Para promover uma campanha de descontos do Correio da Manhã, a CMTV decidiu ir dar uma ‘ajudinha’, fazendo uma reportagem numa papelaria lisboeta e usando uma jornalista. A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) considerou, porém, abusivo o uso de um espaço noticioso para auto-promoção e levantou agora um processo de contra-ordenação à Medialivre. A campanha do Correio da Manhã, que nem sequer se mostrou um sucesso comercial, pode agora vir a custar uma coima de até 150 mil euros.
A CMTV arrisca uma multa máxima de 150 mil euros por ter transmitido num noticiário uma reportagem em directo a promover cupões de desconto do Correio da Manhã. Para a Entidade Reguladora para a Comunicação Social, que aprovou a deliberação no final do mês passado, e a divulgou ontem, o serviço noticioso Grande Jornal da Tarde, no canal televisivo não poderia ter feito, no passado dia 22 de Janeiro, uma evidente campanha de autopromoção do diário da Medialivre, ainda mais usando uma jornalista-estagiária, Beatriz Henriques Ferreira (TP 1351), apesar de ser ilegalmente identificada como Beatriz Ferreira, uma vez que este é o nome profissional de uma jornalista do Observador (CP 7350).
Por esse motivo, a ERC fez também uma participação à Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ), contra a jovem jornalista face à regulamentação que impede a participação em actividades de índole promocional, excepto se for para o próprio órgão de comunicação social. Apesar do mesmo grupo de media, o Correio da Manhã e a CMTV são órgãos de comunicação distintos, mesmo compartilhando a mesma direcção. Na CCPJ, porém, um dos três membros do Conselho Disciplinar é o jornalista Miguel Alexandre Ganhão, editor da seção de Política e Economia da CMTV.
Para aumentar vendas do Correio da Manhã, CMTV promoveu a campanha de cupões.
Espoletado por uma queixa particular, a reportagem integrada no noticiário da CMTV destacava “a campanha que lhe permite comprar o Correio da Manhã por apenas um euro”, sendo que o pivot, antes de ‘lançar’ a jornalista Beatriz Ferreira presente na Papelaria Suave, em Lisboa, informava que “hoje é dia de usar o cupão que saiu durante o fim de semana e ter um desconto de 50 cêntimos”. E no oráculo lia-se, em letras garrafais: “HOJE: O SEU CM POR APENAS 1€” e “CUPÃO DÁ DESCONTO DE 50 CÊNTIMOS”.
Analisada a reportagem, onde a jornalista aludia “desde logo ao preço do jornal com o desconto dado pelo cupão” – dizendo que “começa mais uma semana em que os leitores podem comprar o Correio da Manhã por apenas um euro”, e instruía sobre a forma de obter os descontos”, a ERC não teve dúvidas em considerar uma “auto-promoção”, assentando que “existe um dever de separação entre conteúdos promocionais e conteúdos jornalísticos que vem sendo sedimentado ao longo do tempo e que vem englobando as adaptações que a evolução do campo da comunicação social vem exigindo”.
Particularmente evidente se mostrou a ‘entrevista’ da jornalista Beatriz Ferreira à proprietária da Papelaria Suave sobre a adesão à campanha, que garante que “até há clientes que deixam o cupão quando é publicado para reserva do jornal nos dias que se seguem”, revelando também que no seu estabelecimento o Correio da Manhã é “o jornal diário mais vendido, sim senhora”.
Jornalista Beatriz Ferreira, da CMTV, foi usada para fazer auto-promoção a uma campanha do Correio da Manhã em violação do Estatuto do Jornalista.
E, sua defesa, a CMTV assegurou à ERC que apenas “pretendeu fazer uma cobertura noticiosa com relevância editorial (concorde-se ou não com as opções editoriais seguidas), da iniciativa do Correio da Manhã e não actuar ‘promocionalmente’ para facilitar/incrementar a venda do jornal”.
Embora admitindo que “se possa entender que a divulgação de uma iniciativa, com o impacto e o sucesso que esta teve junto do público, acaba por elogiar a imagem do Grupo Correio da Manhã”, acrescenta que “esse é o preço do reconhecimento que o público deu à iniciativa”, e que, nessa medida a Lei da Televisão (LTSAP) “não tem por objectivo vedar a divulgação de campanhas bem-sucedidas e apenas publicitar as ‘más notícias’.
A ERC não foi, contudo, da mesma opinião, e assim além de instaurar um processo de contra-ordenação à CMTV – que prevê uma coima entre 20 mil e 150 mil euros –, recomendou ao canal televisivo a cumprir os deveres de isenção dos conteúdos jornalísticos, designadamente através da separação clara entre conteúdos editoriais e conteúdos promocionais”. Ou seja, uma questão cada vez mais sensível na comunicação social portuguesa.
Saliente-se que esta campanha de descontos não teve um impacte muito significativo nas vendas do Correio da Manhã durante o primeiro trimestre deste ano, que fechou com uma média diária em banca de 37.121 exemplares contra 36.396 exemplares ao longo do trimestre anterior, de acordo com dados da Associação Portuguesa para o Controlo de Tiragem e Circulação.
Mas comparando com o período homólogo de 2023, o diário da Medialivre vendeu menos 4.689 exemplares por dia em papel. Em todo o caso, o Correio da Manhã bate largamente a concorrências na venda de jornais em papel, vendo quase tanto quanto a soma dos três outros principais diários: Jornal de Notícias (17.943 exemplares), Público (10.234 exemplares) e Diário de Notícias (apenas 1.116 exemplares).
N.D.21h40 de 5 de Agosto de 2024 – Lamentavelmente, o PÁGINA UM foi induzido em erro pela identificação da jornalista da CMTV que, de forma pública usa, o nome profissional de Beatriz Ferreira, sendo que está impedida por lei de o fazer, uma vez que esse nome profissional é detido por outra jornalista, do jornal Observador, que detém a carteira profssional (CP) 7350. Na verdade, a Beatriz Ferreira da CMTV, ainda nem sequer é jornalista, estando em estágio com a carteira TP 1351, sendo identificada pelo nome Beatriz Henriques Ferreira. Por lei, um jornalista não pode usar o nome de outro, ainda mais estando no activo. Mas a ‘bandalheira’ impera na Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ), que deveria impedir estas situações ilegais. Mas, convenhamos, que, neste aspecto, a CCPJ até já teve uma presidente (Leonete Botelho) que nada fez para que o então director do jornal onde trabalha(va) usasse apenas o nome profissional do seu registo pessoal. Independentemente de ter cometido um lapso por causa de uma ilegalidade da CMTV, o PÁGINA UM apresenta as desculpas à verdadeira Beatriz Ferreira (CP 7350). E procedeu à devida correcção.
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Talvez sem se aperceber ou mesmo sem saber – o que não retira, pelo contrário, a gravidade da situação –, a Direcção-Geral da Saúde (DGS) acabou por fornecer, no final da semana passada, dados preocupantes sobre a segurança das vacinas contra a covid-19. E pior ainda, o comunicado de imprensa, acriticamente acolhido pelos jornalistas dos media mainstream, foi interpretado como um incentivo para mais um reforço (booster) a partir de Setembro.
Convém referir que o Ministério da Saúde sempre recusou o acesso a dados em bruto sobre a pandemia, ou por não os ter (e ‘navegar à vista’) ou por assim deter o poder de manipular a informação a seu bel-prazer sem ser qustionado ou apanhado a mentir. Porém, desta vez, a DGS até deu elementos suficientes para, cruzando com outros dados oficiais, permitir concluir que nem sequer estamos numa situação em que a vacina é pouco eficaz mesmo em idades mais avançadas; estamos sim a falar de uma vacina que para a doença que visa “atacar” mostra-se contraproducente. Ou seja, melhor dizendo, é perigosa – e nem sequer estamos a incluir os potenciais efeitos adversos. Constitui um exemplo acabado, e cruel, de ser uma cura que estará a matar.
Vamos seguir em detalhe os dados transmitidos pela DGS no seu comunicado para comprovar isto, e explicar meticulosamente os cálculos. Diz esta entidade que “a mortalidade específica por covid-19 correspondeu a 15 óbitos a 14 dias por milhão de habitantes”. Consultando os dados oficiais, confirma-se que entre 16 e 30 de Junho, o período de referência, se registaram, de facto, 166 óbitos, um valor próximo da taxa de mortalidade indicada. Destes óbitos por covid-19, oito pessoas teriam idade inferior a 60 anos (sendo que seis não tinham reforço), mais uma vez de acordo com o comunicado da DGS, significando assim que 158 tinham mais de 60 anos.
Como “cerca de 44% dos óbitos não tinham registo de vacinação sazonal na última época”, acrescenta a DGS, então significa que, deduzindo a condição vacinal dos menores de 60 anos, houve no período em análise um total de 91 óbitos de pessoas vacinadas com o último reforço sazonal e 67 de pessoas sem vacinação no grupo dos maiores de 60 anos.
Ora, mas para se tirar conclusões rigorosas, e sobretudo para avaliar a eficácia da vacina, mostra-se necessário saber o universo de vacinados (com reforço) e de não-vacinados. E isso sabe-se, porque a Direcção-Geral da Saúde foi divulgando essa informação durante o programa de vacinação sazonal, cujo último relatório é de finais de Abril passado.
Aí se refere que para a população de mais de 60 anos, receberam reforço um total de 1.687.260 pessoas, correspondente a 56,14% do total. Deste modo, os não-vacinados (sem reforço) nesta faixa etária terão sido, contas feitas, 1.318.190 pessoas (43,86%).
Com estes dados, pode-se então calcular as taxas de mortalidade para ambos os grupos:
Taxa de mortalidade entre vacinados (TMv)
TMv = Mv/Pv , sendo Mv – mortes de vacinados ; Pv – população vacinada
donde
TMv = 91 / 1.687.260 = 53,93 por milhão
Taxa de mortalidade entre não-vacinados (TMnv)
TMnv = Mnv/Pnv , sendo Mnv – mortes de não-vacinados ; Pnv – população não-vacinada
donde
TMnv = 67 / 1.318.190 = 50,83 por milhão
A partir daqui já vemos haver um “problema” – e grave – com a vacina contra a covid-19, mesmo havendo a possibilidade de alguns vieses: para a covid-19, a taxa de mortalidade dos vacinados é superior à dos não-vacinados (53,93 vs. 50,83 por milhão)
Isso mostra-se ainda mais relevante quando se calcula o risco relativo (RR) entre os vacinados e os não-vacinados – que, tal como sucede em qualquer fármaco, deve ser inferior a 1 para existir vantagem sobre o placebo (neste caso, não tomar dose de reforço).
Temos assim que, para a faixa dos maiores de 60 anos:
RR = TMv/TMnv = 53,93 / 50,83 = 1,061
Ora, sabendo-se que a eficácia da vacina (VE) mede a redução relativa no risco de um evento (mortalidade) devido à vacinação (reforço sazonal), no caso em apreço calcula-se o valor da seguinte forma:
VE = 1 – RR = 1 – 1,061 = 0,061 = – 6,1%
Significa isto, de forma literal, que a eficácia da vacina (dose de reforço) foi de – 6,1% (valor negativo), indicando, na verdade, em função destes dados oficiais, que o reforço sazonal para a população com idade superior a 60 anos está afinal associado a um aumento no risco de mortalidade por essa doença em comparação com as pessoas não vacinadas.
Admite-se que possa existir aqui algum viés, à cabeça do qual estará o Paradoxo de Simpson, que para ser detectado recomenda uma maior desagregação das faixas etárias. O comunicado da Direcção-Geral da Saúde indica, por exemplo, que 70% dos óbitos são de maiores de 80 anos, mas não especifica a percentagem respeitante a vacinados e não vacinados. Se essa distribuição for similar ao valor global (56% e 44%, respectivamete), e tendo em conta que 66,37% da população desta faixa etária recebeu reforço vacinal, então para os maiores de 80 anos o RR seria de 0,646, dando assim um valor de VE de 35,4% (similar ao da vacina contra a gripe).
Mas, neste caso, para a faixa etária dos 60 aos 79 anos, assumindo os valores oficiais das taxas de reforço (45,49% para os 60-69 anos) e 62,78% para os 70-79 anos) e a distribuição dos óbitos entre vacinados e não vacinados (56% e 44%), o VE seria desastroso, uma vez que para a taxa de mortalidade para os não-vacinados seria de 15,05 por milhão e para os vacinados de 21,96.
Ou seja, o reforço vacinal estaria assim, para este grupo etário, associado a um acreéscimo de mortalidade por covid-19 de 46%. Um valor completamente insustentável, que deveria levar à simples e imeadiata suspensão da vacinação para este grupo etário, excepto em casos de comorbilidade graves.
Aqulo que estes dados – e esta análise – sobretudo indicam à saciedade é que a Direcção-Geral da Saúde, as outras autoridades de Saúde e o próprio Governo não podem continuar a agir com uma ligeireza potencialmente criminosa, insistindo na promoção de uma vacina que claramente se mostra de fraquíssima eficácia (ou talvez mesmo contraproducente), apenas para “salvar o coiro” e os negócios de farmacêuticas. O objectivo de uma Autoridade de Saúde Nacional e de um Governo não é esse: é salvar pessoas; e não matá-las. Uma (in)eficácia do reforço de -6,1% (valor negativo, o que é insustentável em farmacologia) é demasiado preocupante para nada se fazer – e insistir num programa vacinal com estes valores chega a ser criminoso.
N.D. Ainda em análise (escrever-se-á sobre isso em breve), um recente acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul recusou a pretensão do PÁGINA UM, perseguida há dois anos, em aceder aos dados do Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (SINAVE), bem como a outros dados em bruto relativos à gestão da pandemia. Esta decisão confirma o obscurantismo de um país que comemorou há pouco os 50 anos da democracia, mas que, de cravo no peito, cultiva a falta de transparência, irmã da manipulação e da desinformação. Esgotas-se assim, em princípio, a possibilidade de se aceder a informação para uma análise independente. Aliás, nem dependente, visto que o relatório sobre o excesso de mortalidade prometido em Agosto de 2022 pela então ministra Marta Temido ainda continua em ‘águas de bacalhau’ para que ‘a culpa morra solteira’. Um Governo decente e uma Administração Pública ao serviço do público não podem continuar a esconder informação e, de uma forma irresponsável, como aqui se revela, promover um fármaco que, afinal, com base em dados fortuitos que divulgam, se mostra, afinal, perigoso. Desafia-se assim a DGS (e o próprio Ministério da Saúde) a refutar esta análise do PÁGINA UM mostrando todos os dados brutos (sem ‘invenções’ nem manipulações), de modo que possam ser livremente analisados. E que seja transparente no futuro. Afinal, estamos a falar de vida; que sempre valem mais do que votos.
