Etiqueta: Da Varanda da Luz

  • Arouca 5.0

    Arouca 5.0


    Há quem diga que a vida é feita de grandes eventos. Que a História avança em sobressaltos, de batalha em revolução, de tratado em catástrofe. Os manuais de filosofia, porém, já nos ensinaram — e com razão — que o essencial raramente se veste de pompa. Assim se explica que, entre guerras no Médio Oriente e na Ucrânia, crises políticas e abalos financeiros, o evento deste fim-de-semana de maior relevância — para a pátria lusa e suas diásporas — seja, sem margem para dúvida metafísica, as eleições do Sport Lisboa e Benfica.

    Rezam as crónicas, e confirmam as estatísticas (que, como Deus, às vezes também jogam pelo Benfica), que se bateu o recorde de votos, e logo mundial, eleições num clube de, ou com, futebol. Acreditemos, porque isto é uma crónica – e não uma notícia. Estaremos assim um feito democrático digno da Ágora ateniense, se a Ágora tivesse ecrãs gigantes, cerveja sem álcool e a habitual romaria de camisolas vermelhas. Ou não tanto, porque aqui a democracia mede-se pela antiguidade: se eu tivesse votado – o que não fiz por preguiça de ir para a quilométrica fila indiana –, teria valido 50 votos, uma vez que este ano perfiz 25 anos de sócio.

    Dir-me-ão que exagero na Ágora ateniense. E eu responderei com a serenidade dos cronistas que observam o mundo do alto da varanda — e da Luz. Quando 83 mil almas atravessam a cidade para sufragar um presidente de clube, é porque a política morreu e a paixão tomou o poder. A polis, no seu estado puro, já não se reúne em parlamento, mas em estádio.

    Em todo o caso, para os adeptos benfiquistas, o evento do dia acabou por ser a inesperada conjugação dos astros: um jogo descansado, com ritmo, uma mão-cheia de gotos e um hat-trick de Pavlidi. A multidão vibrou, os telemóveis filmaram, as redes sociais inflamaram-se. Não foi ainda o 15 a zero sempre pedido pelo Ricardo Araújo Pereira, mas há muito não se viam, tantos golos desta varanda. No fundo, foi a versão moderna do milagre das rosas: o público pediu um golo, e vieram cinco. Não há mística maior.

    Para o árbitro Hélder Carvalho, a relevância do evento foi outra: a existência do VAR, que teve o condão de o livrar do odioso de não marcar dois penáltis em menos de um quarto de hora (aos 5 e aos 18 minutos de jogo) tão claros como a luz que dá nome ao estádio. A tecnologia, que noutros campos ameaça a humanidade, aqui redimiu os seus pecados. O árbitro viu-se absolvido pela máquina. Santo VAR, rogai por vós!

    Já para o meu amigo Lourenço Cazarré, escritor do Rio Grande do Sul, vivente em Brasília e observador da alma humana, a tarde foi de deslumbramento etnográfico. Vindo do Brasil, onde o futebol é religião politeísta, encontrou no Estádio da Luz uma liturgia diferente: menos samba, mais coreografia; menos improviso, mais espetáculo.

    Disse-me ele — ou estarei já a inventar — que o futebol português é o único teatro em que o público paga para sofrer, e agradece quando sofre menos. Lá o levei, pois, entre bifanas, coiratos e cervejas – esta parte é mentira – , a ver a águia Vitória, majestosa, sobrevoar o estádio. E o homem, habituado a pássaros tropicais, emocionou-se: “Isto é civilização, Pedro. Um país que ensina uma águia a cumprir o hino é um país que ainda acredita em símbolos.”

    Enfim, também aqui estou a ficcionar – mas ficaria sempre bem ele ter dito isso. Na verdade, ele viu o jogo na bancada central, um pouco mais abaixo Da Varanda da Luz, para onde levei o seu premiado livro ‘Breve memória de Simeão Boa Morte e Outros Contos Poéticos’, com o qual venceu justamente o Prémio Imprensa Nacional Ferreira de Castro.

    Para mim, confesso, o evento foi especial por simplicidade. Não sou dado a epifanias, mas há momentos em que um cronista, cansado de descrer, reencontra a simplicidade do espanto. Ora, para este jogo, cheguei cedo — anormalmente cedo, que é como quem diz sem o habitual atraso filosófico — e consegui assistir àquilo que há muito me escapava: o voo completo da Vitória. Um círculo perfeito sobre o estádio, o bater lento das asas, o mergulho gracioso até ao emblema. Nenhum drone, por mais caro, conseguiria tamanha elegância.

    Depois veio o espectáculo de luzes — porque até os deuses modernos precisam de LEDs —, e finalmente, pasme-se, vi todos os golos. Nenhum à distância, nenhum repetido em ecrã. Todos ali, em carne, relva e suor. Acontecimento raro, e portanto memorável – basta confirmar nas minhas múltiplas crónicas mais recentes.

    Mas a relevância dos eventos, aprendi, não se mede pela sua magnitude exterior. Mede-se pela coincidência feliz entre o tempo, o olhar e a alma. Um jogo de futebol pode ser banal para quem apenas lê o resultado – e este foi –, mas para quem o viveu, pode ser a pequena eternidade de um sábado à noite. Enquanto a multidão gritava, eu pensei no filósofo Heraclito: “Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio.” Pois também ninguém vê duas vezes o mesmo jogo, ainda mais um 5-0 — nem mesmo quando o adversário é o Arouca.

    E contudo, há em tudo isto uma moral discreta, que se impõe ao cronista com a força da evidência: a vida é uma sucessão de eventos de que só percebemos a importância quando já passaram. Assim como a águia que voa e volta ao seu posto, também nós giramos em torno dos nossos rituais, convencidos de que controlamos o tempo, quando apenas o acompanhamos.

    Enfim, a relevância de um evento não está na sua escala, mas no seu significado. Para uns, um jogo; para outros, uma eleição; para mim, a certeza de que, por uma vez, nada falhou — nem o VAR, nem a águia, nem o relógio. Vi tudo os golos de uma vitória – e isso basta-me.

    E, se querem que vos diga, talvez seja essa a suprema ironia da vida moderna: precisamos de um estádio cheio para perceber que o que realmente importa é chegar a horas. Chegar a tempo de ver a águia voar, o primeiro golo entrar, e o amigo Cazarré satisfeito. Tudo o resto — as eleições, os recordes, os comunicados — são apenas VARs existenciais: correcções tardias de decisões já tomadas.

    Moral da história: a relevância de um evento não depende do mundo o reconhecer, mas de nós o termos vivido antes que passasse o prolongamento. E, já agora, se puder ser com cinco golos e sem penáltis por marcar, tanto melhor.

