O PÁGINA UM pediu um parecer jurídico ao Professor Doutor José Melo Alexandrino em consequência da acusação do Secretariado da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ), após a abertura de processo disciplinar aberto pelo Secretariado da mesma CCPJ no decurso de uma queixa de Henrique Eduardo Passaláqua de Gouveia e Melo, actual Chefe do Estado-Maior da Armada, por notícias publicadas no PÁGINA UM sobre as suas actividades como membro da task force da vacinação contra a covid-19, e quando em simultâneo ocupava funções de Adjunto para o Planeamento e Coordenação no Estado-Maior-General das Forças Armadas.
Recomendamos a leitura integral do parecer do Professor José Melo Alexandrino, que pode ser acedido AQUI.
Para descarregar a “Ata da Secção Disciplinar” e o “Relatório”, de 22 de Julho de 2024, subscrito pelo Relator Miguel Alexandre Ganhão, membro da Secção Disciplinar da CCPJ, aceda AQUI.
Para ler (ou recordar a notícia do PÁGINA UM em causa), intitulada “Gouveia e Melo ‘mercadejou’ administração de vacinas a médicos não-prioritários uma semana após tomar posse na task force”, aceda AQUI.
Os comentários de Pedro Almeida Vieira sobre este assunto e sobretudo sobre as absurdas falhas da instrução do processo disciplinar da CCPJ podem ser lidas no Editorial desta edição quinzenal, AQUI.
De entre os nove maiores grupos de media em Portugal com títulos da imprensa escrita, segundo uma análise financeira do PÁGINA UM, apenas duas (Medialivre e Impresa Publishing) apresentaram lucros em 2023, mas somente o grupo que tem Cristiano Ronaldo como accionista mostra uma situação financeira saudável. De resto, a tónica destes grupos de media é a acumulação imparável de resultados negativos, havendo mesmo quatro em falência técnica (Swipe, Trust in News, Media9Par e Newsplex). A hecatombe não é maior porque, por exemplo, nos casos do Público (que acumula 24,2 milhões de euros de prejuízos desde 2017) e do Observador (prejuízos acumulados de 11,3 milhões de euros), os accionistas têm tapado os ‘buracos’. A crise neste sector não é uma surpresa, derivando de diversos factores, incluindo a ‘concorrência’ das grandes plataformas digitais na captação de publicidade e a mudança dos hábitos de leitura, embora a crescente quebra de credibilidade e a promiscuidade com o poder político e económico não ajudem.
O cheiro a papel, a tinta que sobra para os dedos, os anúncios, as ‘gordas’, as palavras cruzadas têm lugar na era do pixel, do clique, do Chat GPT, e dos textos escritos por máquinas? Nesta era de acelerada transformação para um mundo digital, o sector da imprensa escrita em Portugal enfrenta uma crise longa e definha a olhos vistos. Um levantamento do PÁGINA UM, que analisou as contas dos maiores grupos da imprensa escrita, tanto impressa como digital, nos últimos oito anos, encontrou um cenário negro, com prejuízos sucessivos e até falências técnicas, com empresas já com a ‘corda no pescoço’ e outras em processo de desmantelamento.
Neste cenário de decadência e ‘cheiro’ a fim dos dias, poucos se ‘salvam’ e ainda menos vivem desafogados. A excepção é, na verdade, Medialivre, dona do Correio da Manhã, da revista Sábado e do desportivo Record (e também dos canais televisivos CMTV e Now), que está para a imprensa em Portugal como Cristiano Ronaldo, seu accionista, está para o mundo do futebol: marca ‘golos’, acumulando lucros todos os anos. Mas ‘Ronaldos’ não há muitos e este grupo é um dos poucos na imprensa nacional com um registo de lucros sustentáveis, ao longo dos anos num sector em crise. De facto, na análise do PÁGINA UM, apenas três grupos registaram lucros em 2023. A Medialivre, que também detém a CMTV, destaca-se com um lucro de 7,2 milhões de euros no ano passado. Em oito anos, a empresa, antes conhecida como Cofina Média, registou lucros totais de 50 milhões de euros, o que se mostra excelente neste sector.
A maioria dos grupos de imprensa está preso por ‘fios’, acumulando prejuízos atrás de prejuízos. Três terminaram o ano passado em situação de falência técnica, um deu início a um PER e outro foi desmantelado. (Foto: PÁGINA UM)
Também a dona do Expresso, a Impresa Publishing, tem conseguido apresentar um resultado líquido positivo nos últimos anos, com o ano de 2023 a fechar com um lucro de 1,478 milhões de euros. Mas este desempenho tem uma explicação pragmática: em 2018 livrou-se ‘milagrosamente’ de um ‘pedregulho no sapato’: o tóxico portfólio de revistas, encabeçado pela Visão, que ‘chutou’ para uma empresa unipessoal de Luís Delgado, a Trust in News, com um capital social de apenas 10 mil euros. Um negócio ainda hoje está muitíssimo mal explicado, e que está a dar um fenomenal calote de cerca de 15 milhões de euros ao Estado e outro tanto a outros credores. Mas já vamos à Trust in News.
Hoje, a ‘divisão’ de imprensa escrita do Grupo Impresa, fundado por Pinto Balsemão, com o Expresso à cabeça, tem um passivo de ‘apenas’ 10,1 milhões de euros, quando em 2017 essa rubrica contabilizava um valor na ordem dos 30 milhões de euros. Transferida a ‘Impresa má’ para a Trust in News, já sem ónus e muitos encargos insuportáveis, ficou o caminho livre para a dona do Expresso registar lucros. Já a actual dona das revistas Visão e Exame, Trust in News, iniciou este ano um Processo Especial de Revitalização (PER), cujo desfecho ainda se aguarda.
Com a excepção destes dois casos, de empresas com lucros em 2023, os restantes maiores grupos fecharam o exercício abaixo da ‘linha de água’. À cabeça, a Global Notícias, dona do Diário de Notícias, que apresentou um prejuízo 7,284 milhões de euros. O grupo, que detém também a rádio TSF, tem registado prejuízos sucessivos, que totalizam quase 50 milhões de euros em oito anos. O passivo da Global Notícias estava no final de 2023 nos 46,5 milhões de euros, quando em 2017 se situava nos 66,9 milhões de euros. Mas o activo, num processo de ‘vampirização’, caiu para metade, de 98,3 milhões de euros para 53,6 milhões de euros no fim do exercício passado. Quanto aos capitais próprios, sofreram uma redução de dois terços: passaram de 31,4 milhões de euros em 2017, para 7,2 milhões de euros no ano passado. Entretanto, o grupo foi já desmantelado, com a Notícias Ilimitadas de Marco Galinha a ficar com a ‘galinha dos ovos de ouro’ do grupo – o Jornal de Notícias –, além de engolir também outros títulos e a rádio TSF.
Apesar de estar inserido num gigante, que é a Sonae, e de beneficiar da rede de distribuição e pontos de venda que incluem os supermercados Continente e demais lojas do grupo, o jornal Público registou em 2023 um dos maiores prejuízos de, pelo menos, os últimos oito anos. (Foto: PÁGINA UM)
Ao descalabro da Global Notícias, segue-se um histórico prejuízo do jornal Público, que em 2023 fechou o ano com o pior resultado líquido de, pelo menos, os últimos oito anos, a atender aos dados do Portal de Transparência dos Media. De resto, o jornal do grupo Sonae tem um problema de prejuízos crónicos. Em 2023, o jornal fechou o ano com um prejuízo de 4,5 milhões de euros. Em 2022, o jornal tinha registado um prejuízo de 2,1 milhões de euros. Somado desde 2017, o Público deu um prejuízo acumulado de 24,2 milhões de euros, mesmo (ou por causa) das constantes promiscuidades entre informação e marketing empresarial por via de parcerias. Não se vislumbra uma melhoria da situação para o jornal, que se ‘aguenta’ por estar sustentado num dos maiores grupos empresariais do país e que lhe garante a ‘banca’ gigantesca que é a rede de lojas e supermercados da dona do Continente, com campanhas de assinatura que incluem desconto ‘em cartão’ da principal marca da Sonae.
Também no ‘vermelho’, e muito, está a dona do Observador, a Observador Ontime, que, tal como o Público, tem a ‘sorte’ de contar com accionistas ‘generosos’, que têm efectuado injecções de capital na sociedade. O maior accionista, com 55% do capital, é a Amaral Y Hijas Holding, de Luís Amaral, dono da empresa de distribuição polaca Eurocash, seguido da Orientempo (com 7,69%), que tem o gestor António Carrapatoso como accionista de referência. São ainda accionistas de referência empresas ligadas a nomes como Alexandre Relvas, Filipe de Botton, João Talone, António Champalimaud e Carlos Moreira da Silva, entre outros.
Em 2023, a Observador Ontime fechou o ano com prejuízos de quase 1,3 milhões de euros, mas isso é o ‘normal’: os prejuízos acumulados atingem já os 11,3 milhões de euros desde a sua criação. O passivo da empresa mais do que duplicou desde 2017, situando-se agora nos 2,5 milhões de euros. Mas, além de encontrar apoio nos seus accionistas famosos, a empresa conta ainda com o apoio dos seus principais credores: a Caixa Geral de Depósitos, com cerca de 30% do passivo, e o BCP, com 11%.
O momento em que a Impresa passou os seus ‘activos tóxicos’ da imprensa para a empresa unipessoal de Luís Delgado, que apesar do ‘calote’ que deu ao grupo liderado por Francisco Balsemão continua a ser comentador na SIC. Hoje, a Impresa Publishing apresenta lucros. Já a empresa de Delgado iniciou um PER e está ‘por um fio’ e o empresário arrisca ser condenado na Justiça, já que além de não ter pago contribuições dos trabalhadores à Segurança Social, também deve ao Fisco, nomeadamente pagamentos de IVA. (Foto: D.R.)
De notar, que os resultados de 2023 da Observador Ontime não constam ainda do Portal da Transparência dos media, como é obrigatório. Desconhece-se se a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) já deu um ‘puxão de orelhas’ à empresa devido a este atraso na divulgação de informação financeira ao público.
Quanto à Media9Par, dona do Jornal Económico e da Forbes, também está em ‘maus-lençóis’. Além do prejuízo ter piorado, passando de 412 mil euros em 2022 para 1,925 milhões de euros no ano passado, a empresa viu os seus capitais próprios descerem de 517 mil euros para o valor negativo de 1,079 milhões de euros, sinalizando estar em falência técnica. O passivo da empresa do Emerald Group, do ‘misterioso’ empresário angolano N’Gunu Tiny – que é também accionista do Polígrafo –, mais do que duplicou, de 1,439 milhões de euros para 3,932 milhões de euros.
Outra empresa do sector da imprensa escrita, neste caso exclusivamente digital, a fechar o ano passado com prejuízos foi a Swipe News, dona do Eco, que registou um resultado líquido negativo de 235 mil euros. E isto depois de sucessivos anos sucessivos de prejuízos. Esta empresa de média – detida em 79% por empresários e empresas, incluindo a Amorim SGPS e a Valens Private Equity, de Mário Ferreira, principal accionista da TVI – não tem grandes motivos para festejar, pois tem capitais próprios negativos de 1,6 milhões de euros, o que não abona a favor de quem aborda sobretudo temas económicos. Além disso, registou um passivo de 2,6 milhões de euros, quando há oito anos, em 2017, o valor estava nos 375 mil euros. Entretanto, em Março deste ano, os accionistas abriram os cordões à bolsa com um aumento de capital de 1.302.647 euros para 3.211.397 euros. Aparentemente, vão ter de injectar mais.
Outro grupo que registou uma deterioração dos resultados foi a Newsplex, dona do Nascer do Sol, que no ano passado viu os prejuízos aumentar de 474 mil euros para 574 mil euros. Os capitais próprios foram negativos, em 1,628 milhões de euros, e o grupo apresentava, no final de 2023, dívidas à Segurança Social (738 mil euros) e ao Fisco (398 mil euros).
Mas estas dívidas ao Estado são ‘peanuts‘, quando comparadas com a situação da sua vizinha no Taguspark, a Trust in News, que está a dever mais de 15 milhões de euros aos contribuintes. O prejuízo da empresa que detém a Visão até nem foi tão elevado quanto o de outros grupos, já que a sociedade unipessoal do comentador e empresário Luís Delgado fechou 2023 com um resultado líquido negativo de 116 mil euros. O problema é mesmo os mais de 30 milhões de euros de passivo.
A incógnita permanece: como é que uma empresa com um capital social de apenas 10.000 euros conseguiu acumular uma dívida desta dimensão, ainda para mais, quando o maior credor é o Estado, mais concretamente a Segurança Social e o Fisco. Além disso, pela lista de credores do PER, a empresa deixou um longo rasto de dívidas a todo o tipo de fornecedores e também a trabalhadores. Do que não se duvida é que o acumular de dívidas aos cofres públicos só foi possível com ‘carimbo’ político, do Governo.
Só falta saber se a factura do descalabro deste grupo e de outras empresas do sector da imprensa vai acabar por suportada pelos bolsos dos contribuintes, que, mesmo que não queiram ser leitores e assinantes das publicações, arriscam tornar-se apoiantes à força destes meios de comunicação social dos media mainstream. Os mesmos media que estão, por sua vez, cada vez mais reféns e dependentes de accionistas ‘generosos’ e de promíscuas parcerias comerciais que encomendam o funeral à ética jornalística, a troco da sobrevivência a prazo dos maiores donos da imprensa em Portugal.
N.D.: A Swipe News começou por apresentar no Portal da Transparência dos Media um lucro no ano passado de cerca de 235 mil euros, que acabou por corrigir para valor negativo (prejuízo). O PÁGINA UM somente detectou essa correcção em 11 de Setembro de 2024, refazendo essa parte da notícia original.
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Se é expectável que seja nos concelhos com hospitais de maior dimensão que vivam mais médicos, uma análise do PÁGINA UM aos dados de 2023 disponibilizados pelo Instituto Nacional de Estatística mostra que há vastas regiões do país onde, mesmo com programas de incentivo, os médicos não se querem fixar, acarretando efeitos catastróficos na assistência das populações, sobretudo dos mais idosos. Na verdade, o rácio médio de médicos (5.8 por mil habitantes) em Portugal não tem qualquer significado: por exemplo, se o concelho de Coimbra, onde quase 4% da população é licenciada em Medicina, apresenta um valor que está seis vezes acima da média nacional, há nove em cada 10 municípios que não superam o valor médio. Destes, 109 têm menos de dois médicos por cada mil habitantes. A pior situação é na Pampilhosa da Serra, ironicamente no mesmo distrito de Coimbra.
Em Junho passado, a Câmara de Montalegre anunciou um incentivo para a fixação de médicos naquele concelho transmontano que inclui habitação, pagamento de despesas como energia, água e Internet e entrada gratuita em serviços e equipamentos municipais. Compreende-se: o rácio de médicos residente, segundo os mais recentes dados do Instituto Nacional de Estatística, é de apenas 2 por mil habitantes – menos de metade da média nacional (5,8 por mil habitantes), o que significa, atendendo à sua população total que ali vivem apenas 18. Na verdade, até se pode dizer que, além de clínicos gerais, haverá em Montalegre um cirurgião, três médicos de Medicina Geral e Familiar, um de Medicina Interna, um ortopedista e um de Medicina Intensiva. Contas feitas, de entre as 96 especialidades registadas pelo INE, de entre os médicos que ali vivem só há cinco especialidades.