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Apesar do aumento da idade da reforma a partir do ano de 2014 e da maior dificuldade na atribuição de apoios por incapacidade, o somatório das pensões de reforma, de sobrevivência e de invalidez registadas no ano passado ultrapassou em Portugal, pela primeira vez, a fasquia dos três milhões. O aumento é de 39% face ao ano de 1990 e, actualmente, sete em cada 10 pensões são por velhice, de acordo com a análise do PÁGINA UM aos últimos dados do Instituto Nacional de Estatística. A pandemia não teve, segundo a linha de tendência do quinquénio anterior, qualquer impacte relevante.
O número de pensionistas em Portugal ultrapassou, pela primeira vez, a fasquia dos 3 milhões. Segundo os mais recentes dados, divulgados no final desta semana pelo Instituto Nacional de Estatística, no final do ano passado foram contabilizadas 3.020.960 pensões, um aumento de 30.950 face ao ano de 2022. Este foi, aliás, o maior aumento interanual desde 2012.
De entre a tipologia das pensões, 70% (2.117.487) são por velhice, sendo este o valor mais elevado de sempre, por via do aumento da expectativa de vida dos mais idosos nas últimas décadas, mesmo com a pandemia. O número de pensões de velhice diminui em 318 entre 2020 e 2021, mas no ano de 2022 já subira 11.726. Em 2023, o aumento ainda foi mais substancial: mais 35.692 pensionistas, o maior crescimento desde o momento em que a idade da reforma passou a estar indexada à expectativa de vida.
Segundo a análise do PÁGINA UM, desde 1990 o número de beneficiários de pensões de velhice cresceu mais de 807 mil, uma taxa de crescimento médio anual de 1,46%, apesar de esse aumento ter sido atenuado a partir de 2014, quando a idade de reforma passou de uma idade fixa de 65 para os 66 anos, passando a partir daí a variar de acordo com a evolução da expectativa de vida aos 65 anos. Essa medida implicou mesmo que em 2014 houvesse um decréscimo de 11.685 pensões desta tipologia, quando a média anual do quinquénio anterior fora de 38.355. Este ano, a idade de reforma está estabelecida nos 66 anos e quatro meses, sabendo-se já que subirá mais três meses em 2024.
Desde a tomada dessa medida, o aumento médio anual de pensionistas – que depende das mortes e da entrada de novos reformados – cifrou-se em apenas 12.260, o que em certa medida retira pressão á Segurança Social.
Também as pensões de sobrevivência registaram o seu maior número de sempre no final do ano passado, com 741.001 pensionistas. Convém referir que a contabilidade do INE acumula as pensões, ou seja, pensionistas com pensão de sobrevivência e de velhice contam como dois. O valor do ano de 2023 é, em todo o caso, pouco maior do que aquele referente a 2022: apenas mais 2.921, mas a taxa de crescimento médio anual desde 1990 é de 1,96%. Naquele ano havia apenas 390.704 pensões de sobrevivência.
Evolução do número de pensões de invalidez, de velhice e de sobrevivência entre 1990 e 2023. Fonte: INE.
Ao invés, as pensões de invalidez estão a diminuir fortemente e o valor do ano passado é mesmo o mais baixo desde sempre. Os registos do INE para 1990 apontavam para as 472.449 pensões por invalidez, enquanto no ano passado se cifrou em apenas 163.472 pensões desta tipologia. A razão desta descida é sobretudo administrativa e política tanto ao nível da maior dificuldade na confirmação do grau de incapacidade e demais burocracias quer nos critérios de acumulação de pensões. Por exemplo, a partir de 2014 os funcionários públicos deixaram de poder acumular pensões de invalidez com a reforma.
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Se um presidente do Tribunal Constitucional acha que pode contratar por ajuste directo uma empersa de comunicação apenas por obra e graça da sugestão de um amigo (neste caso, um antigo presidente do Supermo Tribunal de Justiça), que mal haverá se de entre 1.298 contratos similares, detectados pelo PÁGINA UM, apenas 39 tenham sido sujeitos a prévio concurso público, com concorrência directa? Para quem faz do ‘amiguismo’ e da deslealdade na livre concorrência, uma forma de gestão dos dinheiros públicos, nenhum. Mas para quem acha que o Código dos Contratos Públicos é mais do que um conjunto de regras e princípios para serem contornados com esquemas, então talvez ache que não pode suceder que em cada 100 contratos públicos no sector da comunicação pública haja 97 a serem entregues de ‘mão-beijada’.
João Caupers, o ex-presidente do Tribunal Constitucional que contratou por ajuste directo a agência de comunicação Wonderlevel Partners porque lhe foi sugerida por um antigo presidente do Supremo Tribunal de Justiça, conforme relatou uma investigação do Público, constitui o símbolo da decadência do actual regime de contratação pública, onde os princípios da transparência, da livre concorrência e da boa gestão dos recursos públicos são menorizados perante os “amiguismos”, que levam até à corrupção moral e financeira.
Se os casos da contratação da Wonderlevel Partners, de Luís Bernardo – um socialista muito próximo da governação de José Sócrates mas que continuou a manobrar bem nas águas dos Governos Costa –, estão agora na ordem do dia, depois das buscas realizadas esta quinta-feira em vários locais, entre os quais a Câmara de Oeiras, na verdade o mundo das agências de comunicação, algumas integrando consultadoria e outras componentes de marketing, vivem – e muitas bem – através de contratos de ‘mão-beijada’, ou seja, por ajustes directos.
Em muitos casos, devido aos limites do Código dos Contratos Públicos – que limitam os ajustes directos para este tipo de serviços tanto em montante, como em sequência –, o ‘truque’ passa por lançar – ou simular – uma consulta prévia a outros dois potenciais concorrentes. Em muitos casos, nem sequer existe resposta dos outros dois, não apenas por uma espécie de pacto de não-agressão neste mundo de negócios, mas também por se saber que esse procedimento está ‘viciado’, isto é, serve apenas para legalizar uma escolha já antecipadamente feita.
Uma coisa é certa, conforme constatou uma investigação do PÁGINA UM: encontrar no Portal Base um concurso público para a contratação por uma entidade pública de serviços de comunicação ou de assessoria de imprensa é como apanhar agulha em palheiro. Até porque nem sequer há ‘agulhas’ na cultura das entidades públicas na hora de contratar quem lhes ‘faz’ a imagem.
Num levantamento que envolveu a análise dos contratos públicos de 42 empresas que se dedicam em exclusivo ou sobretudo a serviços de comunicação, constata-se a existência de apenas 39 concursos públicos, no valor de cerca de 3,5 milhões de euros, num universo de 1.298 contratos de todo o género, que envolveram mais de 37,5 milhões de euros. Ou seja, em 100 contratos de comunicação, apenas três são antecedidos por concurso público. Em termos de montante, os concursos públicos representam 9% do total.
Para este ‘desempenho’ mesmo assim destaca-se a Creative Minds, uma empresa que também desenvolve actividade de marketing e consultadoria, e que, por isso, contabiliza 20 contratos por concurso público e ‘apenas’ 43 por ajuste directo e consulta prévia. Se retirarmos essa empresa, só se detectam 19 concursos públicos nas outras 41 empresas, sendo que 29 nunca souberam o que é ganhar um contrato com concorrência a sério.
De entre todas as empresas, a LPM – fundada por Luís paixão Martins – é aquela que está no topo dos contratos sem concorrência decente. Desde 2008, altura em que começaram a ser registados os contratos no Portal Base, a empresa facturou cerca de 5,7 milhões de euros a entidades públicas, sendo que o período de ouro foi o triénio 2009-2011, ultrapassando mais de 2,3 milhões de euros nesses anos. Quase tudo foi por ajuste directo. Nos anos seguintes decaiu a sua facfuração pública, sobretudo por via da drástica diminuição dos ajustes directos. A partir de 2018, os ajustes directos em cada ano foram já sempre largamente inferiores aos contratos por outros procedimentos, designadamente concurso público, concurso limitado por prévia qualificação e consulta prévia.
O ano 2022 foi para a LPM um ano atípico: mesmo facturando mais de 716 mil euros em contratos público, nenhum dos seis contratos foi por ajuste directo, tendo a maior parte da receita sido obtida através de quatro concursos públicos. No total, a LPM contabiliza cinco contratos após concurso público, num volume de negócios de 516 mil euros, que representam 9% da sua facturação com entidades públicas.
Em todo o caso, analisando todo o período temporal a partir de 2008, a LPM viveu de ajustes directos nas suas relações com entidades públicas. De um total de 120 contratos, 90 foram por ajuste directo, 21 por consulta prévia, quatro por concurso limitado por prévia qualificação e apenas cinco por concurso público. Neste caso, os contratos através de concursos públicos ocorrerem em 2022 e 2023, sendo que o de maior montante (177.838 euros) foi assinado com a EMEL e terminou recentemente.
Em termos de volume facturação, quase dois terços (63%) do montante dos contratos públicos da LPM foram por ajuste directo (3,6 milhões de euros), sendo que os concursos públicos atingiram um valor de pouco mais de 516 mil euros, o que representa 9% do total.
A segunda empresa com maior facturação pública é a First Five Consulting, que também estará a ser investigada no processo que envolve Luís Bernardo. Com um crescente domínio no mundo comunicacional, a empresa detida formalmente por Rui Farias, conta com 131 contratos públicos no valor de 4.956,171 euros, Não há um contrato sequer ganho por concurso público. Tudo feito por ajuste directo e consulta prévia, isto é, resolvido por telefone, correio electrónico, reuniões ou outras confraternizações.
A Wonderlevel Partners é a terceira com maior facturação a entidadEs públicas, apesar de nos anos mais recentes ter ultrapassado a LPM. Considerando os contratos a partir de 2012, apenas 315 mil euros numa facturação de quase 3,6 milhões de euros foram provenientes de contratos após concurso público. Esse montante corresponde apenas a um concurso público aberto pelo município do Barreiro, tendo sido assinado o contrato em Janeiro do ano passado. O contrato permite, porém, que a edilidade prescinda dos serviços ao fim de cada ano, pelo que apenas está garantida uma verba de 105 mil euros em cada um dos três períodos.
Este é, no entanto, um caso absolutamente excepcional no histórico da Wonderlevel Partners, que conta agora com exactos 100 contratos públicos, sendo que 45 são por ajuste directo e 54 por consulta prévia. No entanto, as relações comerciais contínuas entre a Wonderlevel e certas entidades públicas mostra à evidência que a opção pela consulta prévia, em vez do ajuste directo, não se deve ao interesse em permitir a concorrência ou serviços a preços mais adequados. Mostra ser, sobretudo, um truque para contornar os limites do Código do Contrato Público aos ajustes directos.
Volume de negócios e número de contratos públicos (total e por concurso público) celebrados por empresas de comunicação e assessoria de imprensa. Fonte: Portal Base.
Um exemplo paradigmático – e ainda por cima vindo de uma instituição universitária pública que tem a função de também ensinar o respeito pela transparência e boas práticas de gestão dos dinheiros públicos – passa-se com a Universidade Nova de Lisboa que nos últimos seis anos tem celebrado sucessivos contratos com a empresa de Luís Bernardo, ora por ajuste directo, ora por consulta prévia (para a qual, na generalidade dos casos, os outros convidados nem respondem por saberem ser uma consulta ‘viciada’, uma espécie de ‘pro forma’).
Em 2018 houve um ajuste directo e uma consulta pública; no ano seguinte dois ajustes directos; em 2020, mais um ajuste directo que ‘obrigou’ a fazer uma consulta prévia em 2022; e a seguir em 2023 houve mais um ajuste directo e duas consulta prévia. Este ano já houve mais uma consulta prévia. Em resumo, em seis anos, a Universidade Nova de Lisboa entrega 10 contratos sem concorrência num montante que já vai em 268.525 euros.
Com contratos públicos acima de um milhão de euros, o PÁGINA UM detectou para além das quatro já referidas (LPM, First Five Consulting, Wonderlevel Partners e Creative Minds), outras cinco: Essência Completa, Mediana, Multicom, YoungNetwork e Unimagem. No conjunto, estas empresas celebraram 301 contratos no valor de quase 7,5 milhões de euros, mas destes somente sete foram por concurso público, que representaram menos de 900 mil euros.
Em empresas de pequena e média dimensão, que desenvolvem em muitos casos uma actividade de regional, nota-se ainda mais a ausência de contratos ganhos em concurso público. Essa situação é demonstrativo de se estar perante empresas que obtêm os contratos por ajuste directo ou consultas prévias por via de relacionamentos pessoais com os gestores públicos, incluindo presidente de autarquias.
Com efeito, na amostra das 33 empresas com menos de um milhão de ‘facturação pública’, apenas se encontram seis contratos por concurso público num universo de 583. Ou seja, apenas um contrato ganho por concurso público em cada 100. Em termos de montante, esses seis contratos representaram apenas 2,5%.
No caso das empresas com menos de 500 mil euros de ‘facturação pública’, então o ajuste directo (complementado pelas consultas prévias, grande parte das quais simulada) é rei e senhor: em 220 contratos assinados, grande parte dos quais com valores que nunca passam dos 20 mil euros, só se encontra um por concurso público. Aqui é onde as amizades valem literalmente euros… públicos.