    Ou, de forma mais prosaica, talvez seja essa a verdadeira lição deste Da Varanda da Luz, onde cada vez se fala menos de futebol: que a felicidade raramente se programa, apenas acontece — no instante exacto em que o cronista levanta o olhar e percebe que, por uma vez, o mundo inteiro está em ordem: a bola entra, a águia pousa, o estádio vibra, e a crónica escreve-se (quase) sozinha.

  • Gil Vicente 2.1

    Gil Vicente 2.1


    Há quem me acuse, e com razão, de sofrer de um problema crónico de pontualidade. Admito-o sem resistência, embora com um pequeno pedido de contexto: eu, que tantas vezes chego tarde, nunca falho uma promessa. Se digo que vou, vou. E é aí que nasce o meu outro problema — o da assiduidade. Porque, sendo pontualmente atrasado, sou assiduamente presente. E, assim, como uma pescadinha de rabo na boca, lá vou eu: presente mas atrasado, assíduo mas em cima do apito. Só que, ultimamente, nem isso. A minha pontualidade, já de si vacilante, entrou em colapso existencial.

    A verdade é que, nesta época, o atraso ganhou corpo, fôlego e até uma certa dimensão metafísica. Tenho chegado tão tarde que já nunca assisto ao ritual aéreo da Glória — ou da Vitória, ou da Luz, já me baralho entre as águias — nem tão-pouco me cruzo com uma delas no elevador, como acontecia noutros tempos em que o atraso era ainda um luxo de minutos. Agora, é uma eternidade.

    Entre o excesso de trabalho, o excesso de jogos e a crónica pressa de quem quer fazer tudo e acaba por fazer quase nada a tempo, os meus atrasos tornaram-se sistemáticos. E esta época já são mais os golos do Benfica que perdi do que os que vi, sobretudo porque até tem havido golos iniciais, e depois minga tudo. Um número triste, quase estatístico.

    O caso mais doloroso foi, talvez, o jogo com o Qarabag. Um desastre desportivo – e para mim muito pior: não vi um único golo do Benfica. Quando finalmente subi as escadas e alcancei a bancada — aos 15 minutos —, já o marcador registava 2-0 a favor do Benfica. Depois, foi o que se viu — e eu vi. Um duplo (ou triplo) murro no estômago. Não há timing que resista a isto.

    Desde então, parece que o destino decidiu ensinar-me que, quanto mais corro para chegar a tempo, mais o tempo foge. Porque, desde essa partida, o que tenho visto é só desgraça, mesmo com o José Mourinho, mostrando que até eu arriscaria a não fazer pior.

    E assim sucedeu mais um atraso com o jogo do Gil Vicente – e mais uma desgraça, apesar da sorte de um resultado de 2-1 a favor do Benfica, muito lisonjeiro face ao desempenho. Tinha regressado do Porto na tarde anterior, exausto, depois de um julgamento tão bizarro que só a tragicomédia portuguesa o poderia engendrar. Ainda tive de passar por um concerto – menos mau, ou muitíssimo bom, para ser sincero.

    Esta sexta-feira, o corpo pedia repouso, a mente clamava por pausa, mas a agenda — essa entidade diabólica — já tinha decidido por mim. Enfim, os dias atropelam-se, as horas evaporam-se e o relógio parece conspirar. Há um momento, aliás, em que dou por mim a pensar — com um certo temor — que o trabalho mata. Mata o descanso, mata o tempo livre e, sobretudo, mata a capacidade de chegar antes do minuto quinze.

    Mas a pior parte nem foi essa. Ao chegar ao estádio, com mais de meia hora decorrida da primeira parte, e o resultado (sem eu o saber então) já feito (o Gil Vicente adiantou-se aos 11 minutos e o PAVlidis deu a reviravolta aos 18 e 26 minutos), soube que uma agência de comunicação — a JLMA — me boicotara uma cacha sobre a Impresa. Uma irritação monumental. O corpo cansado, a cabeça a latejar, o jogo correr e, ainda assim, havia notícia.

    Respirei fundo e decidi: havia matéria para se escrever — e nãopodia ficar para a amanhã. Afinal, a Impresa tinha de comunicar à CMVM as negociações com os italianos da MFE — os herdeiros de Berlusconi, antigo dono do AC Milan — por se tratar de informação privilegiada.

    Entre o som do público e o rumor de fundo das teclas, falei com a Elisabete e lá fomos redigindo o artigo, a meias — eu sentado na Varanda da Luz, com o portátil perto do famoso farnel do Benfica, metendo de vez em quando um olho no relvado, outro no ecrã, e um terceiro (imaginário) no relógio.

    E foram nesses instantes, no meio desta fusão absurda entre futebol jogado pessimamente, jornalismo e cansaço, que me veio à mente uma das frases mais sombrias da História da Humanidade: Arbeit macht frei — “O trabalho liberta.”

    A expressão, hoje impregnada de horror, nasceu num contexto muitíssimo menos macabro do que aquele que a imortalizou. Surgiu na Alemanha do século XIX, num tempo em que o trabalho começava a ser exaltado como instrumento de regeneração moral e de ascensão social.

    O lema foi popularizado pelo escritor Lorenz Diefenbach, num romance publicado em 1873, intitulado precisamente Arbeit macht frei: Erzählung von Lorenz Diefenbach. Nele, o autor apresentava o labor como antídoto contra o vício e a degradação, um caminho para a virtude — a ideia de que o esforço dignifica e redime. Adoptada por movimentos culturais e associações laborais, a expressão ganhou o estatuto de máxima edificante: uma versão germânica do “pelo trabalho se vence”.

    Foi, no entanto, essa mesma frase, esvaziada do seu sentido moral e apropriada pelo nazismo, que viria a adornar os portões de Auschwitz, Dachau e outros campos de concentração. Aí, transformou-se na mais cruel das ironias: aquilo que prometia dignidade passou a anunciar aniquilação. O trabalho já não libertava o espírito — esmagava o corpo; já não regenerava — exterminava. Tornou-se símbolo da perversão total da linguagem, prova de que até as palavras podem ser escravizadas.

    Essa metamorfose semântica — da virtude à infâmia — mostra como as palavras têm destino, e como um ideal moral pode ser capturado e deturpado por uma ideologia que faz da mentira o seu alicerce.

    Enfim, ali sentado na bancada, de portátil aberto e olhos divididos entre o relvado e a notícia sobre a Impresa, dei por mim — perante as contingências de mais um jogo deplorável, mesmo com Herr Mourinho nas redes — a cometer uma pequena heresia semântica: a paráfrase. Sim, arrisco dizê-lo — e que me perdoem os deuses da semântica e da História —, o trabalho liberta.

    Mas liberta-nos de quê? No meu caso, libertou-me de ver um jogo confrangedor. Libertou-me da angústia dos passes errados, dos cruzamentos para o nada, dos remates à figura e das expressões perdidas de quem já não sabe o que fazer à bola. Aliás, nem sequer vi em directo o jogo anulado ao Gil Vicente por seis centímetros – uma dimensão completamente obtusa como escrevi em tempos.