As ofertas municipais de fixação de médicos passaram a ser quase generalizadas ao país, esquecendo as autarquias que se se puxa o cobertor para um lado se destapa outro. Numa pesquisa rápida acumulam-se tanto os incentivos das autarquias para atrair médicos como queixas pela sua falta. Em Abril, Figueiró dos Vinhos também divulgou condições especiais aos médicos que ali fixassem residência. Tem um rácio de 2,7 médicos por mil habitantes Ourém conseguiu recentemente atrair nove médicos para o concelho através de incentivos remuneratórios. Mesmo assim continua muito abaixo do rácio médio, apenas com 1,5 por mil habitantes.
Castanheira de Pêra procurou, igualmente, cativar médicos, no final do ano passado, acenando com um incentivo mensal de 2.200 euros para quem optasse por viver no concelho. Não se sabe se resultará, mas bem precisado se encontra este pequeno concelho do distrito de Leira, localizado a pouco mais de 40 quilómetros de Coimbra. Acabou o ano de 2023, segundo os dados do INE, com um miserável rácio de 0,7 médicos por mil habitantes, o terceiro pior do país (a par de Cadaval, Barrancos, Vila do Bispo e Lajes das Flores), apenas atrás dos concelhos de Pampilhosa da Serra (0,5 médicos por mil habitantes) e Pedrógão Grande (0,6).
Podem existir outros bons indicadores para avaliar o quão enviesado se encontra o desenvolvimento de Portugal e também que mostre como tão desequilibrado se encontra o país em termos de atractividade, mas pouco ‘batem’ o rácio dos médicos por habitante. Sendo certo que, obviamente, será expectável, aceitável e mesmo normal que este rácio seja bastante mais elevado em grandes cidades, sobretudo com centros hospitalares de referência, quando se observam os valores em concretos fica-se de imediato com a percepção e noção, em simultâneo, que Portugal tem um problema de Saúde Pública.
Na verdade, o rácio médio neste caso significa pouco ou nada – ou melhor, talvez até muito porque mostra como os médicos não se sentem muito atraídos por grande parte do país. Saber se o problema é das condições de grande parte do país ou de se de grande parte dos médicos, fica para outras análises. Certo é que somente há 30 municípios, de um universo de 308, que estão acima da média dos 5,8 médicos por mil habitantes, o que significa que há, assim, 278 abaixo da média. E muitos estão mesmo muito abaixo da média.
Com efeito, para além dos já mencionados municípios com baixa concentração de médicos residentes (Pampilhosa da Serra, Pedrógão Grande, Castanheira de Pêra, Cadaval, Barrancos, Vila do Bispo e Lajes das Flores), há mais 18 municípios que não ultrapassam o rácio de um médico por mil habitantes. Destes os municípios de Barrancos, Lajes das Flores, Góis e Freixo de Espada-à-Cinta não têm sequer médicos de uma qualquer especialidade. Essa ‘característica’ é extensível a mais dois concelhos: Monchique e Oleiros.
Concelhos rurais e envelhecidos não atraem médicos, mesmo quando as autarquias concedem subsídios.
Contratando (ou confirmando) este cenário terceiro-mundista, os únicos municípios acima da média nacional em termos de rácio de médicos são, geralmente, aqueles onde se localizam unidades de saúde, mostrando que em Portugal a Saúde Pública ainda está ainda muito associada à assistência hospitalar e à concentração de consultas e tratamentos ambulatórios em cidades. Neste pequeno grupo destacam-se, com mais de 10 médicos por mil habitantes, Matosinhos, Faro, Oeiras – onde, de forma absurda, a autarquia concede também incentivos para fixação de residência a estes profissionais – e sobretudo Lisboa, Porto e Coimbra.
A cidade do Mondego é, aliás, a terra dos doutores portugueses com um rácio de 34,7 médicos por mil habitantes, seis vezes superior à média nacional. Significa que em 100 conimbricenses se encontram mais de três médicos, e de quase todas as especialidades: 92 em 96 ‘vivem’ (e exercem) por lá. Mais afastado está a cidade do Porto onde se encontra um rácio de 22 médicos por mil habitantes, cerca de quatro vezes a média nacional, mas até tem mais especialidades (94) do que as contabilizadas em Coimbra. No terceiro lugar do pódio surge então a cidade de Lisboa com um rácio de 17,6 médicos por mil habitantes, abrangendo 94 especialidades.
Saliente-se também que estes são os únicos municípios onde vivem médicos de mais de 90 especialidades, sendo que somente Vila Nova de Gaia (88), Oeiras (87) e Cascais (83) têm mais de 80 médicos especialistas a viverem nos respectivos concelhos.
Em termos regionais, a Região de Coimbra é aquela que apresenta um melhor rácio (13,8 médicos por mil habitantes), mas também maiores desigualdades. De entre os 19 municípios que constituem esta região, além do município de Coimbra, apenas Figueira da Foz (7,1) e Condeixa-a-Nova (6,2) apresentam um rácio superior à média nacional. E há 10 municípios desta região com rácios inferiores a 3 médicos por mil habitantes: Montemor-o-Velho (2,9), Soure (2,7), Lousã (2,6), Oliveira do Hospital (2,1), Tábua (2,0), Penacova (1,5), Arganil (1,1), Vila Nova de Poiares (1,1), Góis (0,8) e Pampilhosa da Serra (0,5).
Coimbra é literalmente a ‘cidade dos doutores’, com um rácio de 34,7 médicos por mil habitantes, seis vezes superior à média nacional. No município de Pampilhosa da Serra, que integra o seu distrito, este rácio é de 0,5.
Mas mesmo na Região de Lisboa essas disparidades ficam patentes, que mais do que efeitos negativos em termos de assistência médica, mostra que há concelhos pouco atractivos para os médicos viverem. De facto, apesar de possuir no seu concelho um grande hospital (Dr. Fernando Fonseca), o rácio de médicos da Amadora é inferior à média nacional (3,7), e pior ainda está Sintra (2,7).
Mas muito pior ainda, em termos regionais, está o Alentejo Litoral, que tem apenas um rácio de 2,2 por mil habitantes. O ‘melhor’ dos cinco concelhos desta região é Santiago do Cacém com 3,8, bastante abaixo da média nacional. Não está esta região sozinha em escassez de médicos. De acordo com os dados do INE, também nas regiões do Ave, do Tâmega e Vale do Sousa, de Leiria, da Beira Baixa, do Oeste, do Médio Tejo e mesmo de Setúbal não há um único município com rácio de médicos acima da média nacional. E nos Açores e na Madeira apenas Ponte Delgada (7,1) e Funchal (9,0) estão acima da média.
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Uma coisa são as intenções, outra a realidade. Os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), divulgados esta quarta-feira, trazem aparentes boas notícias: no segundo trimestre deste ano atingiu-se o mais elevado rendimento médio mensal líquido dos trabalhadores por conta de outrem, embora uma parte tenha sido ‘comido’ pela inflação dos últimos anos. Mas nem tudo são rosas, longe disso. Apesar de todos os sectores estarem em crescimento, no caso dos serviços a diferença de rendimentos entre homens e mulheres atingiu, no segundo trimestre deste ano, o valor mais elevado desde que o INE iniciou os registos em 2011. Aliás, nos serviços, comparando a evolução no último quinquénio, o aumento absoluto no rendimento dos homens foi de 240 euros contra apenas 213 euros das mulheres.
O rendimento médio mensal líquido dos empregados por conta de outrem atingiu o valor mais elevado de sempre, mas a inflação tem vindo a ‘comer’ parte deste acréscimo dos últimos anos, enquanto as disparidades salariais entre homens e mulheres no sector dos serviços alcançou mesmo um máximo no segundo trimestre deste ano, de acordo com dados divulgados ontem pelo Instituto Nacional de Estatística.
Analisando a série de dados desde 2011 sobre o rendimento dos trabalhadores depois da dedução do imposto sobre o rendimento (IRS), das contribuições obrigatórias dos empregados para regimes de Segurança Social e das contribuições dos empregadores para a Segurança Social, o PÁGINA UM conclui que existem mais motivos de preocupação do que de satisfação.
No ‘mundo’ dos serviços, a discriminação salarial continua e até aumentou para valores record em Portugal no segundo trimestre deste ano.
Não contabilizando a inflação, cada trabalhador por conta de outrem ‘levou para casa’, em média, no segundo trimestre deste ano mais 321 euros do que no início de 2011, tendo amealhado agora 1.137 euros. É a primeira vez que este rendimento médio ultrapassou a fasquia dos 1.100 euros. Em comparação com o trimestre anterior, registou-se um aumento de 3,8%, sendo de 8,9% face ao período homólogo do ano passado. E se se recuar cinco anos, para o segundo trimestre de 2019, o aumento é de 24,5%.
Porém, a inflação terá anulado parte significativa deste incremento nos rendimentos, considerando que o índice de preços no consumidor (IPC) subiu 13,9% entre 2019 e 2023, alcançando mesmo os 28,5% no caso dos produtos alimentares não transformados. Ou seja, para a compra de muitos alimentos, a inflação ‘comeu’ essa aparente melhoria.
O sector agrícola e afins tem registado, mesmo assim, uma melhor evolução em termos relativos nos últimos cinco anos, tendo os trabalhadores passado de um rendimento médio mensal líquido de 692 euros no segundo trimestre de 2019 para os 933 euros no segundo trimestre deste ano. Em todo o caso, continua este a ser o sector com menores rendimentos face ao sector industrial, de construção, energia e águas (o tradicional sector secundário) e ao sector dos serviços (vulgarmente conhecido por sector terciário).
Com efeito, no sector secundário, o último trimestre de 2023, conforme revelam os dados do INE, marcou a ultrapassagem simbólica dos 1.000 euros, que se consolidou agora. O segundo trimestre deste ano apresenta um rendimento médio líquido de 1.080 euros, mais 98 euros do que o período homólogo, e mais 230 euros do que há cinco ano, o que significa um aumento relativo de 27,1%.
Trabalhadores do sector primário têm os menores rendimentos, mas também a menor disparidade salarial entre homens e mulheres.
Apesar do sector dos serviços ter contabilizado um incremento relativo menor no último quinquénio (23,5%), na verdade o aumento absoluto do rendimento líquido médio foi superior aos dos outros dois sectores. Tendo sido superada a fasquia dos 1.000 euros no primeiro trimestre de 2021, os trabalhadores do sector terciário tem registado um aumento consistente, exceptuando o período da pandemia em que se registou uma certa estagnação, com um aumento de apenas 71 euros em três anos (entre o segundo trimestre de 2020 e o primeiro trimestre de 2023). Mas desde este último período, ou seja, em cinco trimestres, o rendimento médio já subiu 115 euros, situando-se agora nos 1.162 euros, mais 221 euros do que há cinco anos.
Contudo, as disparidades de rendimento entre homens e mulheres estão bastante longe de se dissipar, pelo contrário. No sector dos serviços, o último trimestre apresenta mesmo a maior diferença desde os registos do INE, cuja série começou em 2011 e que foram alvo de ‘reconciliação’ para permitir comparações. No segundo trimestre deste ano, a diferença entre o rendimento médio líquido dos homens e das mulheres no sector terciário nunca foi tão elevada, subindo para 244 euros, o que contrasta com os 166 euros do primeiro trimestre de 2014, a menor disparidade contabilizada desde 2011.
Em todo o caso, o sector dos serviços é o único em que o rendimento líquido médio das mulheres ultrapassa os 1.000 euros, embora tal tenha acontecido apenas este ano, no primeiro trimestre. Nos outros dois sectores, as mulheres ainda estão bastante aquém dessa fasquia simbólica, embora a distância face aos homens seja menor. Para o segundo trimestre deste ano, no caso do sector industrial e afim, as mulheres ficaram, em média, com um rendimento de 984 euros, enquanto os homens arrecadaram 1.129 euros (diferença de 145 euros).
Já no sector agrícola e afim, a diferença no segundo trimestre deste ano cifrou-se nos 103 euros, com os homens a registarem um rendimento líquido médio de 973 euros, que contrasta com os 870 euros das mulheres. Curiosamente, o sector primário é aquele onde a disparidade está menos acentuada, havendo trimestres onde se observa rendimentos quase similares, como sucedeu no terceiro trimestre de 2021, quando a diferença foi apenas de um euro.
Evolução do rendimento médio mensal líquido entre homens e mulheres desde 2011 até ao segundo trimestre de 2024. Fonte: INE.
Considerando apenas os valores absolutos, o aumento do rendimento médio mensal líquido foi mais favorável no último quinquénio para as mulheres nos sectores primário (277 vs. 203) e secundário (229 vs. 222), mas não no sector terciário, onde o aumento se quedou em 210 euros, que contrastou com uma subida de 247 euros para os homens.
Por fim, um aspecto relevante que se destaca na evolução dos rendimentos é a redução das disparidades em cada sector de actividade, embora haja ainda diferenças significativas. Por exemplo, em 2011, o rendimento médio líquido de um trabalhador do sexo masculino no sector dos serviços era 58% superior ao de um homem a trabalhar no sector primário. Essa diferença agora é de 34%. No caso das mulheres que trabalhavam no sector dos serviços em 2011, apresentavam um rendimento de quase 64% superior ao de uma trabalhadora do sector primário. Essa diferença é agora de 22%.
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A Volta a Portugal em bicicleta foi perdendo élan nas últimas décadas, mas mantém-se no imaginário de autarcas, que abrem os cordões à bolsa com dinheiros públicos, para os seus municípios serem escolhidos pela organização como locais de chegada, de partida e até de metas volantes. Como o negócio fala mais alto, o resultado é uma Volta que parece uma manta de retalhos, onde os ciclistas quase andam tanto de autocarro como de bicicleta. A edição deste ano, de acordo com as contas do PÁGINA UM, já ultrapassam os 1,2 milhões de euros de dinheiros públicos, mas o ‘naming’ foi sacado pelo Continente por um valor não divulgado pela empresa organizadora, a Podium Events.
A empresa organizadora da Volta a Portugal em bicicleta – que terminou no passado domingo com a vitória do russo Artem Nych –, que conta com quatro empregados, já garantiu na edição deste ano mais de 1,1 milhões de euros de dinheiros públicos. Apesar do ‘naming’ deste evento desportivo estar associado aos supermercados Continente, do Grupo Sonae, e existirem dezenas de patrocinadores e fornecedores oficiais, uma parte substancial das receitas da Podium Events surge de ‘patrocínios’ de autarquias e outras entidades públicas, em grande parte dos casos como contrapartida de os municípios respectivos serem escolhidos para início ou fim das etapas.
No passado dia 24 de Julho, quando se iniciou a principal prova portuguesa que integra o calendário da Union Cycliste Internationale (UCI) Europe Tour, o PÁGINA UM já tinha relatado que, contabilizando também um patrocínio da Santa Casa da Misericórdia de 310 mil euros, constavam no Portal Base contratos envolvendo entidades públicas e a Podium Events no valor de quase 815 mil euros. Mas este valor foi aumentando à medida que se foi desenrolando o evento. Entre o dia do prólogo até sexta-feira passada foram adicionados mais sete contratos com autarquias (Felgueiras, Bragança, Fafe, Boticas, Paredes e Santarém) e mais um com a Entidade Regional de Turismo do Centro de Portugal. No caso do ajuste directo com a Câmara Municipal de Bragança – a única localidade com ‘direito’ a ser sítio de chegada e partida durante a edição deste ano da Volta a Portugal –, o montante em causa (210 mil euros) garante, desde já, uma nova passagem em 2025.
