Etiqueta: Da Varanda da Luz

  • Eduardo Mãos Marotas provocou o apagão do século

    Eduardo Mãos Marotas provocou o apagão do século


    Cristiano Ronaldo, melhor jogador do Mundo desde a extinção dos dinossauros, que da pedra poliam jogadas de força — e um dos melhores da Academia de Alcochete —, é tão bom profissional que depois dos treinos mergulha numa banheira de gelo.

    Eduardo Quaresma, melhor animador do balneário e dessa prestigiada Academia desde os tempos de Bruno de Carvalho, é tão irresponsável e ligado à corrente que quando chega a casa atira-se à namorada.

    Ai, Edu, se continuas assim qualquer dia dá golo!

    Quando o ovo estrelado lhe rebentou no prato, ao comer uma alheira de frango por causa da dieta, o treinador Rui Borges teve um estranho pressentimento sobre o jogo com o Gil Vicente. Sem Ousmane Diomande, castigado por preconceito religioso do Conselho de Disciplina, teria de colocar no centro da defesa o holandês com nome de Santo Justo. Em tempos de comoção pela morte do Papa, poderia a equipa de arbitragem aproveitar as correrias dele, como na final da Taça do ano passado, para pilhar galinhas em terra relvada, a fim de animar a prima delas que se exibe pelos ares no Estádio da Luz em troca de uma ração de minhocas.

    Ana Luísa, isto não está a saber-me bem. A minha avó já dizia que a alheira é como a verdade desportiva: na nossa terra só se faz com carne de porco.

    Com 11 batatas fritas no lugar das caricas dos tempos de Mirandela, o treinador transmontano desenhou na toalha de riscas verdes e brancas um plano para, em caso de necessidade, dar a volta ao resultado. Colocou Eduardo Quaresma de início, ao lado direito do Justo, com o objectivo estratégico de compensar as corridas em profundidade com fintas e piadas enervantes a toda a largura do campo.

    Vai lá e manga com eles, rapaz. Não lhes dês vagar!

    E o Eduardo assim subiu ao relvado, de camisola às riscas, disposto a espalhar a mostarda no nariz dos adversários. Para reprimir as saudades de casa, durante 90 minutos mais tempo de sobremesa, aproveitou os pontapés de canto para lhes contar que o galo de Barcelos tem pele de galinha da segunda circular e provavelmente é transgénico. Em lugar de se rirem com uma piada tão sofisticada, provavelmente de Dijon, eles só se atiravam para a relva em lágrimas. E assim foram passando o tempo, para contentamento culinário do treinador que tinha prometido dar o título ao do outro lado.

    Chorem e rebolem muito, rapazes. Isto está quase!

    Com o jogo a dar as últimas, Eduardo mudou de táctica: calou-se muito caladinho e enfiou-se de surra na meia-lua. Aos 93 minutos, num derradeiro pontapé de canto, a bola veio ter com ele, redonda como a maçã com que Eva tentou Adão, para nossa eterna perdição e pecado diário de concupiscência. Cheio de saudades, o rapaz lembrou-se do último treino em casa. Sentiu-se como o marinheiro Popeye a comer espinafres, depois de um prolongado jejum no mar alto. Tirou as medidas aos postes, que lhe pareceram tão familiares como tentadores, e deu à bola uma cacetada carinhosa, com selo de amor e de golo.

    — Golo, golo, golo! Eduzinho, Eduzinho, eu não te dizia? Toma banho depressa, que eu já te preparei o jantar de que tu mais gostas.

    E foi assim que o derby decisivo ficou resolvido, por antecipação e com dois resultados possíveis. A descarga eléctrica no estádio, do relvado às bancadas, foi tamanha que poucos dias depois provocou um apagão na Península Ibérica, que deixou às escuras todos os grandes estádios, do Riazor ao Mestalla. O inesperado fenómeno inspirou Bruno Lage a fazer, à luz das velas, uma reza a São Narciso e uma premonição histórica.

    — Vai ser o jogo do Século.

    Pelo sim pelo não, realizou-se ainda de dia e às claras, com os comboios parados e o metro outra vez avariado. Como se tem visto em muito clubes, não é fácil recuperar de um apagão. Victor Gyökeres, que é uma turbina nuclear, apresentou-se ao guarda-redes Trubin a meio gás. Já o capitão Morten Hjulmand, em compensação nórdica de potência, rolou sobre a relva como eólicas em noite de tempestade, com energia para dar e vender caro, quer os clientes queiram ou não.

    Retrato ao estilo de Caravaggio (‘pintado’ pelo ChatGPT) alusiva à (suposta) falta de um jogador do Benfica contra o Gyökeres, belíssimamente fotografada por Tiago Petinga para a Lusa.

    O árbitro também beneficiou o espectáculo, com intervenções intermitentes, a tentar disfarçar para que lado lhe soprou sempre o vento durante o campeonato. Calhou um jogador do Benfica, em acção de legítima defesa, ficar de braço enrolado ao pescoço do melhor marcador da Europa civilizada. João Pinheiro perdoou a falta e o correspondente cartão vermelho ao avançado, apesar dele, com as cordas vocais, ter agredido em flagrante o cotovelo adversário.

    Quanto ao VAR, parecia escondido numa caverna do estádio, à procura de lítio ou outros minérios preciosos. Aos 17 minutos, Nicolás Otamendi aplicou um castigo às canelas do Trincão, dentro da área. Compreensivelmente, o ancião argentino agiu cego de raiva, mas com toda a justiça, porque o craque do Sporting marcou um golo quando ele ainda estava no tempo de aquecimento adequado a esta fase da carreira.