    Portanto, o trabalho libertou-me… de sofrer mais do que o necessário. Se não estivesse a escrever sobre a Impresa, teria sido tortura em directo. E assim, decidi que esta época vou passar a levar sempre um tema noticioso para a Varanda da Luz — um colete de salvação emocional. Se o Benfica tropeçar em campo, eu refugio-me no texto e poupo-me à agonia. Será a minha nova estratégia defensiva — mais eficaz do que qualquer lateral esquerdo improvisado.

    E se algum dia conseguir convencer os benfiquistas a seguir este método, trabalhando para se anestesiarem do que se passa no relvado, acredito que o PIB nacional vai subir em flecha, invertendo o mito de que a Economia portuguesa se expande quando o Benfica é campeão.

  • Rio Ave 1.1

    Rio Ave 1.1


    Há uma diferença subtil mas devastadora entre o desencanto e a desilusão. O desencanto é um abatimento da alma, uma espécie de resignação melancólica perante aquilo que já sabíamos, no íntimo, não poder ser muito diferente – é o fumo que se dissipa depois da chama, sem surpresa.

    A desilusão, pelo contrário, é mais cruel: exige que antes tenha havido uma ilusão, uma crença, uma esperança pintada com as cores da vitória, um engano a que nos entregámos de boa vontade. A desilusão é, pois, um duplo golpe: não só perdemos o que desejávamos, como ainda descobrimos que fomos ingénuos ao acreditar.

    No futebol, como na vida, raramente temos o luxo de escolher entre um e outro. Mas se pudesse escolher, preferiria o desencanto, porque é menos corrosivo: dói, mas não humilha. A desilusão, essa sim, traz consigo a vergonha íntima de termos acreditado demasiado cedo, de termos caído na armadilha do entusiasmo. E o Benfica, por estes dias, parece especializado em fabricar ilusões com validade curtíssima — como aquelas promoções de supermercado que enchem o saco por instantes e, quando chegamos a casa, percebemos que o que levámos não serve para a refeição que queríamos cozinhar.

    Foi mais ou menos isso o que se passou com a entrada de José Mourinho. À saída de Bruno Lage, a alma benfiquista respirou como quem larga um fardo. E ao ver chegar Mourinho, mesmo já sem a aura de ‘Special One’, ainda se acendeu a ilusão de que os pergaminhos de glórias passadas poderiam obrar uma reviravolta numa equipa de milhões. Acreditou-se — ou melhor, iludiu-se — que o nome por si só poderia impor disciplina, intensidade e génio, como se a simples presença fosse suficiente para pôr os jogadores a correr e a pensar como outrora.

    A vitória por 3-0 na Vila das Aves, contra o AVS, ainda que com mais eficácia do que futebol, funcionou como tónico ilusório. Afinal, as chicotadas psicológicas pareciam existir mesmo. Quem não se deixou embalar pela doce narrativa de que o problema estava resolvido, que o feitiço Mourinho começava a operar, que em breve voltaríamos a ver uma equipa competitiva? Pois bem: pura ilusão. E como toda a ilusão, cedo ou tarde, veio a fatura: a desilusão.

    Esta terça-feira esperava-se fogo, intensidade, soluções. Mas o que se viu foi cinza: novamente, uma equipa sem chama, repetindo erros, sem clareza de ideias. Os adeptos, mesmo na sua ingenuidade, foram mantendo-se iludidos. Eu incluído. “Ainda vem aí o raspanete ao intervalo”, pensei, como se Mourinho fosse capaz, em dez ou quinze minutos de palavras, de converter o chumbo em ouro.

    Nada disso. Mesma lógica, mesmo arrastamento, até que um golo fortuito pareceu cair do céu. Mas a suspeita do VAR, como um dedo que puxa a manta e revela a nudez da realidade, devolveu-nos à verdade.

    Quando Sudakov marcou aos 87 minutos, in extremis, já não se tratava de ilusão, mas de sobrevivência: uma réstia de esperança sustentada mais pelo hábito de acreditar do que pela convicção no que se via em campo.

    E eis que vieram os sete minutos de descontos, o momento em que se podia sonhar com o Benfica de outros tempos, o que sabia transformar a ansiedade em triunfo. Mas também aí o real se impôs: como contra o Santa Clara, um contra-ataque fatal e o empate do Rio Ave, uma equipa de tostões a arrancar aos milhões encarnados a prova irrefutável de que, afinal, não era desencanto o que se instalava, mas a desilusão em toda a sua crueza.

    Desencanto seria, enfim, nada esperar e, por isso, não sofrer nada. Desencanto seria ver o Benfica empatar e pensar: “Era previsível, é esta a nossa medida, já nem espero melhor.” Mas o que houve foi mais doloroso: houve um acreditar prévio, uma ilusão cultivada pela vitória anterior, pelo nome do treinador, pela aura ainda reluzente das memórias passadas. Houve um entregar-se ao engano. E por isso o golpe dói mais: não é apenas a perda de dois pontos, é a consciência de que fui cúmplice do autoengano.

    E aqui percebo claramente a diferença entre viver no desencanto e viver da desilusão. O desencanto é um estado quase filosófico, de aceitação amarga, mas serena.

    A desilusão é um lamento jocoso: rimo-nos da nossa ingenuidade, mas por dentro ficamos a sangrar. E o Benfica desta época não nos deixa viver no desencanto, o que seria até suportável — insiste em nos iludir primeiro, para depois nos desiludir com maior estrondo.

    A moral da história é que, no futebol como na vida, é preciso aprender a desconfiar das ilusões fáceis. Mourinho não é mais o ‘Special One’, e receio que não será em semanas que transformará uma equipa instável numa máquina de vencer. Talvez traga ordem, talvez traga resultados, mas não trará milagres. E cada vez que acreditarmos em milagres, pagaremos com a moeda da desilusão.

  • Santa Clara 1.1

    Santa Clara 1.1


    Cheguei atrasado mais uma vez, confesso. Não foi, como alguns poderiam suspeitar, por desleixo, mas antes por uma espécie de cálculo tácito: há jogos para os quais se vai com espírito de peregrinação, há jogos que exigem pontualidade de relógio suíço, há jogos em que se chega cedo para beber o ambiente, como se o estádio fosse templo e o aquecimento liturgia. E depois há estes jogos, os burocráticos, que mais parecem formulários do campeonato: é preciso preenchê-los, carimbar e entregar, mas sem alma.

    Este Benfica-Santa Clara, empurrado no calendário para uma sexta-feira pela avidez das competições europeias, tinha precisamente esse ar de expediente, de nota de rodapé. Entrei, portanto, tarde e resignado, sem a vertigem das noites grandes, convencido de que seriam noventa minutos mornos, um resultado previsível, apenas a decidir a margem da vitória.