Autarquias a pagar para ver chegar e partir os ciclistas aparentam ser o factor mais determinante para que a Podium Events – que, também com outra denominação, tem organizado ou co-organizado esta prova, desde o início do século –, o que ‘obriga’ a uma complexa ginástica que tornou a Volta a Portugal num quase exercício de ‘pogo stick’.
Com efeito, nos últimos anos, o pelotão não descansa logo que acaba uma etapa, porque na esmagadora maioria das etapas tem de saltar de bicicletas e bagagens para outra localidade, para daí partir na manhã seguinte. Em alguns casos, a caravana vai literalmente em mais do que duas rodas durante largos quilómetros.
Por exemplo, na edição 85 que terminou domingo, depois do prólogo em Águeda, a primeira etapa saiu, no dia seguinte, em terras do vizinho concelho da Anadia, uma vila de Sangalhos. Neste caso foram 12 quilómetros, mas a primeira etapa terminou em Miranda do Corvo, mas a caravana viu-se obrigada a percorrer em veículos 111 quilómetros, porque a segunda etapa saiu de Santarém. Essa etapa terminou em Lisboa, e nova ‘peregrinação’ houve: 180 quilómetros até ao Crato, no norte do Alentejo, onde se iniciou a terceira etapa.
Não considerando o prólogo (Águeda) e o contra-relógio da última etapa (Viseu) – que, pela curta distância, podem ser considerados ‘circuitos’ –, apenas houve uma etapa que se iniciou na mesma localidade onde terminou a anterior: Bragança.
De resto, a caravana automóvel, com os ciclistas à boleia, andou de norte ao centro do país para levar tudo do sítio onde se terminou para o outro onde se continuaria, a saber: Covilhã-Sabugal (42 km), Guarda-Penedono (63 km), Boticas-Felgueiras (79 km), Paredes-Viana do Castelo (83 km), Fafe-Maia (55 km) e Mondim de Basto-Viseu (123 km). Contas feitas, os ciclistas que terminaram a Volta pedalaram cerca de 1.540 quilómetros, mas entre etapas, de carro, andaram mais 748 quilómetros.
Na análise do PÁGINA UM, apesar da Volta a Portugal deste ano ter tido somente um prólogo e 10 etapas, houve 18 concelhos onde a caravana parou para chegar ou partir. Até agora, não surgem ainda no Portal Base respeitantes à passagem da prova ciclista nos municípios do Crato, Sabugal, Penedono, Viana do Castelo, Maia, Mondim de Basto e Viseu. Também ainda não aparece qualquer contrato com a autarquia de Miranda do Corvo, chegada da primeira etapa, embora haja um apoio de 19.990 euros da Entidade Regional de Turismo do Centro de Portugal.
De resto, todas as outras 11 autarquias por onde ‘estancou’ a caravana já abriram os cordões da ‘bolsa pública’ em direcção à Podium Events, sem sequer ser claro os critérios para definir o montante que cada uma pagou. O município de Águeda para ter o prólogo, mas sem direito a partida da primeira etapa, gastou 110 mi euros. Por sua vez, a autarquia de Anadia somente despendeu 24.390,24 euros – sem se perceber o motivo de, contrariamente aos outros, não haver um número redondo – para ficar com a saída da primeira etapa. Na segunda etapa, que ligou Santarém a Lisboa, a autarquia escalabitana desembolsou 20 mil embora, mas na capital foi a Junta de Freguesia de Marvila – onde se localizam alguns dos bairros mais maiores carências – que pagou à Podium Events, e não foi pouco: 90 mil euros para ficar no ‘mapa da Volta’ por uma simples tarde, até porque a caravana seguiu logo para o Crato.
Como já referido, não existe ainda informação sobre verbas pagas pelos municípios da saída da terceira (Crato), quarta (Sabugal) e quinta (Penedono), mas há para as metas: a autarquia da Covilhã pagou 60 mil euros, a da Guarda 140 mil (integrado num contrato de quatro anos assinado em 2022 no valor total de 400 mil euros) e a de Bragança desembolsou 105 mil euros, que incluiu a partida da sexta etapa.
Por sua vez, Boticas pagou 80 mil euros para ser meta da sexta etapa, enquanto Felgueiras e Paredes, que se ligaram na sétima etapa, deram à Podium Events 35 mil e 80 mil euros, respectivamente. Relativamente às etapas oitava a décima, somente se conhece ainda os 80 mil euros pagos pelo município de Fafe e os 79.950 euros pagos pela autarquia de Mondim de Basto por ter a etapa final na Senhora da Graça. E há ainda uma autarquia, a de Penamacor, que decidiu pagar 10 mil euros, em ajuste directo, apenas para que houvesse uma simples passagem por esta vila do distrito de Castelo Branco com direito a ‘meta volante’.
Além destas verbas, este ano a Santa Casa da Misericórdia achou por bem ‘despachar’ 620 mil euros para a Podium Events para ser patrocinador, durante duas edições, da camisola branca (para o melhor jovem ciclista na classificação geral)) e do Prémio Melhor Português. Ou seja, 310 mil euros em cada ano. Este contrato tem, além de tudo, partes expurgadas: cerca de seis páginas do texto inserido no Portal Base, respeitantes à cláusula segunda, estão irregularmente em branco, uma vez que o Instituto dos Mercados Públicos, do Imobiliário e da Construção (IMPIC) permite estes abusos.
Contas feitas, e contabilizando o patrocínio da Santa Casa da Misericórdia, a facturação com dinheiros públicos da Podium Events já ultrapassa os 1,23 milhões de euros, podendo ainda subir. Este montante representa cerca de um terço da facturação em todas as actividades desta empresa – que não se cinge á Volta a Portugal – ao longo do ano de 2022. A empresa, que apresentou nesse ano, um lucro de 1.263 euros, ainda não apresentou as contas do exercício do ano passado, mas mostra-se evidente ser apenas um intermediário, dado que conta quatro empregados e praticamente todas as verbas arrecadadas servem para contratar serviços externos.
Saliente-se que, para contornar o impedimento de patrocínios directos a empresas privadas, a generalidade dos contratos celebrados pelas autarquias, sob a forma de ajuste directo, indicam estar-se perante uma aquisição de serviços – como se fossem os municípios os organizadores do evento –, o que constitui uma forma pouco ortodoxa de cumprir o Códigos dos Contratos Públicos. Até agora, o Tribunal de Contas tem ‘fechado os olhos’, mesmo sendo evidente que se está perante patrocínios, tanto assim que a lista das autarquias surge na página dedicada aos patrocinadores.
Embora a Podium Events realize outros eventos, sobretudo de ciclismo, as entidades públicas, sobretudo autarquias, são relevantes clientes. Desde 2009 contabilizam-se quase 190 contratos, envolvendo quase 13 milhões de euros, ultrapassando assim os 15 milhões, caso se inclua IVA. Mais de 3,6 milhões de euros apenas desde 2022.
Grande parte destes contratos envolvem autarquias e comunidades intermunicipais, destacando-se como melhores clientes da Podium Events, para além da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (620 mil euros), os municípios de Lisboa (1,8 milhões de euros), de Castelo Branco (1,04 milhões de euros), de Viana do Castelo (895 mil euros), da Guarda (790 mil euros), Mondim de Basto (533 mil euros), Montalegre (430 mil euros), Covilhã (375 mil euros) e Braga (355 mil euros).
O PÁGINA UM contactou a Podium Events para obter esclarecimentos e outras informações, mas não obteve resposta. Não foi assim esclarecido quanto pagou a Sonae pelo ‘naming’ da Volta a Portugal, que, para se realizar este ano, implicou mais de 1,2 milhões de euros em apoios públicos.
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O site do suposto jovem milionário das criptomoedas, que foi promovido pela TVI numa reportagem polémica, há cerca de um ano, mantém-se activo e apresenta agora uma mensagem que aparenta ser também uma resposta ao Banco de Portugal. A entidade liderada por Mário Centeno tem a seu cargo a regulação e registo das empresas de criptomoedas em Portugal. Na sequência da reportagem da TVI, emitiu um alerta sobre o ‘jovem milionário’, Renato Duarte Júnior, e a sua suposta empresa, a Digital Bank Labs. Em resposta, o site da DBL diz que não tem planos para fazer negócios em Portugal, por ser “um dos países mais corruptivos da Europa”. Entretanto, a TVI já eliminou do seu site a reportagem, conduzida pela jornalista Conceição Queiroz, depois de ter levado um ‘puxão de orelhas’ do regulador dos media por não ter verificado a veracidade das informações sobre o ‘jovem milionário’ e a sua suposta empresa, os quais promoveu em horário nobre.
O site do ‘jovem milionário das criptomoedas’, que foi promovido numa reportagem polémica da TVI em Junho do ano passado, continua operacional e a captar potenciais investidores, apesar dos alertas dos reguladores financeiros. Clicando no site mencionado pela TVI, dbl.pt, direcciona para um novo site que contém uma mensagem que aparenta ser uma resposta ao aviso que o Banco de Portugal fez sobre o ‘jovem milionário’ e a sua suposta empresa, Digital Bank Labs.
O site com fundo preto apresenta em letras grandes o nome ‘Digital Bank Labs’ e, por cima, um aviso em inglês onde se pode ler: “tomámos a decisão de não continuar a utilizar o domínio .pt devido a preocupações regulatórias. Como não temos planos para registar a nossa empresa ou realizar negócios em Portugal, que tem sido identificado como um dos países mais corruptivos da Europa, vamos abandonar gradualmente a nossa associação a este domínio até 2024”.
Esta mensagem surge na sequência de um aviso emitido pelo Banco de Portugal na sequência da forte polémica que se instalou após a emissão da reportagem da TVI, que continua disponível no site da estação de Queluz.
Na reportagem, a jornalista Conceição Queiroz parecia estar deslumbrada com a vida de luxo do ‘jovem milionário’ e aparentava desconhecer o funcionamento do mercado de criptomoedas. A TVI nunca esclareceu se recebeu alguma contrapartida pela reportagem nem informou se a jornalista e restantes membros da equipa de reportagem da estação beneficiaram de viagens e estadia pagas pelo ‘jovem milionário’ ou a sua suposta empresa. (Foto: Captura a partir de imagem da reportagem da TVI)
No aviso, publicado em Junho do ano passado, o supervisor financeiro advertia que “a suposta entidade ‘Digital Bank Labs’ e ‘Renato Júnior’ (Silvério Renato Carneiro Duarte, NIF 253371341) que atuam através do endereço de internet ‘http :// dbl.pt’, não estão, na presente data, nem nunca estiveram, habilitados a exercer, em Portugal, qualquer atividade financeira reservada às instituições sujeitas à supervisão do Banco de Portugal, nomeadamente, atividades com ativos virtuais e rece[p]ção de depósitos ou outros fundos reembolsáveis”.
Recorde-se que a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) deu recentemente um ‘puxão de orelhas’ à TVI pela reportagem que promoveu a vida de luxo de Renato Duarte Júnior no Dubai e o seu alegado negócio de criptomoedas. Na reportagem, da jornalista Conceição Queiroz (CP 7851), em cenários luxuosos e idílicos gravados no Dubai, Renato Duarte Júnior (Silvério Renato Carneiro Duarte), é apresentado como o ‘milionário improvável’, rodeado de fausto.
A reportagem foi transmitida em 21 de Junho de 2023 em horário nobre e gerou uma onda de contestação na Internet pelo carácter duvidoso das informações veiculadas pela reportagem, incluindo do próprio sector regulado das criptoactivos.
No novo site da dbl.pt pode ler-se a seguinte nota, que aqui se reproduz em português: “Tomámos a decisão de não continuar a utilizar o domínio .pt devido a preocupações regulatórias. Como não temos planos para registar a nossa empresa ou realizar negócios em Portugal, que tem sido identificado como um dos países mais corruptivos da Europa, vamos abandonar gradualmente a nossa associação a este domínio até 2024”.
Agora, no site da DBL, pode ainda ver-se um relógio em contagem decrescente prometendo o aparecimento de “Uma nova geração de plataforma de investimento privado e confidencial”, alegando que a DBL tem 2,3 mil milhões de dólares de activos sob gestão.
No mesmo site, com o domínio ‘.capital’, para o qual os internautas são direccionados quando clicam em dbl.pt, é ainda mostrado um alegado portfólio de criptomoedas, incluindo 191,98 milhões de dólares em bitcoin. De resto, o site não tem mais nenhuma informação ou contactos, tendo apenas dois links para uma conta da rede social X (antigo Twitter) e para outra conta na plataforma de mensagens encriptadas Telegram.
Contactado, o Banco de Portugal remeteu apenas para o aviso que emitiu no final de Junho de 2023, que foi publicado na sequência da celeuma que a transmissão da reportagem da TVI provocou.
Apesar das queixas e dos avisos dos reguladores financeiros, a TVI manteve durante mais de um ano, até há poucos dias, a sua reportagem disponível no seu site na Internet. Na sua deliberação recente sobre o caso, a ERC instou a TVI a colocar uma advertência na reportagem. Mas a TVI optou mesmo por eliminar a reportagem do site, aparecendo agora apenas um fundo preto com o logo da TVI Player. O texto que anunciava a reportagem da jornalista Conceição Queiroz ainda pode ser lido aqui.
A TVI decidiu eliminar a reportagem do seu site, depois de a ter mantido disponível, sem qualquer advertência, durante mais de um ano. (Foto: Captura a partir de imagem da reportagem da TVI)
Este caso polémico veio expor a baixa literacia de muitos jornalistas na cobertura de temas financeiros, incluindo o do sector dos criptoactivos, e também a facilidade com que se podem promover negócios suspeitos num canal de TV de topo, em horário nobre. A tardia intervenção da ERC, que demorou um ano a decidir sobre as queixas que recebeu sobre a reportagem, é, ainda assim, melhor do que a reacção da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ), que até hoje nunca se pronunciou sobre a polémica reportagem.
Já a ERC, na sua deliberação, na sua análise, sugere ter havido amadorismo na elaboração da reportagem. “O caso em análise é eloquente quanto à necessidade de evidenciar a diferença de paradigma que deve existir entre, por um lado, os conteúdos oferecidos pelos órgãos de comunicação social, em especial os de natureza informativa, necessariamente marcados pela insubstituível intermediação crítica especializada do profissional jornalista e, por outro, os demais conteúdos audiovisuais criados por entusiastas, autodidatas ou quaisquer pessoas que não jornalistas, incluindo para fins promocionais, que a cada vez maior acessibilidade das tecnologias de informação e comunicação tem permitido banalizar”, afirmou na deliberação.
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O caso foi insólito no primeiro ajuste directo. Estranho no segundo. E cada vez mais suspeito ao terceiro. Por estranhas razões, a empresa Custódio de Castro Lobo & Filhos, uma simples serralharia de Guimarães, conseguiu, desde Setembro do ano passado, sucessivos ajustes directos adjudicados pelo Centro Hospitalar Universitário do Algarve, primeiro para instalar um bloco operatório em estrutura amovível, depois para serviços de ‘terraplanagem’ e, agora, para efectuar melhorias não especificadas. Tudo sem concurso, sempre com justificações diversas, e a última mesmo absurda. Certo é que a empresa vimaranense, com sede a 600 quilómetros de distância de Faro, já facturou com este negócio mais de 1,2 milhões de euros.
Já diz o ditado que ‘não há duas sem três’. No caso de uma empresa de serralharia de Guimarães, a permissa cumpriu-se. A sociedade Custódio de Castro Lobo & Filhos conseguiu um terceiro contrato por ajuste directo com o Centro Hospitalar Universitário do Algarve (CHUA), desta vez, para efectuar “melhorias funcionais ao novo edifício do Bloco Operatório Amovível”, sem se saber que melhorias são precisas para uma unidade que terá sido construída, em princípio para ficar funcional, pela mesma empresa, há menos de um ano.