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Desde Julho de 2019, quase 29 milhões de euros foram gastos através de ajustes directos, apenas contabilizando os 76 contratos acima de 100 mil euros – assim foi a gestão do INEM, que vive sobretudo de taxas relativas aos seguros pagos pelos portugueses. Apesar de o mais recente ajuste directo – para a contratação de quatro helicópteros de emergência médica no valor de 12 milhões de euros – ter também como responsável o Governo anterior, certo é que o INEM, através do demitido presidente, Luís Meira, foi banalizando o recurso aos contratos de ‘mão-beijada’, beneficiando sistematicamente as mesmas empresas, sobretudo na gestão da frota, seguros, compra de viaturas e segurança. Neste último caso, a relação do INEM com a Prestibel já vem de muito longe, e tem contornos de escândalo: na última década, as duas entidades celebraram meia centena de contratos, sendo apenas dois por concurso público. Por sistema, nas ‘barbas’ do venerando Tribunal de Contas, os ajustes directos invocam a “urgência imperiosa”, que, em alguns períodos, durou anos.
Nos últimos cinco anos, o uso de ajustes directos pelo Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM) banalizou-se. A concretização de mais um destes contratos, assinado na sexta-feira passada pelo demitido presidente Luís Meira, desta vez para não deixar o pais sem helicópteros de assistência médica, constitui apenas mais um dos 76 ajustes directos de montante relevante (acima dos 100 mil euros) celebrados nos últimos cinco anos. No total, desde Julho de 2019 até hoje, para esta tipologia, os ajustes directos atingiram quase 39 milhões de euros, superando largamente os contatos após concurso público (20 milhões de euros) e aqueles celebrados no âmbito de acordos-quadro (13 milhões de euros).
De acordo com o levantamento do PÁGINA UM, uma parte muito significativa dos ajustes directos foi realizada no último ano e meio, por causa do aluguer dos helicópteros de emergência. Com efeito, em Agosto de 2018, o INEM tinha feito com contrato por concurso público com a Babcock por 38,75 milhões de euros, que veio a terminar em Dezembro do ano passado, representando um custo a rondar os 650 mil euros por mês. Mas por vicissitudes várias, o INEM mostrou-se incapaz de concluir novo concurso público ao longo do ano passado. Resultado: no antepenúltimo dia de 2023, o INEM fez um ajuste directo com a Babcock por 6 milhões de euros, mas apenas por seis meses, com um custo substancialmente superior ao contratos anterior, ou seja, um milhão de euros por mês.
Com as propostas dos dois concorrentes abaixo de preço-base (54 milhões de euros), o concurso público lançado acabou anulado, e, deste modo, na iminência de ficar sem helicópteros de emergência, Luís Meira celebrou na sexta-feira passada um novo ajuste directo, desta vez com a empresa Avincis Aviation por 12 milhões de euros durante um ano, mantendo assim o valor mensal de um milhão de euros.
Se os helicópteros marcam, também pelo montante, o peso dos ajustes directos nos últimos cinco anos de Luís Meira à frente do INEM, também a gestão da frota de ambulância e outros veículos foi um maná de ajustes directos, também sem explicação plausível. Sendo certo que finalmente se celebrou um contrato, com a empresa Kinto, do Grupo Toyota, após um concurso público internacional há cerca de dois meses – e que entrou em vigor em Junho, prolongando-se até Fevereiro de 2026, com um custo de quase 7,2 milhões de euros (sem IVA) –, o INEM só o fez depois de somar 10 ajustes directos consecutivos.
Todos estes ajustes directos tiveram como beneficiário a empresa que agora ficou com o contrato. Os montantes envolvidos nesses ajustes directos não foram pequenos: entre 2022 e este ano, a Kinko recebeu em ajustes directos mais de 6,3 milhões de euros. No segundo semestre de 2019 e em 2020, esta empresa – então sob a denominação de Finlog – recebeu ajustes directos de 2,5 milhões de euros.
Também os sucessivos ajustes directos para pagamento de licenças, actualizações e apoio técnico do Sistema Integrado de Atendimento e Despacho de Emergência Médica (SIADEM) – que entrou em funcionamento em 2009 nos Centros de Orientação de Doentes Urgentes (CODU) – tem sido uma ‘renda’ apetecível para a empresa Integraph. Em contratos no sector informático, o mais difícil é ganhar o contrato de softaware, porque depois surgem rendimentos anuais. Nos últimos cinco anos, desde Julho de 2019, contabilizavam-se quase 3,2 milhões de euros. Mas desde 2009, esse montante já se aproxima dos 6 milhões de euros.
Um outro importante fornecedor – e beneficiário – de serviços ao INEM por ajustes directos é a Fidelidade. Desde Julho de 2019, com Luís Meira a companhia de seguros garantiu 16 contratos de ‘mão-beijada’ no valor total de 3,3 milhões de euros. Na generalidade dos casos, usa-se o ‘esfarrapado’ – que o Tribunal de Contas continua a deixar passar incólume – da “urgência imperiosa”.
Com efeito, não se compreende como podem existir sucessivos ajustes directos recorrendo sempre à mesma adjudicatária (beneficiada) alegando uma norma do Código dos Contratos Públicos que apenas permite ajustes directos “na medida do estritamente necessário e por motivos de urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis pela entidade adjudicante, não possam ser cumpridos os prazos inerentes aos demais procedimentos, e desde que as circunstâncias invocadas não sejam, em caso algum, imputáveis à entidade adjudicante”. Não lançar atempadamente concursos públicos é, por regra, algo que é imputável às entidades públicas, pelo que jamais poderiam usar esta norma para justificar tantos ajustes directos sucessivos.
Beneficiários e valores (em euros) dos contratos celebrados pelo INEM por ajuste directo superiores a 100 mil euros desde Julho de 2019 até hoje. Fonte: Portal Base.
Ainda acima de um milhão de euros, a SIVA conseguiu garantir a venda, através de quatro ajustes directos, de 34 Viaturas Médicas de Emergência a Reanimação (VMER) e duas outras viaturas, amealhando 1,6 milhões de euros desde o segundo semestre de 2019. Em todo o caso, o uso de contratos de ‘mão-beijada’ entre o INEM e a SIVA já foram muito mais florescentes: em 2008 e 2009, durante o Governo Sócrates, foram adquiridas por ajuste directo 168 VMER ao preço de 8,6 milhões de euros. E acrescente-se que a um preço unitário (52 mil euros) superior ao das recentes compras.
A fechar o leque das empresas com mais de um milhão de euros de facturação com ajustes directos está a Prestibel, uma empresa de segurança, um sector onde os contratos de ‘mão-beijada’, mais uma vez sem intervenção do Tribunal de Contas, são recorrentes e frequentes. E usando um estratagema habitual: intercalando ajustes directos surge um contrato celebrados após um concurso público de curta duração.
A relação comercial do INEM com a Prestibel é, aliás, paradigmática de um abuso evidente na opção pelos ajustes directos, que trespassa grande parte das entidades públicas, afectando não apenas a livre concorrência (prejudicando empresas concorrentes) como sendo uma ‘porta aberta’ à corrupção e à má utilização de dinheiros públicos, uma vez que os ‘acertos’ contratuais se fazem à porta fechada.
De acordo com o Portal Base, de entre os últimos 50 contratos entre o INEM e a Prestbel, com início em 2014, alguns dos quais com duração de um mês, apenas dois foram por concurso público, mas de curta duração: o primeiro para os nove últimos meses de 2021 e o segundo para os nove últimos meses do ano seguinte. Não se consegue entender os motivos para uma entidade que necessita quotidianamente de serviços de segurança opta por concursos públicos com tão poucos meses de duração, dificultando depois a logística para novos concursos.
Assim, a Prestibel teve direito a 48 ajustes directos entregues pelo INEM, sem qualquer concorrência – que existe e é muita, tanto assim que no concurso de 2022 houve 12 candidatos. Em todos estes ajustes directos – o último dos quais, por 144 mil euros, foi assinado em Maio por dois meses –, se invoca a urgência imperiosa. Imperiosa e urgente, na verdade, será uma investigação sobre a facilidade com que gestores públicos aplicam as excepções do Códigos dos Contratos Públicos, passando-as como regra.
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A Noruega vai abrir o seu fundo marinho à exploração de minérios, prevendo-se o início em 2025. E arrisca ser uma caixa de Pandora. O projecto ameaça colocar em perigo alguns dos ecossistemas menos explorados mas importantes para a dinâmica do planeta. O principal argumento da indústria para a mineração no fundo do mar é a alegada necessidade da ‘transição verde’, mas os efeitos nefastos de ‘mexer’ nas profundezas marinhas não estão sequer avaliados. Oceanógrafos e outros cientistas alertam para a falácia da extracção de minérios em nome do combate à crise climática. O timing da decisão do Governo norueguês, com uma aprovação rápida, não aparenta ser, porém, uma coincidência, enquanto se intensificam vozes belicistas na Europa contra a Rússia. Os mares da Noruega são estratégicos e a exploração de minérios no fundo marinho é algo bastante apetecível para a indústria de armamento. Na generalidade dos países, os riscos da exploração em mar profundo têm levado à instauração de moratórias, para estudar melhores os impactes, sendo que Portugal ficou a meio caminho [ver texto autónomo]. Reportagem do jornalista Boštjan Videmšek em exclusivo para o PÁGINA UM, em Portugal.
No dia 9 de Janeiro, a proposta sobre a mineração em mar profundo foi aprovada no Parlamento norueguês por uma maioria esmagadora – 80 votos a favor e 20 contra. A Noruega, que se considera um dos países mais verdes do mundo, está assim a caminho de se tornar o primeiro país a abrir uma parte do seu fundo marinho à mineração industrial.
A pretendida ‘zona económica exclusiva’ norueguesa compreende 281.000 quilómetros quadrados. A mineração está planeada para ocorrer entre 1.500 e 4.000 metros de profundidade, na escuridão perfeita, iluminada apenas por criaturas que produzem luz bioluminescente.
As profundezas do oceano – incluindo o solo – abrigam alguns dos ecossistemas menos explorados do planeta. Em muitos aspectos, também o mais delicado. A área definida pelo Governo norueguês é o habitat natural de um grande número de espécies animais, incluindo vários tipos de baleias. De acordo com estimativas científicas, a zona também pode ser o lar de milhares de espécies que ainda não descobrimos. Significa que não fazemos ideia daquilo que podemos estar a colocar em risco.
A paisagem natural bela e única de Lofoten, no Ártico da Noruega, poderia sentir as consequências da mineração em mar profundo. (Foto: Boštjan Videmšek)
As profundezas do mar, na sua maioria inexploradas, são já fortemente influenciadas pelos efeitos das alterações climáticas, da poluição e da pesca excessiva. Na opinião de oceanógrafos e outros cientistas marinhos, a extracção de metais e minerais em nome do combate à crise climática pode colocar ainda mais em risco os ecossistemas de águas profundas.
Parte da área marcada para mineração encontra-se dentro da plataforma continental norueguesa, enquanto uma parte está nas águas internacionais vizinhas, cujo solo está sob jurisdição norueguesa. Uma parte da área de mineração é o arquipélago ártico de Svalbard – visto pela Noruega como a sua área económica exclusiva, apesar de um tratado internacional de 1920 estipular o uso partilhado com a Rússia, Reino Unido e Islândia, juntamente com vários outros países.
As empresas norueguesas planeiam utilizar o fundo do mar para a extracção de cobalto, cobre, zinco, magnésio, níquel e uma série de metais raros. Os metais raros estão localizados na crosta de manganês de montanhas subaquáticas, e nas proximidades de fontes hidrotermais activas ou extintas.
O principal argumento usado pela indústria de mineração em alto mar para conquistar políticos e investidores é que a mineração no fundo do mar é vital para a transição verde. Segundo este ponto de vista, a produção de tecnologias de fontes renováveis e de mobilidade eléctrica exigirá quantidades quase ilimitadas de metais e minerais. A brutal manipulação do ecossistema menos explorado do planeta, mas comprovadamente de extrema sensibilidade, é assim apresentada como o único caminho viável para a descarbonização.
Um dia norueguês de vergonha
“Precisamos cortar 55% de nossas emissões até 2030, e também precisamos cortar o resto de nossas emissões após 2030”, disse Astrid Bergmål, secretária de Estado do Ministério do Petróleo e Energia da Noruega, à Mongabay. “A razão pela qual devemos olhar para os minerais do fundo do mar é a grande quantidade de minerais críticos que serão necessários durante muitos anos”, continuou Bergmål. A governante também ressaltou que a mineração em alto mar só ocorrerá se o Governo norueguês determinar que seja conduzida “de forma sustentável e com consequências aceitáveis”.
A Noruega está longe de ser o único exemplo. As Ilhas Cook, o Japão, a Nova Zelândia e a Namíbia são apenas alguns dos países que também estão a actualizar a sua legislação em matéria de águas profundas.
O Governo japonês já construiu o primeiro navio destinado à colheita de metais subaquáticos. O projecto deve arrancar até o final da década. Em Novembro passado, as autoridades japonesas declararam que a área designada continha cobalto suficiente para 88 anos e níquel suficiente para 12 anos de necessidades japonesas.
A China, por outro lado, é o maior proprietário individual de licenças para a exploração e mineração do fundo marinho do Pacífico. A Rússia e a Coreia do Sul também possuem um grande número de licenças – como a Índia, que pretende criar sua própria área exclusiva para mineração em alto mar.
A sensação de que a indústria está atormentada por uma grande oposição ambientalista pode ser enganadora. A oposição está presente apenas nas regiões ambientalmente sensíveis do mundo ocidental, e mesmo aí as massas não estão exactamente a exigir para que se acabe com a mineração.
Lofoten, no Ártico da Noruega. (Foto: Boštjan Videmšek)
A secção norueguesa da organização ambientalista World Wide Fund for Nature (WWF) está convencida de que a decisão parlamentar a favor da exploração mineira dos fundos marinhos não cumpre sequer as normas legais mínimas. A WWF decidiu, assim, processar o Governo.
“A decisão da Noruega de prosseguir com a abertura de vastas áreas oceânicas para mineração destrutiva representa um escândalo governativo sem precedentes”, disse a CEO da WWF-Noruega, Karoline Andaur, há algumas semanas. “Nunca antes vimos um governo norueguês a ignorar tão descaradamente os pareceres científicos e a ignorar os avisos de uma comunidade de investigação oceânica unida. Se esta decisão não for contestada, aceitamos que os políticos possam infringir a lei e gerir os nossos recursos cegamente. Isso criaria um precedente novo e perigoso para a forma como as avaliações de impacto são conduzidas pelos governos atuais e futuros.”
