução orçamental do primeiro trimestre de 2024, bem como a ausência de resposta de os pedidos de informação até agora solicitados”. O Governo Montenegro acusa também a equipa de Ana Jorge de não ter elaborado “um plano de reestruturação financeira, tendo em conta o desequilíbrio de contas entre a estrutura corrente e de capital”, o que constituirá “actuações gravemente negligentes”.

    Através de um comunicado aos trabalhadores, a antiga ministra socialista da Saúde já reagiu ao ‘despedimento’ e aos motivos invocados, criticando a “forma rude, sobranceira e caluniosa” com que o Ministério do Trabalho justifica a sua exoneração”. Ana Jorge diz também que “em política, tal como na vida, não vale tudo”. Mas, enfim, “, prometendo que, “a seu tempo e em sede própria, contarei a minha verdade, que é a verdade de quem serviu a SCML com a mesma entrega e espírito de missão com que desempenhei as várias funções públicas e cívicas ao longo da minha vida”.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

  • Os passos do Governo & da democracia & de Sebastião Bugalho

    Os passos do Governo & da democracia & de Sebastião Bugalho


    Regressando de férias, com moderação de Pedro Almeida Vieira, O Estrago da Nação, no seu 15º episódio, põe em confronto a visão de esquerda do Tiago Franco a a visão libertária do Luís Gomes. Hoje, analisam-se os primeiros passos do Governo Montenegro, o estado do país ao fim de 50 anos de democracia e, ainda, as ‘portas giratórias’ entre a comunicação social e a política, a pretexto da ‘viagem’ de Sebastião Bugalho do jornalismo para ‘cabeça de lista’ da AD nas eleições europeias. Ainda houve tempo para comentar as declarações de Marcelo Rebelo de Sousa sobre as ‘características’ de António Costa e Luís Montenegro.

    Acesso: LIVRE, mas subscreva o P1 PODCAST com um donativo mensal de 2,99 euros. Ajude o PÁGINA UM a amplificar o seu trabalho.