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  • Covid-19: Ordem dos Médicos impediu pais de conhecerem parecer que não recomendava vacinação a menores saudáveis

    Covid-19: Ordem dos Médicos impediu pais de conhecerem parecer que não recomendava vacinação a menores saudáveis

    Miguel Guimarães, vice-presidente da bancada parlamentar do PSD e antigo bastonário da Ordem dos Médicos, escondeu intencionalmente em 2021 dois pareceres do presidente do Colégio de Pediatria que, a não serem ‘barrados’, teriam permitido que muitos pais evitassem ir a correr vacinar filhos saudáveis contra a covid-19. O conteúdo dos pareceres, assinados pelo pediatra Jorge Amil Dias – que viria a ser ‘perseguido’ durante meses por Miguel Guimarães –, é agora finalmente revelado pelo PÁGINA UM, após ter sido necessário o recurso ao Tribunal Administrativo de Lisboa, uma vez que Carlos Cortes, o sucessor de Miguel Guimarães, também não quis revelar estes documentos fundamentais para um “consentimento informado”. Mais de dois anos depois, o PÁGINA UM quis saber se Miguel Guimarães se arrependeu do que fez. Não obteve resposta.


    Em pleno Agosto de 2021, o actual chefe do Estado-Maior da Armada Gouveia e Melo, como coordenador da task force da vacinação contra a covid-19, apesar da sua especialidade de submarinista, era o suposto ‘maestro’ da Saúde Pública em Portugal. No dia 11 daquele mês, apelava ele na imprensa para que os pais dos adolescentes entre os 12 e 15 anos os fossem vacinar sem qualquer receio. “Nós temos cerca de 400 mil jovens nessa situação. Eu espero que os pais desses jovens percebam uma coisa muito simples: a vacina é segura, a vacina é eficaz e, numa pandemia, não ser vacinado com a vacina é ser vacinado com o vírus”, garantia então Gouveia e Melo, ‘entronizado’ como herói no combate à pandemia através da agilização da logística da administração deste fármaco.

    Poucos dias depois, em 21 de Agosto, recebido com aplausos, Gouveia e Melo mostrava a sua emoção pela ‘corrida dos pais’ aos centros de vacinação. Na semana anterior, a aura do coordenador da task force engrandecera-se ainda mais, depois de ‘enfrentar’ uma manifestação em Odivelas constituída por pessoas logo apelidadas de “negacionistas” e “anti-vacinas”. Gouveia e Melo dizia então aos jornalistas: “Olhe, o que estão a dizer agora, genocídio e assassínio, chamam-me assassino, o que quer que eu lhe diga?”, para depois salientar que a “única coisa” que tinha a dizer aos manifestantes era que “o obscurantismo no século XXI continua”.

    Covid-19 Vaccine In Vials And Injection

    Obscuro, na verdade, estava então, numa ‘gaveta’ de Miguel Guimarães – então bastonário da Ordem dos Médicos e actual deputado e vice-presidente da bancada do PSD na Assembleia da República –, um sensível parecer de sete páginas sobre vacinação de adolescentes, que contrariava a pressão de se vacinar adolescentes. Urologista de formação, Miguel Guimarães era um dos maiores adeptos da vacinação generalizada, enquanto coordenava, com a actual ministra da Saúde, um ‘bolo solidário’ de 1,4 milhões de euros (pejado de irregularidades e ilegalidades) financiado quase em exclusivo por farmacêuticas. E não apreciou nada a ‘ousadia’ do Colégio de Pediatria em querer ‘meter o bedelho’ num sector que, enfim, abrangia menores de idade, ou seja, cidadãos que, mesmo quando têm problemas urinários (a especialidade de Miguel Guimarães) são tratados por pediatras.

    No parecer datado de 25 de Julho de 2021 – que finalmente chegou ao PÁGINA UM depois de uma rocambolesca intimação junto do Tribunal Administrativo de Lisboa, uma vez que o actual bastonário Carlos Cortes recusou cedê-lo de forma voluntária –, o presidente do Colégio de Pediatria, Jorge Amil Dias, salientava que “dado o risco geralmente ligeiro da doença por Covid na população pediátrica, do potencial benefício imunogénico de infecção ligeira, d[a] alta taxa de cobertura vacinal [então] a ser atingida brevemente na população adulta, dos potenciais efeitos iatrogénicos [efeitos adversos da vacina] e da falta de óbvio benefício para os jovens a vacinar” se mostrava recomendável, “perante os dados disponíveis neste momento”, administrar apenas a vacina para adolescentes entre os 12 e 15 anos que tivessem “cumulativamente” comorbilidades de risco especial e convivessem com “adultos que não [pudessem] receber a vacina por motivo medicamente reconhecido”. O parecer, elaborado por Amil Dias, foi aprovado por toda a Direcção do Colégio de Pediatria, constituída por 11 membros, que esteve em funções até Abril do presente ano.

    Saliente-se que a existência deste parecer (e de um outro, mais curto), mantido na obscuridão durante o mandato de Miguel Guimarães como bastonário, somente foi conhecido em Setembro do ano passado, como então revelou o PÁGINA UM, porque um terceiro parecer do Colégio de Pediatria, desta vez divulgado pela Ordem dos Médicos, lhes fazia referência.

    Miguel Guimarães e Ana Paula Martins: a pandemia ‘catapultou-os’ para voos políticos.

    Apesar de o conteúdo deste parecer concluído em Julho de 2021, assinado por Amil Dias, ser uma peça rigorosa de Ciência e de bom senso, imbuída dos princípios de prevenção, terapêuticos e éticos, Miguel Guimarães nem sequer o enviou para o Conselho Nacional, o órgão da Ordem dos Médicos com funções para determinar ou não a divulgação pública desta posição. Ao invés, nos meses seguintes, Miguel Guimarães manifestou sempre uma posição acintosa contra os médicos, incluindo pediatras, que apelaram para a prudência na vacinação de menores de idades, tendo em consideração os fracos benefícios e incógnita dos efeitos adversos a curto, médio e longo prazos.

    Recorde-se que os óbitos causados pela covid-19 em Portugal em idades pediátricas foram de apenas quatro em mais de três anos de pandemia, estando todos os casos associados a comorbilidades gravíssimas. Além disso, a letalidade global da covid-19 nos menores de 25 anos foi muito inferior às ‘banais’ pneumonias, já por si muitíssimo baixa, conforme o PÁGINA UM já demonstrou.

    Consciente da polémica então em curso nesse Verão, o presidente do Colégio de Pediatra lamentava, na introdução do parecer, “a voracidade da imprensa perante um assunto naturalmente controverso, e a frequente presença de não pediatras, alguns com cargos de responsabilidade na Ordem dos Médicos, emitindo recomendações, ainda que fora da sua competência específica”. Não são indicados nomes, mas um é óbvio: Filipe Froes, pneumologista com fortes ligações à indústria farmacêutica, consultor da Direcção-Geral da Saúde (DGS) e porta-voz do gabinete de crise da Ordem dos Médicos, que quase diariamente incentivava a vacinação generalizada independentemente do grupo etário e das vulnerabilidades.

    Apesar de o actual deputado social-democrata mais uma vez não ter respondido ao PÁGINA UM, uma semana antes de Amil Dias ter concluído o seu parecer de 25 de Julho de 2021, uma aparente sintonia pairava entre a Ordem dos Médicos e o Colégio de Pediatra, que é um órgão autónomo. Em 14 de Julho, uma notícia da Lusa referia que a Ordem dos Médicos tinha um representante no grupo de trabalho da DGS, que já entregara um documento onde estavam vertidas “as preocupações [que] devem ser consideradas e ponderadas na recomendação”. Amil Dias dizia então que “a questão que se coloca é se é ou não necessário vacinar com esta vacina, na medida em que a doença nas crianças, mesmo quando elas têm covid-19, é uma doença pouco grave”. Por sua vez, Miguel Guimarães dizia então que “é preciso ter alguma prudência, é preciso ter algum cuidado, é preciso analisar todo o conhecimento que existe nesta matéria e depois tomar uma decisão”.

    Jorge Amil Dias, presidente do Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos: os seus pareceres foram ‘engavetados’ e acabaria alvo de um processo disciplinar ‘patrocinado’ por Miguel Guimarães e promovido activamente por médicos com ligações à indústria farmacêutica.

    Porém, nos dias seguintes, o bastonário demonstrou que não aceitava opiniões discordantes da sua e do seu círculo próximo, independentemente de nenhum ser pediatra. E quando recebeu o parecer do presidente do Colégio de Pediatria, escondeu-o, e concedeu o apoio institucional para a vacinação dos menores.

    Lendo agora o parecer de Julho de 2021 assinado por Amil Dias, compreende-se os motivos, mesmo que ínvios, para Miguel Guimarães o esconder, mesmo se este comportamento possa ser considerado chocante num médico e, ainda por cima, com as responsabilidades públicas de um bastonário da Ordem dos Médicos.

    No primeiro ponto das “questões relevantes”, Amil Dias dedica-o ao “primado do benefício e segurança para as crianças e jovens” relativamente à vacinação contra a covid-19. O presidente do Colégio de Pediatria começa por dizer que deve sempre ser “assegurada a segurança de crianças e jovens, minimizando o risco de prejuízo e iatrogenia”, ou seja, de efeitos nefastos resultantes de um tratamento médico. Em seguida, alerta para o significado da aprovação de um fármaco, o que não deva a sua toma ser generalizada. “Aprovação significa apenas possibilidade de utilização do fármaco em questão”, escreveu, relembrando ainda que “os interesses da indústria [farmacêutica] consistem nos seus interesses comerciais”. Amil Dias destacava mesmo ser “excessivo e abusivo assumir que a mera aprovação da EMA [Agência Europeia do Medicamento] significa recomendação automática”.

    E assim, frisando que os processos de autorização das vacinas contra a covid-19 “foram encurtados e as populações avaliadas muito menores do que é habitual, dado o carácter excepcional e emergente do contexto pandémico”, este pediatra acrescenta que “disso decorre que alguns riscos ou efeitos a médio prazo podem ter sido subvalorizados e só se tornarem evidentes com a utilização em grandes grupos populacionais”. E conclui: “Esta característica recomenda então que a indicação do seu uso generalizado seja ainda mais cautelosa e pesado cuidadosamente o risco/benefício da população pediátrica”, isto é, dos menores de idade.

    Primeira página do parecer de 25 de Julho de 2021 do Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos, que o então bastonário nunca levou ao Conselho Nacional, preferindo ‘engavetá-lo’.

    Quanto à questão da protecção conferida pela vacinação – que estudos científicos têm vindo a demonstrar ser cada vez menos duradoura e eficaz com as novas variantes, além de ser agora consensual que a imunidade natural é bastante relevante –, o presidente do Colégio de Pediatria já então, em Julho de 2021, defendia de forma clara que “a vacinação, mesmo completa, não impede completamente a infecção, embora diminua o seu risco” em termos de morbilidade e mortalidade. Porém, salientava algo que então Miguel Guimarães e as autoridades políticas e de saúde se recusavam a admitir: “A esperança inicial, que a vacina controlasse por completo a doença promovendo a sua erradicação, tem sido defraudada, facto que não está exclusivamente relacionado com a adesão à vacinação, mas também relacionada com as características das vacinas e da doença”. Amil Dias destacava já que a vacina contra a covid-19 funcionava “de forma substancialmente diferente das vacinas tradicionais que impedem a infecção e ajudam à sua erradicação”, dando os exemplos da poliomielite e do sarampo.

    Por esses motivos, e também por já então considerar ser “provável que a doença natural” conferisse “imunidade mais consistente do que a proporcionada pela vacina” – algo que jamais o bastonário da Ordem dos Médicos desejava admitir, em linha com as autoridades e também com Gouveia e Melo, ansioso em mostrar números –, o presidente do Colégio de Pediatria acrescentava que “se a doença não é severa na população pediátrica, então é plausível que a imunidade conferida pela infecção (em doença clínica geralmente ligeira) possa até ser mais eficaz do que a da vacina, desde que os adultos em risco estejam protegidos pela vacina”. E concluía o óbvio: “é desta forma que identificamos as doenças infecciosas vacináveis”.

    No seu parecer, Amil Dias também colocava ‘água na fervura’ do sensacionalismo mediático em torno da hospitalização de crianças com covid-19, que considerava de “muito baixo número de internamentos ou de gravidade”. “No início da pandemia”, escreveu o presidente do Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos, “houve alguns internamentos motivados mais pelo receio médico de doença agressiva do que de gravidade efectiva”, recordando os quatro casos de mortalidade pediátrica sempre “associados a outras co-morbilidades severas”. Amil Dias apresentava dados internacionais, como os da Inglaterra, onde a taxa de sobrevivência em menores era de 99,995%, “confirmando que a doença [covid-19] é muito raramente fatal” em idade pediátrica, “mesmo entre aqueles com co-morbilidades”. O pediatra indicava que, com base nos dados ingleses, a taxa de mortalidade de menores era de 0,0002% e que representava 0,8% das mortes pediátricas, bastante raras, por todas as causas.

    ‘Templo de obscuridão”: durante a pandemia, Miguel Guimarães ‘fechou’ a Ordem dos Médicos ao debate e à opinião, ‘perseguindo’ colegas por delito de opinião.

    No meio deste parecer, o presidente do Colégio de Pediatria também recordava aquilo que era a prática consolidada em Saúde Pública antes da pandemia, e que politicamente foi alterada durante o programa de vacinação contra a covid-19. “O conceito de vacinas é extremamente caro aos pediatrias”, destacava Jorge Amil Dias, “que têm tido perfeita noção do seu benefício e por isso, compreensivelmente, se preocupam que um novo programa específico possa comprometer a confiança que a população tem nas imunizações recomendadas”. E, invocando “o conceito geral [de] que a vacinação deve beneficiar directamente quem a recebe”, mais adiante o presidente do Colégio de Pediatria nem sequer ser ético vacinar crianças se se quisesse proteger os mais idosos.

    Até porque, como argumentou Amil Dias, os efeitos adversos então já apontados não eram assim tão irrelevantes, estimando a ocorrência de “60 episódios de miocardites entre os 570.000 candidatos à vacina anunciados” pelo Governo. E destacava que essa incidência era “superior à dos fenómenos tromboembólicos com a vacina da AstraZeneca, o que levou à sua suspensão total em alguns países”. Relembre-se que a vacina da AstraZeneca foi retirada do mercado pela própria farmacêutica anglo-sueca por alegadas questões financeiras, mas subsiste meia centena de julgamentos no Reino Unido devido a efeitos adversos e um rasto de mais de três mil mortes suspeitas somente nos países do Espaço Económico Europeu.

    A este parecer ‘engavetado’ por Miguel Guimarães sem sequer ouvir o Conselho Nacional da Ordem dos Médicos, seguir-se-ia mais tarde um novo parecer de Amil Dias, este apenas de uma página, que surgiu aquando da decisão de se vacinar também as crianças entre os 5 e os 11 anos. Nesse texto, também censurado pelo então bastonário da Ordem dos Médicos, alertava-se para o facto de “não [haver] informação suficiente para assumir qualquer posição de princípio a favor ou contra a utilização desta vacina neste grupo etário na actual situação epidemiológica no nosso país”.