Até agora, 26 países pediram uma moratória temporária sobre o projecto, incluindo França, México, Dinamarca e Grã-Bretanha. A estes juntaram-se mais de 800 cientistas de 44 países que decidiram escrever uma carta aberta às autoridades norueguesas. “A enorme importância do oceano para o nosso planeta e as pessoas, e o risco de perda em larga escala e permanente de biodiversidade, ecossistemas e funções ecossistémicas, exige uma pausa de todos os esforços para iniciar a mineração do mar profundo”, afirmou Karoline Andaur.
Os apelos para uma moratória foram mesmo ecoados por numerosas empresas globais como a BMW, Microsoft, Ford e Google. O Banco Europeu de Investimento retirou da sua carteira os investimentos em mineração de minerais marinhos devido aos seus potenciais impactos climáticos e naturais.
Embora a Noruega não seja membro da União Europeia, em Janeiro a Comissão Europeia lançou um apelo a Oslo para proibir a mineração em alto mar até que se saiba mais sobre seus prováveis efeitos. E até que seja claramente provado que a mineração não prejudicará os ecossistemas marítimos. Em Fevereiro, o Parlamento Europeu aprovou por unanimidade uma resolução altamente crítica dos planos noruegueses.
Animação de mineração em alto mar. (Foto: Imagem da empresa Loke)
“A mineração no fundo do mar pode colocar em perigo algumas das áreas mais sensíveis e vulneráveis do mundo”, disse-me Peter Haugan, diretor político do Instituto de Investigação Marinha da Noruega e director do Instituto Geofísico da Universidade de Bergen. “O dia em que a Noruega decidiu tomar esta atitude foi um dia muito triste para o nosso país.”
Haugan está convencido de que a decisão das autoridades norueguesas está em desacordo com a lei: “Não foram previamente recolhidas provas científicas suficientes sobre as prováveis consequências”. Segundo Haugan, os políticos agiram de forma precipitada. As respetivas licenças serão atribuídas em breve e as empresas requerentes não possuem capacidade para explorar adequadamente a área separada para a exploração mineira dos fundos marinhos.
“Em absoluto, é demasiado cedo para a emissão de licenças!”. Haugan foi taxativo. “Sabemos realmente muito pouco sobre os ecossistemas a tais profundidades, e também sobre o próprio fundo do mar. Há muita coisa que não sabemos! E o mesmo vale para as espécies animais que podem ser encontradas lá. Estamos a falar de um ambiente extremamente sensível e frágil, que não compreendemos. Os riscos são enormes. A mineração está planeada para ocorrer em níveis significativamente mais profundos do que os de nossos actuais poços de petróleo e gás, onde os riscos são pelo menos um pouco conhecidos!”
Haugan acredita que seriam necessários cerca de 10 anos para uma exploração suficientemente séria dos ecossistemas de águas profundas. O mesmo se aplica a um exame suficientemente sério dos riscos mineiros a longo prazo.
O diretor do Instituto de Investigação Marinha da Noruega teme que o exemplo norueguês possa encorajar outros países com ambições semelhantes. Também acredita que o Governo norueguês pode estar a apressar o processo de emissão de licenças para fortalecer seu controle sobre o Ártico, especialmente o arquipélago de Svalbard. “As preocupações territoriais podem estar a desempenhar um papel importante. Embora isso seja actualmente mera especulação da minha parte.”
Haugan espera que o processo de exploração dos fundos marinhos enfrente uma resistência crescente por parte da comunidade ambientalista. Também duvida muito da viabilidade económica do negócio. “Serão necessários investimentos tremendos, do tipo que até as grandes empresas de gás e petróleo, como a empresa estatal norueguesa Equinor, desconfiam. Para os grandes investidores, ainda há muitas incógnitas.”
Em nome da transição verde
A organização Environmental Justice Foundation (EJF) declarou recentemente que a decisão da Noruega representava “uma marca negra irrevogável na reputação da Noruega como um Estado oceânico responsável”. Um relatório da EJF afirma que a mineração em alto mar não é necessária para a transição energética. De acordo com o relatório, os actuais objetivos climáticos da humanidade poderiam ser alcançados através de uma combinação de novas tecnologias, economia circular e reciclagem. Desta forma, a nossa procura de metais e minerais poderia ser reduzida em 58%. O EJF está firmemente convencido de que os benefícios potenciais da mineração em alto mar não compensam certos danos para o meio ambiente.
Como já foi referido, a Greenpeace classificou a votação parlamentar de Janeiro como um dia da vergonha. “É embaraçoso ver a Noruega posicionar-se como líder oceânico enquanto dá luz verde à destruição dos oceanos nas águas do Ártico”, afirmou o gestor de projectos da Greenpeace Noruega, Frode Pleym. A sua visão é ecoada por Haldis Tjeldflaat Helle, líder da campanha contra a mineração em alto mar da Greenpeace Nordic.
“O Governo parece estar com muita pressa”, disse-me Helle, em Oslo. “A sua pressa na emissão de licenças sugere que quer fazê-lo o mais rapidamente possível. O concurso saiu no final de Abril. A data limite para inscrições era 21 de maio. Com todos os feriados nacionais pelo meio, o concurso só esteve aberto durante onze dias úteis. Na indústria petrolífera, o período normal é de dois meses”.
De acordo com Tjeldflaat Helle, a janela excepcionalmente curta para o concurso sugere que o Governo sabia que as empresas já estavam preparadas. Também acredita que o Executivo está a apressar o processo devido às eleições parlamentares do próximo ano – com a actual coligação a querer “cimentar” a decisão de abrir uma grande parte do fundo marinho do Ártico para exploração.
De qualquer modo, três ‘start-ups‘ apresentaram um pedido de licença de pesquisa. As nossas fontes acreditam que o Governo norueguês poderá anunciar a sua decisão já em Julho ou, o mais tardar, até ao final do Verão. Depois disso, a legislação exige um prazo de 90 dias para consulta e debate público. As primeiras licenças deverão, por conseguinte, ser emitidas no primeiro trimestre do próximo ano. O que significa que a exploração real do fundo do mar pode começar em 2025.
Haldis Tjeldflaat Helle lidera uma campanha contra a mineração no mar profundo da Greenpeace Noruega. (Foto: Boštjan Videmšek)
Ao conversar com os representantes da enorme indústria, fica-se com a impressão de haver uma confiança esmagadora. “A confiança deles está apenas na superfície”, advertiu Haldis Tjeldflaat Helle. “Tenho a certeza de que eles estão bem cientes do quanto de adivinhação está em jogo. Há tantas incógnitas! Especialmente no que diz respeito ao funcionamento dos equipamentos que estão a desenvolver”.
Como muitos dos seus pares, Tjeldflaat Helle está profundamente perturbada com o facto de que as empresas de mineração negligenciaram a inclusão de um plano de exploração a longo prazo do fundo do mar e das profundezas onde residem numerosas espécies animais desconhecidas. “Normalmente, são necessários oito a 10 anos apenas para classificar e descrever uma nova espécie animal. E, lá em baixo, certamente serão tantas! Noventa e nove por cento da área destinada à mineração está inexplorada. O Governo afirma que a extracção será realizada com a máxima responsabilidade ambiental. Mas como podem dizer isso com tão pouca informação?!”
Para Tjeldflaat Helle, o argumento de que o projecto faz parte da transição verde não resiste ao escrutínio. “A transição verde deve levar a sério a preservação do meio ambiente, e não atacar cegamente ecossistemas completamente inexplorados! Isto não faz qualquer sentido, o que é comprovado pela resposta unânime dos ambientalistas noruegueses e internacionais. A mineração em alto mar representa um risco tremendo para a diversidade biótica. Na verdade, é também um enorme risco do ponto de vista das alterações climáticas, uma vez que o oceano serve de sumidouro de carbono.”
A líder da Campanha contra a mineração em alto mar da Greenpeace Nordic também não está convencida da viabilidade económica do projecto. Helle é rápida em alertar que as descobertas de diferentes levantamentos geológicos se contradizem enormemente.
Ao mesmo tempo, a mineração do fundo marinho do Ártico seria diferente da mineração do Pacífico – muito mais agressiva. De acordo com Tjeldflaat Helle, isso implicaria muitos equipamentos novos. “Não esqueçamos que partes da área designada estão localizadas até 500 quilómetros da costa mais próxima. Trabalhar nas águas longínquas do Ártico será extremamente exigente, e o alcance limitado dos helicópteros de resgate é apenas parte da razão pela qual também será muito perigoso. Serão necessários enormes investimentos apenas para garantir a segurança da força de trabalho”.
A economia e o bem-estar da Noruega foram construídos com base no petróleo e no gás. (Foto: Boštjan Videmšek)
A cada novo dia, Tjeldflaat Helle está ainda mais convencida de que a abordagem do Executivo norueguês para a mineração em alto mar é a mais irresponsável entre as partes interessadas. “Devo repetir que toda a comunidade ambientalista está extremamente preocupada. Um projecto tão importante deve basear-se na transparência e na responsabilidade. Até agora, não foi esse o caso. Mesmo algumas das perguntas mais básicas que dirigimos aos decisores não foram respondidas. E, no entanto, estão prestes a começar a distribuir licenças!”
Com tão pouco apoio entre os ambientalistas, como é possível que o projecto tenha recebido luz verde? É certamente curioso que a mineração em alto mar pareça ser apoiada apenas por políticos.
“É uma questão do contexto norueguês específico”, explicou Tjeldflaat Helle. “O primeiro-ministro – o líder do Partido Trabalhista, Jonas Gahr Støre – é um grande apoiante do projecto. Ele tem muito capital político investido nisso. Antes da votação parlamentar, houve muita disputa entre vários Ministérios. A mineração dos fundos marinhos é uma questão controversa mesmo dentro das fileiras governamentais. O único Ministério firmemente a favor do projecto foi o Ministério da Energia. É assustador que a ideia tenha sido aprovada pelo Parlamento de qualquer maneira, uma vez que sugere que a vontade do primeiro-ministro foi o factor decisivo.
Por outro lado, a Noruega é a terra do petróleo e do gás. Os líderes destas indústrias exercem uma grande influência na nossa sociedade, tanto formal como informal. Quando olhamos para as empresas que decidiram candidatar-se, podemos dizer com segurança que uma parte das indústrias mencionadas decidiu embarcar no ‘comboio mineiro’. Mas há tanta coisa que simplesmente não sabemos. Tanto os ambientalistas como os jornalistas têm muita dificuldade em chegar às pessoas que estão a tomar estas decisões. Em geral, apenas nos remetem para algum burocrata inferior ou outro”.
Todos os dias, Tjeldflaat Helle fica cada vez mais horrorizada com a falta de transparência, dado que a Noruega gosta de se orgulhar de ser um dos países mais democráticos que existem. “Talvez o mais arrepiante de tudo seja o facto de o Governo ter decidido por uma posição pública segundo a qual a resposta negativa do Parlamento Europeu foi causada por ambientalistas que espalham desinformação”.
Os pescadores noruegueses são contra o projecto. (Foto: Boštjan Videmšek)
Muitos ambientalistas noruegueses acreditam que as autoridades de Oslo esperavam ingenuamente que a história da mineração em alto mar passasse abaixo do radar do público. No entanto, a resposta dos ambientalistas foi rápida e contundente – tanto a nível interno como externo.
“Espero que tudo isso ainda possa ser interrompido”, confidenciou Tjeldflaat Helle. “Em princípio, as licenças em questão só dizem respeito à exploração. As licenças de mineração estão condicionadas à comprovação de que o processo não seria muito prejudicial para o ambiente. Ainda há uma hipótese de que o Governo decida dar um passo atrás. E o próximo Executivo também pode reverter as mudanças na Lei. É apenas uma questão de vontade política.”
Neste Verão, a Greenpeace pretende levar um veleiro cheio de cientistas para a área designada do Ártico para realizar suas próprias pesquisas. A viagem pode ser vista como o início da campanha contra a mineração em alto mar, e será seguida por navegar ao longo da costa norueguesa e aumentar a consciência pública.
A brincar com o futuro
Uma sucessão de governos noruegueses tem vindo a considerar a ideia de exploração em alto mar pelo menos nos últimos oito anos. A situação tornou-se grave com a aprovação da Lei dos Minerais do Mar em 2019. “O acto é apenas uma estrutura que pode ser usada para muitos propósitos”, disse-me a bióloga marinha Kaja Lønne Fjærtoft. “Em 2020, a Noruega aprovou uma lei abrindo a área designada. O acto exige uma estimativa holística dos efeitos para o ambiente, para a economia e para a comunidade. Só se a estimativa for favorável é que os políticos podem decidir sobre os próximos passos. Isto também é apoiado pela Lei Mineral do Mar, que afirma que, em caso de dados insuficientes, é necessário um estudo mais aprofundado.”
Como alguém que trabalhou para o Ministério da Energia norueguês, Lønne Fjærtoft está intimamente familiarizada com o funcionamento da indústria fóssil norueguesa e da burocracia do país. Há cerca de 30 meses, decidiu juntar-se à organização World Wide Fund (WWF) for Nature, onde lidera agora a campanha contra a mineração em alto mar.
O Governo norueguês anterior separou uma área de 600.000 quilómetros quadrados para a mineração do fundo do mar. Uma grande parte da área não faz parte da zona económica exclusiva norueguesa, onde a Noruega tem direito apenas aos recursos no fundo do mar, enquanto tudo acima do fundo é considerado águas internacionais. Estas águas acolhem actualmente barcos de pesca de vários países, muitos dos quais já manifestaram uma oposição fervorosa às intenções mineiras norueguesas.
Não há dúvida de que a mineração em alto mar perturbaria o funcionamento normal das águas internacionais de várias formas. Esta é uma das razões pelas quais a decisão norueguesa causou tanta celeuma junto da comunidade internacional.
Kaja Lønne Fjærtoft, líder da campanha WWF Deep Sea Mining. (Foto: WWF)
A Agência Norueguesa do Ambiente, um organismo governamental, respondeu à ambição dos planos mineiros notificando os decisores de que dois anos não eram suficientes para a preparação de uma avaliação de risco suficientemente sólida.
