Etiqueta: Democracia

  • Ruas e debates civis tornam-se agora os (únicos) palcos na defesa dos direitos humanos

    Ruas e debates civis tornam-se agora os (únicos) palcos na defesa dos direitos humanos

    No espaço de 10 dias, Lisboa viu três concentrações e manifestações nas ruas em defesa dos direitos humanos, direitos civis e da democracia. Contestação contra as propostas de revisão constitucional levou a plataforma cívica Cidadania XXI a mobilizar-se em duas concentrações na capital, juntando mais de uma centena de pessoas. Já este Sábado, Lisboa juntou-se a muitas outras cidades do mundo numa Manifestação Mundial para os Direitos Humanos e Liberdade, com a presença de cerca de mais de uma centena e meia de pessoas.


    Estamos em plena Europa do século XXI, mais propriamente em 2022, mas não parece. A sociedade civil está a ter necessidade de regressar às ruas dos países ocidentais, em manifestações, para defesa dos direitos cívicos. Na Europa, berço da Democracia, incluindo Portugal. Duas concentrações em Lisboa, nas últimas duas semanas, são disso exemplo: uma contra as propostas de revisão constitucional; a outra, integrada na Manifestação Mundial pelos Direitos Humanos e a Liberdade (World Freedom Rally 2022). Ambas trouxeram às ruas não mais de duas centenas de pessoas; ainda poucas, por agora, mas as duas com muitas palavras de ordem em defesa dos direitos, liberdades e garantias, sempre com a democracia em pano de fundo.

    Mas além da manifestação e das concentrações, a sociedade civil mexe-se por outras vias. A plataforma cívica Cidadania XXI tem estado particularmente activa, tendo já feito chegar aos líderes dos dois maiores partidos políticos portugueses (PS e PSD) um manifesto/ petição intitulado Em Defesa da Liberdade da Constituição.

    Joana Amaral Dias, psicóloga, ex-deputada e activista, a discursar no dia 10 de Novembro numa concentração contra a revisão constitucional.

    Esta plataforma cívica é um movimento de cariz cívico que nasceu em 2020 e se notabilizou por diversas iniciativas de amplitude, sobretudo os debates denonimados Tertúlias da Junqueira, que reuniram notáveis da vida académica, médica, científica, jurídica e dos media para debater a censura e as muitas medidas ilegais e anticientíficas que foram adoptadas durante a pandemia. Além disso, organizaram uma grande manifestação no dia 25 de Abril de 2021 que desceu a Avenida da Liberdade, em plena pandemia.

    Na petição entregue a António Costa e Luís Montenegro, esta plataforma cívica manifesta “preocupação [com] o processo de Revisão Constitucional em curso e em particular a proposta que o Governo enviou à Assembleia da República do dia 9 de Novembro”.

    Salienta-se que, de entre as alterações propostas pelos dois principais partidos (que constituem maioria qualificada, ou seja, mais de dois terços dos deputados), está a possibilidade de detenção de um cidadão sem mandato judicial, algo que a Cidadania XXI considera uma “perigosa intenção” por “ficar aberta a possibilidade de um qualquer Governo prender um cidadão, com base em regras estipuladas por si, retirando a legitimidade e a autonomia fundamental dos Tribunais para decidir sobre os Direitos, Liberdades e Garantias”.

    António Jorge Nogueira, fundador e presidente da Plataforma Cívica – Cidadania XXI (à direita), entregou um manifesto contra a proposta de revisão constitucional ao primeiro-ministro, António Costa.

    Segundo esta plataforma cívica, com uma Constituição nos termos propostos, “estaremos perante um regime constitucional em que o Governo poderá exercer sobre os cidadãos o mesmo tipo de autoritarismo totalitário que actualmente vigora no regime chinês”.

    A possibilidade de detenção de cidadãos sem mandato judicial, apenas por ordem das autoridades sanitárias, surge após ter sido considerado inconstitucional pelo Tribunal Constitucional os confinamentos forçados de cidadãos, a coberto de alegados riscos, durante a pandemia da covid-19. Visto que as detenções sem mandato judicial violaram a Constituição, o Governo decidiu assim aproveitar para propor uma alteração à Lei Fundamental do país.

    Vários juristas têm vindo, contudo, a alertar para os perigos desta revisão constitucional. O próprio bastonário da Ordem dos Advogados, Luís Menezes Leitão, denunciou que, caso PS e PSD avancem com a aprovação desta revisão, “está em causa a supressão de direitos, de liberdades e de garantias”.