    São Narciso não aguentou mais: desligou a televisão, com receio de apagar a luz por sobrecarrega de golos na rede de baliza da casa. Foi uma atitude meritória: poupou electricidade, vai animar a economia mais uma semana e muda a festa para o local certo.

    — Juízo, malta. Vocês merecem ser felizes e o Eduardo Mãos Marotas tem de ganhar dois campeonatos seguidos, que está na idade.

  • Pinacácia: um pinheiro enxertado de acácia

    Pinacácia: um pinheiro enxertado de acácia


    Portugal é, em muitos dias, um país soalheiro e tranquilo — pelo menos na aparência. Este sábado foi um desses dias mornos de primavera citadina, sem tempestade, sem alerta da Protecção Civil, sem o Rui Fonseca e Castro a querer fazer bifanas no Martim Moniz — mas revelou-se, afinal, um perfeito retrato da crónica inépcia lusitana.

    Em dia de campeonato ao rubro, com a possibilidade de se coroar o campeão nacional, eis que o Metropolitano de Lisboa decide… fechar. Encerrar. Trancar quatro estações mais de duas horas antes do apito final de um jogo que faria pulsar a capital. Dir-me-ão que foi uma questão de segurança. Pois sim. Mas de quem? Do bom senso? Mas que dizer, então, de uma falha de electricidade que parou o dito metropolitano em quase todas as estações logo às cinco da tarde? Já foi segurança ou incompetência? Portanto, ficámos, eu e o sportinguista Carlos Enes — cuja teimosia clubística já granjeou lugar nos anais da fé cega — à porta da estação dos Anjos, ou do Intendente, já não sei. Se foi do Intendente, bem que os administradores do Metropolitano de Lisboa mereciam levar com o Pina Manique, o verdadeiro.

    Enfim, a menos de uma hora do jogo do título e nós, dois homens feitos, jornalistas prevenidos, encontrávamo-nos a mendigar mobilidade. Valeu-nos o Uber, esse milagre pago a peso de ouro, malgrado a espera. Fomos levados pelo Malkit, classificação de 4,91 em 5, num Renault com uma curiosa matrícula iniciada por AD. Vinte minutos de jogo foram perdidos. Um pecado em dia de epifania futebolística.

    Mas a irritação, como se sabe, é uma erva daninha que se alastra. E o Carlos Enes, fiel ao seu evangelho leonino, não tardou em começar a vociferar contra o árbitro João Pinheiro ainda no Uber. Que ele era isto, que era aquilo, que o homem só via vermelho quando era para os verdes, que só marcava penáltis quando era contra Alvalade. Já ouvira tais lamúrias antes, mas ontem, confesso, o tom de queixa parecia vir com lastro estatístico.

    Apeteceu-me calar-lhe os protestos, mas decidi, em nome da paz do Uber e do método científico, consultar a inteligência artificial. Talvez a frieza algorítmica nos trouxesse alguma claridade. E assim foi. Lancei a pergunta com as estatísticas que cirandaram na semana passada pelas redes sociais: “Haverá razões estatísticas para desconfiar de João Pinheiro?” O ChatGPT, que já me havia esclarecido questões de Economia, Meteorologia e História, respondeu com inesperada contundência.

    Estatística ‘enxertou’ durante uma semana João Pinheiro.

    Disse-me que sim, a disparidade nos penáltis aplicados por João Pinheiro contra o Sporting (7 contra apenas 1 contra o Benfica) era improvável sob uma distribuição equitativa. Acrescentou que os cartões vermelhos (9 vs. 1) revelavam uma assimetria preocupante. E rematou: a percentagem de vitórias do Benfica com João Pinheiro (68%) superava em muito a sua média histórica em provas nacionais. Conclusão? O Sporting tinha razões fundadas para desconfiar. Nada disto prova dolo — sublinhava o algoritmo —, mas justifica uma auditoria independente. Uma espécie de VAR científico.

    Disse isto ao Carlos Enes, que rejubilou com a validação estatística do seu calvário. E, porque o destino gosta de ironias, vaticinei logo: “Então hoje vai compensar. A pressão é tanta que vai inclinar o campo… mas para o outro lado.” Não sendo versado em Psicologia, está nos livros. E não me enganei.

    É certo que perdemos os primeiros 20 minutos — entre os quais uma alegada falta do Otamendi sobre o Pote, aos 17 minutos, que Carlos Enes jurou depois ser penálti claro. Mas aquilo que vimos — quer dizer, eu vi; eles não — a seguir foi um festival. Um Pinheiro tão zeloso que parecia ter sido regado, adubado e podado pelos deuses de Alvalade durante a semana. Uma exibição tão florida que, mesmo sem rega ao intervalo, a todos espantaria pela exuberância botânica.

    Veja-se:

    Minuto 25: após canto de Di María, Otamendi cai na área e queixa-se de empurrão de Debast. O Pinheiro, sereno como um carvalho, ignora o VAR e resolve premiar o banco do Benfica com um amarelo pedagógico.

    Minuto 44: nova queixa do Benfica por mão na bola de Debast. Pinheiro, inflexível como uma sequoia, decide que o melhor é expulsar mais um elemento da equipa técnica encarnada. Didáctica com pulso.

    Minuto 60: Hjulmand deixa Aktürkoglu no relvado. O árbitro, talvez confuso pela brisa primaveril, interrompe o jogo e penaliza… Florentino, por uma falta anterior. Nada como viver em tempo elástico.