Ao todo, não tendo transcorrido uma volta da Terra ao eixo do Sol, esta empresa facturou já 1.245.495,90 euros em três contratos com o CHUA. O primeiro contrato que conseguiu, em Setembro de 2023, no valor de 800 mil euros, noticiado pelo PÁGINA UM, envolveu a ‘montagem de bloco operatório, duas salas cirúrgicas, em estrutura aligeirada amovível’.
(Foto: D.R.)
Seguiu-se, no mesmo mês, um segundo e estranho contrato de 199.249,60 euros para a realização de ‘trabalhos de terraplanagem, modelação do terreno e preparação de acessibilidades’, apesar de o alvará registado pela serralharia vimaranense no Instituto dos Mercados Públicos Imobiliário e Construção (IMPIC) não pareça abranger a execução daquele tipo de trabalhos de construção, como o PÁGINA UM também noticiou.
Agora, no dia 1 de Agosto, foi publicado no Portal Base um terceiro contrato, assinado a 20 de Maio, por ajuste directo, entre a CHUA e a Custódio de Castro Lobo & Filhos, no valor de 246.246,30 euros, para efectuar ‘melhorias funcionais ao novo edifício do Bloco Operatório Amovível’. O motivo invocado, desta vez, para a não realização de concurso público pelo CHUA, foi a necessidade de “proteger direitos exclusivos, incluindo direitos de propriedade intelectual“, algo que, por norma, se aplica à compra de obras de arte ou de espectáculos culturais, e não para obras de construção, como blocos operatórios. Instado a comentar este argumento, o centro hospitalar nada disse a este respeito.
Assim, segundo o CHUA, o primeiro contrato com esta serralharia foi feito sem concorrência invocando o o artigo do Código dos Contratos Públicos que admite o ajuste directo quando “em anterior concurso público ou concurso limitado por prévia qualificação, nenhum concorrente tenha apresentado proposta, todas as propostas tenham sido excluídas […], nenhum candidato se haja apresentado, ou todas as candidaturas tenham sido excluídas” com base em determinados fundamentos.
A serralharia de Guimarães tem um alvará de empreiteiro de obras públicas mas não consta expressamente no IMPIC que esteja habilitada para efectuar um dos serviços contratados pelo CHUA, que envolveu a execução de terraplanagem. (Foto: PÁGINA UM)
No segundo contrato, o da terraplanagem, o argumento usado pelo CHUA foi o da urgência, para não lançar concurso público. Isto sabendo-se que, nestes casos, o ajuste directo só pode ser justificado se “estritamente necessário e por motivos de urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis pela entidade adjudicante, [e que] não possam ser cumpridos os prazos inerentes aos demais procedimentos, e desde que as circunstâncias […] não sejam, em caso algum, imputáveis à entidade adjudicante”. Para essa opção, não basta invocar, mas tem de se fundamentar; algo que nunca sucedeu.
De resto, antes destes contratos com o centro hospitalar algarvio, a empresa de Guimarães tinha apenas mais um contrato registado, além destes três ajustes directos com o CHUA: um contrato obtido através de um procedimento de consulta prévia, em Junho de 2023, com o Município de Alijó, no valor de 23.070 euros para ‘Aquisição de serviços de restauro e recuperação de peças para exposição do Centro Interpretativo D`Olival ao Azeite de D`Ouro’.
Saliente-se que esta empresa vimaranense tem uma estrutura familiar, sendo gerida por José Dâmaso da Cruz Castro Lobo, um empresário que também é dono da Mabera, que comprou a histórica têxtil Coelima, em 2021, para a recuperar. No seu portfólio, disponível no site da empresa, a serralharia vimaranense apresenta como clientes o Hospital de Braga, apesar de no Portal Base não constar nenhum contrato correspondente. No entanto, é comum existirem subcontratações em obras de grande envergadura.
Destaque-se que o Hospital de Braga chegou a ser presidido pelo actual presidente do CHUA, o economista João António do Vale Ferreira, entre 2011 e 2019, mas o centro hospitalar algarvio sempre se escusou a esclarecer o motivo para que fosse escolhida uma serralharia a 600 quilómetros para montar um bloco operatório, que requer conhecimentos específicos.
(Foto: D.R.)
Com efeito, questionado pelo PÁGINA UM sobre as razões da ausência de concurso público nestes três contratos e como foi feita a escolha da empresa vimaranense, a Unidade Local de Saúde do Algarve apenas afirmou, através de respostas enviadas pelo gabinete de comunicação, que “realizou os procedimentos de contratação, a que se refere no estrito cumprimento da lei em vigor e da sua missão e na proteção de direitos e obrigações exclusivas dos Contratos Públicos”.
Adiantou que “a escolha do procedimento contratual adotado para cada um dos contratos, encontra-se devidamente fundamentada, considerando a exigência das necessidades de garantia de prestação de cuidados em segurança, por parte do órgão competente para a decisão de contratar”, sem responder directamente às questões colocadas.
Fonte oficial deste centro hospitalar indicou ainda que, desde o início de atividade do bloco operatório amovível, “foram já realizados 481 procedimentos urgentes em ambas as salas cirúrgicas, atendendo a que o Bloco Operatório Central da Unidade Hospitalar de Faro não estará operacional até final do corrente ano por motivo de obras adjudicadas a outro concorrente”.
(Foto: D.R.)
“A alteração do Plano de Contingência Clínico da obra principal para salvaguarda da segurança na reabilitação de forma muito mais célere no Bloco Central no Edifício Principal, considerando a adaptação das respostas cirúrgicas ao plano de proteção radiológica e reforço do circuito do doente, motivou a decisão de adjudicar os trabalhos necessários à empresa responsável pela construção do novo Bloco Operatório em causa”, diz fonte do centro hospitalar algarvio, acrescentando que só dessa forma ficavam garantidos “os direitos e obrigações de garantia relacionados com a montagem e fornecimento dessa instalação, e assegurando a celeridade e qualidade desejadas”.
Este tipo de procedimentos, de sucessivos ajustes directos, transformando em fases a execução de um projecto, constitui um expediente de duvidosa legalidade, sobre o qual o Tribunal de Contas ainda se pode pronunciar. Caso tal não suceda, será provável que haja um quarto ou quinto contrato, e que a facturação improvável desta serralharia de Guimarães em serviços num hospital do Algarve, a 600 quilómetros de distância, e sem concorrência, continue de boa saúde.
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Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma nota sobre o passado misterioso de António Araújo, avô paterno do jornalista Rui Araújo, que foi publicada no livro ‘O Império dos espiões‘.
Novembro de 2008.
Eram umas dez da noite. Estava a atiçar o azinho na lareira quando o telefone começou a tocar.
— ‘Tás bom? Comprei o teu livro e resolvi ligar-te. É por causa dele… — lançou-me a voz rouca do outro lado da linha.
Era a minha prima. O primeiro volume de O Diário Secreto que Salazar não leu sobre espionagem em Portugal durante a Segunda Guerra Mundial tinha sido publicado semanas antes.
— Ele o quê… — retorqui, a pensar que estava a referir-se ao seu pai, o meu tio, capitão de mar-e-guerra, que tinha trabalhado na DINFO .
— Ele era misterioso…
— Pois era, mas o pior é o resto… — acrescentei.
— Encontrei duas cartas escondidas no forro da cómoda dele, que mandei restaurar.
— E?
— Foram-lhe enviadas em 1946.
— Mas estás a falar de quem? — indaguei.
— Do nosso avô.
— Do António Araújo?
— Sim. Quem mais podia ser? — exclamou a minha prima em voz dolente.
Fiquei a matutar naquelas palavras, que soavam a desaire.
— Ele era…
Eu não morria de amores pelo meu avô paterno. Não podia nem queria. Era apenas um estrangeiro para mim.
— Podes arranjar-me cópias?
Passados uns dias, a Rita entregou-me duas folhas amarelecidas. Duas cartas enigmáticas escritas em Inglês e Português.
A primeira missiva era do adido de Imprensa. G.M.F. Stow homenageia, a pedido do embaixador, o meu avô pelos “valiosos serviços prestados” à Secção de Imprensa “durante toda a guerra” e aproveita a oportunidade para lhe testemunhar o seu “profundo reconhecimento pessoal pela sua leal cooperação e pela confiança indefectível na nossa causa [sic] de que deu provas durante os longos e amargos dias de luta” que juntos tiveram de enfrentar.
O meu avô paterno era bancário. É possível que tenha cedido aos britânicos informação privilegiada sobre os clientes e as operações do banco. Era informador? Espião? É inútil especular. Tanto mais que a afável conclusão de G.M.F. Stow adiciona uma peça ao puzzle: “Creia V. Ex.ª que o seu apoio e amizade perdurarão na memória de quantos de entre nós tiveram o privilégio de trabalhar com V. Ex.ª”.
O anuário do Foreign Office contém apenas duas referências a G. M. F. Stow, o Adido de Imprensa.
A primeira carta endereçada ao meu avô é do Adido de Imprensa e oficial dos serviços secretos G.M.F. Stow.
Em Abril de 1942, o Tenente Geoffrey Montagu Fenwick Stow é nomeado Assistente do Adido da Força Aérea (Assistant Air Attaché) na representação diplomática britânica, em Lisboa.
Stow colaborou com o Serviço de Operações Especiais em Portugal. (Fonte: National Archives – Kew, Inglaterra.)
O Adido de Imprensa é um homem dos serviços secretos: recolhe informações sobre a aviação, oriundas sobretudo de outros países que não Portugal.
Stow também colabora em Lisboa com o Special Operations Executive (SOE — Serviço de Operações Especiais).
A carta para Stow pode ser enviada pelos canais das Operações Especiais. (Fonte: National Archives – Kew, Inglaterra)
O SOE chega a propor, por exemplo, ao Ministério do Ar um contacto com Stow através do canal reservado das Operações Especiais de forma a impedir que o Adido da Força Aérea, seu responsável hierárquico directo, tenha conhecimento da sua colaboração.
No final da guerra, Stow permanece em Lisboa. O almanaque diplomático britânico de 1946 indica que o militar assume um “appointment” do “M of I” [Ministério da Informação]. É com o estatuto de Adido de Imprensa que escreve ao meu avô.
A segunda missiva (mais formal), assinada pelo embaixador Owen O’Malley, é praticamente idêntica à primeira.
O meu avô preservou o segredo até à hora da morte, embora tenha estado do lado dos vencedores. É absurdo, para não dizer imoral, humanizar as guerras e os seus actores com ou sem mistificação, idolatria ou obra de sarcasmo.
António Pinto de Araújo
Ironicamente, passei 19 longos meses a vasculhar as existências de dezenas de desconhecidos nos arquivos nacionais e estrangeiros quando havia na minha própria família um homem secreto e uma história secreta.
Rui Araújo
in O IMPÉRIO DOS ESPIÕES, Oficina do livro – Lisboa.
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Doutorado em Sociologia, com formação académica também em História e Comunicação Social, Eduardo Cintra Torres é, porventura, o mais acutilante analista de media, comunicação política e publicidade em Portugal, mantendo colaboração frequente na imprensa, sobretudo na CMTV e Correio da Manhã. Além de investigador histórico e jornalista, ainda é professor de Estudos Televisivos e de Análise de Publicidade na Universidade Católica Portuguesa desde 2004. E abalançou-se para um trabalho ciclópico, de anos, para ‘compor’ a (verdadeira) História da Publicidade em Portugal, numa versão académica complementada com um volume ilustrado com os anúncios que seduziram gerações.
Comecemos pelo princípio: a publicidade serve para divulgar um produto, para satisfazer uma necessidade, para enganar os incautos?
Publicidade é uma comunicação, normalmente de um para muitos, que pretende ser de um para várias pessoas – que normalmente é pública – e que desde o início se destinava a promover a venda de produtos e de serviços. Depois também se alargou a informação pública, digamos assim. Por exemplo: “beba leite, porque faz bem à saúde”, ou “vacine os seus filhos contra o sarampo”. Portanto, isto é uma publicidade que é um serviço público sem haver uma transação comercial ou um pressuposto pagamento… Vamos supor que quero fazer um anúncio para promover o PÁGINA UM, ou uma associação pública, uma associação de moradores: eu sou publicitário, tenho uma agência, e ofereço o anúncio; mas oferecer um anúncio é um binário, zero e um. Há um suposto pagamento, que deixa de haver, mas o pagamento teria de existir, porque houve alguém que fez aquele trabalho. Também a sua publicação teve pagamento, como se vê no primeiro documento que está no meu livro ilustrado, da Idade Média, onde um funcionário público, que é uma espécie de RTP do século XIV, pode fazer publicidade e receber dinheiro.
Eduardo Cintra Torres numa aula de licenciatura na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Abril de 2024. (Foto: D.R.)
Embora na publicidade o objectivo seja sempre vender alguma coisa ou convencer alguém. Vês isso mais como uma tentativa de persuadir as pessoas para o bem, ou às vezes também pode ser feita para o mal?
Pode ser feita para o mal, mas desde que a publicidade se transformou numa profissão, no final do século XIX, com agências e tudo mais, houve um grande cuidado da parte dos publicitários – estou a falar das agências americanas em primeiro lugar, mas depois também noutros locais – em dizer que a publicidade não mente, não é para mentir. Quando a publicidade mente, está a ser ética e deontologicamente errada. Eticamente, porque nunca se deve mentir, seja numa profissão como a publicidade seja noutras circunstâncias quaisquer. Na deontologia, porque a deontologia da publicidade se foi formando no sentido do que se pretende é chamar a atenção do consumidor, criar o interesse das pessoas no produto, ou no serviço, que se está a anunciar, criar um desejo de cumprir o que está proposto. Isto é, comprar um produto ou um serviço, e depois levar a pessoa à acção. Como tenho estes três passos tão bem definidos, e é absolutamente fundamental que eu crie interesse, tenho de criar o desejo, ao qual deve seguir-se uma acção, que é a compra, ou o que quer que seja. Se for o World Wildlife Fund, o objectivo será dar dinheiro para o fundo, porque eles pedem isso nos cartazes. Mas não há um objectivo de enganar. Há um objectivo de convencer, de seduzir, através de um mix de informação e de ‘magia’; aquilo que se chama magia no sentido em que há um lado um pouco ficcional, não quer dizer que é mentira. Mas eu crio um diálogo entre duas personagens.
Ou seja, a publicidade tem de ser sedutora?
Sim, senão não funciona. Isso está no “D” de AIDA, que é “Atenção, Interesse, Desejo e Acção”.
Vou tentar seguir a linha do teu livro, A História da Publicidade em Portugal, durante a nossa conversa… Hoje, qualquer pessoa sabe que há uma série de canais de divulgação de publicidade, quase sempre associada à tecnologia. Sabe-se que sobretudo no século XIX, a publicidade ganhou um ímpeto com a fotografia, e no século seguinte com o cinema, a rádio e a televisão. Mas estudas a publicidade desde a Idade Média. Que “tecnologia” se usava nesse tempo?