Poucos ou nenhuns dados estão disponíveis para quase toda a área designada. “Há partes onde a profundidade exacta do mar nem sequer foi medida”, explicou Lønne Fjærtoft. “A própria análise do Governo confirma que, ‘devido às lacunas no nosso conhecimento’, uma estimativa holística do risco é actualmente impossível. Só esta afirmação exige legalmente que iniciem um estudo mais aprofundado. Mas não o fizeram. No entanto, reduziram a área potencial de mineração para 281.000 quilómetros quadrados. O motivo? Uma análise tendenciosa indicou que esta área reduzida era rica em minerais desejáveis. A análise dos recursos naturais pela Direção Norueguesa de Offshore foi realizada sem consulta pública. Isso causou uma enorme revolta entre numerosas organizações ambientalistas, que viram a abordagem governamental como completamente irresponsável.”
A Agência Norueguesa do Ambiente considerou a referida análise inválida, uma vez que não preenchia determinados critérios europeus. Segundo a Agência, a análise também não atendeu às exigências do artigo 22 da Lei dos Minerais do Mar, que elenca claramente os critérios para uma análise válida dos efeitos sobre o meio ambiente. Além disso, a Agência declarou que a análise violava os princípios de precaução e a legislação norueguesa em matéria de biodiversidade.
“Foi a declaração mais contundente da Agência em toda a sua história”, relatou Lønne Fjærtoft na filial norueguesa da WWF, no centro de Oslo. “Na verdade, usaram a palavra ‘ilegal’! Até mesmo a petrolífera estatal Equinor começou a pedir cautela ao Governo.”
A WWF-Nordic e outras organizações ambientalistas esperavam que a sua revolta instigasse as autoridades de Oslo a conduzir mais investigações. No entanto, isso não aconteceu. Muito pelo contrário: em Janeiro, o Executivo submeteu o projecto a votação e o Parlamento aprovou-o por larga maioria.
Muitos dos activistas e cientistas com quem falei, incluindo Kaja Lønne Fjærtoft, acreditam que os deputados foram induzidos em erro – que não lhes tinham sido apresentadas todas as informações relevantes. Eles podem ter sido enganados pela insistência do Governo de que se tratava principalmente de uma questão de exploração. Várias fontes disseram-me que, desde então, alguns dos deputados se arrependeram de terem aprovado a proposta… Mas apenas em privado. Até agora, nenhum deles tentou expiar publicamente o erro.
No entanto, a portas fechadas, o ministro das Relações Exteriores, Espen Barth Eide, classificou o projecto de mineração em alto mar como a maior mancha na imagem pública norueguesa da História. “Antes da votação, alguns dos deputados nunca tinham ouvido falar da exploração mineira dos fundos marinhos”, explicou Lønne Fjærtoft. “O Governo tentou manter o tema abaixo do radar de todos, e os deputados simplesmente aprovaram o que lhes foi dito para aprovar.”
Svalbard (Foto: Alena Vavrdova)
Lønne Fjærtoft também partilhou os seus receios sobre o que pode acontecer caso o projecto seja interrompido. Irão as empresas licenciadas em fase de arranque, depois de terem investido enormes quantias de dinheiro, decidir processar o Estado por terem sido induzidas em erro?
“As empresas privadas interessadas na mineração em alto mar são movidas puramente por motivos financeiros”, garantiu Lønne Fjærtoft. “A sustentabilidade não lhes diz minimamente respeito. A nossa mensagem para o Executivo foi: não sabe o que está a a fazer! O Instituto Norueguês de Pesquisa Marinha afirmou claramente que 99% da área designada estava completamente inexplorada. Por isso, tentámos pressionar o Governo a realizar mais estudos. Durante um ano e meio, apontámos enormes incoerências e até violações da lei. No final, decidimos processar o Estado norueguês. Foi uma decisão difícil, mas tivemos que considerar que as acções do nosso Governo poderiam ser usadas como precedente em outro lugar.”
Primeiro, a WWF alertou o Executivo, esperando que isso pudesse dissuadir os governantes de prosseguirem com novas acções. Todas essas esperanças foram em vão: simplesmente rejeitaram todas as reivindicações da WWF. Assim, em Maio, os ambientalistas finalmente entraram com uma acção a sério. A lei exige que os tribunais realizem a primeira ronda de audições no prazo de seis meses.
Apenas alguns dias após a apresentação da acção, o Governo iniciou o processo de licenciamento. Portanto, é preciso questionar o que acontece caso a acção judicial seja bem-sucedida. O projecto pode ser interrompido após a concessão das licenças e a exploração dos fundos marinhos estar bem encaminhada?
“Não sabemos”, respondeu Lønne Fjærtoft. “Não se trata apenas de uma questão de legislatura interna; é também uma questão de direito internacional. É preciso entender que esta é a pior decisão que qualquer Executivo norueguês já tomou em relação ao meio ambiente. Os oceanos são fundamentais para a nossa sobrevivência. Arriscar a sua segurança significa brincar com o futuro!”
Os cientistas receiam que qualquer forma de exploração do fundo do mar – com as suas montanhas subaquáticas, onde o magma quente frequentemente irrompe das fontes hidrotermais para água gelada – possa causar enormes danos. A mineração causaria o aumento de enormes quantidades de sedimentos, o que provavelmente perturbaria as rotinas das populações de águas profundas de bactérias, algas, esponjas, baleias e golfinhos – para citar apenas algumas espécies.
Os países vizinhos da Noruega também poderão ser afetados. O mesmo se aplica a todo o Ártico, incluindo as suas margens. De acordo com os planos actuais, a mineração em alto mar da Noruega seria mais invasiva do que a do Pacífico.
Svalbard (Foto: Lloyd Woodham)
A velocidade que o Governo norueguês está a impor ao projecto é extremamente preocupante para os ambientalistas. Apesar dos anos que passou como ‘insider‘, Lønne Fjærtoft admite que não compreende totalmente a pressa. “O projecto é empurrado de forma mais agressiva pelo Ministério da Energia”, disse-me. “Mais especificamente pelo próprio ministro da Energia.”
A líder da campanha contra a mineração em mar profundo também destacou os enormes esforços que as autoridades norueguesas têm investido para acalmar a comunidade internacional. A Noruega enviou recentemente uma delegação a Kingston, na Jamaica, onde se situa a Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos (ISA). A delegação era composta por três representantes do Ministério dos Negócios Estrangeiros, dois do Ministério da Energia, um da Direcção Offshore e nenhum da Agência Ambiental. O objetivo oficial da visita era, naturalmente, garantir “os mais elevados padrões ambientais”.
Os proponentes do projecto de mineração em alto mar estão claramente interessados em impedir uma proibição internacional. Embora tal proibição não pareça muito provável, a ofensiva diplomática de Oslo contra a ISA ainda pode ser interpretada como uma tentativa de antecipar estrategicamente as acções daquele órgão internacional.
A Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos funciona no âmbito das Nações Unidas e deverá aprovar o seu veredicto final sobre a mineração em mar profundo em 2025. Está também a ser preparado um regulamento para a exploração mineira em alto mar. Actualmente, a prática não é proibida em águas internacionais. A iniciativa para a formação do regulamento foi dada pelo pequeno Estado insular de Nauru, um dos ‘Estados patrocinadores’ para os beneficiários de licenças de exploração mineira em mar profundo.
O contexto geopolítico
Assim que desligava o meu gravador, muitas das minhas fontes mostraram-se ansiosas para falar sobre as razões negligenciadas e difíceis de provar pelas quais uma parte da elite política e económica norueguesa está a curvar-se para garantir o controle sobre os recursos naturais no Ártico.
As razões, muitos acreditam, são principalmente geopolíticas.
A Noruega pretende reforçar a sua posição nos confins setentrionais do globo, não só devido à abundância de recursos naturais, mas também devido à rápida escalada das tensões entre os Estados Unidos e a Rússia. A Noruega partilha a sua fronteira ártica com a Rússia, enquanto o tratado de Svalbard é suficientemente frouxo para deixar margem para várias interpretações. A última vez que a Noruega expressou publicamente a convicção de que tem direito a uma interpretação mais generosa foi em 2007 – quando o actual primeiro-ministro Jonas Gahr Støre era ministro dos Negócios Estrangeiros.
A situação actual lembra muito o tempo da Guerra Fria. Naquela altura, como hoje, uma Noruega altamente militarizada era considerada como um dos principais membros – e territórios da NATO. “O momento não é coincidência”, disseram-me as minhas fontes norueguesas. Os próprios territórios do Norte são considerados tão vitais como os recursos localizados abaixo do fundo do mar.
Para compreender o contexto geopolítico da mineração em mar profundo, as seguintes informações podem ser úteis. Três das cinco empresas de armamento que recebem os maiores investimentos financeiros da Comissão Europeia – através da ASAP (Act in Support of Ammunition Production ou Lei de Apoio à Produção de Munições, em português) e da EDF (Fundos Europeus de Defesa) – estão sediadas na Noruega: Nammo (Nordic Ammunition Company), Nammo (Raufoss) e Kongsberg (Defence and Aerospace AS). Através da empresa Rheinmetall Nordic AS, a Noruega está também ligada à alemã Rheinmetall, o maior beneficiário de contratos europeus de defesa.
Resumindo: a Noruega está no bom caminho para se tornar o principal parceiro da União Europeia na produção de armas.
A empresa Kongsberg, parcialmente detida pelo Estado norueguês, é o maior investidor individual na empresa norueguesa de mineração em mar profundo Loke. A Kongsberg é o maior produtor mundial de sistemas militares de longo alcance. É também o parceiro estratégico da canadiana The Metals Company, actualmente o ‘player’ mais forte no mercado global de equipamentos de mineração em alto mar.
Lofoten, no Ártico da Noruega. (Foto: Boštjan Videmšek)
A ‘start-up’ canadiana é vista como a mais avançada quando se trata de desenvolvimento de tecnologia e mineração do fundo do mar. No final de 2022, realizou uma escavação teste das primeiras 3.000 toneladas de rochas e pedras do fundo do mar. Este ano, a The Metals Company deve solicitar uma licença para iniciar a mineração em escala industrial.
Walter Sognnes, CEO (presidente-executivo) da Loke, é geofísico por formação. Depois de mais de três décadas na indústria petrolífera, passou os últimos 20 anos a trabalhar como empresário focando-se nas transações petrolíferas na Noruega e na Grã-Bretanha. Há cinco anos, decidiu embarcar no comboio de transição verde, como muitas pessoas que costumavam trabalhar para a indústria do petróleo.
Nas próprias palavras de Sognnes, a razão por detrás da sua mudança de carreira foi a sua percepção da “interessante convergência entre as indústrias de petróleo e gás e potenciais projectos de mineração em alto mar”. Por isso, foi cofundador da empresa Loke.
“No início, decidimos concentrar-nos na Noruega”, lembrou Sognnes. “Conseguimos atrair uma série de investidores poderosos – do tipo ‘smart-money‘, aqueles que trazem dinheiro e novas tecnologias. Juntamente com os nossos parceiros, temos desenvolvido tecnologias de mineração e tecnologias para exploração do fundo do mar com o objetivo de causar danos mínimos ao meio ambiente.”
Através do registo na Grã-Bretanha, a Loke já obteve duas licenças para a exploração e mineração da Zona Clarion-Clipperton, localizada em águas internacionais entre o México e o Havai. Acredita-se que o fundo marinho da zona seja o mais rico do mundo em metais e minerais. A empresa norueguesa conseguiu obter as duas licenças através da compra de uma empresa anteriormente detida pelo gigante norte-americano do armamento Lockheed Martin. No processo, a Loke transformou-se num dos principais detentores de licenças na gigantesca Zona Clarion-Clipperton, que se pode tornar a Arábia Saudita da mineração subaquática.
Em 21 de Maio, a Loke enviou uma proposta ao Executivo norueguês, na qual listou as áreas árticas consideradas mais adequadas para mineração. “Os locais para exploração e potencial mineração devem ser escolhidos este Outono”, apontou Sognnes. “As coisas devem avançar relativamente rápido dado que a legislação norueguesa sobre minerais é quase uma cópia da legislação que rege a indústria de petróleo e gás. Mas a referida indústria desenvolveu-se ao longo de várias décadas, enquanto a indústria mineira em mar profundo está apenas a ser formada. Acho que isso significa que teremos que nos adaptar à medida que avançamos.”
Dissonância cognitiva norueguesa
Sognnes acredita que as primeiras licenças de exploração serão emitidas no início de 2025.
É assim que ele descreve a sua motivação para ter entrado no negócio de mineração em alto mar: “A Noruega tem uma longa história de falar sobre mais cedo ou mais tarde ter que fechar a indústria de petróleo e gás e procurar alternativas. Mas não podemos simplesmente fechar a nossa maior indústria! Os engenheiros petrolíferos deveriam procurar novas formas de emprego mais verdes. Mas que tipos de empregos seriam esses, exactamente? Foram apresentadas muito poucas propostas específicas. Dado o nosso vasto conjunto de excelentes quadros, isso despertou a minha ideia de criar uma empresa de mineração de fundos marinhos. Quero ajudar a construir esta nova indústria, que tem muito em comum com a indústria petrolífera. A transição verde só será possível se forem assegurados recursos suficientes para as suas tecnologias.”
Na opinião de Sognnes, a indústria norueguesa de mineração em mar profundo não precisa da indústria de mineração quando se trata de exploração, escavação e transporte de recursos para a superfície. Todo o ‘know-how’ e equipamento necessários estão nas mãos da indústria petrolífera.
“É muito diferente do que na superfície”, disse Sognnes, continuando a listar os argumentos para a exploração do fundo do mar. “Se queremos manter o mundo ocidental competitivo com a China no contexto da transição verde, temos de criar a nossa própria linha de abastecimento. E uma adequada, abrangendo todos os elos desde a mineração até o processamento e a fabricação de produtos finais. A China controla actualmente a maior parte das minas e dos recursos naturais que nelas se encontram. Devido a razões ambientais e comerciais, o Ocidente desistiu quase totalmente da mineração e processamento, meio que realocando-os ou transferindo-os para a Ásia … Portanto, agora estamos muito atrasados na frente dos recursos naturais. E a procura certamente só aumentará e aumentará.”