    Minuto 83: falta de Hjulmand sobre Kokçu. Os encarnados pedem o segundo amarelo. Pinheiro abana a cabeça como um salgueiro zen e prossegue, tranquilo, rumo à eternidade.

    Mas o mais notável nem esteve nestes lances, esteve nos sopros. Nos pequenos toques. Nas brisas que abanavam os gémeos dos jogadores leoninos. João Pinheiro via tudo. Sentia tudo. Apitava cada lamento dos sportinguistas como se escutasse a alma dos médios. E enquanto o guardião leonino Rui Silva se deitava, espreguiçava e perdia tempo com mais arte do que o cronómetro do Coliseu de Roma, Pinheiro deixava correr. A relva da Luz, então, parecia um relvado de piquenique para os lagartos que estiveram mais tempo deitados de barriga para cima do que com os dois pés no chão. E no fim, sete escassos minutos de desconto, como quem oferece um rebuçado a uma criança que perdeu o almoço.

    Não sou dado a falar de arbitragens. A maioria das vezes, os erros compensam-se ou desculpam-se com o factor humano. Mas neste jogo, neste particular sábado, viu-se algo raro. Um milagre agronómico. Sempre me disseram, nas aulas de Biologia do secundário, que as angiospérmicas não podiam ser enxertadas de modo a mudar de fisiologia. Mas ontem, caro leitor, assistimos a uma revolução científica. Um Pinheiro, árvore robusta, vertical e previsivelmente imune a enxertos, transformou-se. Enxertaram-lhe tantas durante a semana passada que João Pinheiro ganhou raízes de acácia. Sim, aquela árvore de copa larga, onde os leões descansam na savana, à sombra do vento e da complacência. No estádio da Luz, os leões tiveram um abrigo botânico único: João Pinacácia.

    De resto, ganhe quem ganhar o campeonato — e digo-o com o respeito clubístico que me é próprio —, o país precisa de mais do que árbitros compensadores. Precisa de transportes que transportem. De horários que se cumpram. De decisões que não nasçam da burocracia, mas do bom senso. Porque um país onde os jogos decisivos não se jogam de forma decente, os metropolitanos não andam ao sábado e os pinheiros ganham folhas de acácia… é um país que, mesmo ao sol, continua às escuras. Não nos admiremos pelos apagões eléctricos, mas sim por acharmos normal a anormalidade.

  • Há dias felizes assim…

    Há dias felizes assim…


    Há domingos que começam com bom presságio. E não falo das promessas rotineiras de sol ou da esperança vaga de que as escadas rolantes do metro da Baixa-Chiado estivessem a funcionar — que não estavam. Não, falo de presságios a sério, daqueles que, se o mundo fosse mais honesto, fariam correr tinta nas páginas de astrologia e nas crónicas sérias, aquelas onde se desvendam as tramas tácticas que escapam ao comum dos mortais.

    Pois bem, o meu bom presságio começou — pasme-se! — com o relógio a anunciar um atraso de oito minutos. Dir-me-ão que isso é hábito, e é. Mas este atraso, meus caros, foi providencial. Ainda não me instalara na Varanda da Luz, ainda nem resfolegara com o farnel na mão, e já Tomás Araújo punha a bola lá dentro. Golos assim, com a emoção concentrada sem o prévio suplício das primeiras hesitações, são dádivas dos céus, e não fosse eu um homem de pouca fé, acreditaria em milagres.

    Mas vamos ao que interessa. Este texto, meus amigos, é um hino à liberdade. Mais uma vez, hoje não preciso de dissertar sobre as incidências e ‘conjunturas’ tácticas — sim, escrevo à antiga, como se deve —, porque para a ‘crónica da bola’, propriamente dita, há quem o faça com sapiência e com talento. O Tiago Franco decifra melhor do que ninguém as movimentações labirínticas do Aursnes, que para mim continua a ser um mistério nórdico, mas um mistério útil, daqueles que não se questionam, apenas se agradecem. Vê-lo ali, careca reluzente, varrendo o meio-campo com a elegância de quem passou a vida entre fiordes e relvados, é uma satisfação estética. Não entendo bem o que ele faz, mas sei que, sempre que joga, o meio-campo adversário se desfaz, como se tivesse sido devastado por uma tempestade escandinava.

    E se há coisa que também me deixa em paz com a minha ignorância táctica é saber que temos agora o Pavlidis. Um nome que soa a promessa de golos, e que, sem ofensa, se parece cada vez mais com um Goykeres grego — se é que me entendem. Há quem diga que os gregos nos deram a democracia, a filosofia e o drama, pois então nos deram também o Pavlidis, que marca com a consistência de quem sabe que, no futebol moderno, a beleza está no simples acto de mandar a bola para dentro da baliza. E com ele, meus caros, já não se deve sofrer daquela ansiedade benfiquista do “será que é hoje?”. Não. Com Pavlidis, o golo é uma inevitabilidade que me tranquiliza. Isto sou eu agora a dizer, que já me esqueci do empate a duas bolas contra o Arouca!

    Mas a razão maior desta crónica não está apenas nas quatro batatas bem aviadas ainda na primeira parte, e em mais duas na segunda – e deveram ter sido mais. A razão está num triplo contentamento que não posso deixar de partilhar. Primeiro, este prazer de escrever sem me perder em tácticas que me ultrapassam, num jornal onde a liberdade é mais sagrada do que qualquer VAR. Depois, a dita cuja cirurgia ao olho esquerdo, que finalmente me devolveu a capacidade de perceber que, afinal, daqui do alto, a diferença física mais visível entre o Prestianni e o Aursnes é que o primeiro tem cabelo. E, por fim, a cereja no topo da águia: tenho finalmente uma fotografia ao lado da Glória.

