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  • Dinamarca 5.2: um osso duro de roer

    Dinamarca 5.2: um osso duro de roer


    De varanda em varanda, ando aqui a cogitar se, em muitas situações, não seremos todos uns voyeurs futebolísticos, debruçados sobre uma espécie de miradouro privado onde assistimos ao desfile das esperanças, angústias e pequenas traições. Comecei pela “Da Varanda da Luz”, mas logo dei abertura para surgir, de quando em vez, uns “Da Varanda do Varandas”, que o Carlos Enes, com o seu desplante sportinguista, fez nascer por brincadeira – ou talvez por inveja –, para depois se multiplicarem outras varandas: já houve um no Jamor, no ano passado, numa final de Taça de Portugal em que o Benfica injustamente esteve ausente; e a surpreendente Varanda de Montjuïc, ainda este mês, em Barcelona.

    Agora, cá estou eu novamente à varanda, desta vez em Alvalade, a pensar numa fidelidade tantas vezes posta à prova, num amor estranho que se divide entre um clube e uma Selecção.

    É curioso como as varandas e a fidelidade têm em comum a possibilidade do abandono. Se as varandas são espaços híbridos, que ligam e desligam ao mesmo tempo, entre o interior e o exterior, também a fidelidade ao futebol é assim, sujeita às circunstâncias e aos resultados. Nem meto aqui o jornalismo, porque isto é uma crónica futebolística, logo tendenciosa.

    Mas há uma diferença clara, convenhamos: se as varandas, mesmo abandonadas, se mantêm erguidas, intactas na sua solidão, já a fidelidade futebolística abana ao sabor de cada derrota. Talvez não haja varanda que resista a muitos maus resultados, especialmente quando se fala da Selecção Nacional, uma espécie de clube de todos e de ninguém.

    É por isso que, sentado aqui nesta varanda de Alvalade, me pergunto que nome lhe hei-de dar. Já perdi o exclusivo das varandas, é certo, mas talvez seja tempo de pedir ajuda às inteligências artificiais. Não dizem que o futuro passa por aqui? E já que o ChatGPT se tornou uma moda – e esta semana li um artigo científico em que a Inteligência Artificial é declaradamente um dos co-autores –, pergunto-lhe agora: que nome dou a esta varanda de onde hoje vejo a Selecção jogar contra a Dinamarca?

    E ele dá-me três sugestões: ‘Varanda da Saudade’, ‘Varanda das Quinas’ e ‘Varanda do Cristiano’.

    (penalty!!!! E vai ser Cristiano Ronaldo a marcar: eis a oportunidade de ‘redenção’… e… e… falha!!!)

    Já estava decidido, mas sai agora reforçado por este falhanço. Fiquemos pela ‘Da Varanda das Cinco Quinas’, que me parece mais épico, evocando não os cinco reis mouros derrotados na Batalha de Ourique, mas as cinco mais relevantes vitórias futebolísticas nacionais: o Euro 2016, a Liga das Nações de 2019, o Campeonato do Mundo Sub-20 em 1989, o Campeonato do Mundo Sub-20 em 1991 e o Campeonato da Europa Sub-17 em 2003.

    Seja como for, sinto que o ambiente não está muito favorável para Portugal, sobretudo depois da exibição pavorosa da última quarta-feira em Copenhaga. Aquele jogo foi tão medíocre que a única figura a destacar acabou por ser o guarda-redes Diogo Costa, agravando ainda mais a exibição global. Um guarda-redes brilhar em demasia significa quase sempre que tudo o resto falhou em absoluto. E falhou.

    Como sucede nestas ocasiões de derrota ou exibição sofrível da Selecção Portuguesa, o Cristiano Ronaldo é imediatamente atirado para as feras, sem misericórdia nem respeito. Ainda mais agora que é quarentão e o Martinez o mantém de pedra e cal, apesar de ele, o Ronaldo, estar mais parecido com uma pedra.

    (entretanto, ali em baixo, depois do domínio português nos primeiros 20 minutos,)

    Quando se trata de Cristiano Ronaldo, não interessa que durante quase duas décadas tenha sido quase sempre bestial e único, porque o futebol, como a vida, é ingrato. Agora, se não marcar golos decisivos – e sobretudo se fizer falta aquele penalty –, será uma besta negra, como se o fado da Selecção dependesse exclusivamente dele.