    E o jogo, generoso na sua mediania, confirmou as expectativas. O Benfica rodava a bola como quem lava-loiça ao fim do jantar: movimentos repetidos, gestos mecânicos, nenhum prazer. O Santa Clara, obediente até à caricatura, defendia-se com disciplina açoriana, fechado como quem enfrenta um temporal no canal da ilha. Uns ossos de jogada aqui, uma tentativa ali, mas sem chama.

    Parecia um treino puxado, desses em que os músculos sofrem mais do que o coração vibra. Até que, no meio da pasmaceira, um gesto desastrado trouxe a primeira variação: o lateral esquerdo do Santa Clara, Paulo Victor, tão certinho na postura, acertou certeiro na cara de Tomás Araújo. Amarelo, revisão do VAR, cartão vermelho, onze contra dez.

    A monotonia parecia abrir-se para a lógica inevitável: mais de uma hora para transformar a superioridade numérica em golo. A Luz suspirou, convencida de que a vitória estava sendo inscrita nas estrelas, mas afinal estava apenas rabiscada no acaso.

    Mas o futebol, esse grande mestre de ironias, não se deixa domesticar por estatísticas nem por aritméticas simplórias. Chegou o intervalo e nada. E a segunda parte prolongou a mesma ladainha: passes falhados, cruzamentos sem nexo, remates desinspirados, circulação de bola digna de um colóquio sobre burocracia.

    O Santa Clara, em inferioridade, parecia até mais inteiro do que antes, como se o vermelho o tivesse purificado. Só num canto o destino se dignou aparecer: Otamendi, num rasgo de autoridade, cabeceou com violência; o guarda-redes defendeu para a frente; Pavlidis, carniceiro de área, empurrou para dentro. A Luz respirou, aliviada. A ordem natural parecia restaurada.

    Só que, como sempre, a ordem natural do Benfica é o caos. Vieram minutos de posse inócua, de ataques em piloto automático, de remates que não lembram a ninguém. A sensação era a de que o jogo caminhava para a vitória magra, daquelas que envergonham pouco sem inspiram ninguém.

    E foi então que se cumpriu a lição amarga. Noventa minutos no relógio, mais quatro de compensação, e muitos já a levantar-se para fugir ao trânsito e regressar às suas vidas. É nesse instante de confiança, nesse segundo de abandono, que o futebol escolhe cravar a sua punhalada.

    Numa bola para a frente, Otamendi, em vez de pontapear a bola para onde calhasse, decidiu ser artista: quis recuar de cabeça para Trubin, gesto de elegância que o destino tratou de ridicularizar. Falhou o cálculo, ofereceu o presente, e um avançado do Santa Clara, do qual não quero aqui perpetuar o nome – e com a frieza de quem sabe que é nos instantes roubados que se fazem as grandes memórias – empatou.

    Um a um. Silêncio. Um estádio gelado, reduzido a murmúrios. E depois a aumentar em assobios quando o árbitro deu o apito final. Um banho de água fria que nos lembra que a confiança, quando excessiva, é arrogância. O colapso da certeza é sempre repentino.

    Há quem insista que isto é apenas futebol. Mas basta estar na Luz, nesse instante, para perceber que não é. Quando estas fífias surgem não se sente apenas a perda de dois pontos – é um reencontro com a fragilidade, com a precariedade das coisas humanas. É a pedagogia cruel de certos jogos do Benfica que mostra que nada é inevitável, que o destino não se cumpre por decreto, que até a superioridade numérica é apenas uma ilusão.

    No fundo, um golo contra o Benfica nos momentos finais, aqui na Luz, nunca e apenas azar, mas também aselhice. . E, nestes momentos, resta-nos a amarga resignação.

    número três t

  • Tondela 3.0

    Tondela 3.0


    O número três tem uma carga simbólica difícil de ignorar. Não por ser o primeiro número que nos faz sentir a repetição, mas sim por prenunciar uma eventual permanência: depois do um que se arrisca, e do dois que confirma, chega o três que sela, consagra e promete duração. Há quem veja nele a perfeição — Pai, Filho e Espírito Santo; passado, presente e futuro; início, meio e fim. Mas também há quem perceba no três o perigo da rotina, o prenúncio de que uma ideia que começou fresca corre o risco de ficar viciada. E é nesse dilema que se encontra este Da Varanda da Luz, agora a entrar na sua terceira temporada.

    As más-línguas já disseram tudo e o contrário de tudo: que um jornalista que se apresenta como independente e rigoroso não deve entregar-se a crónicas futebolísticas, caseiras e subjectivas; que um fervoroso sócio do Benfica não pode sentar-se numa varanda e, de lá, fazer o papel de cronista; que isto é como confundir o relato íntimo de um jantar em família com o relatório de contas da EDP.

    Talvez tenham razão, talvez não. O certo é que a varanda, com as suas vistas imperfeitas e o coração a bater pelo vermelho, se tornou, para mim, lugar de reflexão e catarse, e já não é só minha: quem lê acompanha-me nesta liturgia quase quinzenal, entre nervos, vitórias suadas e derrotas que doem como punhais.

    Mas há um problema que este número três já carrega consigo, e não é pequeno: se há terceira temporada, tem desta vez que haver caneco. A matemática é cruel. O futebol vive da fome insaciável de conquistas. Um ano sem título para o Benfica é tropeço; dois anos sem título é drama; três anos sem título começa a ser vergonha. E assim, o número que devia trazer perfeição ameaça instalar o ridículo. Não porque esta crónica seja caseira e subjectiva — isso até pode ser um charme, uma espécie de antídoto contra a pompa vazia da crónica oficializada —, mas porque a sucessão de épocas sem festa no Marquês transforma qualquer escrita de um benfiquista numa ladainha de desculpas, revoltas e esperanças adiadas.

    O ridículo, afinal, não mora tanto na varanda, mas na equipa. E como separar o cronista do seu objecto? Se a terceira temporada chegar sem campeonato, quem escreve arrisca-se a ser cúmplice de um fado menor, cronista de um vazio, padre de uma missa sem fiéis. É a sina de quem mistura paixão e profissão, casa e ofício. Talvez o mais independente dos jornalistas seja aquele que, ao assumir a sua subjectividade, se entrega sem máscaras, sem as frases feitas da imparcialidade de fachada. Talvez haja mais rigor em declarar a parcialidade do que em escondê-la debaixo de um casaco de cinismo.

    Em todo o caso, esta não é a minha estreia esta época. Já aqui estive há duas semanas, a limpar o Nice — e foi uma beleza: daqueles jogos em que tudo parece fácil, em que a equipa acerta passes de olhos fechados e a superioridade se sente como uma evidência. Tive a sorte de ter o Tiago Franco a escrever à distância. Enfim, para começar, não foi mau: uma vitória limpa, fresca, sem nódoas, daquelas que fazem acreditar que o ano vai correr direito. Veremos, na próxima terça-feira, se vamos mesmo apear o Fenerbahçe do José Mourinho. Mas isso são contas para outro rosário, e a missa será rezada na devida altura.