    Sim, senhoras e senhores, depois de tantos olhares furtivos, de tantas tentativas frustradas, consegui. Um instante imortalizado ao lado da rapina-mor, augúrio maior de vitórias e, quem sabe, de títulos. E, deixem-me dizer, com a Glória ao lado, até me senti mais benfiquista. É como se, por um momento, partilhasse com ela a visão sobre o estádio, sobre a equipa e sobre este destino glorioso que, todos os anos, tentamos agarrar com unhas e dentes.

    Enfim, há quem veja no futebol apenas um jogo. Outros vêem tácticas, números, percentagens. Eu, confesso, vejo mais. Vejo histórias. Vejo a liberdade de escrever sem as amarras da estatística. Vejo o Aursnes como um daqueles personagens de banda desenhada que resolve tudo com uma vassoura invisível. Vejo o Pavlidis agora como um semi-deus grego, que desceu à Luz para nos garantir domingos felizes. E vejo, com os meus olhos renovados, cada lance, cada corrida, cada golo, com a nitidez que antes só imaginava.

    O próximo jogo aqui não será, certamente, tão descontraído. Em todo o caso, ainda haverá, entretanto, com grande probabilidade, uma varanda especial, ali para os lados da Linha… do Estoril.

  • AVS 6.0

    AVS 6.0


    Quando a equipa subiu ao relvado, lembrei-me do João Mário na era de Roger Schmidt. Por mais passes para o lado que fizesse, jogava sempre. Em tom de brincadeira, dizia-se, no terceiro anel, que o bom do João deveria ter “nudes” do treinador para o chantagear.

    Vou por aqui, mas ao contrário, para tentar compreender a relação entre Schjelderup e o banco. Que mais terá o rapaz de fazer para entrar no onze de forma regular? Terá ele dito que choco frito não presta e ofendido o treinador?

    Aos 10 segundos apareceu o primeiro e último susto na baliza de Trubin. António Silva perdeu-se na marcação e Trubin foi abalroado. Decididamente, não consigo compreender como é que António Silva, que tão novo se afirmou, treme constantemente perante qualquer adversário e parece estar sempre a sofrer de um défice de confiança. Terminou aos 2 minutos a entrada forte do AVS e começou um jogo de sentido único.

    Numa liga tão desequilibrada como a portuguesa, e com um plantel com tantas opções, custa-me um pouco a perceber como é que o Benfica corre o risco de perder o campeonato até, por curiosidade, com dois pontos perdidos contra este fraquíssimo AVS.

    Ochoa passou a primeira parte a fazer o que podia para evitar um descalabro maior, e a linha defensiva dos visitantes, com mérito, ainda conseguiu anular um par de ataques, colocando os avançados benfiquistas repetidamente em posição de fora-de-jogo. Ochoa é um daqueles jogadores conhecidos mundialmente sem que alguma vez, em 20 anos de carreira, tivesse jogado num clube de primeira linha. Mas participou em cinco mundiais, normalmente com algum destaque, na boa selecção do México. Um caso único na liga portuguesa.

    Com Pavlidis e Akturkoglu em excelente plano – o turco parece estar de volta à boa forma dos seus primeiros jogos de águia ao peito –, os ataques foram-se sucedendo sem que o AVS conseguisse oferecer qualquer réplica. E deu para tudo. Jogadas de laboratório ao primeiro toque, bolas paradas, dribles, golos anulados. Ao intervalo, a diferença de golos marcados para o Sporting estava reposta.

    Belotti entrou para marcar, Otamendi apareceu no poste que mais gosta para cilindrar Ochoa. Num jogo sem grande história, o Benfica não repetiu o erro de esperar pelo resultado como tinha feito contra o Arouca, e tratou de resolver a vida bem cedo.

    Neste que será um dos campeonatos com um dos piores campeões de sempre (em termos pontuais), a emoção parece estar garantida até ao fim e, tudo indica, o canto da sereia acontecerá no derby da Luz. Tem a palavra o Sporting, daqui a pouco no Bessa.

    Fotos de Pedro Almeida Vieira (no estádio)

  • Arouca 2.2

    Arouca 2.2


    Perguntou-me o director do PÁGINA UM se eu estaria interessado em começar a escrever crónicas a cada jogo do Benfica. Depois de chatear activamente os leitores da Extrema-direita, Pedro Almeida Vieira escolhe agora aborrecer os adeptos dos outros clubes.

    Vamos partir deste princípio basilar nesta que será a minha primeira crónica. Eu não sou jornalista, sou adepto benfiquista, gosto de futebol e, portanto, tudo o que podem esperar ler aqui é a minha opinião. Com alguma sorte teremos momentos de triângulos invertidos e basculação no meio-campo.

    Ainda a bola não tinha começado a rolar e já os adeptos da minha cor me envergonhavam. Sim, eu sou benfiquista, mas não sou cego. Durante o minuto de homenagem a Aurélio Pereira, uma figura ímpar do desporto português, um conjunto de acéfalos resolveu imitar o fatídico som do very light que matou um adepto sportinguista na final do Jamor. Um dia alguém me explicará como é que há um benfiquista — seja ele quem for — orgulhoso com um dos momentos mais negros da nossa centenária história.