    Uma das concentrações contra a proposta de revisão da Constituição, em que participou a Cidadania XXI, juntou mais de uma centena de pessoas, durante a noite do passado dia 10 de Novembro, junto ao Hotel Epic Sana Marquês, onde decorreu o Conselho Nacional Extraordinário do PSD. A Cidadania XXI entregou a sua petição a alertar para os perigos levantados pelas propostas de revisão constitucional ao presidente do PSD, Luís Montenegro.

    António Jorge Nogueira, presidente da Cidadania XXI (à esquerda), entregou um manifesto contra as propostas de revisão constitucional ao presidente do PSD, Luís Montenegro.

    A plataforma cívica deslocou-se também à sede do PS, no Largo do Rato, entregando o mesmo documento ao primeiro-ministro e secretário-geral do PS, António Costa, e ao presidente do partido que sustenta o Governo, Carlos César. Este documento também será entregue ao Presidente da Assembleia da República, aos Grupos Parlamentares, ao Presidente da República, à Ordem dos Advogados, ao Conselho Superior da Magistratura “e a diversas outras instituições da sociedade portuguesa”, segundo António Jorge Nogueira.

    “Não nos podemos esquecer que durante dois anos o Presidente da República, o Governo e diversas instituições actuaram conscientemente e sistematicamente contra a Constituição, conforme já declarado 23 vezes por juízes do Tribunal Constitucional”, afirmou António Jorge Nogueira ao PÁGINA UM. Com este projecto de revisão da Constituição, “já não estamos em modo democrático”, lamentou.

    No âmbito destas iniciativas, a Cidadania XXI vai organizar ainda outros eventos públicos, onde se incluirá um novo ciclo de Tertúlias da Junqueira em torno do tema da defesa dos direitos, liberdades e garantias. A plataforma pretende também reunir com os diferentes grupos com assento parlamentar.

    Joana Amaral Dias, antiga deputada, psicóloga e activista, que marcou presença nas concentrações e na manifestação de sábado, tem sido uma acérrima crítica das posições de PS e PSD. “Repare-se que em nenhuma circunstância, mesmo que se reúnam dois terços dos deputados ou a totalidade dos parlamentares, é permitido alterar ou abolir esses mesmos direitos”, escreveu esta psicóloga em artigo de opinião no semanário O Novo. “O artigo 288.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) constitui uma barreira intransponível, bloqueia em absoluto qualquer tentativa de os adulterar”, adiantou, frisando: “a razão é simples: mexer-lhes, alterar o contemplado no artigo 24.º, é atacar o magma da democracia” e que “sem esses direitos não há Estado de direito e, por isso, o tal 288 não o permite em circunstância alguma”.

    Manifestação Mundial levou para as ruas cidadãos em diversas cidades do mundo, no passado Sábado.
    (Fotos em cima: Manifestação em Lisboa. Foto em baixo: Manifestação em Toronto, no Canadá)

    A ex-deputada do Bloco de Esquerda foi, aliás, uma das individualidades que subiu ao palco para discursar no âmbito da Manifestação Mundial pelos Direitos Humanos e a Liberdade (World Freedom Rally 2022) no passado sábado, a par da médica Margarida Oliveira, que foi alvo de processo pela Ordem dos Médicos, por delito de opinião, apesar de defender medidas com base na evidência científica.

    Recorde-se que a Ordem dos Médicos e o seu bastonário, Miguel Guimarães, tiveram, durante a pandemia, um papel de relevo na tentativa de silenciar e punir médicos que se mostraram contra medidas e recomendações do Governo e da Direcção-Geral da Saúde.

    Desde 2020, que cidadãos em diversos países têm participado em manifestações e marchas em defesa dos direitos humanos e civis, perante as medidas drásticas e ilegais que foram adotadas por Governos alegadamente para combater a pandemia de covid-19, incluindo a política de segregação criada com a introdução do chamado “certificado digital” ou “passaporte covid-19” e vacinação obrigatória em diversos setores.

    A Suécia, um país que geriu com sucesso a pandemia, foi a excepção, tendo recusado aderir a confinamentos e máscaras faciais, em geral, nem impôs medidas drásticas como a maioria dos restantes países, registando menos óbitos com covid-19, menores impactos económicos e menos mortes em excesso, comparando com pares na Europa.