Walter Sognnes, CEO da Loke. (Foto: D.R./Loke)
“O Ocidente tem padrões excepcionalmente elevados de proteção do ambiente, o que é excelente. Também temos uma mentalidade de ‘não no meu quintal!’. Essa mentalidade é parte da razão pela qual a maior parte da mineração foi feita longe de nossos olhos e mentes. Não nos importávamos. Mas quando as imagens da escavação de cobalto na República Democrática do Congo chegam ao público, há um enorme clamor”, disse Walter Sognnes, a dissecar a dissonância cognitiva e moral em jogo em todo o mundo ocidental.
O CEO da Loke está ciente da forte oposição nacional e internacional a incursões agressivas no mundo natural. Especialmente nos seus impactos desconhecidos. Segundo Sognnes, a fase de exploração deve ser bastante fácil, ou seja, tecnologicamente pouco exigente. E também barata. Não é difícil localizar minerais e metais na crosta de manganês. O mesmo vale para a localização das áreas onde a mineração deve se mostrar comercialmente viável. A tecnologia usada pela indústria de petróleo e gás – como submarinos sem tripulação e drones navais – já está disponível.
Sognnes acredita que a fase de exploração, incluindo a marcação do fundo do mar e o aprofundamento da nossa compreensão dos ecossistemas de águas profundas, deve demorar entre três e cinco anos.
“Até lá, tanto o plano ambiental como o plano mineiro estarão prontos. Caso o Governo confirme esses planos, o processo de produção poderá começar dois anos depois. A tarefa mais exigente é estabelecer um processo de produção eficiente com um impacto mínimo no meio ambiente. Uma vez que os recursos sejam trazidos para a costa, precisaremos da infraestrutura para processá-los. Este é actualmente o nosso maior desafio, uma vez que a referida infraestrutura não existe. O que havia, fechámos. O que significa que temos de construir de raiz. Hoje, a maioria dos minerais são processados na China. Mas se os enviarmos para lá, não teremos conseguido nada. O mundo ocidental precisa de reagir o mais rapidamente possível”, afirmou Sognnes.
Na sua opinião, o monopólio chinês é um grave problema geopolítico e económico. “Somos bastante vulneráveis. Quer queiramos quer não, a nossa transição verde está firmemente ligada à nossa indústria mineira. Não vejo a abertura de novas minas na densamente povoada Europa e nos Estados Unidos. As nossas melhores minas estão encerradas há décadas. Então, o que devemos fazer? Esta pergunta é melhor dirigida aos geólogos. E a resposta que eles encontraram está no fundo do mar, com sua abundância de metais e minerais. É claro que precisamos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para optimizar os equipamentos, a fim de proteger a natureza. Se conseguirmos isso, e se formos capazes de ganhar a confiança das pessoas, então estamos olhando para o nascimento de uma nova indústria incrivelmente benéfica”, disse o CEO da Loke em resposta aos críticos da mineração no fundo do mar Ártico.
O empresário norueguês está bem ciente de que o sucesso do projecto estimularia o desenvolvimento em países concorrentes como a China, a Índia e a Rússia, onde acredita que as autoridades terão pouca simpatia pelas preocupações ambientalistas. “A transição verde não significa apenas ‘desligar-nos’ das fontes de energia fósseis. Na verdade, significa substituir a indústria fóssil pela indústria mineira. Isto é uma espécie de paradoxo.”
Qual é, então, a sua resposta às preocupações inteiramente justificadas do público sobre os potenciais danos irreparáveis para o ambiente? Que tipo de garantias pode oferecer?
Animação de mineração em alto mar (Foto: Imagem da empresa Loke)
“Agimos de acordo com a legislação e com o plano do Parlamento norueguês”, respondeu Sognnes. “Estamos estritamente sujeitos à regra da precaução. Também não somos nós que decidimos se a indústria avança ou não. Mas temos de começar por algum lado. Precisamos, pelo menos, de recolher o máximo de informação possível para preencher as lacunas no nosso conhecimento. Os cientistas estão sempre a aprender. Estou bem ciente de que nunca saberemos tudo. Mas devemos esforçar-nos por saber o suficiente para tomar as decisões correctas. O fundo do mar contém tudo o que precisamos para a transição verde, excepto lítio. Existe actualmente uma moratória sobre a exploração mineira dos fundos marinhos até que seja aprovada uma regulamentação adequada. Àqueles que se opõem a nós, diria: permitam-nos, por favor, que preenchamos as lacunas do nosso conhecimento. E com base nisso, podemos decidir.”
Se tudo correr como planeado, Sognnes espera que a mineração no círculo polar ártico comece depois de 2030.
“Penso que as elites políticas e económicas vêem a mineração em alto mar como a continuação da indústria do petróleo e do gás, que está lentamente a seguir o seu curso. Os burocratas do petróleo precisam de um novo projecto. E estão a usar a transição verde como desculpa”, disse-me Gytis Blaževičius, que dirige a ONG (organização não-governamental) norueguesa Natur og Ungdom (Natureza e Juventude).
“Durante 10 anos, as pessoas encarregadas de gerir os recursos naturais dentro das estruturas governamentais não sabiam que o Ministério da Energia estava a preparar-se para a mineração em alto mar. Tudo aconteceu furtivamente, em silêncio…”, adiantou o activista de 23 anos.
Blaževičius também demonstra o seu espanto com a velocidade estonteante com que o processo de emissão de licenças tem vindo a desenrolar-se, dada a fama da burocracia norueguesa pelo seu ritmo glacial. Blaževičius está também perplexo com a confiança dos representantes da “futura grande indústria”, dado que todas as empresas candidatas estão ainda na sua fase de arranque. E o pouco que sabemos não deve exactamente encorajar os investidores a virem a correr.
“Até os custos de exploração serão astronómicos. Há alguns anos, a Universidade de Bergen realizou uma única pesquisa na área marcada para mineração. A conta era de um milhão de euros. Para explorar toda a área serão necessários milhares de milhões. E muito tempo. Não há garantia de que uma abundância de metais e minerais esteja à nossa espera lá em baixo”, disse Blaževičius. Acrescentou que, nas perspectivas actuais, acha difícil acreditar que a indústria do mar profundo será viável. “Estou bastante confiante em prever que o projecto vai acabar por ser um fracasso.”
Gytis Blaževičius, Natur og Ungdom (Jovens Amigos da Terra) (Foto: Boštjan Videmšek)
Ao mesmo tempo que pressiona em prol da exploração mineira dos fundos marinhos, o Governo norueguês está também a emitir novas licenças para projectos de petróleo e gás no Mar do Norte e no Mar de Barents. Durante alguns anos, isso foi visto como controverso até mesmo na Noruega – um país que alimenta a sua transição verde com os lucros de exportação da indústria fóssil. Na Noruega moderna, a dissonância cognitiva parece estar na ordem do dia.
Até agora, o público não reagiu aos planos do Executivo de lançar a indústria de mineração em mar profundo. O homem e a mulher comuns não sabem praticamente nada sobre o projecto de mineração do fundo do mar. Blaževičius explicou que isso não se deveu apenas aos métodos não transparentes do Governo, mas também ao facto de que o público norueguês prefere deixar as questões ambientais para as ONGs. A Noruega possui cinco milhões de habitantes e 24 milhões de membros de organizações não governamentais. O que significa que, em média, cada cidadão é membro de quase cinco ONG diferentes. Em muitos aspetos, estas organizações substituíram a sociedade civil.
Na opinião de Blaževičius, a resposta do público norueguês tem sido, até agora, bastante fraca devido à natureza distante do projecto. Tanto de uma forma geográfica como temporal: “A Noruega ganhou muito dinheiro com a guerra ucraniana e os consequentes picos nos preços do petróleo. Assim, começámos a comercializar-nos como a fonte de gás segura e fiável da Europa. E, de repente, a energia fóssil deixou de ser tão controversa como era! Isso trouxe um novo vento para as velas do ‘lobby’ do petróleo e gás, e muitas novas licenças para plataformas estão a ser entregues.”
N.D. : Reportagem original em inglês traduzida para português.
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O Parlamento português tinha aprovado, na generalidade, um projecto de lei proposto pelo Pessoas–Animais–Natureza (PAN) que visava impedir a exploração de minerais em mar profundo até 2050 em águas territoriais e na Zona Económica e Exclusiva. Mas a queda do Governo, em Novembro passado, atirou o diploma para a pasta de arquivo dos ‘caducados’. O PAN já avançou com nova proposta no Parlamento para fixar uma moratória, mas a discussão da proposta ainda não tem data marcada. O consórcio ambientalista ANP/WWF Portugal reuniu na semana passada com a secretária de Estado do Mar, Lídia Bulcão, e defende ser urgente que o Governo e a Assembleia da República garantam a proteção dos ecossistemas marinhos através de uma moratória, contrariando as diligências já tomadas pelo Governo da Noruega, que decidiu avançar com o projecto de mineração em mar profundo. [Pode ler AQUI a reportagem do jornalista Boštjan Videmšek na Noruega, que publicámos hoje, em exclusivo em português, no PÁGINA UM].
Voltou à estaca zero o plano para proteger o fundo mar português da exploração de minérios. Um projecto de lei da autoria do partido Pessoas Animais Natureza (PAN), que deu entrada na Assembleia da República em Julho de 2022, propunha uma moratória à mineração em mar profundo em águas nacionais até 2050, mas acabou por caducar na sequência da queda do Governo de António Costa.
O diploma chegou a ser aprovado no Parlamento, na generalidade, em Outubro do ano passado, mas ainda não tinha cumprido os trâmites processuais, em termos de discussão na especialidade da Assembleia da República, para poder entrar em vigor. Com a dissolução da Assembleia da República no decurso das legislativas de Março, tudo o que foi feito se perdeu. O PAN já avançou, entretanto, com a apresentação de uma nova iniciativa no mesmo sentido, mas aguarda ainda data para a ver discutida pelos deputados.
Octópode de mar profundo (Sauroteuthis syrtensis) que se pode encontrar a 800 metros de profundidade no Oceano Atlântico. (Foto: WWF).
“Infelizmente, e devido à realização de eleições antecipadas esta proposta não pode ser foi concluída e acabou por caducar (como todas as outras que se encontravam em situação idêntica)”, lamentou o PAN, em resposta a questões colocadas pelo PÁGINA UM. O partido garante que “não deixará cair este tema”.
“Apesar de o Governo português ainda não ter aplicado o princípio da precaução em relação às águas nacionais , sabe-se que uma moratória em toda a ZEE [Zona Económica e Exclusiva] e plataforma continental estendida, protegeria uma grande percentagem dos mares europeus, como defendem aliás também várias associações ambientalistas com quem temos estado em contacto”, defendeu o partido.
Para a Associação Natureza Portugal, que no nosso país trabalha em consórcio com a World Wide Fund for Nature (WWF) é urgente que seja aprovada uma moratória para proteger o fundo do mar da indústria de exploração de minérios. “A mineração em mar profundo destina-se a extrair minerais como cobalto, níquel e lítio do fundo do mar, com máquinas gigantescas e poderosíssimas a operar em condições muito adversas e arriscadas (elevada profundidade e sujeitas a grande pressão), destruindo localmente ecossistemas e perturbando outros a largos milhares de quilómetros em redor”, disse Bianca Chaim Mattos, coordenadora de Políticas da ANP/WWF ao PÁGINA UM.
Larva de estrela-do-mar (Luidia sarsi) no oceano Atlântico profundo. (Foto: WWF)
Para esta responsável da organização ambientalista, “em Portugal, 2023 foi um ano de grandes avanços políticos nesta matéria, com a posição precaucionária defendida pelo Governo nas reuniões da Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos (ISA, na sigla em inglês) e também pelo posicionamento maioritário da Assembleia da República contra esta atividade, através da aprovação na generalidade do Projeto de Lei 230/XV/1 do PAN para estabelecer uma moratória à mineração em mar profundo”.
A ANP/WWF defende que “é urgente que o Governo e a Assembleia da República retomem o processo para estabelecer uma moratória à mineração em mar profundo em águas nacionais, garantindo assim a proteção dos nossos ecossistemas marinhos”. “Infelizmente, alguns países, como a Noruega, já sucumbiram aos interesses económicos em detrimento da proteção da natureza, permitindo a exploração mineira de parte dos seus mares, o que serve de alerta para o nosso país”, lamentou Bianca Chaim Mattos.
A Noruega aprovou o avanço da exploração de minérios em mar profundo, o que está a gerar contestação e protestos de organizações ambientalistas, nomeadamente a WWF que processou o Governo norueguês. [Pode ler a reportagem do jornalista Boštjan Videmšek na Noruega publicada hoje no PÁGINA UM]. Em Portugal, a ANP/WWF também defende que o país deve apoiar a moratória para águas internacionais. “O Governo português deve continuar a defender ativamente uma moratória à mineração em mar profundo em águas internacionais, principalmente nas reuniões da ISA”, argumentou Chaim Mattos.
Ilha de São Miguel, Arquipélago dos Açores. Em 2023, a Assembleia Regional dos Açores aprovou uma resolução para uma moratória até 2050 à mineração em mar profundo. Mas cabe ao Governo dos Açores dar seguimento a esta resolução. (Foto: D.R.)
Por outro lado, a organização ambientalista também considera importante “promover o conhecimento científico”, pelo que recomenda que “o Governo deve investir em projetos científicos para melhor compreender os ecossistemas de mar profundo e os impactos potenciais da mineração”. Segundo Bianca Chaim Mattos, “sabemos menos sobre o mar profundo do que sabemos sobre a lua”. Lembrou que “perturbações num único local de exploração mineira poderiam aniquilar espécies inteiras”. “As consequências podem ser dramáticas para a biodiversidade, para as comunidades costeiras e para a saúde humana”, avisou a coordenadora da ANP/WWF Portugal.
“Face ao desconhecimento dos efeitos potencialmente devastadores da atividade mineira em mar profundo, as Organizações Não Governamentais de Ambiente que trabalham este tema consideram que os governos de todo o mundo devem aplicar o princípio da precaução, declarando já uma moratória a esta atividade em todas as áreas marinhas sob a sua jurisdição nacional, e defender o mesmo para as águas internacionais, pois permitir a mineração em ambientes tão pristinos e valiosos sem termos o conhecimento necessário é um retrocesso, e não um passo à frente rumo a um futuro sustentável, equilibrado e equitativo”, recomendou.