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    Doentes ou não doentes: a ambição de vacinar 100% dos portugueses levou a administrar doses sem conhecer impactes futuros mesmo em crianças e adolescentes saudáveis.

    E dizia Amil Dias, ainda, que, sem prejuízo de aceitar as decisões das entidades reguladoras, deveria ser “considerado em todas as circunstâncias o equilíbrio entre o benefício comprovado para as crianças vacinadas e os potenciais malefícios/ efeitos secundários, assim como o real impacto/ benefício para a comunidade da sua vacinação em cada momento da situação epidémica”. E concluía: “para que seja possível esta avaliação, somos de opinião que os dados actuais são ainda insuficientes”.

    Perante a posição intencional de Miguel Guimarães em esconder os dois pareceres ao público, impedindo assim o acesso a informação relevante para um consentimento informado por parte dos pais, no início de 2022 seria lançado um abaixo-assinado a pedir a suspensão imediata da vacinação contra a covid-19 em crianças e jovens saudáveis. Entre os signatários encontravam-se, além de Amil Dias, o catedrático Jorge Torgal (um dos maiores especialistas de Saúde Pública do país e antigo presidente do Infarmed de 2010 a 2012), os pediatras Francisco Abecassis e Cristina Camilo (presidente da Sociedade de Cuidados Intensivos Pediátricos) e o cardiologista Jacinto Gonçalves (vice-presidente da Fundação Portuguesa de Cardiologia).

    Porém, com a opinião pública completamente ‘intoxicada’, este abaixo-assinado foi ostracizado, e Miguel Guimarães conseguiria mesmo montar uma operação de ‘difamação’ do presidente do Colégio de Pediatria, que envolveu um processo disciplinar e mesmo uma tentativa de exonerar Jorge Amil Dias. De entre os médicos que ‘denunciaram’ Amil Dias estavam Alberto Caldas Afonso, Filipe Froes, Luís Varandas, Carlos Robalo Cordeiro, parte dos quais com fortes ligações à indústria farmacêutica. Em particular, Froes e Varandas (que até recebia uma avença) com uma ‘preferência particular’ à Pfizer, a empresa com a vacina autorizada para menores. O processo disciplinar a Amil Dias seria arquivado em Novembro de 2022, mas Miguel Guimarães conseguiu durante meses os seus intentos: lançar um ‘manto’ mediático difamatório sobre Amil Dias para o descredibilizar junto da opinião pública e a classe médica.

    Neste ínterim, enquanto a Ordem dos Médicos procurava ‘silenciar’ os críticos, foi sendo montada uma rede de cumplicidades e atropelos legais para ‘validar’ a campanha de vacinação de menores, que inclui a não audição do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, substituindo-o por uma jurista com ligações ao Partido Socialista e ao Grupo Melo e que concluía existirem “benefícios para a saúde mental da criança decorrentes de ser vacinada, uma vez que, se não for infectada, não sofrerá os efeitos negativos associados a uma ou várias situações de confinamento”.

    Gouveia e Melo, actual Chefe do Estado-Maior da Armada, foi coordenador da task force, sendo a sua opinião considerada mais válida do que a do presidente do Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos.

    O processo de vacinação de menores de idade apenas decorreu durante alguns meses, mantendo-se uma espécie de omertà sobre os efeitos adversos. Até Dezembro de 2022, a Agência Europeia do Medicamento (EMA) informava que tinham sido administradas cerca de 57,3 milhões de doses em menores. Deixou de ser entretanto administrada, excepto em condições muitos particulares de comorbilidades.

    Numa investigação do PÁGINA UM à base de dados da EMA, publicada em Janeiro do ano passado, detectaram-se então 125 casos de mortes de jovens, a esmagadora maioria sem qualquer comorbilidade grave, com fortes suspeitas de estarem associadas à toma da vacina da Pfizer. Mas tanto em Portugal como no estrangeiro mantém-se um encobrimento da verdadeira dimensão dos efeitos secundários. No nosso país, o PÁGINA UM aguarda há mais de um ano o resultado de um recurso no Tribunal Central Administrativo para aceder aos dados anonimizados do Portal RAM gerido pelo Infarmed. O pedido ao regulador, recusado, foi feito no final de 2021.

    N.D. Consulte AQUI os dois pareceres integrais. Este longo processo de saber a verdade somente foi possível por intermédio de uma acção de intimação junto do Tribunal Administrativo de Lisboa, e graças ao apoio financeiro dos leitores do PÁGINA UM, por via do FUNDO JURÍDICO (que neste momento está em défice). O recurso aos tribunais, apesar de serem processos onerosos, lentos e desgastantes, têm sido a única forma de obter, em muitos casos, documentos fundamentais, uma vez que, apesar de transcorridos 50 anos do fim do Estado Novo, há ainda ‘velhos hábitos’ que perduram.


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  • Transparência dos media: Vodafone apanha coima histórica de 75 mil euros por esconder accionistas

    Transparência dos media: Vodafone apanha coima histórica de 75 mil euros por esconder accionistas

    Operadora de televisão por cabo e accionista da Sport TV, a sucursal portuguesa da Vodafone andou num ‘jogo do gato e do rato’ com a Entidade Reguladora para a Comunicação (ERC) por causa da identificação dos accionistas de referência, obrigatória na Lei da Transparência dos Media. A Vodafone andou a ‘puxar’ a paciência do regulador até ao limite para não divulgar informação no Portal da Transparência que, na verdade, até constava em relatórios da ‘holding’ inglesa, onde, além da BlackRock, se fica a saber da participação da empresa de telecomunicações do Estado dos Emirados Árabes Unidos, e que tem causado polémica no Reino Unido por razões de segurança interna. O desfecho deste processo, iniciado há mais de três anos, teve agora um epílogo: uma coima de 75 mil euros, a maior deste género aplicada pelo regulador dos media.


    Foi um jogo do gato e do rato, embora o ‘rato’ seja uma multinacional inglesa: a Entidade Reguladora para a Comunicação Social multou este mês a Vodafone em 75 mil euros por esconder “com dolo” os accionistas de referência. Em causa estava uma obrigação, prevista na Lei da Transparência dos Media, que obriga todas as empresas de media a revelarem os sócios, accionistas ou outra entidades e pessoas com interesses directos ou indirectos superiores a 5% do capital social.

    A multa agora aplicada á Vodafone – que tem uma participação de 25% na SportTV, daí estar sobre a alçada do regulador dos media – é a maior já aplicada por violação da Lei da Transparência, e surge numa sequência de outros processos recentes que levaram já à aplicação de duas coimas de 16,700 euros (à PFM – Radiodifusão e à Popquestion), outras duas de 20 mil euros (à cooperativa Rádio Singa e à Rádio Ilha) e uma de 35 mil euros à empresa gestora da Rádio Santo António.

    Mas ao contrário destas empresas – e de outras mais que viram ser os seus processos de contra-ordenação arquivados, geralmente após correcção das falhas e lacunas apontadas pela ERC –, onde as coimas se referiam à falta de informação sobre os fluxos financeiros, no caso da Vodafone a sucursal portuguesa quis deliberadamente esconder dois dos seus accionistas de referência: a multinacional de investimentos BlackRock e uma empresa de telecomunicações detida maioritariamente pelo Estado dos Emirados Árabes Unidos, a ETISALAT.

    Na deliberação da ERC, ontem divulgada mas aprovada no passado dia 15, é historiada as insistentes tentativas do regulador em fazer a Vodafone cumprir o preceituado na lei portuguesa que exige conhecer-se mesmo os principais accionistas a montante da empresa que directamente detém um órgão de comunicação social.

    Ora, no caso da Vodafone, como se está perante uma holding em cascata, tipo matrioska, a sociedade anónima Vodafone Portugal – Comunicações Pessoais está registado no Portal da Transparência como operador de distribuição e prestador de serviços audiovisuais a pedido, bem como accionista (25% do capital) da Sport TV Portugal. Mas esta é a sucursal da Vodafone Europe BV, que a detém a 100%. Por sua vez, esta empresa é detida pela Vodafone Consolidated Holdings Limited, que por sua vez é detida pela Vodafone International Operations Limited, e esta é detida pela Vodafone European Investments. No topo desta ‘cascata’ está a Vodafone Group PLC. E era sobre a origem do capital desta public limited company (PLC) – um termo que, no Reino Unido, se aplica a corporações com investimento privado, não estatal – que a ERC pretendia que fosse colocada no Portal da Transparência.

    A primeira vez que o regulador detectou a ausência de informação sobre os principais accionistas da Vodafone Group PLC foi em Abril de 2021, tendo sido dado 10 dias para a correcção das falhas. Mas ao longo dos meses seguintes, com muitas trocas de mensagens de correio e contactos, a falha principal não foi corrigida. Em Novbembto de 2022 – ou seja, mais de um ano e meio depois –, a a mandatária da Vodafone informou a ERC de que a “Vodafone Group PLC, entidade cujo capital social se encontra disperso em bolsa, não sendo, consequentemente, possível proceder à identificação dos detentores do mesmo”, acrescentando que, por este mesmo motivo a Vodafone Group PLC não tem uma estrutura do capital social definida na plataforma [da transparência]”.

    Não era, porém, verdade – como os serviços da ERC detectaram, e bastaria uma consulta nos relatórios e contas da própria holding. Por exemplo, no mais recente relatório anual, embora haja uma parte significativa do capital em bolsa, a própria Vodafone Group PLC identifica, como accionistas de referência, a ETISALAT detém 14,01%, a BlackRock 6,23%, a Liberty Global 4,92% e o Norges Bank 3,00%. Para efeitos de cumprimento da Lei da Transparência dos Media somente as duas primeiras teriam de ser indicadas – mas teriam mesmo.

    Só que a sucursal portuguesa manteve o ‘braço de ferro’ com a ERC, dizendo em Fevereiro do ano passado que “na generalidade das situações em que são solicitadas informações sobre a estrutura acionista de uma determinada empresa do grupo, nunca são incluídas informações sobre os acionistas minoritários da Vodafone Group PLC (empresa-mãe do Grupo Vodafone) no respetivo organigrama, uma vez que este é elaborado de forma a abranger apenas as empresas detidas (direta ou indiretamente) por esta última entidade. Por outras palavras, os organigramas fornecidos a entidades externas só identificam empresas a partir da empresa Vodafone Group Plc para baixo”.

    A partir daí a ERC fez o serviço que lhe competia e avançou com o processo de contra-ordenação, apurando também que faltavam as participações relevantes da Black Rock, detidas pela Vanguard Group (8,65%) e a Blackrock Fund Investiments (6,53%), que continuam ainda em falta no Portal da Transparência dos Media. Note-se, aliás, que a sucursal da Vodafone, apesar de ter colocado a participação da BlackRock e da ETISALAT (desactualizada), ainda não inseriu os accionistas da holding norte-americana.

    A ERC é particularmente critica ao comportamento da Vodafone, dizendo que, “dada a sua dimensão, e o facto de operar há vários anos num sector de elevada complexidade técnica, altamente regulado, não pode ter deixado de representar que tinha o dever de indicar toda a cadeia de imputação de participações iguais ou superiores a 5% do capital social”. E acrescenta mesmo que não está em causa “uma matéria meramente teórica”, mas sim algo que “assume gravidade”. Nessa linha exemplifica, de forma explícita, com a celeuma no Reino Unido causada pela entrada da empresa de telecomunicações no capital da Vodafone, por fornecer “tecnologia sensível a departamentos e agências governamentais”.

    O regulador poderia ter optado por uma coima entre 25 mil e 125 mil euros. Acabou por escolher o valor médio: 75 mil euros, “dado o desvalor da conduta e a sua gravidade, o facto de a Arguida não mostrar qualquer arrependimento ou compreensão do desvalor e, de modo a evitar um juízo de impunidade relativamente à prática da infração e da culpa”.


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  • Quatro dias, uma moto e uma mochila

    Quatro dias, uma moto e uma mochila


    Em 2018, Rui Araújo fez uma ‘peregrinação’ sem destino traçado nem etapas definidas, a partir de Lisboa, em cima da sua então nova mota, apenas pelo prazer da viagem e de encontros imprevistos. Estava para ser uma espécie de ‘viagens à minha terra’ versão motorizada, mas atravessou a fronteira, e não se satisfez apenas com Espanha, galgando o País Basco, até à francesa Baiona, nos Pirenéus Atlânticos. O importante é a viagem, não o destino – e um diário para que a memória se mantenha.


    LISBOA. 

    É uma viagem (essencialmente por estradas secundárias) sem acompanhantes. E, sobretudo, sem destino.

    VENDAS NOVAS.

    Decido abandonar a A6. Há estradas que parecem autênticos túmulos desolados a céu aberto. E faz um calor de rachar.

    MONTEMOR-O-NOVO.

    O importante não é o destino. Chegar é, aliás, irrelevante. O que importa é partir, viajar. É a peregrinação. Dou comigo a matutar, sem querer, que andar de moto é como navegar. E, se não é, parece…

    Penso na primitividade das minhas desventuras da pesca do tubarão, entre o arquipélago de Cabo Verde e a linha imaginária do Equador. Cheguei a narrá-las na revista LUZES (A Corunha).

    O meu mar…

    Essa reportagem acabava mais ou menos nestes moldes:

    Depois da faina da pesca do tubarão, a nossa conversa em torno da mesa do pesqueiro Intrujão é, necessariamente, filosófica: grogue e putas.

    — Depende da qualidade. Mais barata é 250 escudos [2,5 euros]. Depois, há 300 escudos [três euros]. A diferença é a qualidade. A chinesa é de 500 [cinco euros] para arriba. Badia, há a todos os preços… — explica Magrás.

    — São Vicente é mais caro do que a Praia. Mamada a 500, fodas a 1.000 é o mais barato — acrescenta Mendonça.

    Ti John coça o pescoço, vagarosamente.

    — Hoje, é dia de foder a mulher de cada um, não é dia de puta… — adianta.

    — Se o senhor quer uma mulher em São Vicente, eu arranjo… — propõe-me Magrás.

    Acabamos por atracar no Mindelo. O pescador ferido, Luís (Malulula), é transportado imediatamente para o único hospital da ilha de São Vicente. 

    Largamos amarras (há pescadores que preferem a expressão «largar cabos») segunda-feira, às duas da tarde. Serão mais três semanas sem avistar terra, se tudo correr bem. De resto, sinto-me  melhor no mar. E não estou aqui a fazer nada…

    O pescador Luís Malulula aprendeu a ler e a escrever comigo. Três semanas de mar e uma tempestade foram suficientes para ele conseguir gatafunhar o nome e dois ou três verbos a acabar em «ar». Morreu no dia em que atracámos no Mindelo. Teve um desastre. Tinha 40 anos. E deixou uma família por sustentar e muitas histórias de mar para contar, pelo menos isso. Não é nada e é muito…

    Luís Malulula: depois da pesca do tubarão as aulas de português.

    PASTANEIRA.

    Apesar da grandiosidade da planície bravia, dou graças ao destino por ter nascido junto ao mar. Esta paisagem árida, poeirenta e monótona atordoa-me.

    ARRAIOLOS.

    Paro no Forjador... Café e cigarro. As especialidades do restaurante são as empadas de galinha e os bolos tradicionais.

    ESTRADA NACIONAL 4. 

    É, portanto, mais uma tarde canicular. E os dias largos ainda nem sequer chegaram.