    Manifestação em Lisboa no âmbito do World Wide Rally for Freedom

    Hoje, sabe-se, com base em dados e em estudos científicos, que os confinamentos tiveram um impacto devastador na saúde e na economia, tendo sido uma política errada a seguir, como cientistas tinham avisado logo em março de 2020.

    Por outro lado, os dados revelam ainda haver em 2022 milhares de mortes em excesso sem explicação em vários países, como Portugal, faltando investigações independentes ao tema. Enquanto isso, diversos países começam a recuar na vacinação de certas camadas e faixas etárias da população, enquanto mais estudos e dados mostram que riscos de reacções adversas aconselham cautela na vacinação com as novas vacinas, sobretudo em determinados grupos de pessoas, como homens e crianças e jovens.

    Mas, apesar das medidas erradas adoptadas, os direitos humanos e civis que foram amputados desde 2020 não foram repostos na maioria dos países, e teme-se que possam mesmo ser definitivamente abolidos em países como Portugal, com as propostas de revisão constitucional. Por outro lado, também há receios de que a onda de medidas totalitárias seja reforçada agora para gerir a crise ambiental que se anuncia.


    N.D.: A jornalista e cronista do PÁGINA UM Elisabete Tavares é membro fundador da Plataforma Cívica – Cidadania XXI, embora não exerça papel activo nesta associação desde Outubro de 2021.

  • Quatro em cada 10 entidades da Administração Pública sujeitas a queixas por ‘obscurantismo’ no acesso aos seus arquivos nem sequer colaboram com o ‘regulador’

    Quatro em cada 10 entidades da Administração Pública sujeitas a queixas por ‘obscurantismo’ no acesso aos seus arquivos nem sequer colaboram com o ‘regulador’

    Desde 1993 há uma lei, cheia de boas intenções, para promover a abertura dos arquivos da Administração Pública aos cidadãos, mas na prática, três décadas depois da sua criação, a cultura de secretismo e de obscurantismo continua bem enraizada. As queixas à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) sucedem-se, mas muitas caem em “saco roto”, até porque cada vez mais entidades públicas nem se dão ao trabalho de justificarem os seus actos. A lei até diz que os funcionários públicos têm o dever de colaboração com a CADA, sob pena de responsabilidade disciplinar, mas ninguém se importa. Eis o obscurantismo em todo o seu esplendor no Portugal democrático do século XXI.


    Quatro em cada 10 entidades que não satisfizeram pedido de consulta de documentos públicos nem sequer colaboram com a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) quando esta entidade elaborou os seus pareceres após a recepção de queixas. Esta situação é bem reveladora de uma postura de obscurantismo da Administração Pública, que se tem vindo a agravar, como o PÁGINA UM tem revelado.

    De acordo com um levantamento exaustivo aos 304 pareceres resultantes de queixas decididas em 2021 pela CADA – a entidade responsável pela regulação do direito dos cidadãos a acederem a documentos da Administração Pública e outras entidades com funções similares –, houve 121 que ficaram sem resposta à solicitação para serem apresentadas justificações para a recusa.

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    Saliente-se que a legislação, criada em 1993, estipula que “todos os dirigentes, funcionários e agentes dos órgãos e entidades a quem (…) têm o dever de cooperação com a CADA, sob pena de responsabilidade disciplinar ou de outra natureza”.

    A Agência Portuguesa do Ambiente (APA) e o Instituto da Conservação da Natureza e Florestas (ICNF), tuteladas pelo Ministério do Ambiente e da Acção Climática, encabeçam a lista das entidades públicas ou equiparadas que mais ignoraram a CADA, que é presidida pelo juiz conselheiro Alberto Oliveira.

    A APA, presidida por Nuno Lacasta, esteve envolvida em nove queixas, por recusa de acesso a documentos, e apenas respondeu a três ofícios da CADA. Já Nuno Banza, presidente do ICNF, teve pior desempenho: em sete queixas, deu zero respostas à CADA.

    Na lista compilada pelo PÁGINA UM destacam-se ainda o Instituto da Segurança Social (com cinco queixas não respondidas), a Câmara Municipal de Grândola e o Agrupamento de Escolas dos Templários de Tomar (ambas com quatro queixas, respectivamente), e a Câmara Municipal do Porto (com três queixas). Nestes processos, a vasta maioria dos requerentes são cidadãos.