    Como qualquer benfiquista que se preze, começamos sempre um campeonato com alguma aflição. Não como no ano passado ou há dois anos, em que entrámos sempre com o pé esquerdo, mas o jogo contra o Estrela da Amadora, na semana passada, não convenceu ninguém. Foi vitória, é certo, mas com exibição deslavada, sem nervo, como se a equipa tivesse decidido entrar em campo de pantufas.

    Contra o Tondela, temos meia equipa diferente do ano passado — e não sei ainda se é para melhor. Financeiramente, acredito, é bom para os empresários. Em todo o caso, o Ivanovic parece que vai fazer uma boa parelha com o Pavlidis; Richard Ríos trouxe intensidade, mas parece-me que terá dias; o novo Enzo (depois do Pérez e do Fernández) tem alma; e os laterais, Dedić (sobretudo este) e Rafael Obrador, acrescentam opções. Mas, ironicamente, continuo a achar que a melhor aquisição é um jogador que já cá estava: Aursnes, que a cada época me parece (ainda) melhor, mais completo, ainda mais polivalente, mostrando que até a extremo-direito joga excepcionalmente bem, como se fosse crescendo com o próprio peso da camisola.

    Enfim, mas devia estar a falar em concreto do jogo contra o Tondela. E aí, confesso, foi daqueles serões que mais parecem um chá morno ao fim do dia. Uma noite de sábado calma, sem sobressalto algum, a aguardar os golitos, uns bocejos a preencher o intervalo, e uma crónica escrita quase em piloto automático. Nada a apontar de grave, nada a exaltar de épico. Apenas o ofício de ganhar, que também faz falta, mas que não chega para incendiar a alma.

    E, nem de propósito, e para fechar a crónica como começou, o miúdo Prestianni — o único jogador do Benfica que está à minha altura, com os seus 1,66 metros — selou a vitória com o terceiro golo, já nos descontos. Bom presságio.

  • Uma pré-época agradável

    Uma pré-época agradável


    Longe vão os tempos em que uma pré-época me entusiasmava. A idade, as desilusões, os erros das administrações benfiquistas e os arranjos do futebol português já me ensinaram que, por norma, a qualidade dos reforços não define o sucesso de uma época — pelo menos dentro de portas. Ainda assim, devo assumir que esta pré-época me tem feito virar um pouco a cabeça e prestar alguma atenção.

    Desde logo, pela qualidade dos adversários nos jogos de aquecimento. Em vez dos habituais Étoile Carouge, Servette e uma equipa qualquer da segunda divisão austríaca, desta vez o manto sagrado foi até à Flórida para não perder com o Boca Juniors ou o Bayern de Munique; seguiu-se o Fenerbahçe de Mourinho, o poderoso Sporting com Fábio Veríssimo e o Nice, quarto classificado da liga francesa, vezes dois.

    Quatro vitórias seguidas sem que Trubin sujasse o fato ou Bruno Lage tentasse inventar a roda fizeram-me, de facto, parar com a lida do jardim para abrir algo fresco e olhar para a televisão.

    Há, desde logo, um evidente acerto nas contratações a que já não estava habituado. Em vez de Tengsted ou Jurásek, a direcção optou por comprar jogadores de futebol — o que, tratando-se de uma equipa profissional do referido desporto, é uma tremenda ajuda.

    Rapaziada que chega, entra em campo e joga sem entraves. Não precisam de tempo de adaptação, não são influenciados pelo clima, adeptos, tipo de bola ou altura da relva. Ou, como diria o meu avô, quem toca cavaquinho toca tudo o que tenha cordas.

    Não há nada melhor para o clássico “abre-olhos” do que um ano eleitoral. Na minha ilha também funciona assim. Por norma, vem um rapaz com uma sanfona tocar umas coisas nas festas mas, como em Outubro há autárquicas, este ano vem a Deslandes. Com o Rui Costa é igual: em vez de Meïtés ou aleijados do PSG, resolveu ir arranjar outro Enzo argentino. Não é possível falhar com Enzos argentinos.

    Ríos, Barrenechea e Dedić pegaram de estaca. Saíram na Portela com as botas calçadas e não precisaram de muito para mostrarem ao que vinham. Ivanovic, não sendo o prodígio que parece pensar ser, é uma excelente muleta para o sublime Pavlidis, e Bruno Lage, finalmente, resolveu voltar ao 4-4-2 de boa memória.

    Sem João Félix, que decidiu pendurar as botas, Lage vai tentar recriar a dupla Jonas/Félix com Pavlidis e Ivanovic, usando apenas um extremo, já que a outra ala estará entregue ao faz-tudo norueguês. A única forma de não se criticar Lage por armar um 4-4-2 sem dois extremos puros é todos perceberem que Fredrik Aursnes é o jogador mais importante do plantel e tem de jogar, nem que seja à baliza.

    Os jogos com o Nice não tiveram grande história e, ao olho mais treinado, poderá parecer que o Benfica disputou a eliminatória com uma equipa banal. Mas não. O Nice tem uma excelente equipa, talhada para o contra-ataque e com uma defesa robusta. O Benfica foi surpreendentemente superior e controlador para esta fase da temporada, e praticamente sem paragem para férias. Até os níveis físicos foram estranhamente bons.

    Segue-se o Fenerbahçe de Mourinho e a venda de Akturkoglu, na caminhada para a fase regular da Champions, o habitat natural de uma equipa como o Benfica (ou o Porto). Veremos o que Agosto trará e levará nas habituais corridas do mercado.

    Pessoalmente, ficaria satisfeito se evitassem disparates de última hora, como a venda de Pavlidis e, já agora, a compra de um extremo que não vá até à linha para passar a bola para trás.

    Ah, e outra nota importante: agora que comprar por 20 ou 30 milhões passou a ser ‘uma terça-feira de trabalho’ na Luz, espero que alguém esteja a fazer contas. Não queremos mais empréstimos obrigacionistas, vendas como a do João Neves e, muito menos, intervenções da UEFA quando estivermos com as calças na mão.

    Venha de lá o Estrela da Amadora para voltarmos à realidade e aos jogos com 45 minutos de tempo útil.

    Fotos de Pedro Almeida Vieira (preguiçosamente no estádio, depois de ter perdido quase meio jogo…)

  • Eduardo Mãos Marotas provocou o apagão do século

    Eduardo Mãos Marotas provocou o apagão do século


    Cristiano Ronaldo, melhor jogador do Mundo desde a extinção dos dinossauros, que da pedra poliam jogadas de força — e um dos melhores da Academia de Alcochete —, é tão bom profissional que depois dos treinos mergulha numa banheira de gelo.