    Vimieiro e, em seguida, Estremoz. Em Borba, hesito. Tenho gasolina para mais 100 quilómetros.

    Badajoz? Ou meto pela N255 em direcção a Monsaraz? Eu adoro aquela vilazinha medieval alegre e buliçosa alcandorada sobre um cabeço. Do esplendor de antanho restam as casas caiadas e uma calçada bruta de xisto. O castelo. O muro da cerca, que esconde com parcimónia a melancolia daquela terra poeirenta e abrasadora e uma luzidia albufeira verde-doirada que se estende até ao horizonte. No burgo ninguém me espera…

    MONSARAZ.

    Parece que foi ontem. Fiquei na Casa Pinto, uma pensão situada diante da sumptuosa igreja de Nossa Senhora da Lagoa, ao lado de um pelourinho de factura oitocentista. Deus e a Justiça dos homens no mesmo espaço. Era o local ideal para mim, o zeloso e fiel combatente da infâmia e dos actos de arrepia-cabelo que corroem a normalidade envergonhada (?) da sociedade bem-pensante ou tão simplesmente do fingidor de jornalista.

    Eu recordo-me. A porta baixa de linhas austeras da pensão estava entreaberta. Entrei. A casa, que tinha sido restaurada pelo novo dono, um tipo mais triste do que taciturno, preservara o decoro devido à tradição. O resto não é para aqui chamado. Morrer mal é a mesmissíma coisa que morrer…

    No fim de contas, opto por Elvas. Não dá para matar o Diabo, mas teimar em correr atrás de fantasmas é doentio…

    ELVAS.

    Entrada da cidade. Depois da operação da GNR (ao lado da rotunda do costume, claro!). Faço uma paragem imprevista. E esboço um gesto de repulsa assaz patético, mas sincero. O raio da viseira está repleta de insectos . Puta que os p…

    Limpo o capacete e arranco ou, por outras palavras, invisto contra a soalheira, tão rija que faz calar as cigarras (como diria Aquilino Ribeiro).

    CAIA.

    É na fronteira desolada (edifícios do Estado abandonados e comércios fechados) e cada vez mais simbólica (apesar da propagação dos populismos por essa Europa fora) que começa a E-90/A-5, uma via idêntica a qualquer autoestrada nacional. A única diferença é o preço: é gratuita.

    BADAJOZ.

    E a seguir? Podia enveredar já pelas estradas secundárias, mas não o faço apesar de serem as mais interessantes porquanto permitem descobrir um país quiçá desconhecido e «escutar o canto dos pássaros». 

    A natureza disciplinada acompanha os grandes eixos rodoviários, aqui como em Portugal. 

    As aldeias antigas e vazias, desertas de gente, por estas bandas, proliferam dos dois lados da raia.

    A 120, a velocidade legal (a CB 1100 só dá 190), chego rapidamente ao El Torero.

    LOBÓN.

    A via rápida passa perto da vila, situada a 35 quilómetros (praticamente a meio caminho entre Badajoz e Mérida). A escassa circulação rodoviária em Portugal  sobretudo de camiões e carrinhas  contrasta com o movimento daqui. E as velocidades praticadas.

    El Torero está fechado. O café é estupendo e o patrão uma pessoa afável. É, quem sabe, um filósofo. A mensagem pintada em letras garrafais no espelho diante do balcão é peremptória: «Por muito alta que seja uma montanha, há sempre um caminho até ao cimo. Tudo é muito difícil antes de se tornar fácil.» Do outro lado do pilar, meio escondido, acrescentou: «O segredo está na vontade.»

    Acabo por ir parar à esplanada do café/lar da vila. As veredas da vida estão muitas vezes onde menos as procuramos. Os velhotes sentados à minha volta conversam ou dormitam, tanto faz, aninhados nas recordações ou no esquecimento.

    TRUJILLO.

    No cimo de um prédio arcaico ou decrépito da Plaza del Campillo, a passarada encastelada bate asas e some-se. À hora do crepúsculo cada qual acoita-se onde pode. Empurro a porta do Hotel Victoria. Fico no quarto 109. O 110 é mais bonito, mas está ocupado.

    Deambulo, vagueio para matar o tempo e apaziguar a memória atordoada. Somos todos iguais, regemo-nos pela mesma cartilha. Discorremos como armaduras vazias e mutilamos o sentir, com trapaças ou futilidades, tornando-o inexprimível.

    Tienda de Isidro – Chorizos Caseros fica no outro passeio, paredes meias com o Hostal – Restaurante Julio.

    O lugar está mergulhado na obscuridade. Dou as boas tardes. Uma cliente bem-parecida observa algo numa prateleira. Um velhote, magrinho, ágil, que arruma latas, mete conversa comigo. É o pai de Isidro, o dono. Tem 90 primaveras ou outros tantos invernos. Faz parte dos encontros improváveis. Conta-me que foi operário da construção civil e que agora passa as tardes no estabelecimento. E que só arreda pé na hora do fecho.

    — E de manhã? — indago.

    — De manhã, estou no mercado.

    Isidro confirma com os olhos as palavras do pai.

    — Temos óptima patatera…

    — Estou mais interessado no queijo do que nos enchidos… — informo.

    — Tenho um curado de cabra, aqui, da Estremadura que é fenomenal…

    Duas velhotas descoradas, trajadas de negro, passam diante da porta. Parto.

    — Há alguma livraria em Trujillo? — pergunto por perguntar.

    A da esquerda acena que sim. A outra nem por isso.

    — Só temos uma. É na Calle Tiendas. É antes de chegar à Plaza Mayor. Fica no lado direito de quem sobe…

    Agradeço a resposta ou a doçura do tom. A doçura das espanholas é uma realidade.

    — E como é que é a vida aqui?

    — Há cada vez menos gente em Trujillo. Já não há trabalho. Os jovens partem para as grandes cidades e para o litoral, que são o futuro…

    — São? — pergunto como quem não quer a coisa.

    Elas não respondem. Limitam-se a sorrir. É um recado silencioso: lamúrias e queixumes não é com elas. Ou com os velhos…

    «A velhice é isto: ou se chora sem motivo, ou os olhos ficam secos de lucidez», escreveu Torga.

    Instalo-me num mesón que conheço perto da Plaza Mayor (a da estátua de Francisco Pizarro, conquistador do Perú). Peço migas. Já comi melhores, designadamente num restaurante perto dos bombeiros de Grândola. Cada região da península ibérica tem as suas. Desde sempre ou quase… já que a gastronomia resiste ao tempo e à distância.

    As ruelas esguias e acanhadas do lugarejo estão desertas, mas aquilo que  incomoda mais é o silêncio. É a mudez ensurdecedora dos manequins clonados tristes que nos macaqueiam nas montras e nos escaparates.

    O sol peneirado invade o quarto. Espreguiço-me, espreguiço-me, espreguiço-me. Como quando era puto. Depois do duche e do pequeno-almoço na cafetaria, subo ao castelo, compro um livro («Tecleo en vano» de Pilar Galán, Editorial de la Luna Libros, Mérida) e visito uma capela esplêndida porquanto os palácios aristocráticos continuam a ter dono…

    A meio da manhã, arranco de luto na alma. Isto é muito mais do que uma mera viagem improvisada: é uma peregrinação, amarga e solitária, feita de memórias desarrumadas, de saudade e de mais saudade. Penso muito no meu pai, que partiu há dias. Não me habituo. Jorge Araújo «partiu» porque as pessoas só morrem mesmo quando deixamos de pensar nelas.

    «A minha alegria em velho consistiria em ter aqui meu pai para falar com ele. Não é só saudade que sinto: é uma impressão física. Agora é que acharia encanto até às lágrimas em termos a mesma idade, conversarmos ao pé do lume e morrermos ao mesmo tempo…» Palavras do imenso Raul Brandão em 1908 e que permanecem actuais. Para mim, claro…

    TALAVERA DE LA REINA. 

    Estaciono à frente do restaurante El Monasterio (na Avenida Real Fábrica de Sedas, 3 – Ronda Sur). Subo seis degraus, ocupo a única mesa vaga da esplanada e encomendo leitão assado (cochinillo). O Tejo, alheio aos ruídos do mundo, corre tranquilo, ali à minha frente.

    Para fugir dos camiões e dos carros dos caixeiros-viajantes, abdico do caminho mais curto para Madrid. Dou preferência a uma estrada municipal que vai para Norte. É menos frequentada e, lá ao longe, dá para acompanhar a linha da Sierra de San Vicente (Cerro de San Vicente: 1.321 metros).

    NAVAMORCUENDE. 

    Após Cervera de los Montes, Marrupe e Los Jarales (um complexo de turismo rural para famílias numerosas com animais e para casais felizes) subo a encosta (770 metros) e entro (pela CM-5006) no município.

    O encanto do lugar é relativo. Devidamente decepcionado, chego à arreliadora conclusão de que a igreja é a única salvação de Navamorcuende. 

    Tomo um café morno. E parto como cheguei: com sossego e sem esperança. Madrid fica a 126 quilómetros (M-501). Serão mais duas horas a arder de solidão amorfa entre montes e vales…

    MADRID.

    É uma cidade incrível. E é ainda — ao contrário de Lisboa — uma capital europeia. Continuo a deslumbrar-me com as suas avenidas, praças, jardins (estou a pensar no parque del Buen Retiro) e nas esplanadas (como a do Cinco Jotas na Jorge Juan – C/ Puigcerdà, s/n). E com a movida. Os espanhóis podem ser danados, mas são acolhedores, alegres, menos formais e bem mais cojonudos do que nós.

    Despeço-me de Madrid. E, do mesmo modo, das minhas intenções gastronómicas: jantar no galego O’Grelo (C/ Menorca, 39). Desta vez, não fico no Petit Palace Savoy Alfonso XII (C/ Alfonso XII, 18, Retiro – Puerta de Alcalá), não compro livros na Pérgamo (esquina da C/ de Lagasca com a do General Oráa), não…

    Depois da peleja impossível para escapar ao tráfego madrileno sigo para Guadalajara (recordo que a autoestrada com portagem é a pior solução!) e chego lá em menos de uma hora.

    GUADALAJARA.

    Preciso de procurar o Norte. Tudela? Tudela soa-me a caça e pesca e a Bardenas Reales (um parque natural selvagem e semi-desértico).

    Decido ir em direcção a Tudela. Percorro a E-90/A-15/CL-101 (256 quilómetros de desolação monótona) ou a E-5 (337)? Hoje é a vez da primeira, que margina a aridez. Coincide com o meu estado de espírito. A E-90 será pois o meu miradouro para a outra Espanha. E a admirável terra sacrossanta de que(m) eu gosto é estimulante até nos seus mais ínfimos recantos. O desabafo é sincero, mas não me levem a sério. E não me peçam lucidez. O calor embrutece e embriaga…

    Paro num saloon de «moteros» no meio de nenhures. Feitas as saudações da praxe, entro e bebo uma água suja do imperialismo norte-americano, vulgo cola. Pago na caixa à saída – a troco da entrega de um papelinho manuscrito.

    «Na minha terra sou quem sou; na terra alheia sou quem vou», reza o ditado popular…

    TUDELA. NA-8703. 

    Os candeeiros da ponte sobre o barrento rio Ebro são iguais aos de Lisboa. E se não são, parecem. O centro da cidade é à esquerda. Como há coincidências (apesar de Fernando Pessoa não acreditar), desrespeito a sinalização. Todas as inépcias vão dar ao mesmo…

    CADREITA.

    Cinco da tarde. Está mais do que visto: é aqui que fico. A intuição raramente nos engana. Procuro a pensão. Desgraçadamente, La Casa de la Abuela (Calle Aralar, 2, Cadreita, Navarra) está fechada a sete chaves. Milagre crucial: descubro um contacto atrás do toldo esverdeado que tapa a porta. Ligo.

    — Podes ocupar o quarto 3, cariño… — diz-me dona Esperanza, solicíta.

    — Pois… mas como é que eu entro? ¬— indago.

    — É fácil…

    — E a mota?

    — Pode ficar na rua. Aqui ninguém mexe no que é dos outros…

    — Mas eu não estou habituado a esse regime…

    — Falamos às sete. Não te preocupes…

    — Ya veremos...

    Louvo Deus. Entro. Esperanza é uma optimista genuína que conseguiu preservar o que as gentes do interior têm de bom. Coloco a mochila, o capacete e as luvas no meu quarto. Está uma tarde bonita. Em desespero de causa, entro no primeiro bar que encontro.

    Triángulos (C/ Bardenas, 37) dá para aconchegar a alma e matar a sede. E o espaço é hospitaleiro.

    — Hola! — dispara o dono.

    — Buenas tardes…

    O Triángulos

    Sensação estranha: sou um perfeito forasteiro aqui, mas sinto-me como em casa. Há encontros felizes. Falamos de Pamplona (a capital da fiesta taurina de San Fermín, narrada, designadamente, por Hemingway em Fiesta) e de Arguedas, a povoação das imediações, conhecida sobretudo pelo deserto e as suas cuevas, autênticas cavernas escavadas na falésia, que chegaram a estar habitadas nos séculos XIX e XX.

    O convívio é cordial, mas ficar aqui parado ou quiçá pasmado não me interessa. Devoro duas excelentes omoletes com presunto e vou deitar-me. Mas só depois de arrumar a moto no pátio da cunhada de dona Esperanza, claro.

    CADREITA.

    Às 10 parto para Arguedas. Na rotunda ao fundo da rua, dou com Milagro (milagre, em português). Confesso que depois de Esperanza e de Milagro sinto um misto de curiosidade temperada de esperança apesar de crer que o pretenso destino é coisa que não existe.

    ARGUEDAS.

    Comarca de Ribera Navarra. 2.400 almas. Percorro a vila em segunda. Os vecinos idosos sentados num banco ao pé do cemitério fitam-me com olhos de espanto. Sorriem. Saúdo os velhotes com um gesto da mão.

    Arguedas, Navarra

    De um lado, a planície do rio Ebro, os soutos e os arrozais. Do outro, a Sierra del Yugo e a Bardena Blanca. Independentemente das tentações, há terras luminosas onde não me importava de viver. Se Arguedas tivesse mar ou chovesse mais esta seria uma delas. Há serenidade aqui. E pena, sabe-se lá…

    Calle la Peña – Arguedas

    A igreja paroquial de San Esteban (dos séculos XVI e XVII) está encerrada. Ignoro a liturgia. Desato com imprecações sonoras. Porque necessitamos do sagrado?

    CADREITA.

    Um duche. Um copo no bar. E dois dedos de conversa com dona Esperanza sobre o jornalismo de guerra e a solidariedade (ou a ausência de solidariedade) e a desistência moral. O resto é conversa de desbocado que não interessa…

    Arguedas – Las Bardenas Reales, território árido e semi-desértico.

    IRUN.

    Esta manhã, parto para França. Opto pela estrada nacional, que passa por Pamplona. Padeço tormentos com o frio e a chuva miudinha nos Pirinéus.

    Os redutos separatistas continuam a ser uma realidade mesmo em lugares recatados do País Basco. Mas não há tempo para questionar identidades.

    Pirinéus

    HENDAIA.

    Os engarrafamentos propiciados por ridículas limitações de velocidade sucedem-se e repetem-se para mal da minha paciência.