    Nuno Banza (primeiro à direita), presidente do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas. Esta entidade teve sete queixas por recusar o acesso a documentos públicos em 2021. Em nenhum caso apresentou sequer justificação à CADA.

    Uma parte substancial destas queixas foi intentada por organizações não-governamentais, sobretudo associações ambientalistas, como é o caso da Zero. No ano passado, esta associação solicitou informação por três vezes à APA e por sete vezes ao ICNF, mas só com a intervenção da CADA conseguiu a informação pretendida.

    Francisco Ferreira, presidente da Zero, lamenta esta situação: “Compreendemos que possa existir dificuldades em responder com celeridade em alguns casos, mas não é aceitável que não haja sequer uma resposta onde se proponha uma data para satisfação pedidos”. Para este ambientalista,“tem de ser implementada uma cultura na Administração Pública que permita uma maior transparência na divulgação da informação”.

    Questionado o Ministério do Ambiente sobre a postura dos seus dirigentes, o gabinete de Duarte Cordeiro diz que, no futuro, “tudo fará para obstar a que estas situações se repitam com entidades que tutela e com elas procurará estabelecer mecanismos para ultrapassar essas dificuldades”, acrescentando que o ministro é “um defensor do acesso à informação por parte dos cidadãos e de uma administração transparente”.

    Quanto à CADA – cujos pareceres são não-vinculativos, ou seja, mesmo se favorável aos queixosos a entidade requerida pode continuar a recusa, obrigando a um processo de intimação no Tribunal Administrativo –, não aparenta grande incomodidade por ser ignorada por muitas entidades da Administração Pública, dizendo que “corresponder ao convite é uma opção da entidade demandada”.

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    Sobre a possibilidade de tornar vinculativos os pareceres, Alberto Oliveira refere que “a opção legislativa, desde a primeira Lei [em 1993] (…) tem sido a de contemplar a CADA como uma figura próxima da do Ombudsman, também sem poderes vinculativos.” E acrescenta ainda que “uma característica específica da CADA, face à figura genérica do provedor de justiça, é a de que, diferentemente do que com este acontece, a apresentação tempestiva de queixa à CADA interrompe o prazo para propositura de intimação contenciosa”.

    Uma vantagem que, diga-se, constitui uma vantagem irrelevante ou até contraproducente, porque se as entidades públicas recusarem o pedido do requerente e depois não cumprirem o parecer não-vinculativo da CADA, resta apenas então o recurso ao Tribunal Administrativo. Ou seja, na prática, mesmo que a Justiça dê razão ao requerente, perde-se apenas meses de forma inglória e gasta-se dinheiro, não havendo qualquer punição do dirigente da Administração Pública que recusou indevidamente um direito dos cidadãos.

    Aliás, tem sido para acelerar o processo de acesso que o PÁGINA UM decidiu, em alguns casos, nem sequer recorrer à CADA: opta antes por fazer logo entrar no Tribunal Administrativo um processo de intimação, como aliás sucederá com a recusa da ministra Marta Temido em abrir os arquivos do Ministério da Saúde desde 2020.

    Sobre a norma que estipula que “todos os dirigentes, funcionários e agentes dos órgãos e entidades a quem (…) têm o dever de cooperação com a CADA, sob pena de responsabilidade disciplinar ou de outra natureza”, o presidente daquela instituição nada refere. A impunidade é absoluta.

  • Ministério da Saúde diz ser “manifestamente abusivo” pedido de jornalistas para consulta do seu arquivo

    Ministério da Saúde diz ser “manifestamente abusivo” pedido de jornalistas para consulta do seu arquivo

    O PÁGINA UM solicitou acesso aos documentos administrativos na posse do gabinete da ministra Marta Temido desde Janeiro de 2020. Resposta: o pedido é “manifestamente excessivo, abusivo e, logo, inexequível”. O caso seguirá agora para Tribunal Administrativo, através do FUNDO JURÍDICO do PÁGINA UM, mas desde já fica claro que o Ministério da Saúde não aprecia que se veja in loco a sua acção política ao longo dos últimos dois anos e meio.


    A Secretaria-Geral do Ministério da Saúde considera que o pedido do PÁGINA UM para aceder aos ofícios, pareceres, relatórios e outros documentos administrativos na posse do Gabinete de Marta Temido desde 2020 é “manifestamente excessivo, abusivo e, logo, inexequível”, acrescentando que assim “não nos é possível satisfazer o solicitado”.