    (e goloooooooo… Portugal!!! 1-1. Fantástico! Quer dizer: teve de ser um dinamarquês a marcar na própria baliza; mas conta para Portugal e isso é que interessa)

    Mas, pelo menos, Ronaldo tem agora um refúgio seguro na imprensa portuguesa. Bem pode jogar mal ou ficar em branco, porque há agora um jornal que nunca mais escreverá mal dele: o Correio da Manhã…

    (e chega o intervalo)

    Aproveito para vos revelar que hoje sinto-me um privilegiado aqui nesta varanda, porque, além de o farnel da Federação Portuguesa de Futebol não ser nada mau – uma sandes de carne, um sumo e uma água, um pacote de batatas fritas e um chocolate –, tenho aqui um relato radiofónico em directo, por via dos meus camaradas do lado direito, da FlashScore. Como sou algo pitosga, é uma vantagem saber quem passa e quem remata.

    (recomeça o jogo)

    De varanda em varanda, cá estou eu a assistir agora ao recomeço desta segunda parte, ainda desconfiado e com um pressentimento que não me agrada. É certo que chegámos ao intervalo empatados na eliminatória, ainda que com ajuda de um dinamarquês confuso e bem-intencionado, mas uma selecção que só marca golos por caridade adversária é uma equipa que vive perigosamente. Se nos últimos anos Portugal se habituou a ser melhor no sofrimento do que no espectáculo, parece-me que estamos hoje decididos a exagerar no sofrimento.

    (e dito e feito; golo da Dinamarca; marca, segundo diz o camarada do lado, Rasmus Nissen, que nem sei onde joga)

    Está lindo. Estava eu para escrever que o Cristiano Ronaldo ainda deveria estar a remoer o penalty falhado, e ainda acontece pior. Agora estamos bem pior: fantasmas trágicos pairam em Alvalade – e Portugal arrisca sair da Liga das Nações sem honra e glória. Bom, mas, na verdade, ainda falta muito, e eu confio no Cristiano Ronaldo. Ainda tenho memória daquele jogo contra a Espanha no Mundial da Rússia em 2018 ou na segunda mão do play-off de apuramento para o Mundial do Brasil em 2014.

    (é goloooooooooo: Cristiano Ronaldo!!!!! Eis a redenção! Remate de Bruno Fernandes ao poste esquerdo de Kasper Schmeichel, com o CR7 a facturar na recarga)

    Enquanto escrevo estas linhas, dou comigo a pensar que as varandas têm afinal outro traço comum com o futebol português: estão sempre à beira do precipício. Basta um ligeiro tropeção, um erro infantil, um passe errado, uma hesitação, para que esta varanda épica se transforme num miradouro de derrotas, lamentos e frustrações. É um risco que se repete jogo após jogo, varanda após varanda. E hoje, mais do que nunca, temo pela queda.

    E cá estou eu, entre o pessimismo crónico e uma réstia de esperança renascida por via da redenção de Cristiano Ronaldo. O homem é assim mesmo: sempre que o enterram vivo, regressa ainda mais teimoso, mais obstinado, quase como um Lázaro de chuteiras que insiste em desafiar a sua própria mortalidade futebolística.

    (e olhem: o Ruben Dias armado em António Silva, no Benfica, permite a intercepção de um dinamarquês para um cruzamento rasteiro e golo fácil de Eriksen)

    Estamos lindos. Com este resultado, Portugal está eliminado. Não há tempo para grandes devaneios filosóficos quando se está perto do abismo, faltando menos de 15 minutos para o final. Bastou mais um momento de desconcentração, um desentendimento defensivo, para que surja novo desespero.

    Em todo o caso, há algo em mim que recomenda calma – e sobretudo a mim próprio, que tenho o coração já habituado a sofrer –, porque esta varanda, que é a primeira nesta versão, não pode iniciar-se com um fracasso. Vou aqui debicando o farnel, bebericando mais um pouco de água, petiscando outro chocolate, mais para afastar o nervosismo do que a fome. E o relógio continua…

    (e golooooooooo! Trincão!!! Nunca imaginei gritar um golo em Alvalade marcado pelo sportinguista Trincão)

    Caramba! Temos mesmo jogo. Acho que, se isto for a prolongamento, vou ficar só a assistir, porque não dá para escrever com alguma graciosidade num jogo destes que parece uma montanha-russa.