Segundo a coordenadora da ANP/WWF, a organização “tem mantido conversas e reuniões com várias partes interessadas sobre esta questão, aliadas também com duas ONGA com implantação no território português: a Sciaena e Sustainable Ocean Alliance (SOA)”.
A organização ambientalista ANP/WWF reuniu na semana passada com Lídia Bulcão, secretária de Estado do Mar, para “discutir a importância de manter uma abordagem precaucionária em relação à mineração em mar profundo e estabelecer o quanto antes uma moratória”. (Foto: D.R.)
“Ainda esta semana [na semana passada] nos reunimos com a Secretária de Estado do Mar, Lídia Bulcão, para discutir a importância de manter uma abordagem precaucionária em relação à mineração em mar profundo e estabelecer o quanto antes uma moratória. Temos feito o mesmo apelo junto de vários partidos representados na Assembleia da República, principalmente aqueles que tiveram um papel ativo na aprovação do referido projeto de lei”, disse.
Bianca Chaim Mattos relembra “as ações de ‘advocacy’ junto do Governo dos Açores e dos partidos açorianos”, que teve os seus frutos: no ano passado, a Assembleia Regional dos Açores aprovou uma resolução para uma moratória até 2050 à mineração em mar profundo. No entanto, cabe ao Governo dos Açores dar seguimento a esta resolução – e ainda não é totalmente claro se e quando o fará.
Contactados os Ministérios da Economia e do Ambiente, ainda não foi possível obter um comentário do Governo sobre este tema.
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Após ter aumentado a sua recente emissão de dívida obrigacionista, a SIC deverá encaixar perto de 46 milhões de euros com o novo empréstimo feito junto de investidores particulares. Mas a gestora dos canais televisivos do grupo Impresa prepara-se para pagar a taxa anual bruta mais elevada deste ano no mercado de obrigações empresariais, na Euronext Lisbon. No total, neste empréstimo a quatro anos, a SIC propõe-se a pagar um total de 11,4 milhões de euros de juros, tendo em conta o risco de crédito “significativo”, que representa o risco de default (de não pagamento). O prazo para subscrever a emissão terminou hoje e os resultados da operação serão conhecidos formalmente no dia 1 de Julho.
Quando a fruta é muita, o povo desconfia. Mas na mais recente emissão de dívida da SIC, o povo não desconfiou, e aparentemente aderiu em força, o que levou a empresa do grupo Impresa a aumentar em 18 milhões de euros o valor a pedir emprestado aos investidores particulares dispostos a subscrever as novas obrigações (ou a trocar títulos de dívida da anterior emissão pela actual). Inicialmente, a empresa do canal televisivo estava a pensar emitir até 30 milhões de euros, pelo que este aumento, anunciado anteontem, antecipa que a procura superou a oferta. O prazo de subscrição terminou hoje, às 15 horas, e os resultados oficiais da operação serão conhecidos na sessão especial de apuramento no dia 1 de Julho.
Mas se pode parecer uma boa notícia empresarial o sucesso de uma emissão de obrigações que representará um encaixe líquido de até 46 milhões de euros, há um ‘reverso’: este novo endividamente da SIC vai-lhe custar 11,4 milhões de euros só em juros até ao fim do prazo das obrigações em 2028, altura em que terá também de devolver aos subscritores o valor integral do empréstimo de 48 milhões de euros. Tudo junto, são quase 60 milhões de euros para receber, na verdade, cerca de 46 milhões de euros.
Anúncio relativo ao empréstimo obrigacionista da SIC. O canal televisivo utilizou as suas ‘caras’ para apelar à subscrição.
De facto, a emissão, sabe-se agora, irá até aos 48 milhões de euros, mas deste valor serão deduzidas as comissões de coordenação global – liderada pelo Caixa BI e Novo Banco –, de colocação e respectivos impostos (cerca de 1.747.200 euros), os custos com consultores, auditores e publicidade, no montante de 285.575 euros, e ainda os custos cobrados pela Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), a Interbolsa e a Euronext, que rondarão os 49.202 euros.
Esta emissão inclui também a possibilidade de troca das 1.000.000 obrigações, com o valor nominal unitário de 30 euros, emitidas pela SIC em 11 de junho de 2021, com data de reembolso em Junho de 2025, cuja taxa de juro fixa bruta é de 3,95%.
Dado o seu elevado risco de crédito, e para conseguir cativar investidores, a SIC propôs-se a pagar a taxa de juro mais elevada no conjunto das emissões de dívida empresariais registadas este ano no mercado português, a Euronext. São 5,95% ao ano, o que significa que está acima da taxa paga pela Sporting SAD (5,75%) e da Benfica SAD (5,1%), sociedades desportivas que apresentam um alto nível de risco para os obrigacionistas. Além disso, as obrigações da SIC estão indexadas a metas de sustentabilidade, incluindo conteúdo com língua gestual portuguesa e redução de emissões de gases de efeito de estufa. Se a empresa não as cumprir terá de pagar uma remuneração extra aos subscritores na data de reembolso dos títulos.
Para a empresa, os 11,4 milhões de euros que terá de ‘produzir’ ao longo de quatro anos só para pagar juros de um empréstimo de 46 milhões de euros constitui um esforço muito significativo, apesar da emissão ser um ‘balão de oxigénio’ necessário. E para os investidores, a quem foi oferecida uma taxa de juro elevada, a operação, apesar de apetecível, também acarreta riscos relevantes.
“O investidor deve sempre ter cautela ao considerar a subscrição de obrigações, e nestas recordamos o potencial de risco de crédito em que a situação financeira do grupo Impresa, incluindo a SIC, sugere um risco de crédito significativo”, afirmou ao PÁGINA UM João Queiroz, director de negociação do Banco Carregosa. Recordou que “a empresa apresentou resultados financeiros desafiadores em 2023, com redução nas receitas, aumento da dívida líquida e resultados líquidos negativos”. No ano passado, a Impresa registou um prejuízo de dois milhões de euros, depois de ter tido um lucro de 1,1 milhões de euros no ano anterior.
Além disso, “o diferencial entre passivo corrente e ativo corrente aponta para potenciais problemas de liquidez que poderiam afetar a capacidade da empresa honrar suas obrigações financeiras no curto prazo e a volatilidade do setor em que a dependência de receitas publicitárias e os riscos operacionais associados ao setor de media acrescentam um nível de incerteza ao investimento”. Ou seja, “o quadro está longe de ser severo ou agudo mas o investidor avisado e consciente deverá monitorizar e acompanhara esta exposição”, recomendou João Queiroz.
Emissões de obrigações na Euronext Lisbon em 2024, excluindo Obrigações do Tesouro. (Fonte: Euronext)
A própria SIC refere, numa área no documento formal que acompanha a emissão (prospecto) referente aos riscos, que terminou 2023 com um activo corrente de 46.425.582 euros, enquanto o passivo corrente ascendeu a 95.400.652 euros. Ou seja, o seu passivo foi superior ao ativo corrente em 48.975.070 euros dada a “particularidade do ciclo financeiro de exploração das empresas do setor de media, em virtude de o prazo médio dos recebimentos ser substancialmente inferior ao prazo médio dos pagamentos”. Certo é que “a existência de um passivo corrente superior ao ativo corrente tem consequências adversas no que respeita à liquidez financeira” da empresa, na medida em que “poderá não dispor da liquidez necessária para fazer face aos seus compromissos de curto prazo”.
Mas, apesar do risco, a taxa de juro fixa bruta de 5,95% interessa aos investidores que procurem rendimentos fixos num contexto em que o Banco Central Europeu iniciou um novo ciclo de descidas de juros. Por outro lado, as obrigações têm objetivos de sustentabilidade, um chamariz para certo tipo de investidor. “Porém, se é um investidor com elevada aversão ao risco e prefere cotadas com balanços mais robustos e menos incerteza operacional, poderá ter que ponderar alguns eventuais cenários adversos da economia”, alertou o responsável de negociação do Banco Carregosa.
Para os investidores, se a inflação se mantiver estável e próxima dos 2.5%, terão um rendimento real esperado de 3.45%, tendo em conta despesas bancárias e os elevados impostos sobre os rendimentos de particulares. Mas, abaixo 10.000 euros, subscrever este empréstimo já não valia tanto a pena, não só devido aos custos e aos impostos, mas também tendo em conta a incerteza e os riscos associados à SIC e ao grupo Impresa.
O ‘show’ continua, com novo empréstimo obrigacionista, numa altura em que as contas da Impresa já tiveram melhores dias. (Foto: D.R.)
Os problemas da dona da SIC não são de agora, mas agravaram-se em 2023, tendo pagado já mais de 10 milhões de euros em juros. Não é caso único no sector dos media, como se tem visto com o desmembramento da Global Media e a crise na dona da revista Visão, a Trust in News (TiN). De resto, como o PÁGINA UM destacou, a Impresa assumiu que não vai receber 2,5 milhões de euros da TiN referentes à venda do portfólio de revistas em 2018, nem se sabe ao certo quanto é que já recebeu dessa alienação. Enquanto isso, crescem os ‘zunzuns’ para que pressionar a que sejam colocadas verbas dos contribuintes para ‘salvar’ o sector.
Mas, enquanto o dinheiro público e o ‘salvamento’ estatal não chega, vai-se recorrendo à dívida. No caso deste empréstimo da SIC, para quem podia ‘enterrar’ mais de 50.000 euros nesta emissão, o risco pode compensar. Haverá sempre a possibilidade de uma nova emissão de obrigações daqui a três ou quatro anos, com tanta ou mais ‘fruta’ do que esta.
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Uma das mais conhecidas consultoras internacionais, a Ernst & Young – ou simplesmente EY – tem muitos motivos para sorrir, e mais ainda para rir: está a facturar como nunca em contratos com entidades públicas. No primeiro semestre de 2024, a ‘máquina registadora’ já superou mais de 4 milhões de euros em contratos públicos, quase tanto quanto todo o ano passado. O trabalho tem estado agora concentrado sobretudo na gestão de projectos associados ao Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), como é o caso do ajuste directo assinado anteontem com o Instituto dos Registos e do Notariado (IRN). Através de um ‘estratagema’ que ainda tem de ser validado pelo Tribunal de Contas, a EY vai receber de ‘mão-beijada’, em apenas quatro meses, um total de 350 mil euros por prestação de serviços, o que resulta num ‘salário’ médio por consultor a tempo inteiro de 16 mil euros por mês. As relações políticas com esta consultora vêm de longe, mas consolidaram-se com o actual Governo: o próprio ministro da Economia, Pedro Reis, nem se importou este mês de participar num vídeo institucional da própria EY.
O Governo contratou por ajuste directo, através do Instituto dos Registos e do Notariado (IRN), a consultora Ernst & Young (EY) para controlar e monitorizar um dos programas do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), que visa promover a transição digital na componente de justiça económica e ambiente de negócios. O ajuste directo, no montante total (com IVA) de 350.697,60 euros, tem uma vigência de apenas quatro meses, servindo para pagamento a quatro consultores a tempo inteiro e a dois consultores seniores a 75% do tempo – ou seja, dará um pagamento médio mensal por consultor de quase 16 mil euros.
Para um ajuste directo de montante tão elevado – e que necessita ainda de visto do Tribunal de Contas –, o IRN usou um dos mais estapafúrdios esquemas para contornar um concurso público, que implicaria concorrência indesejável à EY e a formação de um preço justo: a urgência imperiosa. Com efeito, de acordo com o contrato assinado anteontem, fundamentou-se o ajuste directo por “motivos de urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis pela entidade adjudicante”, neste caso pelo INR, e simultaneamente por não ser possível cumprir os prazos inerentes aos demais procedimentos. Mas isso também só pode ser invocado se as circunstâncias “não sejam, em caso algum, imputáveis à entidade adjudicante”.
O ministro Pedro Reis ao lado de Rosália Amorim, directora de marketing da EY, este mês, num evento na sede da consultora. Foto: EY (Facebook)
Ora, não apenas o PRR já há muito está em fase de implementação, mas longe de estar concluído, como, no caso concreto da principal tarefa agora a desenvolver pelos consultores da EY – “controlo e monitorização, em articulação com o IRN, I.P., do programa da componente C18 [relativo à] Justiça Económica e Ambiente de Negócios no âmbito do PRR e dos projetos associados” –, as actividades estavam já concretamente previstas desde Fevereiro de 2021, ou seja, há mais de três anos. Por outro lado, teria de ser provado que a entidade pública não teria capacidade, com os seus meios humanos, de executar as tarefas.
Além de apoios à transição digital nos tribunais e nos processos de recuperação de créditos, recuperação de empresas e de insolvência, também desde 2021 estavam previstas intervenções no âmbito do PRR nas área do IRN, designadamente o desenvolvimento do sistema de informação Empresa 2-0, uma nova plataforma englobando a criação, gestão e encerramento de empresas, e o e-Residency, destinada a empresas estrangeira que tenham o propósito de estabelecer sede em Portugal. A plataforma Empresa 2.0 até já teve a sua primeira versão lançada há mais de um ano, em Maio de 2023.
De acordo com o caderno de encargos deste ajuste directo, a EY vai fazer basicamente trabalho que, em princípio, poderia ser desenvolvido por técnicos próprios da Administração Pública, o que permitiria não apenas poupanças ao erário público mas também evitaria a transferência de informação para uma consultora que trabalha sobretudo para o sector privado. Com efeito, de entre as tarefas dos seis consultores – ou ‘cinco e meio’, uma vez que os seniores estarão a 75% do tempo efectivo – está a conceção ou revisão da metodologia de gestão, acompanhamento e controlo de programas e projetos no IRN, assim como a implementação e utilização de ferramentas ou aplicações informáticas associadas a essa função, bem como a elaboração de diversos relatórios.
Evolução dos montantes (em euros) dos contratos públicos da EY desde 2009 por data de celebração. Valores de 2024 dizem respeito aos contratos já publicitados até 26 de Junho. Fonte: Portal Base.
Existem também tarefas bastante ambíguas no caderno de encargos – ou mesmo ‘esotéricas’ por não terem um significado concreto – como seja “promover uma dinâmica de permanente colaboração e interação entre as diversas unidades orgânicas do IRN, I.P., com os restantes organismos do Ministério da Justiça e eventualmente de outras entidades envolvidas no âmbito da execução do PRR”.