    Esta é a resposta ontem enviada ao PÁGINA UM no decurso de um pedido expresso, ao abrigo da Lei de Acesso aos Documentos Administrativos (LADA), onde se solicitava “o acesso a cópia digital ou em papel, ou outro qualquer formato, de (…) correspondência oficial, pareceres, relatórios e outros documentos escritos ou em formato audiovisual, na posse do Ministério da Saúde (e respectivas Secretarias de Estado), por si elaborados ou elaborados por outras entidades públicas e privadas, ou mesmo por particulares (incluindo assessores e consultores), produzidos desde Janeiro de 2020 até à data.”

    Marta Temido, ministra da Saúde.

    No seu pedido, o PÁGINA UM discriminou uma lista exaustiva de mais de duas dezenas de entidades nacionais e internacionais que tivessem sido destinatárias ou remetentes dos documentos em posse do Ministério de Marta Temido, entre  as quais a Direcção-Geral da Saúde, o Infarmed, as Administrações Regionais de Saúde, o Conselho Nacional de Saúde, o Gabinete do Primeiro-Ministro, a Presidência de Conselhos de Ministros, a Assembleia da República, a Presidência da República, a Ordem dos Médicos, os Conselhos de Administração das unidades de saúde do SNS e do sector privado, a APIFARMA, as empresas farmacêuticas, a Agência Europeia dos Medicamentos, a Comissão Europeia e diversas instituições da União Europeia.

    Apesar desse detalhe, e ignorando na resposta ser este pedido feito por um órgão de comunicação social – cujos direitos de acesso estão consagrados na Constituição da República Portuguesa, na Lei da Imprensa e no Estatuto do Jornalista –, o Ministério da Saúde defende que “as entidades não estão obrigadas a satisfazer pedidos que, face ao seu carácter repetitivo ou sistemático ou ao número de documentos requeridos sejam manifestamente abusivos, sem prejuízo do direito de queixa do requerente”.

    Recorde-se, porém, que a Lei do Acesso aos Documentos Administrativos não estipula a partir de que “número de documentos requeridos” se considera os pedidos “manifestamente abusivos”, sendo certo que, se tal for feito de forma arbitrária, significaria a denegação do direito de informação incompatível num Estado democrático. Ainda mais sendo feito por um órgão de comunicação social num processo de investigação jornalística.

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    Na verdade, a LADA prevê sim que, nos casos da existência de muitos documentos para consulta, a entidade pública requerida possa ter mais tempo – até dois meses, em vez de 10 dias – para os disponibilizar, por fases, mas sempre fundamentando previamente.

    No seu ofício, embora negando desde já permissão de acesso ao seu arquivo sem condicionalismos nem restrições – que permitiria conhecer em detalhe todas as orientações da sua política nos últimos dois anos e meio –, o Ministério da Saúde ainda sugere que o director do PÁGINA UM esclareça “qual a informação que pretende aceder, em termos claros e precisos”, deduzindo-se que Marta Temido queira que o jornalista indique os números dos ofícios ou os títulos dos relatórios ou os autores dos pareceres que só o seu gabinete conhece na íntegra.

    Na verdade, o PÁGINA UM – e qualquer cidadão – poderia escolher os documentos produzidos e à guarda do Ministério da Saúde se o gabinete cumprisse o estabelecido na LADA. Com efeito, a alínea a) do nº 1 do artigo 10º deste diploma legal – existentes desde 1993 para promover a transparência na Administração Pública – estabelece que “os órgãos e entidades a quem se aplica a presente lei publicitam nos seus sítios na Internet, de forma periódica e atualizada, no mínimo semestralmente, os documentos administrativos, dados ou listas que os inventariem que entendam disponibilizar livremente para acesso e reutilização nos termos da presente lei, sem prejuízo do regime legal de proteção de dados pessoais”.

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    Isto é, o Ministério da Saúde ostensivamente não divulga a lista dos documentos que produz e só mostra eventualmente disposição em os divulgar se um jornalista adivinhar a sua referência administrativa interna em detalhe.

    O PÁGINA UM irá recorrer ao Tribunal Administrativo de Lisboa com um processo de intimação para a prestação de informações, consulta de processos e passagem de certidões contra o Ministério da Saúde. Esta iniciativa utilizará, como habitualmente, o seu FUNDO JURÍDICO.