    Eduardo Quaresma, melhor animador do balneário e dessa prestigiada Academia desde os tempos de Bruno de Carvalho, é tão irresponsável e ligado à corrente que quando chega a casa atira-se à namorada.

    Ai, Edu, se continuas assim qualquer dia dá golo!

    Quando o ovo estrelado lhe rebentou no prato, ao comer uma alheira de frango por causa da dieta, o treinador Rui Borges teve um estranho pressentimento sobre o jogo com o Gil Vicente. Sem Ousmane Diomande, castigado por preconceito religioso do Conselho de Disciplina, teria de colocar no centro da defesa o holandês com nome de Santo Justo. Em tempos de comoção pela morte do Papa, poderia a equipa de arbitragem aproveitar as correrias dele, como na final da Taça do ano passado, para pilhar galinhas em terra relvada, a fim de animar a prima delas que se exibe pelos ares no Estádio da Luz em troca de uma ração de minhocas.

    Ana Luísa, isto não está a saber-me bem. A minha avó já dizia que a alheira é como a verdade desportiva: na nossa terra só se faz com carne de porco.

    Com 11 batatas fritas no lugar das caricas dos tempos de Mirandela, o treinador transmontano desenhou na toalha de riscas verdes e brancas um plano para, em caso de necessidade, dar a volta ao resultado. Colocou Eduardo Quaresma de início, ao lado direito do Justo, com o objectivo estratégico de compensar as corridas em profundidade com fintas e piadas enervantes a toda a largura do campo.

    Vai lá e manga com eles, rapaz. Não lhes dês vagar!

    E o Eduardo assim subiu ao relvado, de camisola às riscas, disposto a espalhar a mostarda no nariz dos adversários. Para reprimir as saudades de casa, durante 90 minutos mais tempo de sobremesa, aproveitou os pontapés de canto para lhes contar que o galo de Barcelos tem pele de galinha da segunda circular e provavelmente é transgénico. Em lugar de se rirem com uma piada tão sofisticada, provavelmente de Dijon, eles só se atiravam para a relva em lágrimas. E assim foram passando o tempo, para contentamento culinário do treinador que tinha prometido dar o título ao do outro lado.

    Chorem e rebolem muito, rapazes. Isto está quase!

    Com o jogo a dar as últimas, Eduardo mudou de táctica: calou-se muito caladinho e enfiou-se de surra na meia-lua. Aos 93 minutos, num derradeiro pontapé de canto, a bola veio ter com ele, redonda como a maçã com que Eva tentou Adão, para nossa eterna perdição e pecado diário de concupiscência. Cheio de saudades, o rapaz lembrou-se do último treino em casa. Sentiu-se como o marinheiro Popeye a comer espinafres, depois de um prolongado jejum no mar alto. Tirou as medidas aos postes, que lhe pareceram tão familiares como tentadores, e deu à bola uma cacetada carinhosa, com selo de amor e de golo.

    — Golo, golo, golo! Eduzinho, Eduzinho, eu não te dizia? Toma banho depressa, que eu já te preparei o jantar de que tu mais gostas.

    E foi assim que o derby decisivo ficou resolvido, por antecipação e com dois resultados possíveis. A descarga eléctrica no estádio, do relvado às bancadas, foi tamanha que poucos dias depois provocou um apagão na Península Ibérica, que deixou às escuras todos os grandes estádios, do Riazor ao Mestalla. O inesperado fenómeno inspirou Bruno Lage a fazer, à luz das velas, uma reza a São Narciso e uma premonição histórica.

    — Vai ser o jogo do Século.

    Pelo sim pelo não, realizou-se ainda de dia e às claras, com os comboios parados e o metro outra vez avariado. Como se tem visto em muito clubes, não é fácil recuperar de um apagão. Victor Gyökeres, que é uma turbina nuclear, apresentou-se ao guarda-redes Trubin a meio gás. Já o capitão Morten Hjulmand, em compensação nórdica de potência, rolou sobre a relva como eólicas em noite de tempestade, com energia para dar e vender caro, quer os clientes queiram ou não.

    Retrato ao estilo de Caravaggio (‘pintado’ pelo ChatGPT) alusiva à (suposta) falta de um jogador do Benfica contra o Gyökeres, belíssimamente fotografada por Tiago Petinga para a Lusa.

    O árbitro também beneficiou o espectáculo, com intervenções intermitentes, a tentar disfarçar para que lado lhe soprou sempre o vento durante o campeonato. Calhou um jogador do Benfica, em acção de legítima defesa, ficar de braço enrolado ao pescoço do melhor marcador da Europa civilizada. João Pinheiro perdoou a falta e o correspondente cartão vermelho ao avançado, apesar dele, com as cordas vocais, ter agredido em flagrante o cotovelo adversário.

    Quanto ao VAR, parecia escondido numa caverna do estádio, à procura de lítio ou outros minérios preciosos. Aos 17 minutos, Nicolás Otamendi aplicou um castigo às canelas do Trincão, dentro da área. Compreensivelmente, o ancião argentino agiu cego de raiva, mas com toda a justiça, porque o craque do Sporting marcou um golo quando ele ainda estava no tempo de aquecimento adequado a esta fase da carreira.

    São Narciso não aguentou mais: desligou a televisão, com receio de apagar a luz por sobrecarrega de golos na rede de baliza da casa. Foi uma atitude meritória: poupou electricidade, vai animar a economia mais uma semana e muda a festa para o local certo.

    — Juízo, malta. Vocês merecem ser felizes e o Eduardo Mãos Marotas tem de ganhar dois campeonatos seguidos, que está na idade.

  • Pinacácia: um pinheiro enxertado de acácia

    Pinacácia: um pinheiro enxertado de acácia


    Portugal é, em muitos dias, um país soalheiro e tranquilo — pelo menos na aparência. Este sábado foi um desses dias mornos de primavera citadina, sem tempestade, sem alerta da Protecção Civil, sem o Rui Fonseca e Castro a querer fazer bifanas no Martim Moniz — mas revelou-se, afinal, um perfeito retrato da crónica inépcia lusitana.

    Em dia de campeonato ao rubro, com a possibilidade de se coroar o campeão nacional, eis que o Metropolitano de Lisboa decide… fechar. Encerrar. Trancar quatro estações mais de duas horas antes do apito final de um jogo que faria pulsar a capital. Dir-me-ão que foi uma questão de segurança. Pois sim. Mas de quem? Do bom senso? Mas que dizer, então, de uma falha de electricidade que parou o dito metropolitano em quase todas as estações logo às cinco da tarde? Já foi segurança ou incompetência? Portanto, ficámos, eu e o sportinguista Carlos Enes — cuja teimosia clubística já granjeou lugar nos anais da fé cega — à porta da estação dos Anjos, ou do Intendente, já não sei. Se foi do Intendente, bem que os administradores do Metropolitano de Lisboa mereciam levar com o Pina Manique, o verdadeiro.