    Fronteira

    CIBOURE.

    Paro na primeira padaria que encontro. Papo um croissant (de manteiga, se faz favor!).

    BAIONA.

    É uma cidade bonita, preservada. Mas a prioridade é visitar o cemitério (obviamente privado) judeu. Muitos judeus de Baiona eram oriundos de Portugal. Nos editais da monarquia francesa eram denominados, aliás, a «Nação Portuguesa». Tinham o seu próprio bairro, Saint Esprit. Hoje, já ninguém dá pela sua presença…

    Compro chocolate belga e um ensaio do filósofo francês Michel Onfrain (Zéro de Conduite, Editions de l’Observatoire, França) sobre o bando de jornalistas sem olfacto a soldo de Maastricht e do político Emmanuel Macron, inventado pelos media e o mercado. A decomposição do jornalismo e da democracia está em marcha…

    PAMPLONA.

    Decido regressar a Lisboa pelo mesmo caminho. E hoje. São 1.016 quilómetros. Com este calor, a indolência deixa de ser defeito.

    LISBOA.

    Sol sem calor. A ponte sobre o Tejo é a minha fronteira. Circulo na faixa do meio porque no meio é que está a velocidade. 

    Penso que por muito que me esforce não vou escapar à saudade antecipada da minha próxima peregrinação: Santiago de Compostela para jantar com o meu amigo Xosé Manuel Pereiro (da revista LUZES) na Casa de Xantar (onde se fala, aliás, português!) O Dezaseis.

     Apertas, meu.


    Reportagem originalmente publicada no site Autoportal, já inactivo

    Fotos de Rui Araújo


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  • Controlo de fronteiras: Governo gasta 8,4 milhões de euros em ajuste directo decidido por António Costa

    Controlo de fronteiras: Governo gasta 8,4 milhões de euros em ajuste directo decidido por António Costa

    Uma Resolução do Conselho de Ministros ainda assinada por António Costa decidiu gastar, sem concurso público, 25 milhões de euros para os novos sistemas de controlo de fronteiras (Smart Borders), alegando, sem justificar, “urgência imperiosa”, um expediente de duvidosa legalidade nestas circunstâncias porque nem sequer é apresentada fundamentação. E o Governo Montenegro, que se queixou da ‘herança’ de despesas do anterior executivo, concordou com o procedimento de ajuste directo e já assinou um contrato de 8,4 milhões de euros com uma empresa (Timestamp), escolhida com base em critérios nada transparentes. A Presidência do Conselho de Ministros nem sequer mostra o caderno de encargos para se saber o que foi comprado com uma inusitada verba para este tipo de aquisições, tratando isto como se estivesse a comprar tremoços para acompanhar umas imperiais de sorte a refrescar uma tarde soalheira.


    O Governo de Luís Montenegro – que criticou o Governo de António Costa de lhe ter deixado despesas excepcionais, algumas aprovadas já depois das eleições – não aparenta particulares preocupações uma gestão criteriosa dessas mesmas despesas.

    O actual Governo, através da Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros, concordou em seguir uma resolução do Conselho de Ministros do início de Março, assinada exclusivamente por António Costa, no sentido de autorizar a realização de despesa para aquisição de software até 25 milhões de euros por ajuste directo no âmbito do pojecto comunitário Smart Borders para controlo automatizado de entradas e saída no Espaço Schengen.

    gray suv on road during daytime

    O primeiro contrato por ajuste directo – sem sequer se conhecer os detalhes da escolha nem aquilo que foi adquirido por nada constar no Portal Base – foi assinado na sexta-feira passada com a Timestamp no valor de 6,8 milhões de euros, já depois de um despacho no passado dia 17 de David Xavier, secretário-geral da Presidência do Conselho de Ministros. Com IVA, a despesa atingem valores próximos de 8,4 milhões de euros.

    A escolha do procedimento por ajuste directo, baseado exclusivamente numa resolução do Conselho de Ministros não é consensual, e terá ainda de ser sancionado pelo Tribunal de Contas. Isto porque a Resolução do Conselho de Ministros do Governo Costa apenas determina que se adopte os “procedimentos de ajuste directo […] por motivos de urgência imperiosa”, mas sem adiantar qualquer fundamentação. Com efeito, no Código dos Contratos Públicos, considera-se aceitável um ajuste directo, independentemente do valor – e este, para o género, é anormalmente elevado –, “na medida do estritamente necessário e por motivos de urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis pela entidade adjudicante, não possam ser cumpridos os prazos inerentes aos demais procedimentos, e desde que as circunstâncias invocadas não sejam, em caso algum, imputáveis à entidade adjudicante”.

    Ora, independentemente do interesse em modernizar o controlo de fronteiras, subsistem muitas dúvidas se a alegada “urgência imperiosa” resulta mesmo de “acontecimentos imprevisíveis” pela Secretaria-Geral da Presidência do Conselho de Ministros, e se esta entidade está isenta de culpas por um eventual atraso na implementação do projecto Smart Borders em Portugal, que foi aprovado em 2018 na União Europeia, que integra duas componentes.

    man standing inside airport looking at LED flight schedule bulletin board

    Por um lado, o novo sistema de entrada e saída (EES), que deverá começar a estar operacionalizado no segundo semestre deste ano, prevê a agilização do controlo de estrangeiros (fora do Espaço Schengen) em viagens de curta duração, com a eliminação do carimbo do passaporte e automatização de procedimentos. Quanto à outra componente, a começar a funcionar no primeiro semestre do próximo ano, trata-se do novo Sistema Europeu de Informação e Autorização de Viagem (ETIAS), que vai passar a exigir a diversos países uma autorização especial de viagem mesmo que não seja exigido actualmente necessário visto.

    O PÁGINA UM colocou diversas perguntas concretas à Presidência do Conselho de Ministros, todas respondidas com evasivas. Sobre os critérios que levaram à escolha, em concreto, da Timestamp – e de nenhuma outra –, fonte oficial diz que “a escolha da entidade em causa foi assegurada no estrito cumprimento do Código dos Contratos Públicos […], ou seja, de acordo com critérios técnicos e objetivos e com a rigorosa observância do princípio da imparcialidade”.

    E adiantou também que “na situação em apreço procedeu-se a uma consulta preliminar a várias empresas […], tendo em vista o planeamento eficaz do procedimento aquisitivo e assegurando a aquisição pretendida em condições mais favoráveis”. Contudo, não foram identificadas essas empresas consultadas, não tendo sido dada qualquer resposta quando se insistiu na identificação das empresas alegadamente contactadas para além da Timestamp, que garantiu o chorudo contrato de 8,4 milhões de euros.

    2 men in yellow and black suit action figures

    Em todo o caso, a mesma fonte garante que “não compete a qualquer membro do Governo, anterior ou actual, praticar atos decisórios no âmbito dos procedimentos pré-contratuais para as aquisições” desta natureza, e que, deste modo, “o Governo actualmente em funções não teve qualquer interferência na escolha da empresa seleccionada”.

    Apesar de ter sido pedido o caderno de encargos, e insistido, a Presidência do Conselho de Ministros não o enviou, dizendo apenas que se está perante uma “aquisição de infraestrutura tecnológica de suporte à instalação, gestão e manutenção dos novos sistemas europeus de controlo de fronteiras”, sem qualquer discriminação. Trata-se, contudo, e saliente-se, de uma compra de 8,4 milhões de euros, e não propriamente da aquisição de tremoços para acompanhar umas imperiais de sorte a refrescar uma tarde soalheira.


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  • Lei que afasta pequenos partidos dos debates televisivos está por rever desde 2016

    Lei que afasta pequenos partidos dos debates televisivos está por rever desde 2016

    Nesta campanha eleitoral para o Parlamento Europeu, os chamados ‘pequenos partidos’ têm clamado ainda mais forte contra a discriminação das televisões, porque ao contrário do que sucede geralmente nas eleições para a Assembleia da República, desta vez os convites não foram endereçados apenas para os partidos com eurodeputados, alargando-se ao Livre, Iniciativa Liberal e Chega. Alguns partidos sentiram-se discriminados e apresentaram queixas ou mesmo providências cautelares – como sucedeu com o ADN, RIR e Volt Portugal. No caso deste último partido, foi alegado que, sendo federalista, deveria ter sido contabilizado um eurodeputado alemão eleito em 2019. A Entidade Reguladora para a Comunicação Social não lhe deu razão, mas alertou para a falha da revisão da lei, que deveria ter sido feita em 2016, e da necessidade de encontrar soluções para uma melhor equilíbrio na cobertura mediática das diversas campanhas. O PÁGINA UM é o único órgão de comunicação social que, tanto nas anteriores legislativas como agora nas europeias, endereçou convites a todos os partidos para a realização de uma entrevista. Tudo isto sucede poucos dias depois dos 5o anos da Revolução dos Cravos.


    Aumentam as críticas dos pequenos partidos contra os critérios editoriais das televisões de inclusão dos debates para as europeias. Embora a Constituição preveja igualdade de tratamento, uma legislação criada no final do primeiro Governo de Passos Coelho em 2015, em vésperas das eleições que dariam início ao primeiro Governo de António Costa, abriu caminho à discriminação partidária, definindo que os órgãos de comunicação social deveriam convidar para os debates não apenas os partidos com “representação [obtida] nas últimas eleições” relativas ao órgão em causa (neste caso, o Parlamento Europeu), mas abrindo a possibilidade de incluírem “no exercício da liberdade editorial, outras candidaturas nos debates que venham a promover”.

    A polémica lei entrou em vigor para a campanha das legislativas de 2015 – que teve como principais opositores Pedro Passos Coelho e António Costa, e que depois daria origem à ‘geringonça’ – mas estava prevista uma revisão daí a um ano. Nunca foi revista, apesar de três eleições legislativas e duas eleições (com a próxima) para a Europa.

    blue and white flags on pole

    Na actual campanha para as eleições ao Parlamento Europeu, tem sido a aplicação desta norma legal que a causar sucessivas críticas e queixas dos pequenos partidos junto da Comissão Nacional de Eleições (CNE) e da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), porque as televisões generalistas (RTP, SIC, TVI e CMTV) decidiram incluir nos debates a quatro apenas os cabeças-de-lista dos partidos com assento no Parlamento Europeu (como seria obrigatório por lei), acrescentando, desta vez, também os principais candidatos da Iniciativa Liberal, Livre e Chega, que não conseguiram eleger qualquer eurodeputado em 2019. A representatividade na Assembleia da República terá sido o critério editorial para esse acréscimo, que objectivamente acaba por ‘afastar’ do enfoque mediático outros partidos sem representatividade no hemiciclo da União Europeia.

    Mas tanto as queixas para a CNE como para a ERC – para além de uma providência cautelar apresentada pela Alternativa Democrática Nacional (ADN), que tem como cabeça-de-lista Joana Amaral Dias –, têm caído em saco roto. Até agora, as decisões concluem que a lei de 2015 não viola a Constituição, e independentemente das questões éticas por detrás das opções dos órgãos de comunicação social, supostamente não subsistirá nenhuma ilegalidade.

     Mas a queixa formulada pelo Volt Portugal, junto da CNE, que a encaminhou para a ERC, originou uma deliberação do regulador dos media, divulgada hoje, que mostra bem o incómodo de uma lei absolutamente discriminatória, no sentido lato do termo. Com efeito, o Volt Portugal assume-se como integrante de um partido federalista europeu, e nessa medida o Volt Alemanha conseguiu eleger em 2019 um eurodeputado, Damian Boeselager. Ou seja, segundo a interpretação do Volt Portugal, o seu cabeça-de-lista nacional deveria ter sido convidado para os debates a quatro, não por liberalidade editorial mas por cumprimento da lei.

    Debates televisivos para as Europeias incluíram apenas alguns partidos sem eurodeputados, mas excluíram o Volt Portugal que alega que o partido federalista que integra tem um eurodeputado, eleito pelo Volt Alemanha.

    Contudo, o Conselho Regulador da ERC – cujos membros são nominalmente indicados pelo PS e PSD, com excepção de um que é cooptado – considerou que, apesar das eleições se realizaram para o Parlamento Europeu no mesmo período em todos os países comunitários, “o Volt Portugal é um partido político nacional e, por isso, pode concorrer às eleições europeias, no círculo eleitoral português, aplicando-se-lhe as mesmas regras que são aplicadas aos restantes partidos políticos portugueses, independentemente das afiliações, entendimentos ou alianças políticas que cada partido possa ter a nível internacional”. E, nessa linha, como a partir de Portugal o Volt não obteve qualquer eurodeputado em 2019, “é defensável que o critério invocado não se aplique ao Queixoso [Volt Portugal]”.

    Em todo o caso, a ERC destaca que a lei de 2015 até já deveria ter sido revista em 2016,o que nunca sucedeu, uma vez que estava prevista, num dos artigos, a sua modificação no prazo de um ano. Ou seja, esta lei apenas deveria estar em vigor durante um ano. Além disso, o regulador diz que já tem encorajado “vivamente os diferentes órgãos de comunicação social a que considerem a participação do universo das candidaturas nos diferentes debates que organizem, nos seus vários formatos, à luz dos princípios do pluralismo e da diversidade”, algo que tem caído em saco roto. A generalidade dos órgãos de comunicação social de maior dimensão nem sequer concede entrevistas a todos as candidaturas. O PÁGINA UM foi, aliás, o único órgão de comunicação social que lançou convites a todos os partidos para uma entrevista nas anteriores legislativas (PSD, PSD, Bloco de Esquerda e Livre não aceitaram então), e está a repetir essa iniciativa com todos os cabeças-de-lista.

    Curiosamente, na entrevista de hoje do PÁGINA UM será com o cabeça-de-lista do Livre, Francisco Paupério – que teve um comportamento contrário ao de Rui Tavares, nas legislativas, aceitando o convite –, a questão da igualdade de tratamento de candidaturas foi um dos aspectos abordados. Para Francisco Paupério – que surge com hipóteses de ser eleito em recentes sondagens –, “há uma discrepância muito grande na comunicação social” na cobertura jornalística dos partidos “que deve ser corrigida”, defendendo que “não devemos dar só primazia a quem já tem representação parlamentar”. Eleito nas primárias do Livre, Paupério diz que “a mensagem” dos partidos aceites pelo Tribunal Constitucional “também tem de passar mais na comunicação social.”

    Francisco Paupério, cabeça-de-lista do Livre, tenta uma eleição inédita para o seu partido. Foi convidado para os debates televisivos, apesar de o Livre ainda não ter eurodeputados, e defende a igualdade de tratamento nas campanhas.

    A questão da igualdade de oportunidades e, concomitantemente, na cobertura jornalística dos diversos partidos não é, porém, uma questão assim tão cristalina como parece à primeira vista, mesmo se consagrada na Constituição, e aparentemente ‘contrariada’ pela lei de 2015. “Desde que haja um fundamento material para a diferenciação de tratamento”, neste caso a questão da representação parlamentar e a liberdade editorial, “o Tribunal Constitucional, em princípio, não deve censurar as opções do legislador”, defende José Melo Alexandrino, constitucionalista e professor aposentado da Universidade de Lisboa.  