  • Carta aberta de médicos acusa bastonário Miguel Guimarães de violação deontológica

    Carta aberta de médicos acusa bastonário Miguel Guimarães de violação deontológica

    Uma carta aberta de destacados médicos acusa Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos, de querer deter “poderes de autoridade científica suprema ou de verdade absoluta”. O PÁGINA UM revela em primeira-mão, em exclusivo, o teor integral de uma dura missiva enviada a todos os órgãos da Ordem dos Médicos, pedindo-lhes que “avaliem os factos recentes e incentivem a que todos os médicos sejam devidamente respeitados”.


    Um conjunto de 23 médicos – entre os quais o catedrático Jorge Torgal (antigo presidente do Infarmed) e o cardiologista Jacinto Gonçalves (vice-presidente da Fundação Portuguesa de Cardiologia) –, e mais dois médicos dentistas, escreveram esta tarde a todos os membros dos vários órgãos da Ordem dos Médicos (OM) acusando o bastonário Miguel Guimarães de “grave violação da dignidade que se espera” do máximo representante desta classe profissional.

    Os signatários da carta, a que o PÁGINA UM teve acesso em primeira-mão – que integram parte do grupo de 91 profissionais de saúde que apelaram ao Governo para suspender a vacinação universal de crianças saudáveis –, acusam Miguel Guimarães de desrespeito e mesmo de violação do Código Deontológico, e recordam ainda que o bastonário é apenas “o representante oficial da OM, mas isso não lhe confere poderes de autoridade científica suprema ou de verdade absoluta”.

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    Em causa está sobretudo a abertura de um processo disciplinar a Jorge Amil Dias, presidente do Colégio de Pediatria da OM, por declarações contra a vacinação contra a covid-19 de crianças saudáveis. Esta decisão da OM surge após uma queixa de 16 médicos, encabeçados por Filipe Froes – um pneumologista com ligações financeiras à Pfizer e outras farmacêuticas. Quase todos são muito próximos ou homens de confiança de Miguel Guimarães.

    Embora seja urologista, nem sequer da área da pediatria, o bastonário tem vindo a menorizar o papel do presidente do Colégio de Pediatria – que sempre falou sobre a vacinação de crianças a título pessoal – e depreciado os médicos signatários daquele abaixo-assinado. E tem argumentado ser apenas ele que deve falar “Não são duas vozes [que há na OM], é só uma, pois o doutor Jorge Amil não fala em nome da Ordem”, esclareceu já Miguel Guimarães em declarações à CNN Portugal.

    Jorge Amil foi alvo de queixa de médicos próximos do bastonário Miguel Guimarães.

    Considerando que esta situação “tem de acabar”, o bastonário anunciou já a convocação de um Conselho Nacional Executivo para discutir o assunto. Em cima da mesa, sabe o PÁGINA UM, está a destituição imediata de Jorge Amil Dias da presidência do Colégio de Pediatria, antes mesmo da conclusão do processo disciplinar, que demorará sempre meses.

    A postura de Miguel Guimarães é duramente criticada agora pelos 25 médicos que entendem que “o conhecimento científico é dinâmico”, tanto assim que, salientam, “alguns países europeus, nomeadamente os nórdicos (Suécia, Dinamarca, Noruega) e até o Reino Unido ou a Alemanha, decidiram reapreciar o benefício da vacinação contra a covid-19 em crianças, e não estão a recomendá-la de forma universal na população infantil.”

    E, lembrando ainda que as afirmações ou convicções científicas de Miguel Guimarães “não reflectem, nem vinculam, toda a população médica”, os subscritores desta carta aberta salientam que “são conhecidos contornos de documentos técnicos de grupos especializados e estatutariamente legitimados dentro da Ordem dos Médicos [como são os casos dos Colégios de Especialidade e de Competência], que devem ser devidamente ponderados nas decisões ou recomendações oficiais da Ordem, e tendo em exclusiva consideração a bondade das recomendações do ponto de vista do interesse dos doentes.”

    Saliente-se que o PÁGINA UM solicitou, no final do ano passado, o acesso a todos os pareceres dos Colégios da Especialidade da Ordem dos Médicos. No entanto, Miguel Guimarães não acedeu ao pedido, tendo a Comissão de Acesso ao Documentos Administrativos dado razão ao PÁGINA UM, mas em moldes dúbios, e para os quais foi pedido uma clarificação que ainda não foi concluída.


    CARTA INTEGRAL – Pode ser descarregada AQUI.

