Há quem diga que a vida é feita de grandes eventos. Que a História avança em sobressaltos, de batalha em revolução, de tratado em catástrofe. Os manuais de filosofia, porém, já nos ensinaram — e com razão — que o essencial raramente se veste de pompa. Assim se explica que, entre guerras no Médio Oriente e na Ucrânia, crises políticas e abalos financeiros, o evento deste fim-de-semana de maior relevância — para a pátria lusa e suas diásporas — seja, sem margem para dúvida metafísica, as eleições do Sport Lisboa e Benfica.
Rezam as crónicas, e confirmam as estatísticas (que, como Deus, às vezes também jogam pelo Benfica), que se bateu o recorde de votos, e logo mundial, eleições num clube de, ou com, futebol. Acreditemos, porque isto é uma crónica – e não uma notícia. Estaremos assim um feito democrático digno da Ágora ateniense, se a Ágora tivesse ecrãs gigantes, cerveja sem álcool e a habitual romaria de camisolas vermelhas. Ou não tanto, porque aqui a democracia mede-se pela antiguidade: se eu tivesse votado – o que não fiz por preguiça de ir para a quilométrica fila indiana –, teria valido 50 votos, uma vez que este ano perfiz 25 anos de sócio.

Dir-me-ão que exagero na Ágora ateniense. E eu responderei com a serenidade dos cronistas que observam o mundo do alto da varanda — e da Luz. Quando 83 mil almas atravessam a cidade para sufragar um presidente de clube, é porque a política morreu e a paixão tomou o poder. A polis, no seu estado puro, já não se reúne em parlamento, mas em estádio.
Em todo o caso, para os adeptos benfiquistas, o evento do dia acabou por ser a inesperada conjugação dos astros: um jogo descansado, com ritmo, uma mão-cheia de gotos e um hat-trick de Pavlidi. A multidão vibrou, os telemóveis filmaram, as redes sociais inflamaram-se. Não foi ainda o 15 a zero sempre pedido pelo Ricardo Araújo Pereira, mas há muito não se viam, tantos golos desta varanda. No fundo, foi a versão moderna do milagre das rosas: o público pediu um golo, e vieram cinco. Não há mística maior.
Para o árbitro Hélder Carvalho, a relevância do evento foi outra: a existência do VAR, que teve o condão de o livrar do odioso de não marcar dois penáltis em menos de um quarto de hora (aos 5 e aos 18 minutos de jogo) tão claros como a luz que dá nome ao estádio. A tecnologia, que noutros campos ameaça a humanidade, aqui redimiu os seus pecados. O árbitro viu-se absolvido pela máquina. Santo VAR, rogai por vós!



Já para o meu amigo Lourenço Cazarré, escritor do Rio Grande do Sul, vivente em Brasília e observador da alma humana, a tarde foi de deslumbramento etnográfico. Vindo do Brasil, onde o futebol é religião politeísta, encontrou no Estádio da Luz uma liturgia diferente: menos samba, mais coreografia; menos improviso, mais espetáculo.
Disse-me ele — ou estarei já a inventar — que o futebol português é o único teatro em que o público paga para sofrer, e agradece quando sofre menos. Lá o levei, pois, entre bifanas, coiratos e cervejas – esta parte é mentira – , a ver a águia Vitória, majestosa, sobrevoar o estádio. E o homem, habituado a pássaros tropicais, emocionou-se: “Isto é civilização, Pedro. Um país que ensina uma águia a cumprir o hino é um país que ainda acredita em símbolos.”
Enfim, também aqui estou a ficcionar – mas ficaria sempre bem ele ter dito isso. Na verdade, ele viu o jogo na bancada central, um pouco mais abaixo Da Varanda da Luz, para onde levei o seu premiado livro ‘Breve memória de Simeão Boa Morte e Outros Contos Poéticos’, com o qual venceu justamente o Prémio Imprensa Nacional Ferreira de Castro.

Para mim, confesso, o evento foi especial por simplicidade. Não sou dado a epifanias, mas há momentos em que um cronista, cansado de descrer, reencontra a simplicidade do espanto. Ora, para este jogo, cheguei cedo — anormalmente cedo, que é como quem diz sem o habitual atraso filosófico — e consegui assistir àquilo que há muito me escapava: o voo completo da Vitória. Um círculo perfeito sobre o estádio, o bater lento das asas, o mergulho gracioso até ao emblema. Nenhum drone, por mais caro, conseguiria tamanha elegância.
Depois veio o espectáculo de luzes — porque até os deuses modernos precisam de LEDs —, e finalmente, pasme-se, vi todos os golos. Nenhum à distância, nenhum repetido em ecrã. Todos ali, em carne, relva e suor. Acontecimento raro, e portanto memorável – basta confirmar nas minhas múltiplas crónicas mais recentes.
Mas a relevância dos eventos, aprendi, não se mede pela sua magnitude exterior. Mede-se pela coincidência feliz entre o tempo, o olhar e a alma. Um jogo de futebol pode ser banal para quem apenas lê o resultado – e este foi –, mas para quem o viveu, pode ser a pequena eternidade de um sábado à noite. Enquanto a multidão gritava, eu pensei no filósofo Heraclito: “Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio.” Pois também ninguém vê duas vezes o mesmo jogo, ainda mais um 5-0 — nem mesmo quando o adversário é o Arouca.

E contudo, há em tudo isto uma moral discreta, que se impõe ao cronista com a força da evidência: a vida é uma sucessão de eventos de que só percebemos a importância quando já passaram. Assim como a águia que voa e volta ao seu posto, também nós giramos em torno dos nossos rituais, convencidos de que controlamos o tempo, quando apenas o acompanhamos.
Enfim, a relevância de um evento não está na sua escala, mas no seu significado. Para uns, um jogo; para outros, uma eleição; para mim, a certeza de que, por uma vez, nada falhou — nem o VAR, nem a águia, nem o relógio. Vi tudo os golos de uma vitória – e isso basta-me.
E, se querem que vos diga, talvez seja essa a suprema ironia da vida moderna: precisamos de um estádio cheio para perceber que o que realmente importa é chegar a horas. Chegar a tempo de ver a águia voar, o primeiro golo entrar, e o amigo Cazarré satisfeito. Tudo o resto — as eleições, os recordes, os comunicados — são apenas VARs existenciais: correcções tardias de decisões já tomadas.

Moral da história: a relevância de um evento não depende do mundo o reconhecer, mas de nós o termos vivido antes que passasse o prolongamento. E, já agora, se puder ser com cinco golos e sem penáltis por marcar, tanto melhor.
Ou, de forma mais prosaica, talvez seja essa a verdadeira lição deste Da Varanda da Luz, onde cada vez se fala menos de futebol: que a felicidade raramente se programa, apenas acontece — no instante exacto em que o cronista levanta o olhar e percebe que, por uma vez, o mundo inteiro está em ordem: a bola entra, a águia pousa, o estádio vibra, e a crónica escreve-se (quase) sozinha.
















