A primeira era a tecnologia do ser humano, era a voz [risos], portanto, vocal, e a linguagem verbal. Havia uma profissão, os pregoeiros, que , em boa medida, funcionários públicos, das câmaras municipais; eventualmente, da governação ou da realeza. Tinham a seu cargo ler em voz alta, publicamente, diversas vezes e em diversas localidades uma mensagem, por exemplo, do Rei. Esses pregoeiros também faziam publicidade privada. Porque o primeiro documento do meu livro, a imagem número 1 do capítulo I, é uma decisão da Câmara Municipal de Évora, e eventualmente poderíamos encontrar ‘N’ decisões de outras câmaras municipais do país naquela altura, ou até antes. Diz que o pregoeiro, um funcionário público, pode fazer publicidade, e o processo de fazer, para “publicitação” para privados. Chega a acordo com os privados sobre o percurso que vai fazer para o anúncio daquilo que há para vender. Vamos imaginar que são bens perecíveis, que precisam de vender-se agora – naquela altura em que não havia processos de preservação –, o comerciante ou o produtor tinha de pagar 1%.
Primeiro cartaz português conhecido: cartaz da Inquisição contra Os Lusíadas, 1640. (Foto: D.R.)
Portanto, havia regras. Os pregoeiros seriam os ‘influencers’ de hoje, não?
Exactamente, eram os influencers… Quer dizer, era mais um publicitário, no sentido em que eventualmente ele escolheria os objectivos, para dizer “carne muito fresca”, em vez de dizer só “carne de vaca”. “Vejam o senhor o Senhor José Manuel das Iscas na Praça do Giraldo” – se acrescentava alguma coisa é porque era um profissional da comunicação, porque era pregoeiro do Estado; não lhe podemos chamar assim, porque ainda não havia bem Estado, mas enfim, “proto-Estado”. Mas ele fazia esse apregoamento. Por outro lado, também haveria um apregoar ‘não profissional’, pelo menos não no mesmo sentido deste; porque este já era um negócio da agência. Cobrar 1% da comissão ao vendedor veio a ser um negócio possível no século XIX.
Passou a estar escrito, a ser uma norma?
Exactamente. Depois, qualquer comerciante com interesse em vender os seus produtos, eventualmente serviços, como um professor, poderia apregoar na rua. Mas isto seria mais comum para os comerciantes que vendiam bens perecíveis, roupas, lãs; e poderiam ir para a rua, em Lisboa, dizer “chegou um carregamento de lã da Serra da Estrela”, e estavam a anunciar, a apregoar – e a dizer que a sua lã era melhor que a da loja ao lado. Portanto, já estava, de alguma forma, a promover o produto.
Aliás, há pouco dizias que a voz era a tecnologia usada, e na altura não fazia sentido mensagens publicitárias escritas, porque o analfabetismo era a norma.
Isso, por um lado. Por outro lado, não havia imprensa para reproduzir de um para um.
Mas mesmo que fosse desenhada.
Mas havia, havia letreiros e tabuletas.
Mais com símbolos do que com mensagens publicitárias.
Sim. Mais com símbolos do que com mensagens verbais. Eventualmente, diria “vinho”, “hospedaria”, “estalagem”, mas tens toda a razão; haveria um símbolo de um urso ou de um cavalo de uma hospedaria para indicar que na estrada em Santarém, era ali a estalagem. Eu pus uma gravura já do século XX no primeiro capítulo, que mostra uma rua de Lisboa onde se vê três ou quatro desses símbolos; um deles um letreiro com uma mensagem verbal. E o Alexandre Herculano, que era um historiador muito sério, provavelmente inspirado em fontes fidedignas medievais, menciona, pelo menos num dos livros, a tabuleta de animal. Era um sapo de uma tasca, e lá dentro também havia um letreiro a anunciar o vinho, que era ‘não sei de onde’.
De qualquer modo, o pregão foi evoluindo, e encontramos muito o pregão, quase até aos nossos dias, nas feiras. O vendedor das feiras que, por sua vez, está associado aos ‘vendedores da banha da cobra’; ou seja, o pregão foi perdendo credibilidade. Concordas com esta visão que associa muito a voz com os ‘vendedores da banha da cobra’?
Não; primeiro, porque nós temos pregões – ou, se quiseres publicidade feita nas ruas, e nos mercados, como com o peixe fresco: “há aqui robalo, olha a sardinha a 10 euros o quilo” – e isto é uma publicidade, muito simplificada, mas é, e não é a ‘banha da cobra’.
Cartaz Frutas de Natividade colecção ECT (Foto: D.R.)
Mas é algo que já não se vê muito?
Já não se vê muito. Mas também há os restaurantes que chamam os clientes, não é bem como pregão, mas que chamam por voz. E, por outro lado, com a chegada da rádio e depois do cinema sonoro, regressou a voz. E o pregão é o slogan, chamamos-lhe assim. E, portanto, há uma evolução; não é uma ruptura absoluta com o que vem de trás.
A partir do século XVIII ou XIX, começam a surgir mais mensagens publicitárias escritas, que tem a ver também, de certa forma, com a evolução da literacia das sociedades. Nesses primórdios, já conseguiste encontrar coisas escritas com alguma ciência, e marketing profissional, ou isso só vai surgir no século XX?
É primitivo, mas acho que é uma tendência praticamente natural. O primeiro anúncio na imprensa portuguesa, em 1715, na Gazeta de Lisboa, é de um professor de francês que chegou a Lisboa e que se anuncia. Eu analisei detalhes no livro.
Era geralmente na última página da Gazeta de Lisboa…
Era na última página, em itálico, separado com filete. Eu analisei em detalhe esse anúncio por ser o primeiro, e porque fui à procura precisamente de elementos que são, digamos, a proto-publicidade profissional. Porque o homem, quando se anuncia, tem informação factual. E o homem acaba de chegar de França, portanto, não é um tipo qualquer, é um français. E ele diz que dá aulas também a crianças, e por aí fora. Portanto, já há ali elementos, com um adjectivo ou outro, em que indicam que é necessário valorizar aquilo que se tem para oferecer, seja um serviço ou produto.
Se não me engano, na Gazeta de Lisboa já começam a surgir notícias ou informações que, na verdade, parecem mais publicidade, certo?
Não analisei isso…
Eu reparei nisso numa ou outra situação quando consultei a Gazeta de Lisboa por outras causas. Por exemplo, quando se anunciava determinado tipo de supostos produtos farmacêuticos.
Sim, mas isso eram anúncios, não eram notícias. O da água circassiana, por exemplo… Havia alguns que, de facto, era mais do que magia; era mesmo aldrabice. E foram atacados quer pelas próprias agências de publicidade, quer pelos Estados. Os Estados regularam alguma coisa da publicidade, e isso foi um dos exemplos.
Mas quando se iniciou essa regulação? Havia os anúncios falsos, certo?
Sim, mas isso é outra coisa, que eu encontrei e achei que valia a pena mencionar. E por outro lado, os primeiros anúncios impressos escritos começam em 1715, e os primeiros “fake ads” que encontrei são de 1735. Isto significa que, nestas primeiras décadas, a publicidade adquiriu já um carácter próprio – uma metalinguagem própria –, que leva a que possas gozar com ela. Assim como tu podes gozar com os ‘gajos’ que fazem relatos de futebol, ou com os políticos porque falam de uma determinada maneira, etc. Nesta altura, rapidamente aparecem falsos anúncios a gozar com os anúncios verdadeiros. Porque esses anúncios verdadeiros utilizavam já uma linguagem própria e tinham características que poderiam ser surpreendentes. Analisei três anúncios falsos, e há um que goza com o facto de haver um anúncio a dizer que se vende vegetais frescos no Mercado da Ribeira, ou num desse género. E eles gozam porquê? Primeiro, porque toda a gente sabe que existe um Mercado da Ribeira, e depois, também sabem que se vende lá vegetais. Portanto, estar a dizer isto era uma coisa estranha para vir impressa num jornal. E de repente, vir assim uma informação deste género, há aqui uma certa democratização daquilo que se está a dizer. Pode não ser a linguagem ainda, mas há uma democratização daquilo que se está dizer. Já era uma coisa comum alguém dizer que tinha para vender, por exemplo, canela que veio da Índia, mas aparecer no mesmo jornal que diz que o Rei fez isto ou aquilo, ou que há uma guerra entre a Rússia e a Prússia. Portanto, há uma democratização, que depois explode no século XIX.
Com dois dos seus livros ‘gémeos’, no dia em que os recebeu, em Novembro de 2023. (Foto: D.R.)
Mas no início, as pessoas estranhavam?
Não temos informação sobre essa recepção. Mas estes anúncios falsos são precisamente um sinal que mostra que as pessoas deveriam achar surpreendente, não só aquilo que se anunciava, como a forma como se fazia. E com um determinado tipo de linguagem para chamar a atenção, criar o interesse e o desejo para levar as pessoas a comprarem. O anúncio francês, na página 45, diz: “faço aviso de pessoas curiosas de língua francesa, haver chegado a esta corte há pouco tempo um estrangeiro, apelidado de Villanueve, francês de nascimento, natural da cidade de Paris, o qual fala línguas latina, alemã, italiana, castelhana e portuguesa. E tem um método muito fácil para ensinar em pouco tempo toda a sorte de pessoas, tanto às crianças de cinco para seis anos ou aquelas que quiserem serviço do seu expresso”. Portanto, como se pode ver, há aqui já essa protolinguagem.
É sobretudo com o liberalismo no último quartel do século XIX que a publicidade explode, também um bocado por causa da burguesia endinheirada e mais culta, e começam a surgir os primeiros jornais. Essa foi uma corrente generalizada em todos os periódicos que analisaste, ou havia uns que eram como o PÁGINA UM, e não tinham publicidade? [risos]
Exactamente. A explosão da imprensa, com a liberdade de imprensa em 1820, faz-se com o modelo da altura nos jornais periódicos, que é: os jornais eventualmente vendem-se numa loja, na tipografia, ou em uma ou duas livrarias; é no espaço da cidade, porque não há comboios, e não há maneira de transportar facilmente as coisas. E o modelo de assinaturas, que é vital. E por isso é que, naquele “cemitério de imprensa”, sobre o qual escreveste no outro dia, há muitos. Há publicações periódicas que só tiveram o número zero. Porquê? Porque era um número-prospecto, que fazia com que depois tu dissesses “este jornal é bestial, vou assiná-lo”. Havia muita gente que assinava e depois não pagava, isso está mais do que documentado e, portanto, os jornais depois acabavam por fechar, por várias razões. Uma delas era porque era feito só por uma pessoa, e às vezes ele suspendia o jornal porque ia sair para férias, ou sair de Lisboa. Portanto, era uma coisa muito pouco profissional, mas era aquela coisa de “vou aproveitar a liberdade para falar e escrever as minhas ideias”. Além disso, a maior parte dos jornais eram o que se chamava “jornais de partido”. Eram feitos por um grupo de amigos da mesma linha política, da mesma loja maçónica, ou que se encontravam no mesmo café, e faziam a publicação. Portanto, não era uma coisa altamente profissional.
Ou seja, quase todos eles começaram, digamos, por um grupo de amigos. Mesmo, por exemplo, o Diário de Notícias. Ou aí já foi diferente, e já havia uma intenção de um grupo de investidores de fazer um jornal que não era para morrer dali a uma semana?
O primeiro jornal que tem um modelo moderno é “O Português”, do Almeida Garrett e do Paulo Midosi. Eles começam como um jornal de assinaturas, profissional. Diz que tinham imensa gente a trabalhar para o jornal. Tinham imensos assinantes e, portanto, a coisa estaria a funcionar bem. Mas eles não pensaram em publicidade, porque na altura não era uma coisa em que se pensasse automaticamente. O primeiro anúncio só aparece no número 6 ou 7, e é de um tipo português que está na Alemanha e que oferece quartos para portugueses que queiram ficar lá, com refeição e tudo. Se calhar até é uma coisa de um português estrangeirado que quer utilizar um jornal português para anunciar publicitariamente. Só a partir daí, parece que eles ficaram “epá, esquecemo-nos disto”. Aquilo depois não tem desenvolvimento, porque vem o Miguelismo e as lutas políticas, que impedem o desenvolvimento do jornal. A seguir, aparece o “A Revolução de Setembro”, que é um jornal altamente politizado quando aparece, mas que vai evoluindo para um jornal com uma linha política, mas mais de informação geral. Entretanto, também aparece no Porto o “Comércio do Porto”, da burguesia local, e que só se vendia na sede do jornal; que é uma coisa completamente bizarra para nós hoje, mas na altura não era.
Cartas relativo a livros escolares (Foto: D.R.)
Ainda não havia ardinas, nessa época?
Não; é precisamente o Diário de Notícias que introduz o modelo moderno da publicidade em Portugal. Em 1864, saem dois prospectos, que eles chamaram dois números-programa, se não me engano, mas também prospectos, no dia 29 e 30 de Dezembro de 1864, e depois no dia 1 de Janeiro de 1865, saiu o número 8. E é uma das razões principais por que eu começo o terceiro capítulo em 1865. Porque é que é um novo modelo de negócio? Porque eles fazem uma coisa de tipo empresarial; que para se vender tem de ser apolítica, no sentido em que é apartidário. E é por isso que não tem artigo de fundo, não tem editorial. Não quer dizer que seja totalmente apolítico, porque isso é impossível, mas é bastante. E tem uma empresa, e baixam o preço. Fazem um jornal diário por 10 réis, quando alguns jornais vendiam a 40 réis. Já tinha havido experiências de vender jornais mais baratos, mas eram coisas menos profissionais e não de informação geral. E criaram a profissão de ardina, que já era anunciada no futuro concorrente, na “Revolução de Setembro”. No final de Dezembro de 1864, há um anúncio a dizer que vão precisar de rapazes, e o Diário de Notícias depois volta a pedir mais em Janeiro.
Mas não identifica ?
Eu acho que identifica, diz “Diário de Notícias” no título.
Mas esse modelo foi importado?
É importado de França. Portanto, temos isso, temos também a ligação à Europa por comboio em 1864, temos os primeiros desenvolvimentos do caminho de ferro em Portugal, que começa com Dom Pedro V. E o Diário de Notícias no princípio tem poucos anúncios, mas rapidamente ganha uma grande dimensão. O Comércio do Porto já era um jornal assim, só que não se vendia nas ruas, e a Revolução de Setembro, em Lisboa, também não.
Conseguiste saber qual seria a tiragem nessa altura, em 1860?
Sim, eles dizem, não escondiam isso. Ao fim de um ano, o Diário de Notícias vendia uns poucos milhares já.
Ou seja, seguramente vendia mais do que hoje.
De certeza!
E com uma população muito menor, e com uma baixíssima literacia.
Está aqui: a Gazeta de Lisboa chegou aos 2.500 exemplares entre 1742 e 1748. O Grátis, que era um jornal de publicidade – isso é outro capítulo do livro – tirava 2 mil exemplares, mas é um tipo de imprensa diferente. O Diário de Notícias, com três meses de existência, vendia diariamente mais de 6.000 jornais.
Começou com quantas páginas?
Eram quatro páginas, como a maior parte dos jornais. E a tiragem subiu para quase o dobro, 9.600, ao fim de um ano.
Falavas dos jornais gratuitos, e também gostava de falar dos almanaques. Eles viviam basicamente da publicidade, certo?
Há alguns almanaques que têm muita publicidade, e pelo que eles escrevem nos primeiros números, percebe-se que vivem através da publicidade. Mas o almanaque era uma coisa extremamente popular. Há almanaques católicos reacionários, operários, socialistas, ou da alta burguesia. No Porto, há um que é o almanaque do Highlife, da alta sociedade.
Que tipo de textos tinha?
Tinham listas de pessoas, de moradas de serviços públicos, de lojas, empresas ou fábricas. Punham os horários dos comboios, e dos transportes públicos. Tinham o calendário e a lista dos Santos, as estações de correios.