    Para o também colunista do PÁGINA UM, “a principal função da igualdade é a de exigir um fundamento racional ou suficiente para as diferenciações de tratamento, desenvolvendo, além disso, também funções heurísticas [procedimentos mentais simples para respostas adequadas], instrumentais, promotoras e de controlo”. Quanto à questão da norma que determinava que a lei de 2015 deveria ser revista no prazo de um ano, Melo Alexandrino diz que esse incumprimento não torna a legislação inválida: “São artigos de leis para inglês ver; há leis que estão por rever durante 30 anos”.


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  • Inquérito nos Estados Unidos mostra esquema para encobrir origem da pandemia

    Inquérito nos Estados Unidos mostra esquema para encobrir origem da pandemia

    Um dos principais conselheiros de Anthony Fauci, o rosto da estratégia de gestão da pandemia nos Estados Unidos, foi apanhado num esquema para apagar e esconder informação de relevo sobre a covid-19, violando a lei. Em audições e e-mails obtidos por uma Comissão na Câmara dos Representantes que investiga a pandemia, existem indícios de que o próprio Fauci terá violado a lei, ao apagar e-mails oficiais e ao usar canais privados para trocar informação oficial sensível. No centro da polémica, estão as suas ligações a uma organização ‘caça-vírus’ financiada pelos Estados Unidos, a EcoHealth Alliance, que está no centro de suspeitas sobre o origem do novo coronavírus, que levou a cabo investigação que envolveu a manipulação perigosa de vírus num laboratório em Wuhan, na China, região onde terá surgido o SARS-CoV-2. Biden já suspendeu mesmo, este mês, o financiamento da EcoHealth e do presidente desta organização, Peter Daszak.


    Um conselheiro de topo do National Institutes of Health (NIH), uma agência governamental de investigação do Departamento de Saúde dos Estados Unidos, apagou registos oficiais sensíveis para se desvendar a real origem da pandemia de covid-19. Como se isso não bastasse, este assessor, David Morens, ainda usou canais de comunicação privados (não-oficiais) para ajudar o seu ‘chefe’ Anthony Fauci, o rosto da gestão da pandemia nos Estados Unidos, a esconder informação sobre o financiamento obscuro de pesquisas perigosas com vírus num laboratório em Wuhan, na China.

    Documentos obtidos pela Subcomissão sobre a Pandemia de Coronavírus da Câmara dos Representantes mostram que aquele que foi um dos principais assessores de Fauci apagou e-mails oficiais e usou métodos para fugir aos pedidos FOIA [Freedom of Information Act], que correspondem à satisfação de pedidos de acesso a informação nos Estados Unidos. Em e-mails escritos por Morens, é sugerido que Fauci também terá apagado e-mails oficiais e usado canais privados para trocar informação sobre assuntos profissionais.

    Em causa está uma aparente conspiração para apagar o rasto de informação sobre a EcoHealth Alliance, uma organização privada que tem beneficiado de financiamento dos Estados Unidos e que conduziu investigação de manipulação de vírus num laboratório em Wuhan, região onde se pensa que surgiu o novo coronavírus. Fauci foi director do National Institute of Allergy and Infectious Diseases (NIAID) entre 1984 e 2022, quando se reformou. O financiamento à EcoHealth foi atribuído pelo NIAID e pelo National Institutes of Health (NIH), uma agência governamental de pesquisa do Departamento de Saúde dos Estados Unidos.

    Anthony Fauci, conselheiro-chefe de Joe Biden para a saúde, foi o rosto da gestão da covid-19 nos Estados Unidos. Um dos seus conselheiros principais escreveu em e-mails que Fauci também apagou e-mails comprometedores e usou canais privados de comunicação para esconder informação de relevo. Fauci foi director do National Institute of Allergy and Infectious Diseases (NIAID) entre 1984 e 2022, quando se reformou. O NIAID financiou a EcoHealth Alliance, uma organização ‘caça-vírus’ que conduziu investigação perigosa (gain-of-function) em Wuhan, na China.

    Para já, as audições e documentos trazidos a público pela Subcomissão tiveram consequências: o NIH suspendeu o financiamento da EcoHealth e, mais recentemente, suspendeu também o financiamento ao presidente desta organização, Peter Dazsak.

    De resto, Peter Daszak, foi já ouvido na Subcomissão sobre a Pandemia de Coronavírus, nos Estados Unidos, que tem investigado o que se passou na pandemia.

    Recorde-se que em Abril de 2020, a Administração Trump até já tinha ordenado o fim da concessão de financiamento à EcoHealth. Numa carta datada de 19 de abril desse ano, o NIAID notificou a EcoHealth que estava a analisar alegações de que o Wuhan Institute of Virology (WIV) libertou o coronavírus responsável pela pandemia de covid-19. Mas, em 2023, a Administração Biden retomou o financiamento desta organização, que tem recebido, em média, 625 mil euros anuais em fundos federais.

    Agora, numa audição na Comissão, David Morens admitiu a proximidade ao presidente da EcoHealth: “Peter Daszak… é meu amigo pessoal há quase 20 anos”, afirmou.

    Segundo um comunicado da Subcomissão, foram encontradas “evidências esmagadoras do próprio e-mail do Dr. Morens de que ele se envolveu em má conduta grave e acções potencialmente ilegais enquanto servia como conselheiro sénior do Dr. Fauci durante a pandemia de covid-19”.

    Num e-mail dirigido ao presidente da EcoHealth, Morens escreveu que não há que se preocupar com os FOIA (Lei de Liberdade de Informação). “Posso enviar coisas [informação] ao Tony [Fauci] para o seu e-mail privado do Gmail, ou entregar-lha no trabalho ou na sua casa. Ele é demasiado esperto para deixar que colegas lhe enviem coisas que podem causar problemas”.
    (Fonte: Fonte: Subcomissão sobre a Pandemia de Coronavírus)

    A Comissão teve acesso a “correspondência de e-mail não divulgada anteriormente, obtida por intimação, que incrimina o Dr. Morens por minar as operações do Governo [federal] dos Estados Unidos, eliminando ilegalmente registos federais sobre covid-19, usando um e-mail pessoal para evitar a Lei de Liberdade de Informação (FOIA), e repetidamente agir de forma imprópria para um funcionário federal”.

    Além disso, a Comissão revelou “novos e-mails sugerindo que o Dr. Fauci estava ciente do comportamento nefasto do Dr. Morens e pode até ter-se envolvido em violações de registos federais”.

    Neste e-mail, Morens escreveu sobre a existência de um canal privado “secreto” envolvendo Fauci.
    (Fonte: Subcomissão sobre a Pandemia de Coronavírus)

    Segundo a Comissão, o próprio Fauci “estava potencialmente ciente, e pode ter-se envolvido, no acto de minar as operações do Governo dos Estados Unidos, ajudando o Dr. Morens a canalizar informações internas do NIH para o presidente da EcoHealth Alliance, Dr. Peter Daszak”. Isto porque, “nos e-mails pessoais do Dr. Morens, ele mencionou falar com o Dr. Fauci sobre o financiamento suspenso da EcoHealth e detalhou como o Dr. Fauci pretendia proteger o Dr. Daszak”.

    Além de Peter Daszak, surgem nos registos agora obtidos alguns e-mails trocados com Peter Hotez, um médico muito popular nos media mainstream. Não surpreende que Hotez seja próximo do grupo de Fauci, já que é conhecido por defender sempre as posições oficiais e das farmacêuticas e por ter um discurso de ódio contra pessoas que não tomam as vacinas contra a covid-19.

    Além dos e-mails comprometedores, em que fica claro o esquema montado para apagar e esconder informação crucial, Morens escreveu comentários misóginos em e-mails oficiais, o que gerou fortes críticas e condenação.

    Este caso está a provocar um abalo político e nas instituições dos Estados Unidos e pode levar à queda em desgraça de Fauci, sempre muito acarinhado e protegido pelos media mainstream, apesar das suas ligações ao caso EcoHealth. No início dos trabalhos, os media quase não noticiavam as revelações desta Subcomissão, mas agora, perante a dimensão do escândalo, já começaram a surgir artigos em órgãos de comunicação social como a Newsweek, a CNN e o New York Times.

    Neste e-mail, Morens conta como “aprendeu” a fazer desaparecer e-mails após surgir um pedido de acesso a registos oficiais com informação. E admite a prática de eliminação de e-mails oficiais.
    (Fonte: Subcomissão sobre a Pandemia de Coronavírus)

    Foi através da ‘figura tutelar’ de Fauci que se promoveram medidas radicais durante a pandemia, incentivando-se também a perseguição e censura de prestigiados académicos e cientistas, nomeadamente de universidades de renome como Harvard e Stanford, incluindo os autores da Declaração de Great Barrington, que defendiam uma gestão mais racional e proporcional, baseada na evidência. Fauci também incentivou a perseguição e segregação de pessoas que optaram por permanecer sem as novas vacinas contra a covid-19, as quais podem provocar efeitos adversos, como todos os medicamentos. Houve mesmo despedimentos por causa da opção, que têm sido revertidos pelos tribunais.

    As últimas revelações da Subcomissão norte-americana ameaçam assim ditar a ‘queda’ de Fauci de um pedestal em que a imprensa mainstream e a Administração Biden o colocaram face à recente onda de indignação.

    “Aquilo que encontrámos é uma operação de encobrimento de proporções enormes, em que pessoas estavam a usar estratagemas para evitar os FOIA [pedidos de acesso a informação], estavam a usar contas pessoais para assuntos estritamente profissionais e em que havia pessoas a discutir como esconder os factos”, disse o congressista republicano Rich McCormick numa entrevista televisiva. O congressista, que também é médico, defende a responsabilização dos envolvidos naquilo que considera uma conspiração.

    David Morens na audição na Subcomissão sobre a Pandemia de Coronavírus.

    Na sua conta na rede X, o congressista também escreveu: “Os contribuintes americanos devem estar indignados com o facto de o seu dinheiro suado ter ido para financiar a investigação de ganhos de função num laboratório comunista chinês que libertou uma praga global que matou milhões de pessoas”.

    “Estou ansioso por responsabilizar seriamente o Dr. Fauci [hold his feet to the fire] sobre o que realmente aconteceu, em algumas semanas”, concluiu.

    Um outro congressista republicano, Brian Babin, escreveu, por sua vez: “Um importante conselheiro do NIH [National Institutes of Health] apagou registos críticos para descobrir as origens da covid-19 e usou canais privados para ajudar Fauci a financiar pesquisas obscuras de ‘ganho de função’ em Wuhan”. “Claramente, o NIH estava cheio de criminosos burocratas ansiosos para enganar os americanos com os seus esquemas secretos”, adiantou o republicano que também é dentista.

    Mas os ataques à conduta de Fauci já não têm sequer uma base ideológica, e é isso que está a transformar este inquérito da Câmara dos Representantes. Mesmo congressistas democratas têm ficado chocados com as revelações. “Aquilo que descobrimos é profundamente perturbador para mim”, afirmou o democrata Raul Ruiz, também médico, em reacção à audição de Morens. Afirmou ainda que o comportamento do conselheiro de Fauci é “uma mancha” para o NIH. “Não é anti-ciência responsabilizá-lo”, afirmou.

    Neste e-mail, Morens fez comentários misóginos que mereceram um comentário da Subcomissão: “O Dr. Morens envolveu-se num comportamento inapropriado e desrespeitoso que não é digno de um representante do Governo dos Estados Unidos. Este padrão preocupante sugere que o Dr. Morens não está qualificado para ocupar um cargo de confiança pública”.

    Desde cedo que vários responsáveis de Saúde nos Estados Unidos tentaram distrair as atenções da possibilidade que a pandemia surgiu de uma fuga de um laboratório e tem havido pressões sobre as plataformas digitais para censurar informação e também sobre a comunidade científica. Logo no dia 1 de Fevereiro de 2020, Anthony Fauci e Francis Collins, que foi o director do NIH entre 2009 e dezembro de 2021, juntaram uma dezena de cientistas numa teleconferência para discutir a covid-19, onde foi comunicada como hipótese muito provável uma fuga de um vírus do laboratório em Wuhan, e de que o vírus podia ter sido manipulado geneticamente.

    Apenas três dias depois desta reunião online, a 4 de Fevereiro, quatro participantes dessa teleconferência foram autores de um artigo intitulado “The Proximal Origin of SARS-CoV-2” (Origem Proximal) e enviaram um rascunho a Fauci, para edição e aprovação antes da sua publicação final na Nature Medicine. O objectivo era claro: ‘eliminar’ de imediato a tese sobre uma possível fuga laboratorial do SARS-CoV-2.

    Contudo, a 16 de Abril de 2020, pouco mais de dois meses após a teleconferência original, Collins enviou um e-mail a Fauci onde expressava consternação porque o artigo afinal não eliminou por completo a tese de fuga de laboratório e questionava sobre o que se mais se podia fazer para derrubar essa hipótese. No dia seguinte, depois de Collins ter explicitamente pedido mais pressão pública, Fauci citou o artigo “Proximal Origin” no pódio na Casa Branca quando questionado sobre se a covid-19 tinha tido origem num laboratório.

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    Documentos obtidos pelo Subcomissão mostram que Fauci e o então director do NIH, Francis Collins, editaram e aprovaram um artigo publicado numa revista científica em 2020 com o objectivo de derrubar a tese apontada na comunidade científica de que o SARS-CoV-2 teve origem numa fuga de laboratório.
    (Foto: Vladimir Fedotov)

    Quatro anos depois, não se apurou ainda as origens da covid-19, que terá surgido inicialmente em Wuhan. A tese do mercado de Wuhan, e da ‘passagem’ através de morcegos ou pangolins, foi sempre a mais seguida pela imprensa mainstream e ‘garantida’ por fact-checkers supostamente independentes. Em Março de 2021, a Organização Mundial de Saúde publicou um extenso documento de 120 páginas com as conclusões de uma investigação conjunta, previamente acordada, com as autoridades chinesas sobre a origem do SARS-CoV-2. E descartou logo a possibilidade, sem qualquer base científica, de um acidente nos laboratórios existentes em Wuhan, dizendo taxativamente que é uma “hipótese extremamente improvável” [extremely unlikely pathway]. Mas no ano passado, o próprio director do FBI, Christopher Wray, indicou a fuga laboratorial em Wuhan como sendo a origem mais provável, tese que não foi ainda admitida pela Administração Biden.

    De uma forma clara, apesar de ser considerada como uma hipótese forte para a origem da covid, a tese de uma fuga de um laboratório foi censurada pela Administração Biden, que influiu para as redes sociais censurarem esse tema em 2021, como o PÁGINA UM noticiou.

    Certo é que o laboratório de Wuhan foi um centro de pesquisas sensíveis envolvendo coronavírus, tornando assim uma ‘fuga’ como algo mais do que tecnicamente provável. Sabe-se que em Maio de 2014, o NIH atribuiu um financiamento, com o Número 1R01AI110964-01, a um projecto da EcoHealth intitulado “Understanding the Risk of Bat Coronavirus Emergence” (Compreendendo o Risco da Emergência de Coronavírus de Morcego”, que oficialmente decorreu até 31 de Maio de 2019.

    No resumo deste projecto, anterior à pandemia – e portanto do ‘nascimento oficial’ do SARS-CoV-2 -, referia-se que, com base em coronavírus existentes em morcegos da região de Wuhan, além de outras tarefas, seriam usados nesta investigação “dados de sequência da proteína S, tecnologia de clones infecciosos, experimentos de infecção in vitro e in vivo e análise de ligação ao receptor” para testar eventuais ‘saltos zoonóticos’.