    Quando entramos na recta final do campeonato, tudo o que não nos interessa é ver um Benfica-Arouca. São jogos que me fazem lembrar as derrocadas finais nos tempos de Jorge Jesus. A vitória é certa no papel, a equipa acredita que a bola, cedo ou tarde, entrará, e o pouco espectáculo arrasta-se penosamente por longos noventa minutos. O Arouca é uma equipa cuja classificação não reflecte o futebol jogado. Não se limitam ao clássico bloco baixo esperando um contra-ataque milagroso, sabem ter a bola no pé e apresentam um plantel com jogadores interessantes.

    A primeira parte teve quase sentido único, com o Benfica, no seu onze habitual, a dominar o meio-campo e a controlar as operações. Ainda assim, essa posse de bola não se reflectiu em oportunidades de golo. As poucas que aconteceram foram quase sempre cortadas por defesas em lugar do guarda-redes. O Estádio da Luz, cheio como é habitual, demonstrava algum nervosismo com a ineficácia e o ritmo baixo.

    A asa esquerda do Benfica foi, como de costume, o abono de família do ataque, com Carreras, especialmente, em bom plano. Do outro lado, Tomás Araújo continuou preso por arames, a fazer o que pode. Di María, ou GOAT, como é conhecido cá em casa, insistiu nos lances individuais que já não consegue fazer, deixando as recuperações para o norueguês amigo. Ainda assim, há sempre aquele momento em que descobre uma linha de passe que mais ninguém vê e obriga qualquer comentador de sofá, como eu, a meter a viola no saco.

    É estranho pensar na profundidade do plantel do Benfica para disputar um jogo com o Arouca. Mas foi exactamente isso que fiz ao intervalo.

    Rezei para que Bruno Lage pedisse autorização ao Di María para o deixar no balneário, na companhia de Tomás Araújo. A minha expectativa era que a ala direita carregasse jogo com mais eficácia na segunda parte. Opções no banco parecem não faltar.
    A segunda parte começou com um três para três na área do Benfica, sacudido por Trubin, seguido de mais um ataque desperdiçado por Di María. Bruno Lage não viu nada de errado na primeira parte e apostou, tal Marcello Caetano, na transição da continuidade. Aos cinquenta minutos de jogo, já eu fazia contas à vida depois do Arouca ter chegado com perigo à baliza do Benfica.

    Passava a hora de jogo quando comecei a ver nuvens negras e a lembrar-me de um campeonato perdido contra o Estoril. Por esta altura, até um penálti à Diomandé se aceitava. Carreras percebeu o sofrimento da classe operária, que precisa de motivação para trabalhar amanhã, e desatou a ultrapassar gente pelo lado esquerdo. A bola desaguou no pé direito de Kokçu e o turco fez arte, colocando a dita onde a coruja faz o ninho.

    Di María, logo de seguida, falhou um golo cantado e Jason, o melhor jogador do Arouca, tentou trazer um Geny para o Estádio da Luz. O mergulho foi bom, a entrada na água fez pouco espalhafato e o VAR fez o que se espera dele em Portugal: marcou.

    Há uma tendência neste final de época para se ver a mais nalgumas latitudes e fechar os olhos noutras. Dizem-me que é azar. Do Benfica, obviamente. Azar esse que se prolongou do VAR para a inoperância de Bruno Lage que, aos 75 minutos, ainda não tinha visto necessidade de mudar fosse o que fosse.

    Quando Belotti e Schjelderup entraram, já o Arouca estava na opção do bloco baixo e o espaço para jogar se reduzira a um T1 de meio milhão em Arroios. Esperava-se que o norueguês ganhasse os duelos que Di María não conseguiu.

    As substituições, tardias, tiveram efeito quase imediato. Kokçu, o tal rapaz com um pé direito que daria jeito ao Florentino, descobriu Pavlidis sozinho, enquanto Belotti arrastava os centrais. São aquelas dinâmicas, como lhes chamam os entendidos da bola, que acontecem quando dois rapazes, com a mesma camisola, estacionam permanentemente na área alheia.

    O Arouca não reagiu ao segundo golo porque o Benfica não tirou o pé do acelerador. Seguiram-se algumas hipóteses de golo desperdiçadas, um golo anulado e mais uma dose de nervos até ao fim.

    O prolongamento chegou com 7 minutos que ninguém percebeu e o Arouca, vendo que o jogo não era sentenciado, apostou tudo nos instantes finais, conseguindo marcar já depois dos 95 minutos.

    O campeonato volta a dar mais uma volta e, pela segunda vez, o Benfica não aguenta a liderança mais do que uma semana.
    Tal como disse no início desta crónica, gosto pouco destes jogos em que pouco se ganha e tudo, ou quase, se perde.

    Fotos de Pedro Almeida Vieira (no estádio)

  • Ainda de olho ao peito

    Ainda de olho ao peito


    Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, dizia Camões — e, valha a verdade, se o nosso épico não tivesse perdido um olho, talvez visse com mais nitidez o que esta crónica, de visão ainda turva, tem vindo a confirmar: a tradição já não é o que era, e quem de costume observa a bola da Varanda da Luz, anda mais dado a filosofias e quejandos do que à redondinha propriamente dita, aqui o garante.

    De facto, nos últimos jogos do Benfica na Liga, este vosso cronista habitual fez gazeta, primeiro porque foi lourear a pevide para Espanha, depois porque um bisturi decidiu meter-se em campo e substituí-lo sem aviso prévio. Ou seja, perdeu dois jogos no conforto da Luz, mas vá-se lá saber como, no último mês e meio, apareceu em Montjuic, foi a Alvalade ver a selecção e ainda teve a ousadia de ir ao antro do Dragão, onde o Benfica deu uma coça ao Porto.