O Estado ao ver esse negócio a florescer, se calhar quis meter o dedo, ou não?
Sim. É uma história interessante, e até tem a ver agora com este delírio que tem havido com a questão da imprensa e do Estado.
(Foto: D.R.)
Também havia uma Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) do século XIX? [risos]
Havia a censura, na altura.
Mas havia necessidade de registo, ou era mercado livre?
Não, não havia registo. Mas quando as coisas crescem nas sociedades precisam de ser organizadas, senão é o caos. Portanto, inicialmente quase não havia jornais, portanto não havia nada disso, mas depois começa a haver autorregulação. Começa a haver a Associação de Jornalistas do Porto, a Associação de Jornalistas de Lisboa…
Ainda no século XIX?
Nessa altura, acho que teria de haver algum registo, porque os jornais tinham de pagar o imposto do selo, que é o primeiro imposto que há em Portugal, enquanto tal. Julgo que vem da Inglaterra e rapidamente é adoptado em Portugal [risos]. Porque uma coisa que vai ‘sacar’ dinheiro às pessoas é logo bem-vindo pelo Estado. Acho que é no reinado de D. Afonso VI, se não me engano. Depois, a seguir à Revolução Liberal, há um movimento com Mouzinho da Silveira – que era um tipo muito esperto –, com o apoio de outros deputados, para fazer com que o imposto do selo não fosse aplicado à imprensa. Ele disse que isso seria o fim da imprensa e, portanto, o fim da liberdade. Era neste ponto de vista que estávamos, e que acho que seria interessante os políticos de hoje, e até os jornalistas, estudarem esse período. E isto aconteceu: os jornais foram parcialmente isentos do imposto do selo, o que foi favorável ao desenvolvimento da imprensa. E em França tinha havido a mesma discussão, e lá também não foi tão alto quanto o Governo quereria.
Portanto, os jornais e a publicidade vão crescendo de mãos dadas ao longo do século XIX, certo?
Sim, ao longo do século XIX, a maior parte dos jornais – mesmo os regionais ou concelhios, e se calhar os mais partidários – começou a querer utilizar a publicidade como fonte de financiamento.
E tal como começou a haver, pelo menos nos jornais principais, jornalistas profissionais, também a publicidade se foi profissionalizando?
Sim. Essa parte eu não desenvolvi. Num outro livro meu sobre a greve geral de 1903 no Porto, escrevi um capítulo grande sobre a produção noticiosa. O jornalista era o tipo que estava sentado na cadeira, entregava as folhas e alguém ia levar lá abaixo à tipografia. O jornalista era o que estava sentado na secretária, o que ia para a rua era o repórter, e havia os informadores. O repórter era o tipo que ia investigar, e depois ainda havia o informador, que era o nível mais baixo. E isto originava um pagamento a este informador. Portanto, havia esta estrutura, mas isso depois foi rapidamente alterado. O sector da publicidade começa-se a profissionalizar em Portugal, quando em 1864-65 aparecem as primeiras agências de anúncios, podemos chamar assim. Eram agências de publicidade, mas chamam-se agências de anúncios porque não tinham necessariamente a parte criativa. Compravam o espaço, por exemplo, uma página do Diário de Notícias, e depois ganhavam dinheiro a revender aquele espaço a quem quisesse.
Aliás, os jornais ainda do nosso tempo tinham e têm pequenos anúncios e até recepcionavam anúncios individuais…
Exactamente. Mas isto era para todo o tipo de anúncios. E há um tipo muito famoso, sobre quem eu desenvolvi a investigação o mais que pude, que é o Brown Peixoto. Ele criou a primeira agência de anúncios, da qual saiu e depois criou a Agência Primitiva de Anúncios. Primitiva, porque era a primeira. Ele reclamava ter sido o criador da primeira, mas teve que a abandonar e, portanto, depois faz a Agência Primitiva. Foi muito famoso porque trabalhou muito com o Diário de Notícias, que o promovia muito. Promovia-o no sentido de publicar artigos sobre ele, sobre o seu profissionalismo, a sua honestidade, etc. Porque era também uma maneira de promover a publicidade no Diário de Notícias e de legitimar a publicidade, que era uma coisa extremamente importante naquela altura. A publicidade precisava de ser legitimada como algo necessário à sociedade, aos indivíduos, à burguesia, ao desenvolvimento económico e, portanto, ao país. Era uma coisa quase patriótica. E isso está muito bem apanhado em alguns textos que eu consegui encontrar. E a primeira defesa que eu encontro bastante sólida e robusta da publicidade, é precisamente num almanaque de 1865. Por isso, mais razão para começar o capítulo ali. E depois, as agências começam a ser criativas. Este tipo que tinha a Agência Primitiva, depois dizia “nós fazemos o arranjo gráfico, ajudamos na escrita do texto”… partir daí, desenvolve-se a agência tal como nós viríamos a conhecer mais tarde.
(Foto: D.R.)
Como canal, a imprensa foi óptima para a publicidade. Mas ainda antes da nova revolução do cinema e da rádio, e para além da imprensa, a publicidade foi-se desenvolvendo de muitas outras formas mesmo ao longo do século XIX…
É extraordinário, porque a publicidade foi altamente expansiva, para todos os meios possíveis e imaginários. E por todos os meios, digamos técnicos ou materiais que fosse possível utilizar. Podemos ainda falar da imprensa, no sentido de impressão, e temos em primeiro lugar o cartaz, que é extremamente importante e que se desenvolve particularmente depois da litografia permitir a impressão a cores com alguma facilidade. E que convidava a que fossem artistas a fazer porque era desenhado na pedra. E, portanto, não era qualquer um; já não era o tipógrafo que arranjava as letras, para fazer um anúncio de texto verbal. Também já falámos dos almanaques. Havia todo o tipo de materiais impressos, desde copos de piquenique – que eu reproduzo no meu livro – que os burgueses levavam; em vez de serem de vidro, eram copos de papel. E, portanto, todos os materiais impressos possíveis e imaginários, todos os locais para colocar esses papéis, as paredes, as estações dos comboios, e mais tarde também nas estradas, vemos anúncios impressos. Nos panos de cena dos teatros, também, às vezes em forma de cartaz, ou em outros formatos. E depois havia ainda loiças, azulejos, objectos utilitários como talheres, cinzeiros e pratos, mata-borrão, que aparece mais tarde… Postais ilustrados.
Mas, além disso, como se fazia publicidade nas ruas, para atrair clientes no imediato? Se percorrêssemos, por exemplo, uma zona no centro de Lisboa, como eram as fachadas das lojas?
As lojas também ganharam, elas próprias, individualidade. Porque as lojas antes não tinham nomes, e nós vemos isso nos anúncios. “Vende-se na rua tal, na casa do Zé Fernandes, na Rua dos Correeiros”.
Pois, era a ‘casa de’ em vez de ser a loja com um nome próprio…
Sim. nessa altura a ‘casa de’ não surgia no sentido de casa comercial. Devia ser duas coisas, mas não tinha nome. Agora as lojas têm nome, uma fachada, depois começariam a ter montras, que também não tinham nessa época
E uma montra é publicidade?
Sim. Mais tarde passou a haver também concursos de montras, e especialistas nisso.
Ainda no século XIX?
Quer dizer, já havia montras, mas profissionais, só localizei no princípio do século XX. E com grande desenvolvimento no fim dos anos 20, com o Fred Kradolfer, um suíço que estudou publicidade, provavelmente teve contacto com Bauhaus e tudo; o design da publicidade, digamos, mais evoluída, e que fazia as montras do Instituto Pasteur em Lisboa. E os publicitários iam todos lá. Quando havia uma nova montra, juntavam-se todos para ir ver as montras do Kradolfer no Instituto Pasteur.
Ou seja, aquela ideia de ir passear à rua, passear era também para deslumbrar as montras das lojas.
Mas as montras já vinham de antes. Eu não sei se pus [no livro] a citação da ruiva do Fialho de Almeida, em que a ruiva e o seu namorado descem ao Chiado e vão ver as montras. E estamos a falar de 1880, e essas montras estavam, de alguma forma, iluminadas. Além disso, havia muitas tabuletas e muitos letreiros, mas isso já se conhece desde o princípio do século XIX, daquele célebre Taful de Luneta de 1806. E que eu analisei em várias páginas, porque é magnífico. É a melhor amostra que nós temos de anúncios em Portugal até ao século XX já muito avançado.
Antes de irmos para a publicidade no Estado Novo: havia alguma regulação no sentido de evitar, ou a publicidade enganosa, ou a comparativa, do género “este é melhor do que o outro”?
Eu só conheço autorregulação. Por exemplo, o Diário de Notícias era muito claro a dizer que rejeitava determinado tipo de anúncios, ou insultos nos tais pequenos anúncios. Esses anúncios é que são a revolução democrática da publicidade.
(Foto: D.R.)
Um bocadinho como está a acontecer com o Facebook?
Ou o OLX e o LinkedIn, em que as pessoas se oferecem para trabalhar. O que é aquilo senão o anúncio classificado de há 150 anos? É a mesma coisa. Como o professor francês do século XVIII; se fosse hoje, estava no LinkedIn [risos].
Mas podia-se fazer publicidade comparativa, dizendo-se por exemplo “eu sou a melhor casa”?
A publicidade comparativa é uma coisa mais americana. Eu encontrei um caso ou outro, mas em que às vezes não mencionava o concorrente. A ideia de defender o consumidor é inerente ao desenvolvimento do capitalismo. E, portanto, há anúncios em que se começa a ver a palavra “consumidor” no século XIX. Dou o exemplo de um anúncio que eu reproduzi no livro, do sabão Frade de Gaia, em 1896: “Resolvemos criar esta marca especial de sabão que ofereça ao consumidor absoluta garantia. Os consumidores encontram neste sabão qualidades especiais que muito recomendam o seu consumo”. E prosseguem: “para absoluta garantia do consumidor, todas as barras de sabão levam imprimidas em alto relevo o busto do Frade, que nos transmitiu o principal segredo da sua fabricação”. Isto poderá ser treta, mas é muito interessante aqui o discurso, e não a realidade do produto, que não podemos avaliar. Mas esta questão do consumidor, de facto vai-se desenvolvendo. Há anúncios da CUF, já no século XX, que também falam do consumidor como a instância que é preciso defender. Seja pelo preço, pela qualidade do produto, ou porque é português e não estrangeiro.
Portanto, aquele conceito moderno de o cliente ser um parceiro do negócio?
Sim. Também encontrei uma defesa do consumidor, julgo que de 1925, do final da Primeira República, em que um Governo fala da defesa do consumidor, não com esta expressão, mas quase. E depois tens a defesa do consumidor contra a imoralidade e os maus costumes, que começa logo com a ditadura, ainda antes do Estado Novo.
O Estado Novo está, obviamente, muito associado à censura. Mas o regime também exerceu censura sobre a publicidade?
Havia essa possibilidade de censura; na imprensa, não sei como é que era feita. Não encontrei referências a publicidade que fosse sujeita a censura. Os publicitários não queriam fazer política, tratava-se de uma relação comercial, e não iam fazer publicidade que fosse sujeita a censura na imprensa.
Nem em livros de História sobre o Estado Novo?
Há na rádio e também depois no cinema. Porque a rádio é um meio que, se calhar, é mais perigoso do que o jornal, no sentido em que a mensagem chega de uma maneira diferente, mais próxima do ser humano, porque utiliza a voz de uma pessoa. E, portanto, eu registei correspondência da censura para uma rádio do Porto. E também entrevistei uma pessoa que me disse que os textos, antes de gravados, tinham que ir ao Secretariado Nacional de Informação [SNI] para ser aprovados. E o SNI era muito rápido a aprovar ou a rejeitar. E uma das rejeições que está registada no meu livro, nessa rádio do Porto, é a defesa do consumidor. Eventualmente utilizaram alguma linguagem excessiva para o que os censores achavam que era legítimo fazer, mas há outras que é para defender os consumidores. Ou porque o preço está errado, ou a mensagem tem uma informação que não poderia dar…
(Foto: D.R.)
É sabido que o Estado Novo usa a publicidade também como estratégia política. O Secretariado de Propaganda Nacional [SPN] acaba por ser uma agência de publicidade do Estado, que transmite a visão do país que Salazar quer que se tenha. Eles tinham bem enraizado esse conceito de que a publicidade pode ser uma arma política?
Eu acho que não é “eles”, é “ele”, o António Ferro. Acho que o António Ferro teve, de facto, uma importância enorme nas primeiras décadas do salazarismo. Quase até se quase pode dizer que é o inventor do salazarismo. E uma das coisas que ele fez foi transformar o SPN, desde logo, numa espécie de agência de publicidade que fazia a propaganda. E era difícil de distinguir onde começava a propaganda e acabava a publicidade. Se fizessem um cartaz a dizer “Come to Estoril – Always Sunny”, isto é propaganda ou é publicidade? É publicidade e é feita pelo SPN, que conseguia assim alimentar artistas. Os artistas, mesmo que não gostassem do salazarismo, trabalhavam para uma instituição do salazarismo que lhes dava rendimentos, honorários. E, portanto, todos eles acabavam por trabalhar para o salazarismo.
Mas encontras muitos homens da Cultura que depois acabavam por trabalhar na área?
Todos. Antes da II Guerra Mundial, todos. Enfim, não sei se haveria nessa altura artistas comunistas, por exemplo, ou socialistas, que fossem conhecidos publicamente e que fossem rejeitados. Não há notícia disso antes da guerra. Depois da Guerra é diferente, porque aí há um corte radical na atitude dos artistas em relação ao regime. E quando há um deles que permanece, e que defende o trabalho do SPN, já há outros que estão um bocadinho contra isso.
Na literatura, sobretudo no século XX, surgem livros com capas trabalhadas.
Não abordo muito isso no livro, porque a capa não é, digamos assim, uma forma de publicidade directa. Não tem uma mensagem comercial; as capas não têm sido consideradas como publicidade.
Temos homem da Cultura e muito da Literatura na publicidade. Alguns com frases famosas, como a da Coca-Cola, que se diz ser de Fernando Pessoa: “primeiro estranha-se e depois entranha-se”. Mas também é conhecido, por exemplo, o trabalho publicitário de Alexandre O’Neill.
Ambos foram publicitários. Mas na altura do Fernando Pessoa era diferente. A frase não é exactamente assim, essa é uma versão mitológica.
Então qual é a versão real?
A frase é: “No primeiro dia, estranha-se; no quinto dia, entranha-se”. Esses anúncios saíram na imprensa, em dois ou três jornais; a uma coluna e com um ou dois centímetros de altura no máximo. O primeiro dizia “na próxima semana já se pode tomar a célebre bebida americana Coca-Cola”. Outro dizia “o refresco americano Coca-Cola bebe-se nos principais estabelecimentos chiques de Lisboa”. E depois, a 16 de Julho de 1927, aparece o anúncio com o slogan escrito por Pessoa. Este foi publicado algumas vezes. O que acontece é que ele fez publicidade, e tento mostrar que a publicidade era algo de natural, digamos, ao Fernando Pessoa. Para ele era uma coisa perfeitamente normal fazê-lo. Na própria poesia. Depois recupero alguns elementos do Álvaro de Campos com publicidade. O primeiro texto que se conhece de uma proposta de uma campanha publicitária é escrita por Fernando Pessoa, para desenvolver o turismo na Costa do Sol. Aquilo que acontece em relação à campanha da Coca-Cola é que depois a bebida foi proibida por um grande defensor da saúde pública, o director da Saúde de Lisboa, Ricardo Jorge. Foi ele que mandou apreender o produto existente no mercado e deitá-lo ao mar. Pessoa, ao que parece, achou o máximo, porque Ricardo Jorge utilizou o próprio slogan para dizer que, se se entranha, é porque é viciante e, portanto, é uma droga. Portanto, Ricardo Jorge utilizava a linguagem publicitária de Fernando Pessoa, o slogan, como um dos argumentos para proibir a Coca-Cola. Mas, e eu falo disto no livro, pode ser que também tenha havido um interesse do Governo na altura de diminuir as importações, porque a Economia portuguesa estava péssima em 1926. Até houve Governos a cair por causa disso.