    Como dizia eu: de varanda em varanda, vou-me dando conta de que o futebol português é exactamente como esta varanda das Cinco Quinas, frágil e instável, mas ainda assim capaz de nos proporcionar emoções inesperadas. Já nos vi eliminados duas vezes esta noite e cá estamos outra vez com a alma renovada. Parece um filme repetido, daqueles que sabemos sempre como acabam, mas não conseguimos deixar de ver até ao fim, porque temos esperança de que, desta vez, o final seja diferente.

    Entretanto, Cristiano Ronaldo é substituído pelo Gonçalo Ramos, certamente para dar mais fôlego para o prolongamento. O golo que marcou serviu de redenção para o penalty falhado. Se Portugal virar este resultado, amanhã não dirão que é bestial, mas pelo menos não o tratarão por besta. É assim o nosso futebol, e acho que o de todos: bipolar, imprevisível, incoerente. Tanto passamos da euforia à depressão como regressamos, sem escalas, ao sonho. No fundo, é também por isso que se continua fiel a esta varanda, porque, independentemente do sofrimento e dos tropeções, não há nada que supere o prazer de viver momentos como este, em que nos sentimos protagonistas de uma história épica escrita ao vivo e sem guião.

    Estou a exagerar, claro – e encerram-se os 90 minutos. Vai haver prolongamento e, se me permitem, vou estar mais atento ao jogo do que à crónica durante os 30 minutos do prolongamento.

    (golooooooooo. Trincão!!! Trincão!!! Bis do Trincão)

    Estamos à frente, finalmente!!!

    Agora sim, percebo plenamente a verdadeira natureza desta Varanda das Cinco Quinas: é uma varanda masoquista, feita à medida dos sofrimentos e das angústias que tão bem caracterizam o futebol português. Estamos, é certo, novamente em vantagem, e pela improvável figura de Trincão, cuja dupla façanha de marcar em Alvalade me deixa tão surpreendido quanto desconfortável. Mas já aprendi há muito tempo que não importa a cor da camisola que vestem os heróis quando a Selecção Nacional está em causa. Sobretudo num jogo tão bipolar como este.

    Agora, deixem-me desligar este portátil por alguns minutos. Há uma certa liturgia que exige respeito: nos instantes finais desta eliminatória, que Portugal agora parece controlar, não posso estar dividido entre a escrita e o jogo. Afinal, como se sabe, as varandas, mesmo as mais épicas, são lugares perigosos. Basta um passo em falso para que a alegria se transforme num voo trágico rumo ao abismo futebolístico. E a mim, hoje, não me apetece nada cair.

    (goloooooooooo…. Gonçalo Ramos!!! 5-2! Está resolvido pelo antigo benfiquista!)

    Assim termina esta noite surreal na nova Da Varanda das Cinco Quinas, numa partida digna dos melhores (ou piores) argumentos cinematográficos: o drama inicial deu lugar à euforia inesperada. Da angústia à alegria, do pessimismo à festa, do Ronaldo bestial ao Ronaldo besta e de novo a bestial — a bipolaridade do futebol é também a bipolaridade das lusas emoções, reflectida neste espaço precário, algures entre o sofrimento e o triunfo, onde tanto me agrada estar.

    E agora que tudo está resolvido, olho com serenidade e gratidão para esta varanda improvável em Alvalade, percebendo que, afinal, talvez o futebol seja o reflexo da vida: um lugar instável e contraditório – e que venham mais noites assim, porque, no fundo, ser adepto (e jornalista pouco objectivo quando se trata de futebol) é isto mesmo: não saber como começa, desconhecer como termina, mas desfrutar sempre, apaixonadamente, do caminho até lá chegar.

  • Barcelona 1.3

    Barcelona 1.3


    Em Barcelona estou — e me confesso. Disseram-me, certo dia, que a cidade é uma festa contínua de Cultura e Futebol, e não duvidei. Tirei uns dias, como quem suspende o tempo entre trabalho e férias, com o fito de fazer Cultura — da verdadeira, a que se procura sem patrocínios nem favores — e, claro está, de ver futebol, esse último teatro das multidões.

    Agora mesmo, escrevo-vos sentado no Estadi Olímpic Lluís Companys, em Montjuïc, onde joga provisoriamente o Barça, que ficou sem Camp Nou enquanto o velho colosso se refaz, como se em Espanha até os estádios precisassem de renascimentos cíclicos. Aviso já que foi tudo pago pelo meu bolso, avião e estadia – que isso de viagens pagas para ver a bola, já sem falar em avenças, são coisas para o Montenegro.