    E tudo isto, nas últimas duas semanas, com um olho que vê mal ao perto e só agora começa a distinguir camisolas ao longe. E o outro está como estava: mal. Ja consigo ver os números nas costas dos jogadores, o que é um progresso — antes disso, via os jogos como quem lê prescrições médicas: de longe, com desconfiança e a torcer para não me enganar.

    Mas como o bom filho à casa retorna (ainda que tropeçando nos degraus e piscando os olhos ao ecrã como quem faz sinal à torre de controlo), eis que esta crónica volta à vida. Ou melhor, ressuscita com ajuda: o relato de hoje é da pena do Tiago Franco, que além de ver bem (ao que consta) ainda escreve com propriedade sobre futebol. Ficam mais bem servidos, não duvidem — porque se fosse eu a escrever, acabava-se a falar da teoria do caos, da filosofia dos penáltis, ou da geopolítica dos fora-de-jogo.

  • Barcelona 0.1

    Barcelona 0.1


    Cheguei atrasado à Varanda da Luz – só se justifica ficar aqui escrito por ser uma crónica, e não uma notícia, porque só o raro é notícia. Nem vi a águia a voar e perdi todo o ritual que marca o início das grandes noites europeias. Que seja: promete chuva, mas nada como aquele dilúvio do inglório 4-5 de há um mês e meio. Interessa, sim, dizer que estou confiante. Hoje, há qualquer coisa no ar. Talvez seja por causa do Bruno Lage estar de volta, e o futebol ter sempre um fraco por histórias de redenção.

    (estranhamente, o estádio não está cheio, não sei se pelo preço dos bilhetes ou pela semana do Carnaval ter esvaziado Lisboa)

    Ou talvez seja, para criar hipóteses absurdas para justificar o meu optimismo, por ter avistado há pouco um adepto, atrasado como eu, com uma camisola do Poborsky, o que só pode ser um sinal de que esta noite terá algo de mágico. Ou ainda por ter ouvido um senhor hoje no café dizer que, em vésperas de jogos grandes, quando sonha com um golo de calcanhar do Benfica, a vitória está garantida. Ou, vá-se a ver, por ter esta tarde visto um tipo engasgar-se a beber um fino quando assistia à antevisão do jogo na CMTV, e dito, quando recuperou: “Isso foi um presságio. Mas não sei é se bom ou mau”.

    Enfim, sinais não faltam. Se resultam em golos, logo se verá.

    Em todo o caso, temos aqui um problema: é que o meu atraso custou-me caro. Esgotou-se o farnel. Nem a pão e água estou. Pensando bem, nem é de todo mau – há semanas que ando a adiar uma dieta, e talvez esta seja a deixa que precisava.

    No relvado, tudo calmo por agora. O Barcelona pode não ser o colosso de outros tempos, mas continua a ser adversário de muito respeito. Troca a bola com aquela paciência estudada, como quem acredita que mais cedo ou mais tarde vai encontrar um buraco para ferir. Mas hoje não quero sofrer. Basta o que eu vou sofrer na próxima semana – e mais não digo por agora…

    (boaaaaaa… cartão vermelho para o Pau Cubarsí, que rasteirou um afoito e isolado Pavlidis; e quase que dava o bónus de penálti)

    Mais confiança. Está no ar, digo eu, uma oportunidade de ouro. Vão ser quase 70 minutos em superioridade numérica. Sei que ainda há muito jogo pela frente, mas a minha intuição não me engana: hoje pode ser uma daquelas noites em que a Luz se transforma num inferno para quem vem de fora.

    Agora é não facilitar – daqui é fácil de dizer. O Benfica tem de fazer valer o homem a mais, e nada melhor do que marcar já, ou daqui a cinco minutos, ou a dez, ou quando calhar: tem é de marcar, que isto não acontece todos os dias.

    Porém, estranhamente, enquanto denoto a incapacidade de o Benfica sufocar o Barcelona – as equipas portuguesas jogam contra o Barcelona ou o Real Madrid sempre com mais medo do que o Leganés ou o Osasuna –, começo a fraquejar no entusiasmo. Conheço este filme: tantas vezes já vi equipas reduzidas a dez crescerem dentro do jogo, das tripas fazerem coração, enquanto a equipa em vantagem numérica hesita, falha passes, exibe demasiadas cortesias no momento do remate, e contenta-se em trocar bolas como se houvesse um prémio para posse de bola estéril. E os adeptos querem é golo, nem que seja aos baldões.

    (para estragar a festa, e o Benfica apanhar uma valente e justificada multa da UEFA, os tontos dos No Name Boys, ou quem sejam eles, lançam tochas e outros artefactos; nunca compreendo a razão de as direcções dos clubes permitirem estas diatribes)

    Lá em baixo, não estou a ver grandes melhorias – e, na verdade, o jogo está equilibrado, com o Barcelona a ganhar até cantos e a fazer alguns remates. Vou ter de me concentrar uns minutos a assistir ao jogo para ‘meter’ energias nesta malta para que cheguem ao intervalo em dupla vantagem numérica: jogadores e golos.