    Dig.mo Bastonário,
    Dig.mo Presidente da Assembleia de Representantes,
    Dig.mos Membros do Conselho Superior,
    Dig.mos Membros do Conselho Nacional,
    da Ordem dos Médicos

    Os signatários fazem parte dum grupo de 90 Médicos, que entenderam subscrever um apelo público para que o programa de vacinação infantil contra a Covid-19 fosse suspenso e reapreciado nas suas vantagens em comparação com os riscos incorridos.

    Esta preocupação decorre do conhecimento de potenciais riscos a curto, médio e longo prazo, da existência de efeitos adversos documentados em registos amplos de farmacovigilância como o VAERS americano, ou a EudraVigilance europeia, para além de centenas de publicações isoladas. Por outro lado, alguns países europeus, nomeadamente os nórdicos (Suécia, Dinamarca, Noruega) e até o Reino Unido ou a Alemanha, decidiram reapreciar o benefício da vacinação contra a Covid-19 em crianças, e não estão a recomendá-la de forma universal na população infantil.

    O apelo formulado pelos médicos subscritores desse documento tem, pois, fundamentação genérica, já que o conhecimento científico é dinâmico, particularmente neste domínio, e não ofendeu as recomendações da Autoridade de Saúde, nem convidou à desobediência civil.

    Os subscritores do apelo são médicos com competência e méritos demonstrados nos respectivos domínios de atividade.

    Todavia, a forma como o Dig.mo Bastonário a eles se referiu nas suas intervenções e comunicados públicos foi depreciativa e violou os deveres de representação profissional e de ética no relacionamento e referência pública.

    A Ordem dos Médicos estabelece princípios de deontologia entre Colegas no seu Art.º 128 do Código Deontológico, que não foram devidamente respeitados pelo Dig.mo Bastonário nas suas declarações públicas ao referir-se aos subscritores. O Dig.mo Bastonário é o representante oficial da Ordem dos Médicos, mas isso não lhe confere poderes de autoridade científica suprema ou de verdade absoluta.

    As suas afirmações ou convicções científicas não refletem, nem vinculam, toda a população médica. São conhecidos contornos de documentos técnicos de grupos especializados e estatutariamente legitimados dentro da Ordem dos Médicos, que devem ser devidamente ponderados nas decisões ou recomendações oficiais da Ordem, e tendo em exclusiva consideração a bondade das recomendações do ponto de vista do interesse dos doentes.

    Cabe a outras entidades tomar a responsabilidade de decisões políticas, pelos motivos que bem entendam considerar.

    Se um grupo de Médicos, neste caso perto de uma centena, faz um apelo público à reapreciação científica duma decisão, espera-se que o seu representante máximo aja com a devida compostura, dignidade e respeito, sugerindo que esse escrutínio seja feito.

    Tratar Colegas dignos e competentes com desprimor e acusá-los sumariamente de falta de rigor, é grave violação da dignidade que se espera do Bastonário da Ordem dos Médicos.

    Por todas estas razões, os signatários apelam a todos os órgãos nacionais da Ordem dos Médicos que avaliem os factos recentes e incentivem a que todos os médicos sejam devidamente respeitados em declarações públicas em nome da Ordem que a todos deve orgulhar.

    Jacinto Gonçalves (OM nº 9882), João Gorjão Clara (OM nº 12251), Ramiro Araújo (OM nº 12477), Jorge Torgal (OM nº 14433), Fernando Torrinha (OM nº 17492), Horácio Costa (OM nº 17788), António Neves Silva (OM nº 18873), Pedro Covas (OM nº 21555), Carlos Diogo de Matos (OM nº 24630), Teresa Gomes Mota (OM nº 27477), Cristina Nogueira (OM nº 30347), Pedro Girão (OM nº 31918), Óscar Prim da Costa (OM nº 35019), Marisa Vieira (OM nº 38193), António Caiado (OM nº 38427), Cristina Nunes (OM nº 40275), Carlos Mata (OM nº 41048), Leonor Boto (43033), Tiago Marques (OM nº 44104), Ana Rita Pereira (OM nº 46566), Sofia Almeida (OM nº 51699), Tiago Araújo dos Santos Silveira (OM nº 51992), Nuno Alfaro Simões (OM nº 55243), Eugénia Matos (OM nº 55288) e Pedro Rabaço (OMD 916).

    10 de fevereiro de 2022