    Além de ser o presidente da EcoHealth, Peter Daszak era o Investigador Principal (PI) daquele projecto que listava como parceiro o Wuhan Institute of Virology, na China.

    Wuhan Institute of Virology, China.

    O projecto envolvia “o estudo de agentes altamente patogénicos, o que exigiu a adesão do principal beneficiário (EcoHealth) e do seu parceiro (WIV) aos requisitos específicos de segurança de biocontenção (biossegurança)”, segundo o NIH. Ou seja, “esta subvenção estava sujeita aos requisitos de biossegurança estabelecidos” no NIH.

    Em 17 de Outubro de 2014, a Casa Branca anunciou uma pausa no financiamento de projectos de investigação ‘gain-of-function’ (GoF) que pudessem “conferir atributos a vírus da gripe, da síndrome respiratória do Médio Oriente (MERS) ou da síndrome respiratória aguda grave (SARS)”, aumentando a sua “patogenicidade e/ou transmissibilidade em mamíferos por via respiratória”, como aconteceu com o SARS-Cov-2.

    Numa carta data de 28 de Maio de 2016, enviada ao NIH, em resposta a um pedido de informação sobre um outro projecto financiado pelo governo norte-americano, com o Número 5R01AI110964-03, a EcoHealth explicou que o objetivo do trabalho proposto era construir MERS e coronavírus (CoVs) quiméricos semelhantes ao MERS, a fim de compreender as origens potenciais do MERSCoV em morcegos, estudando em detalhe os CoVs semelhantes ao MERS de morcegos.

    A carta da EcoHealth tentava evitar que o financiamento para este projecto fosse travado devido às novas normas que proíbam o GoF. Nessa carta, a EcoHealth afirmava que acreditava que era altamente improvável que o trabalho proposto tivesse qualquer potencial patogénico.

    Peter Daszak, presidente e investigador principal da EcoHealth Alliance. (Foto: D.R.)

    Agora, na sequência das pressões provocadas pelas revelações da Subcomissão durante o presente mês de Maio, o NIH requereu informação específica à EcoHealth e ao WIH. Não obtendo respostas, concluiu que “a pesquisa no WIV provavelmente violou os protocolos do NIH em relação à biossegurança”.

    No início deste mês, a EcoHealth ainda mantinha três projectos financiados pela Administração Biden: o projecto número 5U01AI151797-04 sobre “Understanding Risk of Zoonotic Virus Emergence in Emerging Infectious Diseases (EID) Hotspots of Southeast Asia”; o projecto número 5U01AI153420-04 sobre “Study of Nipah virus (NiV) dynamics and genetics in its bat reservoir and of human exposure to NiV across Bangladesh to understand patterns of human outbreaks”; e o projecto número 5R01AI163118-02 sobre “Analyzing the potential for future bat coronavirus emergence in Myanmar, Lao”.

    Segundo o NIH, “uma revisão do texto resumo da base de dados RePORTER do NIH documenta que
    os números de concessão de financiamento 5U01AI151797-04, 5U01AI153420-04 e 5R01AI163118-02 são exclusivamente focados em doenças infecciosas emergentes, agentes patogénicos altamente transmissíveis ou novos vírus”.


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  • Ministério da Defesa anuncia auditoria em licença ilegal sem assumir ligação à notícia do PÁGINA UM

    Ministério da Defesa anuncia auditoria em licença ilegal sem assumir ligação à notícia do PÁGINA UM

    Há 12 dias, o PÁGINA UM revelou que a Leitek Unipessoal, cujo sócio único é um ex-militar condenado por corrupção passiva, obteve uma licença do Ministério da Defesa para comercializar tecnologias militares, contrariando um impedimento legal. Hoje, num sábado, e ignorando a notícia do PÁGINA UM, o gabinete de Nuno Melo anunciou uma auditoria aos licenciamentos de comercialização de tecnologias militares desde 2015 no decurso de uma alegada “averiguação preliminar” que detectou o caso de uma “empresa cujo sócio foi condenado em pena de prisão”. O gabinete de Nuno Melo não quis (ainda) dizer se a ‘averiguação preliminar’ consistiu na leitura da notícia do PÁGINA UM ou se, além da Leitek, há ainda outra empresa licenciada com um sócio condenado por crimes incompatíveis.


    Doze dias depois do PÁGINA UM ter revelado que a empresa unipessoal de um antigo capitão de fragata, condenado em 2008 por corrupção passiva, ter recebido uma licença para exercer actividades de comércio e tecnologias militares, o Ministério da Defesa anunciou hoje, num sábado, uma auditoria a todos os licenciamentos desde 2015. Em causa está uma lei de 2009 que proíbe expressamente que, por razões de idoneidade, essa licença está vedada a quem tenha sido condenado, em Portugal ou no estrangeiro, por diversos crimes graves.

    Conforme a notícia do PÁGINA UM do passado dia 13 de Maio, o antigo secretário de Estado da Defesa Nacional, Carlos Pires, através de um despacho de 26 de Setembro do ano passado, concedeu uma licença de comércio de tecnologia militar à empresa Leitek Unipessoal, pertencente a Clélio Ferreira Leite, após passar pelo crivo da Autoridade Nacional de Segurança.

    Clélio Ferreira Leite, ex-capitão de fragata e actual sócio único e gerente da Leitek, ao lado de Jincai Yang, presidente da World UAV [Unmanned Aerial Vehicle] Federation.

    No despacho governamental diz-se que “a sociedade comercial [Leitek] cumpre os pressupostos cumulativos para a atribuição de licenciamento para o exercício das atividades pretendidas, previstos no nº 1 do artigo 8º da Lei nº 49/2009, mas esquece completamente o artigo referente à idoneidade – usada também como critério de exclusão, por exemplo, para exercício de funções em instituições financeiras.

    Porém, conforme o PÁGINA UM revelou em exclusivo, o passado de Clélio Ferreira Leite não lhe permitia, por razões de idoneidade, obter essa licença por causa de uma condenação por corrupção passiva em actos praticados no final da primeira década deste século. Com efeito, a lei em causa determina que “sem prejuízo de outras circunstâncias atendíveis, considera-se não possuir idoneidade quem tenha sido condenado, no País ou no estrangeiro, por crimes de falência dolosa, falência por negligência, falsificação, furto, roubo, burla, extorsão, abuso de confiança, infidelidade, usura, corrupção, emissão de cheques sem provisão, apropriação ilegítima de bens do sector público ou cooperativo, falsas declarações, branqueamento de capitais ou infracções à legislação especificamente aplicável às sociedades comerciais, ou ainda por crimes praticados no exercício de actividades de comércio ou de indústria de bens e tecnologias militares”, ou que “tenha comprovadamente tido envolvimento no tráfico ilícito de armas ou de outros bens e tecnologias militares ou de dupla utilização ou, ainda, na violação de embargos de fornecimento de bens e tecnologias militares decretados pela Organização das Nações Unidas, pela União Europeia, pela Organização para a Segurança e Cooperação na Europa ou pelo Estado português”.

    Ora, em Setembro de 2006, Clélio Ferreira Leite, que chegou a estar indigitado para director-geral de Armamento e Equipamentos de Defesa – um organismo responsável pela execução financeira dos contratos de reequipamento das Forças Armadas –, foi detido numa megaoperação da Polícia Judiciária, ficando em prisão preventiva e acabou condenado a sete anos de prisão efectiva por corrupção passiva.

    tilt shift lens photo of mini drone

    Apesar de o Ministério da Defesa Nacional nunca ter reagido à notícia do PÁGINA UM – que incidiu sobre factos do Governo socialista e, portanto, anteriores à tomada de posse do actual ministro Nuno Melo – , a nota de imprensa oficial hoje revelada não assume ser uma tomada de posição devida ao caso concreto da Leitek e ao cadastro de Clélio Ferreira Leite, bem como aos falhanços no controlo dos licenciamentos por parte da Direcção-Geral de Recursos de Defesa Nacional e do Gabinete Nacional de Segurança.

    A nota do gabinete do Ministro da Defesa Nacional não identifica qualquer empresa e diz apenas que “depois de uma averiguação preliminar, verificou-se que, aparentemente [sic], desde o ano de 2015 não têm vindo a ser cumpridas as exigências” relacionadas com a idoneidade para o exercício de actividades de comércio ou indústria de bens tecnologias.

    E acrescenta ainda, sem sequer admitir que o Ministério da Defesa teve conhecimento da notícia de 13 de Maio do PÁGINA UM, “ter sido apurado numa amostragem restrita de processos considerados, o eventual licenciamento […] de uma empresa cujo sócio foi condenado em pena de prisão por um crime” integrado nas incompatibilidades da lei, como é o caso da corrupção.

    Carlos Lopes Pires, secretário de Estado da Defesa do Governo de António Costa, que tomou posse em Julho de 2023, não concedeu apenas um despacho polémico a conceder uma licença de comércios de tecnologias militares à empresa de um cidadão da Córsega na Zona Franca da Madeira. Também não conferiu a idoneidade do sócio único da Leitek, já com uma impeditiva condenação por corrupção.

    O PÁGINA UM contactou a assessoria de comunicação de Nuno Melo para confirmar se a “averiguação preliminar” do Ministério da Defesa consistiu na leitura da notícia sobre o caso da Leitek e da condenação de Clélio Ferreira Leite publicada há 12 dias. Ou se, ao invés, o Ministério da Defesa tinha, nessa “averiguação preliminar” detectado outra empresa com sócio cadastrado – e, portanto, estarmos perante duas empresas e não apenas uma. O Ministério da Defesa diz não haver mais nada a comunicar além do constante na sua nota de imprensa.

    Ainda sobre Clélio Ferreira Leite saliente-se também que é um destacado membro da World UAV [Unmanned Aerial Vehicle] Federation, um organismo sedeado em Hong Kong e controlada sobretudo por personalidades e empresas chinesas. Os denominados veículos aéreos não-tripulados, vulgarmente designados por drones, têm vindo a ganhar uma grande preponderância em operações militares, como se tem observado nos conflitos na Ucrânia e Gaza, tendo sido desenvolvido nos anos mais recentes quer novas tecnologias de ataque como de defesa. No entanto, a lei de 2009 não estabelece especiais cuidados na análise das ligações empresariais com determinados países.


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  • Violência doméstica: 72 crimes por dia no ano passado. Municípios do Alentejo e Açores com os piores rácios

    Violência doméstica: 72 crimes por dia no ano passado. Municípios do Alentejo e Açores com os piores rácios

    Os mais recentes dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) sobre a violência doméstico em contexto de casal já assustam, ultrapssando os 26 mil crimes registados só no ano passado. Mas o PÁGINA UM foi mais longe na análise e calculou os rácios deste tipo de crimes em função dos registos das autoridades policiais em cada município e da respectiva população residente. E mostra que a violência conjugal, embora presente em quase todo o lado, apresenta prevalências pavorosas em zonas rurais e do interior, sobretudo em partes do Alentejo, dos Açores e do interior da região Norte. Em exclusivo, o PÁGINA UM revela todos os números entre 2021 e 2023, naquele que será o primeiro trabalho de um dossier de investigação dedicado à criminalidade em Portugal.


    As autoridades policiais registaram, só no ano passado, uma média diária de mais de 72 crimes de violência doméstica contra cônjuge ou análogos, ou seja, incluindo todos os casos de coabitação em comum entre casais. Em todo o ano de 2023 foram 26.041 crimes registados pelas autoridades policiais. Estes números absolutos, revelados na semana passada no site do Instituto Nacional de Estatística (INE), estão em linha com os valores apurados em 2022 (26.073 crimes similares), mas são substancialmente mais elevados do que em 2021 (22.524).

    Nos últimos três anos, o INE apresenta estes registos em números absolutos por município, colocando assim os concelhos de maior dimensão no topo, mas uma análise do PÁGINA UM, com base nas estimativas oficiais da população, possibilita apurar os rácios de criminalidade que se revelam, em muitos casos, surpreendentes.

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    Com efeito, em termos absolutos, os três concelhos mais populosos do país – Lisboa (cerca de 547 mil habitantes), Sintra (388 mil) e Vila Nova de Gaia (quase 307 mil) – são os que contabilizam mais crimes de violência doméstica. A capital portuguesa registou 1.777 destes crimes ao longo do ano passado, uma média de quase cinco casos por dia, enquanto em Sintra se contabilizaram 1.309 crimes, uma média de cerca de sete casos em cada dois dias. Estes dois municípios são os únicos que estiveram acima da fasquia do milhar de casos num só ano, evidenciando-se um crescimento entre 2021 e 2023 da ordem dos 26% em Lisboa e de quase 39% em Sintra.

    Já a grande distância, no terceiro município mais populoso, Vila Nova de Gaia, as autoridades policiais contaram, no ano passado, 680 crimes de violência, uma média pouco inferior a dois casos por dia. Acima de um caso por dia durante o ano passado estão somente municípios com mais de 100 mil habitantes: além dos três já referidos, são os casos de Loures (676 crimes em 2023), Porto (620), Cascais (522), Almada (512), Amadora (504), Oeiras (489), Funchal (481), Seixal (422), Matosinhos (394) e Vila Franca de Xira (368).

    Particularmente preocupante é a evolução em alguns destes municípios. Por exemplo, entre 2021 e 2023, no concelho do Funchal os crimes de violência doméstica cresceram 53%, em Loures 41%, no Seixal, em Oeiras e em Oeiras 38%.

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    No lado oposto, de entre os concelhos com mais de 100 mil habitantes com menor registo de crimes de violência doméstica estão Barcelos (221 casos em 2023), Maia (224) e Viseu (226).

    Porém, quando se analise o rácio da violência doméstica – ou seja, os crimes por ano em função da população residente –, o cenário modifica-se, revelando-se a verdadeira dimensão de um grave problema socio-económico. Com efeito, considerando o número de crimes por mil residentes, o município mais violento é Barrancos: embora tenha um registo de 10 casos em 2023, tal sucedeu numa comunidade com menos de 1.500 habitantes. Se o seu rácio (6,8 casos por mil) fosse o de Portugal, em vez dos 26 mil casos registados a nível nacional, haveria mais de 71 mil. Ou seja, o pequeno município alentejano – conhecido pelas festas com touro de morte –, não é, neste aspecto, um exemplo muito dignificante.

    Barrancos não é, contudo, um caso isolado no Alentejo, que se revela, nesta análise, como a região com maior prevalência de violência doméstica, seguindo-se os Açores. Com efeito, no top 10 dos municípios com maior rácio de violência doméstica em Portugal, sete são do Alentejo – Barrancos, Ferreira do Alentejo, Avis, Viana do Alentejo, Alter do Chão, Arronches e Cuba – e três dos Açores – Velas, Lagoa e Ribeira Grande. Nestes municípios, as autoridades policiais registaram no ano passado entre 4,8 e 6,8 crimes por cada mil residentes. Em alguns destes municípios, o crescimento entre 2021 e 2023 foi bastante significativo. Em Velas passou de 1,4 por mil em 2021 para 5,7 em 2023; em Alter do Chão de 1,3 para 5,4 e em Arronches de 1,4 para 5,0.