    (pois bem, ou mal, termina o primeiro tempo, e só há vantagem em jogadores, e não em golos…)

    E recomeça o jogo. Entretanto, a fome aperta. Já parece que me cheira a bifanas. E começo a convencer-me de que, se o Benfica não marcar nos próximos cinco minutos, terei de reavaliar a minha relação com a dieta. Tento distrair-me com o jogo, mas a combinação de estômago vazio e nervos em alta não está a ajudar. O Barcelona, mesmo com dez, começa a ter mais bola, e eu começo a ver fantasmas. Isto de ser benfiquista é viver, em constância, entre o aconchego do sonho e o medo do trauma.

    Não sei se os jogadores são muito dados a palestras, nem se o Bruno Lage tem queda para prelecções entusiásticas. Mas, às tantas, devia ter pedido ao ChatGPT para lhe compor um discurso onde se clamasse que a História pode ser escrita também com os pés. E que esta noite o Benfica não joga somente para ultrapassar o Barcelona, mas para dar a um país cansado um vislumbre de grandeza, um motivo para acreditar que ainda há feitos que engrandecem, para além daqueles que envergonham.

    Portanto, quando tudo à volta parece um pântano, onde se afundam valores e esperanças, eles e o futebol são a tábua de salvação. Eu sei que é filosofia barata, mas com falinhas e bolinhos se enganam os tolinhos.

    (mas que lindo serviço nos fez o António Silva: falha um passe e o ex-sportinguista Raphinha marca; isto só visto)

    Lá se vai o ‘meu discurso’ para emplogar jogadores. Aquele paleio de que devem consciencializar-se para jogarem não pelo salário ou pelo prémio de jogo, ou pela progressão na carreira ou por estatísticas pessoais – que devem jogam, sim, para resgatar um orgulho que se tem esbatido entre manchetes de escândalos e o cansaço de um país que já nem se surpreende com nada. Jogam porque, entre o golfe do Montenegro, as avenças e o teatro habitual dos poderosos, o povo precisa de alguma coisa que seja só emoção e verdade – e o futebol, no seu estado puro, ainda pode ser isso.

    Agora, está a ir esfumar-se uma noite glorisa..

    Vamos lá! A História exige coragem. E a questão, como sempre, é se há coragem suficiente para não se deixar adormecer pelo medo, para não se contentar com a mediocridade, para não hesitar quando for preciso arriscar. Porque o medo de falhar muitas vezes pesa mais do que a vontade de vencer – e já vimos demasiadas equipas portuguesas a jogar contra colossos com um respeito que roça a subserviência. A História não se faz com medo.

    E eu a encher já chouriços…

    Agora, o pior não é perder. Perder, todos perdem alguma vez na vida. O pior é perder sem ter dado tudo, sem ter lutado, sem perceber a grandeza da ocasião. E temo que seja isso que me arrisco a assistir esta noite, aqui na Luz: contra um Barcelona reduzido a dez durante 70 minutos e sem o Benfica capaz de assumir o jogo, sem a ambição crua e visceral que transforma uma equipa boa numa equipa histórica. E o futebol não perdoa àqueles que hesitam, e a História muito menos.

    (lá em baixo, ninguém com um rasgo de talento; e o guarda-redes polaco, cujo nome não sei escrever e muito menos pronunciar vai dando conta do recado)

    Caminha o jogo para o fim – e, pela segunda vez, o raio do Raphinha fez das suas. Mais um murro no estômago, mais um lembrete cruel de que quem não quer ganhar acaba sempre por perder.

    E pronto: apito final. Saio daqui da Varanda da Luz com fome e com azia. Tudo mau. E esta crónica tornou-se simplesmente um repositório de filosofia barata e de frustração. Para a semana, lá estarei em Barcelona – mas acho que só lá vou para fazer turismo…

  • Boavista 3.0

    Boavista 3.0


    Deveria ser uma noite tranquila de futebol – e até foi – sem sobressaltos. Mas nunca é. O cronista que também é jornalista, que por sua vez é também director do próprio jornal, decidiu que merecia a ida ao Estádio da Luz ver o seu Benfica, escrevinhar a crónica e degustar o seu farnel.

    No entanto, o problema da multipersonalidade – que isto de dizer esquizofrenia já nem sei se se pode – impôs-se. Às oito da noite, quando a bola já rolava, o director entendeu que havia condições para cobrir, com urgência, a notícia explosiva sobre os negócios imobiliários de Hugo Soares que, no dia anterior, apontara o dedo ao Chega por interesses imobiliários, quando afinal tinha os seus próprios terrenos no jogo. E havia mais umas nuances. As empresas dos homens do Chega eram um hino à falta de cumprimento das regras de gestão; e até o presidente do Parlamento, José Pedro Aguiar-Branco, molhava o bico e tinha também a sua empresa imobiliária. E decidiu telepaticamente falar com o jornalista, que fez um bypass ao cronista.

    O director insistia. “Notícia para o Página Um, tem de ser hoje ainda!” — ordenava. O jornalista suspirava. O cronista tentava ignorar. Mas o director é teimoso. Assim, com o olhar intercalando entre o relvado e a timeline de um documento de texto, a crónica do jogo teve de ser intercalada com mais um caso de ‘normalidade política lusitana’, ou seja, mais um escândalo.

    Assim, enquanto à esquerda, Bruma – acho que era ele – lançava um sprint pela ala, à direita eu abria os registos empresariais de Hugo Soares. “Compra e venda de imóveis próprios ou alheios”. Pimba, mais um parágrafo. Cruzamento para a área, desvio de cabeça, defesa do guarda-redes. “Capital social de 5 mil euros transformado num pé-de-meia de 285 mil.” Será que o guarda-redes do Boavista, que fez defesas espectaculares – se calhar para impressionar o Preud’homme, velha estrela numa época em que o Benfica andou mal – também faz render assim os seus investimentos? Duvido.