(Foto: D.R.)
Então, não foi o Estado Novo que proibiu?
Não, em 1927 não foi o Estado Novo. Foi o Director-Geral de Saúde do período da ditadura.
E no caso do Alexandre O’Neill?
Alexandre O’Neill era publicitário. Os anúncios que se conhecem dele são mitológicos também. O “há mar e mar, há ir e voltar” é uma publicidade de serviço público, para as pessoas terem cuidado quando vão tomar banho. E o outro, que ficou mitológico por causa do ‘sexualismo’, que é o “Bosch é bom”. Mas, anúncios feitos por ele, não está investigado mais que isto. Eu conheço dois “anúncios” feitos por ele, que são os textos de dois filmes publicitários; o que é excelente. Um é o texto de um filme do Fernando Lopes, que se chama “Vermelho, amarelo e verde”, e é para a prevenção rodoviária portuguesa, por causa dos semáforos, que eram uma novidade em Lisboa. E depois há um outro texto, que é um horror, para o Aviário do Freixial, que era uma empresa altamente moderna, que vendia milhares de frangos por mês ou por dia. E ele fez o texto para o filme de 10 minutos. E é péssimo, mau em todos os sentidos.
Mas havia muitos escritores na publicidade, nesta altura. Havia artistas gráficos, pintores, aguarelistas, designers. Depois, começou a haver escritores e jornalistas, etc., porque o regime fascista proibia intelectuais e licenciados de serem professores ou trabalharem no Estado. E, portanto, eles iam trabalhar para agências de publicidade. E nas agências de publicidade, ou eram também pessoas do contra, que eram proprietárias e directores, ou estavam-se nas tintas. Aquilo que queriam era pessoas que tivessem qualidade no trabalho. Eu apresento uma lista, no meu livro, de escritores, hoje considerados melhores ou piores, que trabalharam na publicidade e chegaram a ser donos de agências, como o Alves Redol, o pai do António Costa, o Orlando Costa, que também foi publicitário e foi proprietário de uma agência. Aliás, por ironia do destino, o comunista Orlando Costa foi saneado da sua agência depois do 25 de Abril. E não foi antes [risos]. Não foi “atacado”, enquanto publicitário, pelo Estado Novo. E há outros. A nossa antiga camarada jornalista, Diana Andringa, de extrema-esquerda, foi presa na agência. E, portanto, eu digo que provavelmente isto fez com que houvesse menos anticapitalismo em Portugal na parte da intelectualidade, porque eles estavam a promover o capitalismo. Fiz essa pergunta à Diana Andringa e ela fugiu um pouco à questão, porque se calhar nunca lhe tinha ocorrido que sendo publicitária, como forma de vida, estava a promover o capitalismo.
Esse novo elã da publicidade também ganha força com a Rádio e a Televisão. É aí que rapidamente se moderniza a linguagem?
Bem, a rádio traz logo a oralidade e traz a música, e uns textos curtos – já não podem ser textos grandes, como havia muito nos anúncios na imprensa. Não tive qualquer maneira de estudar o impacto da publicidade radiofónica no conjunto da criatividade publicitária, mas era uma área muito importante. Até porque havia programas patrocinados por marcas; isso está tudo no meu livro. A televisão é que traz um corte de conhecimento, de criatividade, e de maneira de pensar a publicidade. Há um antes e um depois da televisão. A televisão vai influir na própria maneira como os publicitários pensam em toda a publicidade. Ou seja, se eu fizesse um anúncio para um refrigerante, estaria a pensar no spot publicitário de televisão. E, depois, transferia essa linguagem para os anúncios de imprensa e de rádio. Portanto, de facto, a televisão revoluciona o panorama.
E, às vezes, mesmo que uma campanha tenha vários canais, na verdade ela repete aquilo que a pessoa apreendeu no anúncio da televisão, não é?
Sim, e lembrar-te-ás exactamente dos anúncios que diziam “anunciado na TV”. Portanto, o resto da publicidade espelhava isso. Tenho entrevistas que dizem isso, e que estão no livro. Portanto, também traz a simplificação, a redução do número de palavras; e o reforço do slogan. Traz uma certa narratividade, de novo, que já existia na imprensa no século XIX. E, depois, traz a ligação da imagem e do som com a linguagem verbal, que torna tudo completo. Porque tu podes mostrar o produto, e podes mostrar a sopa a ser feita, e o carro a andar, e a roupa a ser lavada. Portanto, isso foi uma alteração absolutamente extraordinária que a televisão trouxe, e acabou um bocado com os filmes publicitários de 10 minutos que passavam no cinema.
Hoje, qualquer pessoa da nossa idade se lembra dos anúncios da Telecel, Pasta Medicinal Couto… Houve uma época de ouro da publicidade em Portugal?
Acho que há uma época de ouro, porque coincide também com a época de ouro das agências, que vai desde o fim dos anos 50 até aos anos 80 e 90. Há uma época de ouro com o anúncio publicitário, porque também havia uma concentração da nossa atenção no media televisivos, e depois deixa de haver. Portanto, víamos muitas vezes os mesmos anúncios. Há uma época de ouro de criatividade, em que a criatividade era um pouco independente do próprio produto. Era importante que passasse a mensagem, que chamasse a atenção. Deves ser muito novo para te lembrares, mas havia um anúncio que eram dois crocodilos a falarem um com o outro, durante uns 20 segundos. E, se não me engano, era um anúncio de lâminas de barbear que tinham o símbolo do crocodilo. Não diz que a lâmina é boa, que dá para fazer a barba 30 vezes com a mesma lâmina, nada disso. São dois crocodilos a falarem um com o outro. Esse tipo de criatividade, julgo que desapareceu. E havia muito essa magia; a publicidade tinha um elemento mágico forte, não no sentido de mentira, mas de hipérbole, de ficção, de boneco animado. E isso acabou. Mas essa era acabou. Outro exemplo de hoje: recentemente apareceu por todo o lado o anúncio do Ikea, que brinca com a história dos 75.800 euros. Está muito divertido, e nos dias de hoje aquilo é completamente fora da caixa. E o que é interessante é que no Facebook, a única rede que eu sigo, houve várias pessoas que chamavam a atenção para isso. “Até que enfim que há um anúncio que sai da caixa, que não é mais do mesmo, que tem coragem”. Pode ser que agora os jovens publicitários acordem para a necessidade de chamar a atenção, porque se for sempre a mesma coisa, não chamam a atenção. E isso é o erro mais crasso da comunicação. Isto é básico. A necessidade de chamar a atenção não é da publicidade, a publicidade apenas codificou este processo. “Atenção, interesse, desejo, acção”. Mas isto está em toda a comunicação, até quando conversamos um com o outro no café. Mas a publicidade perdeu um bocado este sentido de acção.
Se calhar é um sinal dos tempos. A publicidade tem agora medo de ofender?
Sim, tem. Há uns 10 ou 20 anos, a publicidade quis ofender, e ofendeu, e ganhou com isso; porque chamava muito a atenção. Se eu criar um anúncio para um sítio público, vamos imaginar que no Marquês de Pombal. E eu ponho lá uma coisa ofensiva ou que choca – se não sair nos jornais, as redes sociais vão comentar. E o que é que acontece? Em vez de gastar, por exemplo, 100 mil euros em publicidade, eu paguei à agência, mas só coloquei num lugar do país. Foi o que começou a fazer a Iniciativa Liberal [IL] quando apareceu há três anos: só tinha um exemplar do anúncio, mas como aquilo era fora da caixa, houve uma ‘viralização’ de um único anúncio. E não foi só a IL que o fez; antes, houve outras marcas a fazer. Eu lembro-me de anúncios desse género em Paris, em Nova Iorque, de marcas grandes, como a Calvin Klein… Mas isso acabou, porque entretanto, veio um pouco a cultura do cancelamento, “woke”, que é uma tendência social de algumas gerações. Houve gerações que começaram a ficar ofendidas com tudo.
E achas que isso vai passar?
Em parte, acho que sim, porque tudo passa. Mas se levarmos a sério as redes sociais, ou aquilo que as pessoas lá põem, continuará, em parte. Eu acho que a falta de criatividade e o tal medo têm a ver também com uma certa normalização da actividade. Hoje, já são pessoas que saíram da universidade; já não é o Sttau Monteiro, nem o Ary dos Santos, que subia às mesas com os clientes lá e tudo. Isso acabou.
E se calhar hoje são mais formatados.
Em parte, sim. Mas entram às 9 horas e saem às 17. E os outros não. Passavam noites inteiras, se fosse preciso, a fumar e beber e a fazer outras coisas, a criar e a tentar ser o melhor possível. Eu mostro casos desses, como o do Porto Ferreira: foi Maria Eduarda Colares, que morreu no ano passado, que criou. E foi um processo, não foi fácil criar esse slogan, que é extraordinário e que servia a função; porque era preciso pôr as pessoas a beber. Havia um estudo de mercado que mostrava que os portugueses não bebiam vinho do Porto; era uma prenda que se oferecia, e não se abria a garrafa. Depois oferecia-se a outra pessoa, e chegava a haver garrafas que passavam por 6, 10, ou 15 pessoas [risos]. Portanto, era preciso criar a magia de abrir a garrafa. Foi o que eles conseguiram e, de facto, o consumo do Porto Ferreira, e das outras marcas, aumentou extraordinariamente. E ela também me contou outras cenas em que passavam a noite inteira a criar anúncios. Um dos episódios foi quando, uma vez, ela foi para casa, e os colegas ficaram toda a noite na agência porque tinham de criar um slogan e um anúncio para o Mokambo. A Nestlé tinha dito que ia descontinuar o produto se não aumentasse as vendas. No dia seguinte, ela chegou à agência e saiu-lhe o slogan da ‘boca para fora’: virou-se para os colegas, que estavam todos podres de sono, e disse “vá lá, diga bom dia com Mokambo”. E o produto ainda aí está.
Eduardo Cintra Torres numa ‘selfie’ tirada junto do cartaz de Raul de Caldevilla para as bolachas Invicta (1917), no alfarrabista Chaminé da Mota, Porto. (Foto: D.R.)
Como vês o futuro da publicidade? Daqui a 100 anos, a publicidade pode ser diferente da que temos hoje?
Não costumo prever o futuro. O que posso falar é como eu a vejo hoje. E isso dá um sinal de tendência. Hoje, a publicidade está muito dispersa, muito na Internet, não está particularmente criativa. Arranjou novos canais que tiveram e têm grande sucesso, com as influencers, em que parece que não há magia. Portanto, a magia, de facto, sofreu um downgrade total. Porque já não tem dois crocodilos a falar em desenho animado; tem uma menina que está a vender, imaginemos, esta caneca com água. Mas ela está a vender e aquilo foi feito por um fotógrafo profissional, ela está vestida de determinada maneira, num determinado lugar.
Por acaso essa caneca que estás a usar é porreira para beber chá [risos].
Isto é publicidade [risos]. Mas, portanto, a influencer vende isto como se não fosse publicidade, não tem aquela mensagem. Depois, existe a noção, que será em parte, ou totalmente, verdadeira, de que as novas gerações não querem ser enganadas pela publicidade. E, portanto, ao não quererem ser enganadas pela publicidade, também haverá uma rejeição em todos os graus da criação publicitária, da publicidade mais mágica, com mensagens fora da caixa. Depois tens um lado mau que é, se os anúncios forem 30 segundos, a agência cobra X, se forem de oito segundos, a agência cobra muito menos. Portanto, quer é fazer anúncios grandes. E criam dificuldades aos anúncios mais pequenos. Os próprios criativos acham que não é possível contar uma história em oito segundos, o que não é verdade. Houve um concurso de mini-contos com Hemingway e outros autores, em que eles tinham de escrever histórias com seis palavras. Era uma narrativa. E, portanto, não consigo perceber esta economia, era uma questão de se alterar, mas provavelmente demorará tempo. E finalmente, há outra coisa, que também me disseram. Antigamente, o criativo lidava com pessoas nas empresas. E eram pessoas que – como disse a Maria Eduarda Colares, a mulher do Lauro António – gostavam do produto, respeitavam-no, conheciam-no, trabalhavam para o produto, e respeitavam os publicitários. E não percebiam de publicidade; se calhar nem sequer eram formados em marketing. Agora, são pessoas mais jovens, que nunca trabalharam em empresas, digamos assim, noutros lugares, e fazem com que os anúncios sejam criados para os seus pares. E quem são os seus pares? São uma geração de uma determinada idade, que vai ao Bairro Alto ou para a Baixa do Porto beber uns copos. Jovens papás ou mamãs que gostam de determinadas coisas, e que não são a esmagadora maioria da população. Portanto, aquilo eventualmente falha o público-alvo. Por isso, agora ligamos a televisão para ver anúncios, e não gostamos de nenhum. Enquanto eu e a minha geração, ainda antes do 25 de Abril ou depois, víamos os intervalos mais do que os programas, e decorávamos os anúncios. E adorávamos os anúncios e falávamos deles. Porque era uma linguagem nova para nós, mas também porque eram criativos e interessantes.
Virando aqui um bocadinho a tónica para a política: qual dos nossos políticos no activo, daria um melhor trabalhador de uma agência de publicidade? [risos] Todos eles têm publicitários a trabalhar para eles, certo?
Teria de ser um publicitário a dizer. Mas acho que o mais eficaz, e mais livre de um discurso preparado por agências de comunicação, é o [André] Ventura. O grande sucesso do Chega é o grande sucesso do Ventura como comunicador. Para nós, a política é a comunicação; em democracia, a política é a comunicação.
E é o político mais eficaz? Achas que ele é um produto de comunicação?
Absolutamente. Para já, ele tem um doutoramento. Depois, fez política no PSD, fez comunicação de futebol na CMTV, e há vários anos que tem o seu próprio partido. Ele criou uma comunicação que é bastante própria, que é ‘partir a louça’. Utilizar frases curtas, de uma grande eficácia comunicativa. Não estou a dizer se gosto ou não gosto; pode ser altamente populista, e muitas vezes é. Mas que é eficaz, é, como mostram as sondagens [esta entrevista foi gravada antes das eleições de Março].
As eleições vão-se cada vez mais decidir por essa parte de mensagem publicitária dos partidos?
Os cartazes parece que são muito importantes. Diz-se isso, por exemplo, na Iniciativa Liberal; há uns anos os cartazes terão sido muito importantes. Julgo que são sempre importantes para mostrar o líder, e a mensagem principal, dois ou três slogans. Em democracia, política é comunicação. E ainda bem, porque senão eram cacetadas em cima das nossas cabeças, como antes do 25 de Abril. Mas, portanto, quem comunica melhor, está em vantagem; seja qual for a mensagem. Por exemplo, a Manuela Ferreira Leite quando foi candidata, era péssima comunicadora. Agora, ao fim de 10 ou 15 anos, está melhor. Eu vejo-a às vezes na CNN, e está a comunicar melhor. Mas quando foi presidente, tinha um adversário extremamente difícil e brutal, que era o Sócrates. Mas na verdade, ela era má comunicadora. E se tu comunicas mal a mensagem, como é que podes angariar votos?