    Se considerarmos os 20 municípios com maior violência doméstica, com excepção do Funchal (que tem mais de 100 mil habitantes), todos têm características sobretudo rurais, ganhando também preponderância o Alentejo. Metade destes municípios são alentejanos. No continente, o município do litoral com pior rácio de violência doméstica é Albufeira, com 4,1 crimes por mil residentes, ocupando a 21ª posição.

    Barrancos, pequeno município alentejano conhecido pelos touros de morte, apresentou os piores rácios de violência doméstica no ano passado.

    No caso da Grande Lisboa, os concelhos da Moita e Barreiro – respectivamente com 3,7 e 3,6 crimes por mil habitantes – são os piores. Já Lisboa e Sintra – que, em termos absolutos lideram a violência doméstica – acabam por descer de posição consideravelmente numa perpectiva de taxa de criminalidade. O município de Sintra ocupa o 48º lugar para o ano passado em termos de rácio, com 3,4 crimes por mil residentes, enquanto Lisboa ocupa a 56ª posição, com 3,2 crimes por mil residentes, ainda acima da média nacional (2,5 por mil).

    No Norte – que em termos globais apresenta taxa de violência doméstico inferior à média nacional (2,1 por mil) –, há poucos municípios com rácios superiores a Lisboa, sendo todos de Trás-os-Montes e Alto Douro: Vila Flor (4,3 crimes por mil residentes), São João da Pesqueira (3,8), Freixo de Espada-à-Cinta (3,8), Alfândega da Fé (3,5), Peso da Régua (3,4), Vila Nova de Foz Côa e Torre de Moncorvo (3,3). Os dois principais municípios nortenhos – Porto e Vila Nova de Gaia – apresentaram também rácios mais baixos do que Lisboa: 2,6 e 2,2 por mil residentes.

    Em todo o caso, a região Centro é aquela com melhores rácios – ou seja, com menos crimes de violência doméstica por mil residentes. As autoridades policiais registaram, no ano passado, menos de 1,8 crimes desta natureza por mil residentes. Em todo o caso, existem excepções muito negativas, mais uma vez quase sempre concentrados no interior, onde se destacam os municípios de Belmonte, Arganil, Celorico da Beira, Vila Velha de Ródão, Vila Nova de Paiva, Oliveira do Bairro, Seia, Penamacor, Manteigas, Cantanhede, Marinha Grande, Mangualde, Batalha, Góis, Fundão, Sever do Vouga, Ílhavo, Mêda, Estarreja e Covilhã. Estes concelhos apresentaram rácios compreendidos entre 3,0 e 4,5 crimes de violência doméstica por mil residentes.

    Corvo: a pequena ilha açoriana, com quatro centenas de pessoas, é o único concelho do país sem registo de crimes de violência doméstico entre 2021 e 2023.

    No extremo oposto – neste caso, favorável –, deve salientar-se os sete concelhos onde, no ano passado, não houve registos policiais de violência doméstica. Curiosamente, três são dos Açores – Corvo, São Roque do Pico e Lajes das Flores – e dois são do Alentejo – Mértola e Ourique –, duas regiões onde campeiam rácios elevados de violência doméstica. Neste grupo de sete ‘pacíficos’ (e magníficos) municípios estão ainda dois do distrito de Bragança: Vimioso e Vinhais. Em todo o caso, somente Corvo manteve o pleno de ausência de crimes de violência doméstico no triénio 2021-2023, enquanto Lajes das Flores teve também um ‘nulo’ em 2021.

    Se se considerar um período de três anos, o cenário não se modifica muito. Os cinco piores concelhos ao nível da violência doméstica são Barrancos (20,5 crimes por mil residentes no triénio), Ferreira do Alentejo (17,9), Avis (16,0), Ribeira Grande (15,1) e Celorico da Beira (14,6), enquanto os cinco mais ‘pacíficos’ são Corvo (sem crimes), Mértola (1,6 crimes por mil residentes no triénio), Vimioso (1,9), Vinhais (2,7) e São Vicente (2,9). Quanto a Lisboa ocupa a 61ª posição a nível nacional, com um rácio no triénio de 8,9 crimes por mil residentes, estando um pouco abaixo de Sintra (56ª posição, com 9,1 por mil no triénio). O concelho do Porto está mais abaixo, na 115ª posição, com 7,3 crimes registados por mil habitantes entre 2021 e 2023, situando-se Vila Nova de Gaia na posição 164, cimj um rácio de 6,6.

    Por ser uma entidade publicamente reconhecida pOR serviços neste sector, o PÁGINA UM contactou a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) para obter comentários, explicando previamente a análise efectuada com os dados do INE. Mas esta instituição de solidariedade social – que, no ano passado, recebeu 3,8 milhões de euros em donativos e subsídios estatais, funcionando à base de uma dezena de acordos e protocolos com o Estado e quase outros tantos protocolos camarários – não mostrou qualquer disponibilidade.

    woman eye

    O gabinete de comunicação da APAV alegou ao PÁGINA UM não haver agenda nesta semana de qualquer responsável para comentar este assunto. A APAV conta com sete membros da direcção, presidida por João Lázaro, 109 trabalhadores e contabilizou custos com pessoal superiores a 2,4 milhões de euros no ano passado.

    Aliás, esta associação tem registado um crescimento económico assinalável, duplicando o seu activo entre 2015 e 2023, passando de cerca de 2,8 milhões de euros para quase 5,7 milhões no ano passado, muito por fruto do aumento dos rendimentos, sobretudo subsídios públicos. No ano passado, os rendimentos da APAV aproximaram-se dos 4 milhões de euros, quando há cerca de uma década rondavam os 2 milhões de euros.


    Pode consultar AQUI os valores de todos os concelhos, com o número total de crimes de violência doméstica e o respectivo rácio (crimes por mil residentes). Para o cálculo do rácio de cada um dos três anos (2021, 2022 e 2023) considerou-se as estimativas da população (do INE) para o respecfivo concelho relativas ao ano anterior.


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  • Dois portugueses nas prisões tailandesas

    Dois portugueses nas prisões tailandesas


    No passado mês de Março, dois portugueses foram detidos na Indonésia por tráfico de droga.

    Mas, em 1982, dois outros jovens lusos foram condenados a uma pesada pena de prisão na Tailândia, um dos piores lugares do mundo para se ficar detido.

    Nesta reportagem publicada em 1983 na Revista ABC, o jornalista Rui Araújo segue os passos de “Márcia” e “Luís” e relata como o destino dos dois jovens se revelou sombrio e sem esperança, entre os muros de duras prisões.


    Nesta edição assume particular relevo a reportagem realizada por Rui Araújo, em que se conta a história dramática de dois portugueses, presos desde Maio do ano passado em prisões tailandesas, por tráfico de heroína.

    Um trabalho em que, mais do que os nomes, pretendemos levantar a questão da falta de um acordo de repatriação entre Portugal e a Tailândia — e assinalar o destino a que estão votados dois elos de uma cadeia mais vasta.

    António Mega Ferreira – Director da revista ABC

    Fevereiro de 1983


    Márcia, portuguesa, 24 anos: mais 24 anos à vista numa prisão tailandesa

    Em 7 de Maio de 1982, dois jovens portugueses eram detidos no aeroporto internacional de Banguecoque. Na bagagem, um quilo de heroína. 

    ABC conta como vive, na prisão de Bangkhen, Márcia, nome suposto de uma portuguesa identificada pela nossa reportagem.

    Capa da Revista ABC de Fevereiro de 1983 com destaque da reportagem sobre os dois portugueses detidos nas prisões tailandesas. (Foto: D.R.)

    É curioso. Nunca pensara poder suar tanto. Do outro lado,  eles sabiam. Mas davam-lhe mais uns minutos. Estavam só à espera que ele escrevesse o nome na ficha de embarque. Mas é claro que sabiam. Um policiamento paranoico, absurdo. A liberdade estava a escassas centenas de metros. Depois da inspecção das bagagens. Mas aqui, no hall, começara o pesadelo. Porque eles sabiam. «A viagem até ao fim do inferno». A morte, talvez…

    Os dedos tremiam. Olhou em redor. E acabou por quebrar a regra: dirigiu-se a ela. Pediu-lhe uma caneta. Em português. Não valia a pena esconder. Eles sabiam. Gritou o nome dela. E transpirava cada vez mais. E no momento seguinte já não havia nada a fazer: um «speak english?» anasalado fê-lo sobressaltar. «Hey, you too, stay here, understand?» Nesse instante, os potentes altifalantes transmitiram a última chamada para o voo Banguecoque – Bruxelas. Dia: 7 de Maio de 1982.

    As malas —  dele e dela — foram abertas. Cada um transportava meio quilo de heroína pura dentro de dois livros. A ideia não era má. Excepto que ninguém vai a Banguecoque para comprar literatura. A Tailândia é mais o país de sonho para quem pretende assistir a um «banana show», a um «fucking show», a um «lookie-lookie», passar uns momentos com um travesti ou uma criança. É isso «enjoy Thailand», para a grande maioria. Com uma massagem especial porque «we offer our heart». Mas a Tailândia é também símbolo de droga dura…

    No gabinete da polícia, ao lado do retrato oficial da família real tailandesa, um poster visivelmente ultrapassado ainda preconiza 100 anos de prisão para os exportadores de estupefacientes. Hoje, o crime é punido com a pena de morte.

    Luís e Márcia, correios de droga, portugueses, pouco mais de 20 anos de idade, caíram na armadilha. E sem dinheiro não há sequer hipótese de suborno. Os poucos dólares de que ainda dispunham para os cigarros da free shop não chegam para comprar a polícia. Os dois jovens tornam-se um número de processo. Um extenso dossier é enviado à Drug Enforcement Agency (DEA), um outro à INTERPOL. A Polícia Judiciária portuguesa fica para outra altura. Os detidos, depois de longas horas de espera, acabam por ser enviados para o Centro de Detenção de Banguecoque. «Uma pocilga nojenta», diz um familiar de Márcia.

    Aeroporto Don Mueang. O antigo aeroporto internacional de Banguecoque serve hoje como aeroporto regional. (Foto: D.R.)

    Oito meses depois de ter sido detida no Aeroporto de Banguecoque, Márcia está reduzida a um simples número: 519-25. Um número que corresponde a 24 anos de idade, completados na prisão; 24 anos e uma história que explica (talvez não completamente) quais as razões que a levaram ao aeroporto internacional de Banguecoque naquele dia 7 de Maio do ano passado.

    Márcia nasceu algures em Lisboa de um terceiro casamento do pai, um homem de tradição aristocrática que se ligara à família de um banqueiro judeu, numa operação muito ao  gosto do tempo. «Foi para disfarçar a miséria franciscana», comenta um familiar.

    Tal como o pai fizera na sua juventude, também Márcia foge de casa. Foi há oito anos e a jovem decidiu então ir viver para casa de um irmão, no Estoril. Acabara de fazer 16 anos e deixava atrás de si algumas más recordações. «Menina mimada, introvertida, sobretudo até ao fim do 1.º ciclo da adolescência», diz um familiar à ABC, «ela começa a chumbar anos. É expulsa do Liceu Charles Lepierre e começa uma vida de café».

    Aos 18 anos, encontramo-la a viver em Paris com um namorado. Quando regressa a Portugal, em 1978, pouco depois da morte do pai, procura emprego. As dificuldades são grandes, mesmo para uma rapariga bonita e de boa família. Márcia envolve-se então progressivamente numa boémia lisboeta que desconhecia em parte.  Ataca as «ervas daninhas» (marijuana) e vai subindo. Faz uma pausa na cocaína e chega ao «cavalo» (heroína). Primeiro, «snifando», depois «shootando».

    Se é verdade que ela se drogava, não é menos certo que não precisava de forma alguma ir a Banguecoque para obter «cavalo». Tinha algum dinheiro e podia contar com o seu fornecedor habitual, com o qual traficava de há seis anos para cá. A razão da sua deslocação é apenas mais uma peripécia. Mais um nó. «Digamos que genial — mas superficial», se é correcta a forma como Márcia é definida por um dos seus irmãos.

    Márcia não teve consciência do risco que corria. «Quis recusar, mas…». Mas foi… Mas o que a levou a Banguecoque? Meia dúzia de dólares, nem mais. Porque é disso, de dólares, que se trata efectivamente…

    Dealers e 6 dólares

    Em 1983, os itinerários tradicionais utilizados pelas grandes redes de tráfico de droga, como a chinesa ou a turca, já não significam absolutamente nada. O esquema clássico Amesterdão-Copenhaga-Banguecoque, com um «stop» em Moscovo, tornou-se demasiado académico para o traficante. Para o «dealer». Para o aventureiro.

    E, no entanto, foi esse o percurso dos dois portugueses agora detidos.

    Márcia e Luís não pediram qualquer visto ao Consulado da Tailândia em Lisboa, garantiu-nos o próprio Cônsul honorário. Dr. Borges de Pinho. Não estavam sequer na «lista negra» que cada consulado tem na sua posse e que é uma relação dos indivíduos considerados «personæ non gratæ».

    De facto, os dois portugueses transitaram por Amesterdão. Em seguida, foram de comboio até Bruxelas, de onde apanharam um avião para Banguecoque.

    Vão ficar na capital tailandesa 10 dias, como simples turistas. Progressivamente, mergulham na vida da cidade. Vivem experiências sórdidas, nos bairros de lata, nos bairros de juncos. Neste «lupanar». Naquele salão de ópio. Nos templos. E acabam por ir dormir num hotel repleto de «babas», «junkies» e pequenos traficantes.

    Estiveram no Malaysia Hotel, reputado pelos anúncios «dramáticos» que inundam as paredes sujas e gastas. «Doente, triste, sozinha, sem um tostão, precisa de remédios e de uma injecção contra a cólera. São, pelo menos, x bahts, digamos 13 dólares. Helena. Estou no quarto 209.»; ou «vendo bilhete charter barato contra 10 cigarros de cavalo e 100 dólares.»

    Ou foi talvez no Patpong. É indiferente. Banguecoque, para quem dispõe de meios reduzidos, é o «flash» permanente. Mesmo para o tipo mais «cool» do mundo.

    Em cada esquina surgem propostas «aliciantes» para todos os gostos. Faz-se «deal» por toda a parte. Ora é uma dose de «cavalo» ou de «brown sugar» do melhor na loja de um ex-GI. Ora é o espectáculo mais «sexy» da cidade: imaginem para que serve uma garrafa de coca-cola, ou uma miúda de 11 anos disposta a tudo no único «waterbed» do bairro.

    people sitting on chair near store during night time
    Banguecoque. (Foto: D.R.)

    Neste universo fantástico, mirabolante, de dimensões quase inimagináveis, dois jovens portugueses são apenas dois minúsculos pontos negros.

    Márcia e Luís não são «junkies». Ou, pelo menos, não é nessa condição que vão para Banguecoque. A Tailândia representa para eles um punhado de dólares. Um quilo de heroína pura — ainda que comprada para outrem — corresponde a 10 quilos de produto comercializável em Lisboa. Vale, pelo menos, 45.000 contos. A «heroa» pura é misturada com sacarose e/ou estricnina. Rende o que rende e o que der a qualidade, mas no «mercado» português a proporção é de 10 para 1. Números redondos, quando foi presa em Banguecoque, Márcia «pesava» mais de 20.000 contos.