    E foi justamente nesta bancada da imprensa, depois de ter visto a correr a ala gótica, medieval e barroca do Museu de Arte da Catalunha, entre turistas que não percebem a diferença entre um fora-de-jogo e um Lucas Cranach el Viejo, que me ocorreu uma ideia que se me afigura menos absurda do que parece à primeira vista: Portugal deve muito à Catalunha. Mais concretamente, devemos aos catalães a nossa Restauração de 1640. Se não fosse a revolta catalã que rebentou em Maio de 1640 — a dita Guerra dels Segadors, que os historiadores portugueses tão pouco lembram —, Portugal teria tido enormes dificuldades em sacudir o jugo da monarquia dual dos Filipes.

    (E começa o jogo; tive de contornar o cordão de adeptos benfiquistas, ladeados por duras colunas de guardas pretorianos da polícia de choque, e lá me enfiei estádio adentro, não sem dificuldade de encontrar o meu lugar; em todo o caso, encontrei o Lucas, o brasileiro que, no Barcelona, se dedica a escrever sobre as façanhas do Raphinha.)

    Continuemos com a História. Enquanto os exércitos castelhanos tentavam domar os rebeldes catalães, a conspiração em Lisboa aproveitou esta janela aberta. E lá se mandou um sicário às ordens dos Filipes, o Miguel de Vasconcelos, janela abaixo, e como um exército castelhano andava ocupado em manter Barcelona sob controlo, nas lusitanas terras pôde João IV ser proclamado rei e organizar a defesa.

    (Pronto! E por falar em defesa: a do Benfica já levou o primeiro, logo aos 11 minutos, pelo inevitável Raphinha, o desgraçado ex-sportinguista que, de repente, começou a meter bolas umas atrás das outras ao Trubin.)

    Enfim, sem aquela revolta catalã, os catalães estariam agora a falar catalão, uma língua que ninguém entende, a não ser eles — e eu estaria a escrever esta crónica em castelhano, que desconfio que, ao longo dos séculos, ficando o território de Portugal integrado em Espanha, o português acabaria reduzido a uma espécie de mirandês. E os brasileiros, como o Raphinha ali em baixo, em vez de ‘oi’ andariam a dizer “hola”.

    Mas a História é uma grande mestra de ironias, e não dá sem depois cobrar. A Catalunha ficou presa à Espanha, renegociou autonomias, foi castigada, renasceu, tornou-se a mais rica das regiões espanholas, depois tentou a independência e falhou, mas sempre com a altivez de quem se crê melhor do que o vizinho. Já Portugal, que fez do Atlântico o seu caminho, arrisca-se agora a não ser mais do que uma Galiza com nome próprio, ou uma Estremadura com praias. Digo-o sem despeito, mas com inquietação: há algo na comparação entre a Catalunha e Portugal que me obriga a reflectir.

    (GOLOOOOOOO! Otamendi, na marcação de um canto: renasce a esperança…)

    Este golo — e mesmo uma improvável, nesta altura, reviravolta na eliminatória — não nega uma evidência: a Catalunha, sendo uma região, perdeu a esperança de ser um país; e Portugal, sendo um país quase milenar, arrisca sempre a ser uma mera região, quase ultraperiférica numa Europa de burocratas.

    Vejam-se Lisboa e Barcelona: as infra-estruturas, os projectos económicos, a ambição industrial, a cultura, os majestosos espaços públicos, a dinâmica social — aliás, logo que cheguei, no domingo passado, o dinamismo das manifestações fez-se sentir, pela noite adentro. Mesmo sabendo-se que Barcelona é um ponto turístico de excelência e de abusos — que se há-de fazer se se tem Cultura, monumentos, gastronomia, praias, variedade de espaços, rede de transportes eficiente? —, a capital da Catalunha projecta-se como uma cidade global.

    Já Lisboa cinge-se a disputar com o Porto o título de melhor cenário para selfies e pacotes turísticos. E se os catalães olham para Madrid com desconfiança, os portugueses parecem olhar para Bruxelas com submissão, como se fosse ela a nova corte filipina, de onde se esperam verbas em vez de se afirmar soberania.

    (Olha-me esta! Golo do Barcelona, com a defesa do Benfica a deixar que o miúdo Lamine Yamal apanhe uma bola de um livre mal marcado, flicta para a esquerda e atire a contar para o cantinho do Trubin…)

    Resta-me, portanto, conformar-me com este resultado. Ou resultados: o do futebol e o de Barcelona se impor a Lisboa — que o fair play não deve existir somente na ludopédia.