Noutros casos, aparentemente, os consultores da EY serão ‘espiões’, uma vez que ficam responsáveis pelo “desenho dos fluxos de processos, mapeamento das jornadas dos utilizadores (cidadãos e trabalhadores do IRN) e a especificações funcionais e desenho da experiência associados aos processos transversais aos diferentes ciclos de vida, designadamente Gestão de Utilizadores, Reporting, Notificações e Agendamentos, entre outros, essenciais para dotarem as equipas de desenvolvimento de Sistemas”.
A facilidade com que as empresas de consultadoria ‘entram’ na acção administrativa e governativa causou recentemente uma pequena celeuma política quando o Ministério da Saúde contratou uma consultora para a auxiliar na elaboração do Plano de Emergência da Saúde, tendo o PÁGINA UM revelado que a IQVIA estabelecera 54 contratos durante os Governos Costa.
No caso da EY, o ano de 2024 tem sido de ouro, com muito euro da Administração Pública à mistura. Até este mês, e apenas para os contratos já publicados até hoje no Portal Base a EY já garantiu de entidades públicas contratos no valor de 4,1 milhões de euros, destacando-se o contrato de quase 2,7 milhões de euros (neste caso ganho em concurso público) celebrado com o Instituto de Informática para aquisição de serviços de implementação e subscrição SAAS para a Plataforma Integrada de Gestão do Risco. Note-se que 14 dos 21 contratos obtidos pela EY foram de ‘mão-beijada’, incluindo mesmo um que teve como objectivo o “apoio à realização da ‘Avaliação do Risco de Fraude e Medidas Antifraude Eficazes e Proporcionais’ no âmbito dos projetos de financiamento do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR)”, o que se mostra, no mínimo irónico e absurdo.
O desempenho da EY tem-se reforçado com o actual Governo, contando já com 12 contratos, e ainda recentemente o ministro da Economia, Pedro Reis, participou no evento e disponibilizou-se mesmo para gravar um vídeo institucional para a consultora. O primeiro semestre deste ano perspectiva assim uma facturação com a Administração Pública bem superior ao ano passado. Nos 12 meses de 2023 cifrou-se nos 4,6 milhões de euros. Este valor já suplantava qualquer um dos anos anteriores. Antes de 2018, a facturação da EY em contratos com a Administração Pública não chegava ao patamar anual de um milhão de euros.
Em simultâneo ao ‘assalto aos contratos públicos’ sem haver sequer questionamento público, a EY tem apostado fortemente em parcerias com os principais grupos de media, como tem sucedido com o Expresso e o Jornal Económico – onde, aliás, a ex-directora do Diário de Notícias e TSF e actual directora de marketing desta consultora, Rosália Amorim, é colunista, apesar de não se identificar como funcionária da EY.
PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.
Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.
O desfecho (aparentemente feliz) de 14 anos de perseguição a Julian Assange, deixa um sabor agridoce na boca dos defensores da liberdade de imprensa e do jornalismo. Advogados do fundador da WikiLeaks alertam que a acusação dos Estados Unidos contra Assange constitui um “arrepiante precedente” que criminaliza a actividade dos jornalistas e põe em causa a liberdade de imprensa. O jornal britânico The Guardian avisa também que está criado um grave precedente que ameaça a imprensa. Já a secretária-geral da Amnistia Internacional considerou que “o espectáculo global de anos das autoridades norte-americanas” causou “danos históricos”. Julian Assange regressou entretanto à Austrália onde se reuniu com a mulher, Stella. Pelo caminho, o jornalista compareceu no tribunal de uma ilha no Pacífico, em território dos Estados Unidos, aceitando um acordo, considerando-se culpado de ter recebido e publicado informação confidencial, algo que, para as autoridades norte-americanas, constitui uma violação da Lei de Espionagem, mas cuja revelação pública é uma das funções obrigatórias de qualquer jornalista.
Para os Estados Unidos, Julian Assange cometeu um crime: publicou informação confidencial, praticando assim um comum acto de jornalismo. Para os advogados do jornalista e fundador da WikiLeaks, a acusação de que Assange foi alvo por parte dos Estados Unidos criou um precedente grave que pode agora ser usado contra todos os jornalistas.
Visto por muitos como um herói dos tempos modernos, Assange aceitou um acordo com os Estados Unidos para poder sair em liberdade, pondo fim a uma batalha legal que incluiu a sua detenção, nos últimos cinco anos, em condições duras, numa prisão de alta segurança no Reino Unido. “Para obter a sua liberdade, Julian declarou-se culpado do crime de conspiração para fazer espionagem por publicar provas de crimes de guerra e abusos de direitos humanos por parte dos Estados Unidos e irregularidades cometidas pelos Estados Unidos em todo o Mundo”, disse ontem Jennifer Robinson, advogada de Assange, numa conferência de imprensa. “Isto é jornalismo. Isto é a criminalização do jornalismo e, apesar do acordo não constituir um precedente jurídico, não é uma decisão de um tribunal, a acusação em si cria um precedente que pode ser usado contra o resto dos media”, alertou.
Julian Assange à saída do tribunal em Saipã, nas Ilhas Marianas do Norte (território dos Estados Unidos), já como um homem livre. (Fonte: D.R.)
Assange foi finalmente libertado da prisão de alta de segurança de Belmarsh, no Reino Unido, na segunda-feira, após um acordo em que o jornalista se declarou culpado de ter divulgado informação confidencial. A caminho da sua terra Natal, a Austrália, Assange compareceu perante um tribunal em Saipã, nas Ilhas Marianas do Norte, território dos Estados Unidos, para ouvir a sua sentença. Foi o fim de uma batalha legal que durou 14 anos e que incluiu a detenção de Assange em condições de quase isolamento numa minúscula cela em Belmarsh, no Reino Unido.
Barry Pollock, que também é advogado de Assange, deixou um aviso, falando aos jornalistas após a sessão em tribunal: “o que cria um arrepiante precedente é a acusação”.
“O tribunal, hoje, concluiu que nenhum dano foi causado pelas publicações do senhor Assange, sabemos que eram motivo de notícia, sabemos que foram citadas pelos maiores media no planeta e sabemos que revelaram informação importante. A isso chama-se jornalismo”, afirmou. Salientou que, “o que é arrepiante, é os Estados Unidos perseguirem o jornalismo como um crime”.
Assange enfrentava 18 acusações, sendo acusado pelos Estados Unidos de ter violado a lei de espionagem do país. Assange deu-se como culpado de uma acusação. “Sim, ele recebeu informação confidencial de Chelsea Manning [ex-analista de informação militar dos Estados Unidos] e publicou essa informação. Isso não deveria ser um crime”, frisou Barry Pollok.
Os advogados de Assange, Jennifer Robinson e Barry Pollock, à saída da sessão do tribunal que colocou um ponto final no pesadelo do jornalista. (Foto: Captura a partir de vídeo da Reuters)
Mas outras vozes se levantaram a alertar para o grave precedente que a acusação sobre Assange levanta. No Reino Unido, o jornal britânico The Guardian publicou num Editorial a sua opinião sobre o desfecho da acusação contra o fundador da WikiLeaks: “bom para Julian Assange, não para o jornalismo”. O jornal considera que “este caso continua a ser alarmante, apesar da sua libertação” e que “a batalha pela liberdade de imprensa deve ser prosseguida com determinação”.
De resto, Stella Assange, mulher do fundador da WikiLeaks, afirmou anteontem, citada pela Reuters, que o objectivo agora, após a libertação do marido, será “pedir um indulto” para Assange, já que “o facto de haver uma confissão de culpa, ao abrigo da Lei de Espionagem [dos Estados Unidos], em relação à obtenção e divulgação de informações de defesa nacional é obviamente uma preocupação muito séria para os jornalistas”.
Recorde-se que Assange esteve privado da sua liberdade durante 14 anos, tendo sido acusado de violação pela Suécia, e perseguido pelos Estados Unidos, que o queriam extraditar do Reino Unido para ser julgado pela justiça norte-americana. A acusação por parte da Suécia acabou por ser retirada. Nos últimos cinco anos, Assange esteve na iminência de ser enviado para os Estados Unidos para ser julgado por violação da lei de espionagem.
Stella Assange falou aos jornalistas numa conferência de imprensa, após a chegada do marido à Austrália, e agradeceu aos apoiantes da campanha internacional que foi levada a cabo para libertar o jornalista. (Foto: Captura a partir de vídeo da conferência de imprensa)
Sob o seu comando, a WikiLeaks divulgou informação que expôs crimes de guerra e violações dos direitos humanos cometidos pelos Estados Unidos, que incluíram o assassinato de civis e jornalistas.
Mas defensores de Assange também consideram que o jornalista foi sobretudo um preso político, por ter feito afirmações como esta, contra a promoção de guerras pelos Estados Unidos: “o objetivo é usar o Afeganistão para lavar dinheiro das bases fiscais [erário público] dos Estados Unidos e da Europa através do Afeganistão e voltar para as mãos de uma elite de segurança transnacional”. Assange também disse que “o objetivo é uma guerra sem fim, não uma guerra bem-sucedida”.
Críticos de Assange têm falsamente acusado o fundador da WikiLeaks de estar a ‘trabalhar para os russos’, nomeadamente por ter divulgado e-mails prejudiciais para Hillary Clinton, quando era candidata democrata à Presidência. Outros contestam que Assange seja jornalista.
Certo é que os principais media, jornalistas e organizações representativas da classe jornalística, nomeadamente a International Federation of Journalists, e da imprensa fizeram parte da campanha massiva pela libertação de Assange.
Lula da Silva, presidente do Brasil, celebrou a libertação de Assange, mas foi de imediato criticado por permitir haja jornalistas perseguidos no seu país.
Também organizações de defesa dos direitos humanos, como a Amnistia Internacional, apelaram à libertação do jornalista. Em reacção à libertação de Assange, a secretária-geral da Amnistia Internacional deixou críticas aos Estados Unidos. “O espetáculo global de anos das autoridades norte-americanas empenhadas em violar a liberdade de imprensa e a liberdade de expressão ao dar o exemplo de Assange por expor alegados crimes de guerra cometidos pelos EUA causou, sem dúvida, danos históricos”, afirmou Agnès Callamard, citada num comunicado da organização. Adiantou que a Amnistia Internacional acredita “firmemente que Julian Assange nunca deveria ter sido preso em primeiro lugar”, lembrando que a organização tem “continuamente pedido que as acusações fossem retiradas”.
Várias figuras públicas e políticos celebraram a libertação de Assange, nomeadamente Lula da Silva, presidente do Brasil, que escreveu na rede X: “O mundo está um pouco melhor e menos injusto hoje. Julian Assange está livre depois de 1.901 dias preso. Sua libertação e retorno para casa, ainda que tardiamente, representam uma vitória democrática e da luta pela liberdade de imprensa”. Mas o presidente brasileiro foi de imediato criticado por permitir que estejam a ser perseguidos jornalistas no seu país.
Também o candidato à presidência dos Estados Unidos Robert F. Kennedy Jr. classificou Assange como um “herói de uma geração” e lamentou que os Estados Unidos tenham conseguido “criminalizar o jornalismo e alargar a sua jurisdição globalmente a não-cidadãos” norte-americanos. “Julian teve que aceitar isso [um acordo]. Ele tem problemas cardíacos e teria morrido na prisão. Mas o Estado de segurança [os Estados Unidos] impôs um precedente horrível e desferiu um grande golpe na liberdade de imprensa”, escreveu na rede X.
Assange na sua chegada à Austrália, onde se reuniu com a sua mulher, Stella, agora em liberdade. (Foto: D.R.)
Em Portugal, Mariana Mortágua e os deputados do PCP no Parlamento Europeu expressaram solidariedade com Assange. Já o primeiro-ministro, Luís Montenegro, no dia em que foi anunciado que Assange foi libertado, difundiu apenas palavras em defesa de media portugueses que foram banidos na Rússia, mas ficou em silêncio sobre a libertação de um jornalista que esteve detido em condições duras no Reino Unido por fazer aquilo que cabe aos jornalistas, que é investigar e divulgar informação. Nenhum outro partido com assent0 parlamentar fez qualquer menção à libertação de Assange. No meio jornalístico, nenhuma palavra veio da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista nem do Sindicato dos Jornalistas.
Certo é que o desfecho feliz da perseguição a Julian Assange deixa um sabor agridoce na boca dos defensores da liberdade de imprensa e do jornalismo.
Em entrevista ao PÁGINA UM, em Abril passado, Stella Assange já tinha alertado que o caso do seu marido era apenas um dos sinais alarmantes da crescente tendência de se querer eliminar a liberdade de imprensa e censurar.
De resto, na Europa tem vindo a ser implementada legislação, como a nova directiva para os media e a directiva sobre serviços digitais, que tem merecido críticas por abrir a porta ao amordaçar de jornalistas e agrilhoar da liberdade de expressão. [Sobre este temas pode ler mais AQUI e AQUI].
(Foto: D.R.)
Mais recentemente, uma proposta de lei da Comissão Europeia causou polémica por permitir o fim da privacidade das mensagens digitais de todos os europeus, incluindo as mensagens encriptadas. A proposta, que anuncia como objectivo o combate à partilha de conteúdos relacionados com abuso sexual de menores, deveria ter sido votada no dia 20 de Junho em sede do Conselho Europeu, no Coreper, mas foi colocada em banho-maria devido à celeuma pública que levantou.
Certo é que, apesar de a libertação de Assange ser uma notícia positiva para a comunidade jornalística e a imprensa, os defensores da liberdade de imprensa têm uma longa batalha pela frente e a hora de enterrar o machado de guerra não será para já. Pelo contrário. Se os defensores do jornalismo e da liberdade de imprensa têm um motivo para dar ‘vivas’, por Assange estar livre, em simultâneo, a altura não é para baixar a guarda. Os alertas dos advogados de Assange e de outros é de que lutar pela liberdade de imprensa passou a ser uma prioridade nestes tempos em que, da Casa Branca à Comissão Europeia, se quer dificultar a vida aos jornalistas ou mesmo tornar a profissão de jornalista ilegal no mundo ocidental, reservando a actuação dos media a divulgação de comunicados e propaganda oficial.
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