    Enfim, a menos de uma hora do jogo do título e nós, dois homens feitos, jornalistas prevenidos, encontrávamo-nos a mendigar mobilidade. Valeu-nos o Uber, esse milagre pago a peso de ouro, malgrado a espera. Fomos levados pelo Malkit, classificação de 4,91 em 5, num Renault com uma curiosa matrícula iniciada por AD. Vinte minutos de jogo foram perdidos. Um pecado em dia de epifania futebolística.

    Mas a irritação, como se sabe, é uma erva daninha que se alastra. E o Carlos Enes, fiel ao seu evangelho leonino, não tardou em começar a vociferar contra o árbitro João Pinheiro ainda no Uber. Que ele era isto, que era aquilo, que o homem só via vermelho quando era para os verdes, que só marcava penáltis quando era contra Alvalade. Já ouvira tais lamúrias antes, mas ontem, confesso, o tom de queixa parecia vir com lastro estatístico.

    Apeteceu-me calar-lhe os protestos, mas decidi, em nome da paz do Uber e do método científico, consultar a inteligência artificial. Talvez a frieza algorítmica nos trouxesse alguma claridade. E assim foi. Lancei a pergunta com as estatísticas que cirandaram na semana passada pelas redes sociais: “Haverá razões estatísticas para desconfiar de João Pinheiro?” O ChatGPT, que já me havia esclarecido questões de Economia, Meteorologia e História, respondeu com inesperada contundência.

    Estatística ‘enxertou’ durante uma semana João Pinheiro.

    Disse-me que sim, a disparidade nos penáltis aplicados por João Pinheiro contra o Sporting (7 contra apenas 1 contra o Benfica) era improvável sob uma distribuição equitativa. Acrescentou que os cartões vermelhos (9 vs. 1) revelavam uma assimetria preocupante. E rematou: a percentagem de vitórias do Benfica com João Pinheiro (68%) superava em muito a sua média histórica em provas nacionais. Conclusão? O Sporting tinha razões fundadas para desconfiar. Nada disto prova dolo — sublinhava o algoritmo —, mas justifica uma auditoria independente. Uma espécie de VAR científico.

    Disse isto ao Carlos Enes, que rejubilou com a validação estatística do seu calvário. E, porque o destino gosta de ironias, vaticinei logo: “Então hoje vai compensar. A pressão é tanta que vai inclinar o campo… mas para o outro lado.” Não sendo versado em Psicologia, está nos livros. E não me enganei.

    É certo que perdemos os primeiros 20 minutos — entre os quais uma alegada falta do Otamendi sobre o Pote, aos 17 minutos, que Carlos Enes jurou depois ser penálti claro. Mas aquilo que vimos — quer dizer, eu vi; eles não — a seguir foi um festival. Um Pinheiro tão zeloso que parecia ter sido regado, adubado e podado pelos deuses de Alvalade durante a semana. Uma exibição tão florida que, mesmo sem rega ao intervalo, a todos espantaria pela exuberância botânica.

    Veja-se:

    Minuto 25: após canto de Di María, Otamendi cai na área e queixa-se de empurrão de Debast. O Pinheiro, sereno como um carvalho, ignora o VAR e resolve premiar o banco do Benfica com um amarelo pedagógico.

    Minuto 44: nova queixa do Benfica por mão na bola de Debast. Pinheiro, inflexível como uma sequoia, decide que o melhor é expulsar mais um elemento da equipa técnica encarnada. Didáctica com pulso.

    Minuto 60: Hjulmand deixa Aktürkoglu no relvado. O árbitro, talvez confuso pela brisa primaveril, interrompe o jogo e penaliza… Florentino, por uma falta anterior. Nada como viver em tempo elástico.

    Minuto 83: falta de Hjulmand sobre Kokçu. Os encarnados pedem o segundo amarelo. Pinheiro abana a cabeça como um salgueiro zen e prossegue, tranquilo, rumo à eternidade.

    Mas o mais notável nem esteve nestes lances, esteve nos sopros. Nos pequenos toques. Nas brisas que abanavam os gémeos dos jogadores leoninos. João Pinheiro via tudo. Sentia tudo. Apitava cada lamento dos sportinguistas como se escutasse a alma dos médios. E enquanto o guardião leonino Rui Silva se deitava, espreguiçava e perdia tempo com mais arte do que o cronómetro do Coliseu de Roma, Pinheiro deixava correr. A relva da Luz, então, parecia um relvado de piquenique para os lagartos que estiveram mais tempo deitados de barriga para cima do que com os dois pés no chão. E no fim, sete escassos minutos de desconto, como quem oferece um rebuçado a uma criança que perdeu o almoço.

    Não sou dado a falar de arbitragens. A maioria das vezes, os erros compensam-se ou desculpam-se com o factor humano. Mas neste jogo, neste particular sábado, viu-se algo raro. Um milagre agronómico. Sempre me disseram, nas aulas de Biologia do secundário, que as angiospérmicas não podiam ser enxertadas de modo a mudar de fisiologia. Mas ontem, caro leitor, assistimos a uma revolução científica. Um Pinheiro, árvore robusta, vertical e previsivelmente imune a enxertos, transformou-se. Enxertaram-lhe tantas durante a semana passada que João Pinheiro ganhou raízes de acácia. Sim, aquela árvore de copa larga, onde os leões descansam na savana, à sombra do vento e da complacência. No estádio da Luz, os leões tiveram um abrigo botânico único: João Pinacácia.

    De resto, ganhe quem ganhar o campeonato — e digo-o com o respeito clubístico que me é próprio —, o país precisa de mais do que árbitros compensadores. Precisa de transportes que transportem. De horários que se cumpram. De decisões que não nasçam da burocracia, mas do bom senso. Porque um país onde os jogos decisivos não se jogam de forma decente, os metropolitanos não andam ao sábado e os pinheiros ganham folhas de acácia… é um país que, mesmo ao sol, continua às escuras. Não nos admiremos pelos apagões eléctricos, mas sim por acharmos normal a anormalidade.

  • Há dias felizes assim…

    Há dias felizes assim…


    Há domingos que começam com bom presságio. E não falo das promessas rotineiras de sol ou da esperança vaga de que as escadas rolantes do metro da Baixa-Chiado estivessem a funcionar — que não estavam. Não, falo de presságios a sério, daqueles que, se o mundo fosse mais honesto, fariam correr tinta nas páginas de astrologia e nas crónicas sérias, aquelas onde se desvendam as tramas tácticas que escapam ao comum dos mortais.