    Só que comprar a mercadoria na capital tailandesa, para além de ser mais caro, é perigoso. A polícia revista os quartos de hotel e chega mesmo a levar consigo a droga que quer lá encontrar. A multa varia em função da nacionalidade e do sexo. Até os motoristas de táxi chegam a levar directamente o cliente à esquadra mais próxima. E é inconveniente não esquecer os encontros de passagem: uma prostituta é sempre um denunciante potencial, a troco de uma comissão de 50 bahts (1 baht = 3 escudos) por grama confiscado, dizem os conhecedores.

    Por isso, Márcia e Luís partem para Chiang Mai. 24 horas após o regresso a Banguecoque é o choque da detenção. E a necessidade psicológica de se convencerem que a jogada ainda tinha uma hipotética solução. A menos grave. E, logo a seguir, o vazio completo. Salvo um cheiro tremendo a urina e duas tigelas diárias de arroz infecto. Com bichos, em forma de complemento, sofisticado. Um, dois, sete dias e nada…

    (Foto: D.R.)

    A ligação do triângulo

    A última colheita de papoila branca foi excelente no Triângulo de Ouro, uma zona com 220.000 quilómetros quadrados, que cobre o norte da Tailândia, o norte do Laos e o norte da Birmânia. E isto, apesar da «guerra do ópio» desencadeada pelos homens da Border Patrol Police tailandesa contra o «Rei do Triângulo» e chefe da Shan United Army, o exército de libertação dos Shan, Mister Shan Khun Sa (que controla 75% do tráfico) e os seus 4.000 homens. A produção de ópio teria atingido em 1982 as 600 toneladas (em vez das 200 de 1980), que representam mais de 90 milhões de dólares no mercado americano.

    Khun Sa, personagem digno dos melhores romances de aventuras, é um mistério. A sua idade ronda os 49 anos. O local do nascimento é uma incógnita. Ou quase. A tese da província de Yunnan, no Sul da China, que ele teria abandonado em 1949 depois da vitória comunista, é a mais plausível. O que é certo é que Khun Sa apareceu na zona do Triângulo de Ouro na década de 60. Era o chefe de um grupúsculo que reclamava a independência dos Estados Shan (no Nordeste da Birmânia) e lutava contra as forças birmanesas. Um rebelde político? Um visionário? Um defensor de uma causa?

    O único objectivo de Khun Sa era ser o «Padrinho» incontestado do Triângulo de Ouro. A região pertencia nesse momento a um general chinês, Wen Huan, cujas tropas, verdadeiros destroços das 4ª e 5.ª divisões do Kuomintang (exército nacionalista que se opôs a Mao), que se refugiaram no Norte da Tailândia, depois de serem derrotadas pelos comunistas chineses. Khun Sa desafia os «Senhores da Guerra»: ataca as caravanas de ópio protegidas pelo exército de Wen Huan.

    Violência, detenções, acordos secretos com generais corruptos acabam por fazer a fortuna de Khun Sa. Em 1977, ele é incontestavelmente o Rei do Ópio. Controla 10 refinarias de heroína na fronteira entre a Tailândia e a Birmânia. O  seu mercado é enorme: Estados Unidos, Canadá, Austrália e, bem entendido, a Europa. O seu poder aumenta. As suas provocações também. Dá entrevistas, faz libertar um dos seus homens na prisão de Banguecoque…

    drugs, addict, addiction
    (Foto: D.R.)

    Os americanos, que pretendem desorganizar as culturas, aconselham os tailandeses a porem a cabeça de Khun Sa a prémio: 25.000 dólares. O Rei responde «pondo a prémio a cabeça dos agentes americanos». Um deles é abatido. A DEA entra em pânico.

    Em Outubro de 1981, o primeiro-ministro tailandês, General Prem, avista-se com Ronald Reagan em Washington D.C.. Nesse mesmo dia, as agências noticiosas anunciam que as autoridades tailandesas tinham atacado uma caravana com 200 mulas carregadas de ópio escoltadas por 700 homens de Khun Sa.

    Os Estados Unidos, inquietos com as proporções da vaga mundial de droga, acentuam as pressões sobre os tailandeses. Tentam utilizar no Triângulo de Ouro a mesma estratégia que adoptaram na América Latina em relação à cocaína. Fornecem dinheiro, helicópteros, armas e apoio humano. E assim inicia-se mais uma fase da guerra contra a droga, que abrange todos os continentes. Tanto o pequeno dealer como o grande traficante são procurados. E nem sempre na rede vêm os «tubarões».

    Hoje, o Rei do Ópio está de novo em fuga. As autoridades não conseguiram, contudo, apanhar um único grama de heroína no seu acampamento, com piscina, hospital e perto de uma dezena de laboratórios — que foram destruídos. Nove outros ainda estariam em actividade no sul do país. Neles trabalham antigos oficiais do exército chinês, reconvertidos no ópio e na luta anticomunista.

    Neste universo fantástico, mirabolante, de dimensões quase inimagináveis, dois jovens portugueses são apenas dois minúsculos pontos negros. Sigamo-los.

    O inferno tailandês

    Ao fim de uma semana que durou séculos, Márcia e Luís foram enviados para o enorme complexo prisional de Banguecoque: Bangkhen. Aí, foram separados. Entretanto, as autoridades tailandesas contactaram a Embaixada de Portugal, em Banguecoque. O processo começa a correr. O diário «Bangkok Post» publica uma curta notícia sobre a prisão dos dois jovens. As famílias são avisadas do sucedido.

    Os dois traficantes portugueses são julgados no tribunal de Banguecoque  em 20 de Setembro de 1982. Nada ou quase nada foi dito no decorrer da audiência. Neste tipo de processos a sentença já vem muitas vezes escrita antes do julgamento. Márcia e Luís viram as suas penas reduzidas. A condenação à morte inicialmente proferida transforma-se — por razões jurídicas diversas — em 50 anos de prisão maior. Pouco tempo depois, nova e última redução de pena: 25 anos, a pena mínima na nova legislação tailandesa. No código anterior teriam apanhado apenas 10 anos…

    Mas, 15 dias após o julgamento, em princípios de Outubro, Márcia é chamada à Procuradoria da República. As autoridades desejam aumentar a pena. Esta acção é sistemática desde que iniciaram as negociações sobre os tratados de repatriação. Quatro anos de permanência nas cadeias tailandesas é o tempo mínimo para que um estrangeiro possa ser repatriado. Estrangeiro, sim, mas só se for francês ou americano. Os italianos e os nossos vizinhos espanhóis estão em negociações com vista à adesão à proposta que foi adoptada (a francesa). O Canadá também estaria a negociar a assinatura de um tratado semelhante. Portugal, por estranho que pareça, ainda não tomou qualquer iniciativa concreta.

    Inexplicavelmente — e ao contrário do que sucede com as outras representações diplomáticas de países europeus em Banguecoque — Portugal não tem sequer um serviço de acompanhamento dos cidadãos nacionais detidos nas cadeias tailandesas. Márcia só tem apoio médico, apesar da gravidade do seu estado físico e psicológico, porque o médico da Embaixada de França está na disposição de a assistir a título humanitário sem qualquer retribuição.

    O mesmo já não se pode dizer dos advogados. Para defender a prisioneira portuguesa, a família de Márcia teve de recorrer aos serviços da Embaixada da Grã-Bretanha, que indicaram o advogado responsável pela defesa da jovem portuguesa. Com a diferença de que, aqui, os serviços não foram gratuitos.

    As prisões da Tailândia, sabe-se, são terríveis. Os depoimentos da rapariga a um familiar que a visitou no Verão passado, confirmam-no.

    Na cela de Márcia encontram-se exactamente 25 mulheres. Duas delas são estrangeiras, as outras são tailandesas, acusadas de homicídio, roubo, crimes políticos, delito comum. Na prisão, vivem 36 estrangeiras. Os maiores contingentes são de americanas, francesas, italianas, espanholas e até uma austríaca.

    Em virtude das péssimas condições de vida e da corrupção existente, a heroína nunca falta na prisão. Muitas vezes é o próprio chefe da secção, o Building Chief, que traz a droga para vendê-la a bom preço às prisioneiras que ainda possuem algumas notas. As outras viram-se para o Romilar — um medicamento preventivo contra a tuberculose — em doses industriais: 20 comprimidos para uma curta evasão daquele espaço asfixiante, sob todos os pontos de vista. Tensão psicológica elevada. Forte disciplina. Distanciação cultural e  idiomática. Temperatura que chega a atingir, no Verão, os 45º, com uma taxa de humidade de 98%.

    No «negócio» participa toda a gente. Os guardas são naturalmente vendedores. De heroína, em primeiro lugar, já que uma onça de pó dá para 20 doses engarrafadas, coisa para durar 10 dias a quem tivesse dinheiro para tanto. Só que o dinheiro é coisa que não abunda, enquanto não chega o vale de correio enviado pela família. Sobrevive-se com empréstimos a juros que chegam a ser de 300%; e aos maus pagadores, esquecidos ou ignorados pela família, resta a hipótese dos trabalhos menores — a limpeza das retretes, por exemplo.

    A família de Márcia envia-lhe regularmente dinheiro e encomendas com géneros alimentícios. Segundo os regulamentos de disciplina da prisão de Banguecoque, nenhuma detida pode receber mais de duas remessas por mês.

    Nestas condições, corrupção é a vida. Não ter dinheiro significa basicamente confrontação com a realidade, descida ao inferno. Muitas vezes, ao fim da viagem está a morte, ou pior: a loucura.

    Uma carta escrita na prisão em francês, para que a censura compreenda. (Foto: D.R.)

    Excerto de uma carta de Márcia

    “Não é sempre que há uma pessoa condenada à morte e quando penso que era EU!!!!”

    “Vai fazer 6 meses que estou aqui. A minha saúde está boa, mas tenho febre todos os dias desde que estou aqui. Este clima põe-me inconfortável. É muito pesado o tempo todo! E os meus nervos, há dias em que gostaria de desaparecer e porque não deixar-me levar para o país onde reina a loucura. É possível que os malucos sejam mais felizes se não derem conta daquilo que os rodeia…”

    Reza a história que um «dealer» alemão ficou mudo. Agredia os colegas e comia os próprios excrementos. Os guardas, fartos das extravagâncias do ocidental, levaram-no de rastos para a enfermaria. Partiram-lhe os dentes com os casse-têtes. Injectaram-lhe uma boa dose de Valium e deixaram-no morrer. São casos idênticos que amaldiçoam os sonhos dos presos. Com ou sem «trip»…

    Diferenças de interpretação

    Márcia e Luís (este último está hoje numa prisão fora de Banguecoque) são acompanhados pelas respectivas famílias. Márcia, desde Lisboa. Luís, de Macau, para onde foi viver a sua mulher. Assim está menos longe dela. Mas ambos os presos são acompanhados também pelo Cônsul português em Banguecoque, um goês, que está há 18 anos na Tailândia. «Por razões humanitárias», disse à ABC o representante consular José de Sousa, não por uma questão de funções. Mas a sua margem de manobra é demasiado limitada. E como nos disse um familiar de Márcia, «há visita quando há». O Embaixador de Portugal em Banguecoque, Dr. Melo Gouveia, é de opinião diferente: «Márcia é visitada  periodicamente pelos funcionários. No último Natal, foram lá vê-la».

    As diferenças de interpretação entre o Embaixador e a família não são as únicas que existem relativamente a este caso. A nível do Estado português também haveria algumas divergências de pontos de vista, designadamente  no que respeita ao famoso acordo de repatriação. Se não, vejamos: no princípio de Novembro de 1982, o Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros, Paulo Marques, deslocou-se à Tailândia para negociações comerciais, aproveitando a oportunidade para informar as autoridades Tai do interesse que Portugal teria em assinar o acordo. «Paralelamente, o responsável da pasta dos Negócios Estrangeiros, Futscher Pereira, manifestou grande interesse pela questão dos portugueses detidos», confidenciou à ABC uma fonte diplomática. Foram, então, dadas instruções nesse sentido ao Embaixador, mas até ao momento não se tem notícia de qualquer «démarche» do representante português em Banguecoque. «Não é o momento oportuno», declarou-nos, sem explicar as razões desta afirmação. Uma falta de iniciativa que pode ser explicada por uma «extraordinária» confiança no perdão real. Mas até hoje o perdão só foi exercido três vezes…

    Márcia está numa «situação dramática», diz em Lisboa a família. A jovem portuguesa sofre de anemia crónica e de febres; o corpo inchou-lhe desmesuradamente; a inactividade é praticamente absoluta; a sobrevivência pode ser uma questão de tempo: «É provável que não morra, pelo menos, este ano…», disse a ABC o irmão que a visitou em Bangkok.

    No entanto, em conversa telefónica com o jornalista, o Embaixador Melo Gouveia manifestou opinião contrária: o estado de Márcia é «saudável» e a prisão de Banguecoque «aceitável». Mas, se os presos resistem «bem», como diz o embaixador português, como explicar a morte, em 1979, de um rapaz português na Penitenciária de Banguecoque, antes mesmo de ser julgado? Aos 28 anos, José Cid foi apanhado, encarcerado, provavelmente torturado. Sabe-se apenas que morreu, que foi enterrado num pequeno cemitério da capital tailandesa, porque não apareceu ninguém a reivindicar os seus restos mortais.

    Se o anonimato de José Cid permitiu que até hoje a sua morte tivesse sido ignorada, a situação de Márcia, portuguesa, de 24 anos de idade, e de Luís, 23 anos, é diferente: para já, porque há coisas pouco claras em todo este caso. E depois, porque, qualquer que seja a culpabilidade dos dois portugueses, é difícil admitir que, com esta idade, o horizonte de dois jovens esteja reduzido à expiação de uma pena de 25 anos, algures, numa cadeia sórdida, no país onde a heroína faz, de há muito tempo a estar parte, o papel do vilão. E nem sempre os vilões são chamados à cena. Lá, como cá.

    NOTA POSTERIOR DE RUI ARAÚJO: Márcia, depois de ser libertada, foi viver para o Canadá. Luís terá falecido. Estará enterrado no Algarve. O advogado português que lhes encomendou o “serviço”, nunca foi incomodado…


    Reportagem originalmente publicada na Revista ABC, Número 3, em Fevereiro de 1983.


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  • Pancadaria & Liberais & Liberdade de expressão

    Pancadaria & Liberais & Liberdade de expressão


    Com moderação de Pedro Almeida Vieira, o 18º episódio de O Estrago da Nação põe em confronto a visão de esquerda do Tiago Franco a a visão libertária do Luís Gomes. Hoje, fala-se das cenas de pancadaria em frente à sede do Bloco de Esquerda no decurso de uma acção de campanha do Ergue-te (proposta do Tiago) e, em seguida, sobre as posições da Iniciativa Liberal (proposta do Luís). Antes do terceiro tema (proposto pelo Pedro) – em redor da liberdade de expressão no Parlamento – ainda houve tempo de abordar a visita de Javier Milei a um encontro internacional da direita radical (e o conflito diplomátoco entre Espanha e Argentina) e comentar as declarações do Chefe do Estado-Maior da Armada sobre “morrer onde tivermos de morrer’ se for preciso ‘salvar’ a Europa.

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