E qual é o pior líder, dos partidos com assento parlamentar?
Estamos a falar da comunicação apenas, não do conteúdo da mensagem. O do LIVRE é bastante bom para o seu público-alvo e tem a seu favor os jornalistas, portanto tem imenso tempo de antena. Mas, de facto, sabe comunicar bem as suas ideias. A do PAN tem melhorado bastante também. A do Bloco de Esquerda, penso que é eficaz também; melhor do que a anterior, e mais genuína. Porque a Catarina Martins, como era actriz, notava-se que havia ali um decorar das frases que havia de dizer. No PS, o António Costa podia ser brutal, mas era um comunicador eficaz.
Concordo que era eficaz, mas nem falava bem.
Não falava bem português. Nem o Mário Soares. Mas não impedia que… Eu costumo dizer que o povo não é ortodoxo. O Pedro Nuno Santos tem uma voz muito monocórdica e uma maneira de falar que parece do PCP. Aquela cassete do Cunhal, que tinha aquela prosódia, que provavelmente dos anos que ele passou na Rússia. Uma certa prosódia, que depois, todos os que vieram a seguir também tinham. Este [Paulo Raimundo] agora não tem. E é o pior comunicador, sem dúvida. O Montenegro, não sei se é convincente, mas consegue comunicar; também é muito atacado sempre pelos próprios jornalistas. A maior parte dos jornalistas são pró-PS.
Nem que ele fosse cantor lírico, como o Pedro Passos Coelho [risos].
As agências de comunicação do PS são brutais com os líderes do PSD. Portanto, têm sempre a vida mais dificultada do que os outros líderes todos. E depois, a IL, com o Rui Rocha, com formação no Facebook [risos]. Porque esteve muitos anos no Facebook, tinha uma graça enorme. Perdeu-se um humorista fantástico do Facebook. Tornou-se uma pessoa séria, mas comunica bem.
E temos o caso famoso de um dos líderes da AD, que não o deixaram falar.
Exactamente, mas isso não é por causa da forma de comunicação, é por causa do conteúdo. Por causa das “gajas boas”… Coisas antigas. Aliás, hoje, tudo o que nós fazemos está gravado.
Do ponto de vista do marketing político e da publicidade, este renascimento da AD coloca aqui em confronto aquilo que era a AD do Sá Carneiro, do Ribeiro Telles e do Freitas do Amaral com esta tríade.
Sim, mas isso não é da ordem da publicidade, acho que é da ordem da política.
Eduardo Cintra Torres ao lado de imagem de Rafael Bordalo Pinheiro, no museu em homenagem ao artista, que também fez publicidade. (Foto: D.R.)
Mas como mensagem publicitária e política, achas que eles quiseram vender isto como um renascimento da antiga AD?
Não sei se é isso. Eu acho que era desnecessário para o PSD; para o CDS foi um seguro de vida. O PPM teve 200 ou 300 votos, até eu tinha mais na minha aldeia [risos]. Eu acho eu que aquilo resultou um bocadinho do medo do PSD de cair por causa do Chega. E então, quiseram fazer uma coisa que agregue e que entusiasme o maior número de pessoas, tal como a AD. O Passos Coelho também fez a PàF, que era uma AD, só não tinha era o PPM. O PPM também só teve uma figura credível, que foi o Ribeiro Telles. Ainda dizem que o Chega é que é o único partido de um homem só, vejam o Ribeiro Telles [risos].
Por fim, dá-me três exemplos de anúncios que conheces que sejam icónicos ou imperdíveis.
Eu gosto muito de um anúncio que está no meu livro: da Petit Beurre Invicta, na página 108. É um cartaz que fez parte de uma campanha para vender estas bolachas, que estavam aparentemente em risco de estragar, e era preciso escoar. E o Raul de Caldevilla fez uma campanha, que inclui um filme, a reunião das multidões, a subida aos Clérigos, anúncios de imprensa e este cartaz. Também houve um cartaz muito conhecido, que tem a Torre dos Clérigos. Tinha três metros de altura e chamava muito a atenção. Mas eu gosto muito deste porque é um anúncio de uma vitalidade enorme; julgo que é o primeiro cartaz em que se vê o produto com grande destaque. Não há nenhuma impressão nem imagem digital que reproduza a qualidade da impressão disto. Era um cartaz grande, com um metro e meio de altura. E nem sequer tem slogan, porque as pessoas conheciam o produto através do filme, que teve grande sucesso. Também gosto muito do que vem a seguir, na página 109, e é da mesma altura; o Miau. E são dois dos fundadores da publicidade moderna em Portugal: o Caldevilla, em todas as áreas, e o Leal da Câmara, no postal, na publicidade fora de Portugal…
Está gira a do tabaco, com o gato a fumar [risos]. E na televisão?
São tantos. Há um anúncio que eu nunca mais vi, já não vejo há 50 e tal anos, e que gostava muito quando era miúdo. E tinha a metalinguagem; era sobre a própria publicidade. Não sei qual era a marca, mas era de um creme de barbear. E só tinha uma pessoa a falar, que era um homem perfeitamente normal. E ia para a casa-de-banho, pegava naquilo, e olhava para o espelho, e olhava para nós. Ele estava a olhar para o espelho, mas nós estávamos no espelho. E ele dizia “dizem que isto faz muita espuma, os publicitários são uns exagerados”. Que é extraordinário. E depois tinha um flashback, e havia uma voz off. Melhor que isto não conheço [risos]. ‘Aquela máquina!’ do meu amigo velhote, António Gomes de Almeida. Fez muita banda desenhada, jornais humorísticos… Trabalhou para os parodiantes de Lisboa, e acho que é um bom slogan, o que ele fez para a Regisconta.
O slogan é algo que surge de repente, não é quando se está a pensar muito nisso…
Sim, mas é resultado de um processo.
Eduardo Cintra Torres numa aula de Licenciatura na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Abril de 2024. (Foto: D.R.)
Sim, mas muitas vezes é como o “diga bom dia com Mokambo”, que surgiu de repente.
Eu comparo isso, no meu caso, com os títulos dos artigos. Não são slogans, mas quero que os meus títulos chamem a atenção para despertar o interesse. E, portanto, às vezes há este processo. Fico a pensar – não durante dois ou três dias, claro, é menos tempo –, mas depois, de repente, aparece um título. Mas não é “do nada”.
Abordas no teu livro a publicidade do grupo CUF. Qual a importância desse grupo empresarial no panorama da publicidade em Portugal? E o que fez com que depois te tenham contactado para fazeres esta História da Publicidade?
Eles primeiro contactaram-me para fazer a história da publicidade da CUF. Eles estão a fazer 30, 40 ou 50 livros em redor da história da CUF: desde os protagonistas, a indústria, a urbanização, a arquitectura das construções. Fui eu que depois propus alargar o estudo de caso para uma História da Publicidade em Portugal. Podíamos nunca mais sair daqui, porque a história da CUF é tão longa; são cento e muitos anos. Não foi só uma empresa, foram sendo muitas empresas, a produzir muitas coisas. Quer para nichos de mercado, até aos grandes produtos de massas. Como o sabão Clarim, o Sonasol, o óleo Fula… A Tabaqueira era do Grupo CUF, até à nacionalização. Tal como nos Estados Unidos e nos outros países, procurava conquistar o máximo de pessoas. Era uma forma nova de fumar mais barata e que se podia fumar em qualquer altura, ao contrário do cachimbo. E, portanto, a publicidade é muito popular. Há uma grande variedade de tipo de publicidades no âmbito da CUF. Normalmente, o vê-se que há uma preocupação em que ela seja dirigida ao público-alvo, que seja informativa, não seja mentirosa; que nunca é. Aliás, fizeram muitos manuais para os adubos para os agricultores, e por aí fora. [A CUF] também criou a sua própria agência, a certa altura, mas que desapareceu com a nacionalização.
A CUF tinha participações em todas as áreas, em 1974. Embora fosse forte na área dos químicos, tinha muitos outros produtos, de facto…
Tinha a Companhia de Navegação, os Seguros Império, o Banco Totta e Açores… Nunca esteve foi nos media. Só teve um jornal em 1915, mas depois o Alfredo da Silva, penso eu, preferiu estar nos jornais diários, porque chegava a mais gente. Mas ele não intervinha na redacção, só comprava espaço, e fazia comunicados e uma espécie de artigos como artigos. Foi na altura da República, e foi muito complicado. Ele esteve exilado. Era um homem admirável, porque podia ter desistido do país, mas estava sempre em contacto com Lisboa por telegrama. Mesmo em Madrid, vinha clandestinamente a Portugal. Nunca abandonou a sua empresa. Mas em termos da publicidade, de facto, é muito variado. E a CUF foi a grande introdutora do marketing em Portugal, nos anos 70. No caso da seguradora Império, isso está bem documentado no meu livro. Se virmos bem, o marketing também é uma das razões, não da promoção da publicidade, mas da sua decadência. Porque a publicidade deixa de ser uma autonomia, para ser uma parte do marketing. A certa altura, houve uma disciplina nas universidades.
A publicidade integrou o marketing. Na tua opinião, não há vantagens nenhumas nisso?
Com certeza que há vantagens de articulação. Eu acho é que perdeu importância, e isso não foi bom para a publicidade em si.
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Longe vão os tempos em que a empresa gestora da TVI (e agora da CNN Portugal) nadava em lucros. Nos últimos cinco anos, as contas da TVI S.A., do Grupo Media Capital, têm estado sempre no vermelho, com prejuízos acumulados que já ultrapassam os 26 milhões de euros desde 2019. Mas não têm sido apenas questões de negócios que afectam os resultados dos canais televisivos: a Media Capital, através da Meglo, optou por uma gestão de ‘vampirização’ da TVI S.A.: empresta-lhe dinheiro, mas depois cobra-lhe juros elevados. Apenas nos últimos dois anos, este estratagema fez com que a Media Capital recebesse mais de 4,3 milhões de euros em juros da sua ‘filha’ TVI. Se não há dividendos, por não haver lucros, ‘saca-se’ em juros. O problema desta estratégia não é só de gestão amoral; está a criar-se uma crise financeira artificial na TVI e CNN Portugal – em seis anos, o passivo aumentou 35 milhões de euros e o capital próprio ‘encurtou’ 47 milhões –, talvez aguardando depois pelas (pré-anunciadas) salvíficas ajudas do Estado.
Apesar de se anunciar como líder, a empresa gestora dos canais televisivos TVI e CNN Portugal não descola dos prejuízos. De acordo com o Portal da Transparência dos Media, a TVI-Televisão Independente S.A., a subsidiária da Media Capital, apresentou no ano passado, pelo quinto ano consecutivo, resultados líquidos negativos, também muito por força do endividamento crescente.
Tem de se recuar aos idos de 2018 para se encontrar o último ano desta empresa com lucros. E foram então bastante razoáveis. Com rendimentos de cerca de 151,2 milhões de euros, a TVI S.A. apresentou resultados líquidos positivos em 2018 da ordem dos 27,7 milhões de euros. Esses lucros foram entretanto ‘derretidos’ à medida que se foi instalando a crise na comunicação social mainstream e a fuga para a frente causou um endividamento colossal.
Por exemplo, se o passivo em 2017 rondava os 56,4 milhões de euros, no final do ano passado saltara já para os 91,6 milhões de euros. Ao invés, o activo mingou, passando de 111,4 milhões para 98,9 milhões de euros entre 2017 e 2023. Deste montante, 66,6 milhões de euros são referentes a direitos de transmissão de programas de televisão – ou seja, de pouca utilidade imediata para pagar contas.
Noutra perspectiva, significa que os cerca de 47,5 milhões de euros do capital próprio da empresa TVI S.A. despareceram à conta dos sucessivos prejuízos, grande parte dos quais agravados pelo serviço da dívida, incluindo pagamento de juros a empresas da holding da Media Capital.
Segundo os elementos financeiros do Portal gerido pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), o descalabro financeiro da TVI S.A. começou em 2019 com prejuízos um pouco abaixo de um milhão de euros (963 mil euros). No ano seguinte, mesmo com a pandemia que trouxe receitas extraordinárias do Estado, a dona da TVI teve resultados desastrosos: prejuízos de 7,3 milhões de euros. Em 2021, a TVI S.A. apostou forte na criação da marca CNN Portugal, um ‘sucedâneo’ ao estilo de franchise do canal norte-americano, e os prejuízos continuaram, desta vez em 7,1 milhões de euros. Nesse ano, a TVI tentou obter uma autorização de confidencialidade dos elementos financeiros, situação denunciada pelo PÁGINA UM, e a ERC acabou por obrigar a empresa a revelar mesmo os seus prejuízos.
Em 2022, o efeito CNN Portugal mais não fez do que afundar ainda mais as contas: o prejuízo atingiu os 9,3 milhões de euros, que se ‘atenuaram’ no ano passado para 1,4 milhões de euros.
O canal televisivo TVI celebrou o seu 31º aniversário em Fevereiro passado. Já as contas da TVI S.A. são ‘um 31’. Fonte: DR
Mas mais do que estes sucessivos prejuízos, que totalizam 26,1 milhões de euros, a evolução de diversos indicadores financeiros mostram-se assustadores. Por exemplo, a autonomia financeira da TVI S.A. – que compara o capital próprio com os activos – desceu de 49,3% em 2017 para apenas 7,4% no ano passado. Quando a empresa está em falência técnica, esta percentagem é virtualmente negativa. No caso da solvabilidade geral – que confronta o capital próprio com o passivo, dando assim indicações de quem é o dono –, passou-se de 97,3% em 2017 para apenas 8,0% em 2017.
Em todo o caso, segundo a análise do PÁGINA UM às contas da TVI S.A., o endividamento a instituições bancárias nem sequer é muito elevado: não chega sequer a 2 milhões de euros. Na verdade, os maiores financiadores têm sido as próprias empresas do Grupo Media Capital, que no balanço de 2023 surge como empréstimos de accionistas num valor acima de 27,2 milhões de euros. Esse crédito será inteiramente detido pela Meglo-Media Global, a empresa da Media Capital que formalmente é detida pela Media Capital. Mas este empréstimo é remunerado – aliás, aparentemente muito bem remunerado.
Com efeito, na demonstração de resultados, a TVI S.A. até mostra que teve em 2023 resultados positivos antes dos encargos de financiamento, mas acabou por ter prejuízos depois de pagar quase 3,06 milhões de euros de juros e gastos similares. Ora, como cerca de 92% da dívida por empréstimos é à accionista Meglo, uma subsidiária da holding Media Capital, a TVI S.A. pagou assim, ao longo de 2023, um total de 2.422.800 euros em juros à casa-mãe.
No ano anterior, conforme se destaca no próprio relatório e contas de 2023, a TVI S.A. entregara já 1.929.679 euros à Meglo apenas em juros. Ou seja, em dois anos, a Media Capital ‘sacou’ mais de 4,3 milhões de euros em juros de uma ‘empresa-filha’ que deu sempre prejuízo. Ou seja, agravou ainda mais a situação financeira em período de crise.
Embora este estratagema de gestão equilibre as contas (no curto prazo) da Media Capital, este processo de ‘vampirização’ (em que a holding descapitaliza as subsidiárias) traz, geralmente, maus resultados a médio prazo, neste caso colocando a TVI S.A. no caminho da falência técnica.
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