    Pois bem, o meu bom presságio começou — pasme-se! — com o relógio a anunciar um atraso de oito minutos. Dir-me-ão que isso é hábito, e é. Mas este atraso, meus caros, foi providencial. Ainda não me instalara na Varanda da Luz, ainda nem resfolegara com o farnel na mão, e já Tomás Araújo punha a bola lá dentro. Golos assim, com a emoção concentrada sem o prévio suplício das primeiras hesitações, são dádivas dos céus, e não fosse eu um homem de pouca fé, acreditaria em milagres.

    Mas vamos ao que interessa. Este texto, meus amigos, é um hino à liberdade. Mais uma vez, hoje não preciso de dissertar sobre as incidências e ‘conjunturas’ tácticas — sim, escrevo à antiga, como se deve —, porque para a ‘crónica da bola’, propriamente dita, há quem o faça com sapiência e com talento. O Tiago Franco decifra melhor do que ninguém as movimentações labirínticas do Aursnes, que para mim continua a ser um mistério nórdico, mas um mistério útil, daqueles que não se questionam, apenas se agradecem. Vê-lo ali, careca reluzente, varrendo o meio-campo com a elegância de quem passou a vida entre fiordes e relvados, é uma satisfação estética. Não entendo bem o que ele faz, mas sei que, sempre que joga, o meio-campo adversário se desfaz, como se tivesse sido devastado por uma tempestade escandinava.

    E se há coisa que também me deixa em paz com a minha ignorância táctica é saber que temos agora o Pavlidis. Um nome que soa a promessa de golos, e que, sem ofensa, se parece cada vez mais com um Goykeres grego — se é que me entendem. Há quem diga que os gregos nos deram a democracia, a filosofia e o drama, pois então nos deram também o Pavlidis, que marca com a consistência de quem sabe que, no futebol moderno, a beleza está no simples acto de mandar a bola para dentro da baliza. E com ele, meus caros, já não se deve sofrer daquela ansiedade benfiquista do “será que é hoje?”. Não. Com Pavlidis, o golo é uma inevitabilidade que me tranquiliza. Isto sou eu agora a dizer, que já me esqueci do empate a duas bolas contra o Arouca!

    Mas a razão maior desta crónica não está apenas nas quatro batatas bem aviadas ainda na primeira parte, e em mais duas na segunda – e deveram ter sido mais. A razão está num triplo contentamento que não posso deixar de partilhar. Primeiro, este prazer de escrever sem me perder em tácticas que me ultrapassam, num jornal onde a liberdade é mais sagrada do que qualquer VAR. Depois, a dita cuja cirurgia ao olho esquerdo, que finalmente me devolveu a capacidade de perceber que, afinal, daqui do alto, a diferença física mais visível entre o Prestianni e o Aursnes é que o primeiro tem cabelo. E, por fim, a cereja no topo da águia: tenho finalmente uma fotografia ao lado da Glória.

    Sim, senhoras e senhores, depois de tantos olhares furtivos, de tantas tentativas frustradas, consegui. Um instante imortalizado ao lado da rapina-mor, augúrio maior de vitórias e, quem sabe, de títulos. E, deixem-me dizer, com a Glória ao lado, até me senti mais benfiquista. É como se, por um momento, partilhasse com ela a visão sobre o estádio, sobre a equipa e sobre este destino glorioso que, todos os anos, tentamos agarrar com unhas e dentes.

    Enfim, há quem veja no futebol apenas um jogo. Outros vêem tácticas, números, percentagens. Eu, confesso, vejo mais. Vejo histórias. Vejo a liberdade de escrever sem as amarras da estatística. Vejo o Aursnes como um daqueles personagens de banda desenhada que resolve tudo com uma vassoura invisível. Vejo o Pavlidis agora como um semi-deus grego, que desceu à Luz para nos garantir domingos felizes. E vejo, com os meus olhos renovados, cada lance, cada corrida, cada golo, com a nitidez que antes só imaginava.

    O próximo jogo aqui não será, certamente, tão descontraído. Em todo o caso, ainda haverá, entretanto, com grande probabilidade, uma varanda especial, ali para os lados da Linha… do Estoril.

  • AVS 6.0

    AVS 6.0


    Quando a equipa subiu ao relvado, lembrei-me do João Mário na era de Roger Schmidt. Por mais passes para o lado que fizesse, jogava sempre. Em tom de brincadeira, dizia-se, no terceiro anel, que o bom do João deveria ter “nudes” do treinador para o chantagear.

    Vou por aqui, mas ao contrário, para tentar compreender a relação entre Schjelderup e o banco. Que mais terá o rapaz de fazer para entrar no onze de forma regular? Terá ele dito que choco frito não presta e ofendido o treinador?

    Aos 10 segundos apareceu o primeiro e último susto na baliza de Trubin. António Silva perdeu-se na marcação e Trubin foi abalroado. Decididamente, não consigo compreender como é que António Silva, que tão novo se afirmou, treme constantemente perante qualquer adversário e parece estar sempre a sofrer de um défice de confiança. Terminou aos 2 minutos a entrada forte do AVS e começou um jogo de sentido único.

    Numa liga tão desequilibrada como a portuguesa, e com um plantel com tantas opções, custa-me um pouco a perceber como é que o Benfica corre o risco de perder o campeonato até, por curiosidade, com dois pontos perdidos contra este fraquíssimo AVS.

    Ochoa passou a primeira parte a fazer o que podia para evitar um descalabro maior, e a linha defensiva dos visitantes, com mérito, ainda conseguiu anular um par de ataques, colocando os avançados benfiquistas repetidamente em posição de fora-de-jogo. Ochoa é um daqueles jogadores conhecidos mundialmente sem que alguma vez, em 20 anos de carreira, tivesse jogado num clube de primeira linha. Mas participou em cinco mundiais, normalmente com algum destaque, na boa selecção do México. Um caso único na liga portuguesa.

    Com Pavlidis e Akturkoglu em excelente plano – o turco parece estar de volta à boa forma dos seus primeiros jogos de águia ao peito –, os ataques foram-se sucedendo sem que o AVS conseguisse oferecer qualquer réplica. E deu para tudo. Jogadas de laboratório ao primeiro toque, bolas paradas, dribles, golos anulados. Ao intervalo, a diferença de golos marcados para o Sporting estava reposta.

    Belotti entrou para marcar, Otamendi apareceu no poste que mais gosta para cilindrar Ochoa. Num jogo sem grande história, o Benfica não repetiu o erro de esperar pelo resultado como tinha feito contra o Arouca, e tratou de resolver a vida bem cedo.

    Neste que será um dos campeonatos com um dos piores campeões de sempre (em termos pontuais), a emoção parece estar garantida até ao fim e, tudo indica, o canto da sereia acontecerá no derby da Luz. Tem a palavra o Sporting, daqui a pouco no Bessa.

    Fotos de Pedro Almeida Vieira (no estádio)