    Mas vamos lá equilibrar isto, embora tenham sido os nossos antepassados a legarem-nos essa vantagem. Os catalães, coitados, têm um idioma próprio que ninguém entende, enquanto a língua portuguesa é um império cultural de 265 milhões de viventes, se bem que quase sempre alheios à origem da fala. Mas, confesso: falta-nos agora aquela pulsão de querer ser maiores do que parecemos ser, sem pedir licença a ninguém. Até no futebol sinto isso, quanto mais na vida social e política de Portugal. Aqui, por exemplo, em Montjuïc, sinto um estádio velho, como o Estádio Nacional no Jamor, remendado para servir de casa temporária ao Barcelona, mas cheio de orgulho catalão. Em Portugal, quantas vezes parece que nem casa há?

    (Mais um do Raphinha! Mas que é isto? 3-1 e nem sequer chegámos ao intervalo. Agora, nem com um milagre…)

    E todavia, não quero esquecer 1640, porque aí vencemos: eles tentaram largar Madrid, e falharam; nós largámos e ganhámos em definitivo esse direito depois da estrondosa vitória na Batalha dos Montes Claros em 1665. Foram precisos 25 anos, mas vencemos!

    (Intervalo… descansemos.)

    Portanto, a Catalunha falhou, e Portugal conseguiu, embora ache que estejamos a perder a soberania aos poucos com uma Europa de políticos oligarcas que se perpetuam em torres de marfim em Bruxelas. Mas o relógio não pára…

    E assim aqui estou com esta Da Varanda de Barcelona, especialíssima, não como quem disseca e profetiza desgraças, mas como quem regista o que vê: no relvado, os jogadores do Benfica mostram-se sobretudo resignados, como quem já só cumpre um protocolo diplomático antes da rendição. Há um corpo presente em campo, é verdade, mas falta a alma.

    Esta talvez seja a mais dolorosa metáfora para Portugal, enquanto, lendo as notícias de Lisboa, o Governo de Montenegro definha no Parlamento. Estamos, existimos, marcamos presença no concerto das nações — e na Liga dos Campeões —, fazemos discursos e chutamos umas bolas, mas, no fim, parecemos ter perdido a capacidade de ganhar ou, pelo menos, de lutar por algo mais além do aceitável ou do confortável.

    Bem se pode dizer que a Catalunha e Barcelona estão sempre a falhar, mas não desistem; e isso é, talvez, o que os faz serem vencedores no futebol. Não desistiram em 1714, quando a cidade caiu às mãos dos Bourbons; não desistiram em 1939, quando o franquismo sufocou os seus gritos de autonomia; não desistiram em 2017, quando os tribunais e a polícia impediram o seu referendo de independência. Há, aqui, uma persistência que impressiona, e que só se explica por uma auto-estima colectiva que, mesmo na derrota, os mantém de cabeça erguida.

    E nós, portugueses? A nossa auto-estima arrumou-se na gaveta dos Descobrimentos, e nem sequer se encontra num museu, porque nos envergonhamos de um passado colonialista, como se não tivéssemos nascido de povos colonizados e colonizadores. Nem o nosso passado nos vale no presente.

    (Lá em baixo, o Barça desacelerou, e o Benfica porfia, mas sem grande garra; a eliminatória está decidida.)

    Mas não se pense que esta crónica é um manifesto catalanista. É, antes, um manifesto português, escrito a partir de Montjuïc, numa bancada fria, a olhar para um jogo já perdido. Mas se há coisa que aprendemos em 1640 é que há momentos em que, mesmo sem recursos, sem apoios externos e com probabilidades mínimas, é possível mudar o rumo. Mas não será hoje… Ou melhor, não foi hoje, porque o árbitro acaba de dar a partida por terminada após dois minutos de descontos. Valeu pela visita…

    Barcelona continuará a fazer o seu caminho, com ambição e orgulho. Lisboa — e o Benfica — precisam de acordar, de uma vez por todas, para o facto de que não basta viver da memória, dos discursos ou das verbas europeias. Um país e um clube não se sustentam apenas com boas intenções e cartões-postais. E se quisermos, como em 1640, ser donos do nosso destino, talvez seja tempo de voltarmos a acreditar que o impossível não é uma sentença, mas um desafio. E trabalhar um bocadinho com mais afinco e determinação.