    O Benfica marcou entretanto pelo italiano Belotti, mas a história mais dramática era a de Aguiar-Branco, que detém quase 40% de uma empresa do sector imobiliário. Para alguns, uma jogada legal. Para outros, um autogolo ético.

    Ao intervalo, entre uma trinca na maçã e um gole de água, a notícia já estava a meio. A segunda parte começou. Um cartão vermelho para um jogador do Boavista ajudou o Benfica, mas não a mim. O jornalista corria contra o tempo, mas o cronista teimava em rever na televisão o pisão do Miguel Reisinho ao Kökçü com a mesma atenção aos detalhes que dava ao RusticGate. Porque sim, a política e o futebol não são assim tão diferentes: ambos têm os seus protagonistas, os seus falhanços clamorosos e, claro, as suas infracções. O problema é que, na política, o VAR está a dormir.

    O segundo tempo caminhava para o fecho e a notícia precisava também de ser encerrada. Entre um contra-ataque perigoso e mais um remate defendido, surgiam os detalhes finais: a ligação entre os negócios imobiliários e os interesses políticos, os lucros que surgem do nada, os terrenos que mudam de valor por decisão legislativa. No ecrã do telemóvel, as últimas correcções. No campo, o Benfica tentava dilatar a vantagem. E eu? Eu tentava não perder o fio à meada.

    Foi então que o inevitável aconteceu. Golo! Pavlidis, vindo do banco, ampliava a vantagem para 2-0. E, no mesmo instante, o jornalista concluía o seu artigo: “No fim, todos ganham. Ou quase todos.” O director podia respirar aliviado. A manchete estava pronta. O cronista, por sua vez, olhava para o campo e pensava: “Mas será que algum dia eu vou poder simplesmente ver um jogo de futebol?”

    No final do jogo, com o Benfica a atropelar o Boavista por 3-0, o jornalista enviava a notícia para publicação. O director, satisfeito, desligava as notificações. E o cronista, esse, ficava a matutar: “Mas afinal quem é que marcou os golos desta noite? O Benfica ou os negócios imobiliários da política portuguesa?”

    Saí do estádio com essa dúvida a martelar na cabeça. No metro, olhei para os adeptos e ouvi as suas conversas. Alguns celebravam o resultado, outros lamentavam a falta de eficácia perante um checo que defendeu mais de 10 remates.

    Ninguém, obviamente, falava dos negócios imobiliários de Hugo Soares ou Aguiar-Branco. No país do futebol, os verdadeiros jogos jogam-se nos bastidores, com jogadas bem mais sofisticadas do que um contra-ataque bem desenhado.

    Cheguei ao PÁGINA UM ainda a tempo de umas arrumações para receber uns amigos, para uma conversa sobre a vida, a inteligência artificial e ideias para este jornal. E a crónica desta A Varanda da Luz fica assim, hoje, algo esquisita. É a vida. Importante, sim, é que foi um dia triplamente ganho, não fosse o Benfica espetar 3-0 ao Boavista.

  • Moreirense 3.2 (antecedido de Mónaco 3.3)

    Moreirense 3.2 (antecedido de Mónaco 3.3)


    A escrita tem destas coisas – ou melhor, eu tenho destas coisas. Houve um tempo em que Da Varanda da Luz era escrita inteiramente no estádio, num nível fisicamente acima do fervor dos adeptos, acompanhado pelo famigerado farnel. Era um ritual, quase religioso, com a escrita a sair enquanto mal assistia ao jogo e, amiúde, apenas com o aviso de um bruá para poder ver os golos ao vivo. Publicava a crónica ali mesmo, sem filtro nem ponderação, porque a urgência do momento assim o exigia. Era, muitas vezes, um dos últimos jornalistas a sair do estádio, já com as luzes normais apagadas e apenas as vermelhas brilhantes acesas, dando-me uma sensação de exclusividade. Ajustes e acertos? Esses, em muitos casos, vieram depois, quando já ninguém queria saber, mas ainda assim os fiz, que a dignidade da crónica também conta.

    Mas veio a edição quinzenal e, com ela, um novo método – ou uma nova complicação. Já não era um sprint frenético de 90 minutos e descontos. Pior: a crónica começou a “ir-se fazendo”, o que nunca é boa ideia. Entre outras escritas, outras paixões e, claro, algumas conveniências, a crónica passou a ser apenas alinhavada no estádio e concluída à distância, com a serenidade – ou procrastinação – de quem acha que há sempre tempo. E foi assim que, aqui e ali, começou a sair fora de horas, por vezes colada a um jogo da Liga dos Campeões, porque o futebol não tem paciência para cronogramas nem respeita calendários editoriais.

    Eis o que nos traz a este momento. A crónica sobre o jogo contra o Moreirense deveria ter saído antes, a quente. Não saiu. E eis-me, assim, a concluí-la, como já fizera com o Barcelona, porque assim se fica com a sedução do futebol europeu. Mas hoje não estou talhado para uma crónica sobre o Mónaco. Até porque cheguei atrasado – o Montenegro não me deixou.

    Portanto, terão os leitores – se calhar poucos – apenas para ler a crónica do Moreirense,  e antes umas fotografias deste Benfica – Mónaco por um lugar nos oitavos de final da Liga dos Campeões. Ainda bem que não me apeteceu escrevê-la – e não me levem a mal. Previ que seria um jogo de sofrimento. E não me enganei: passámos à rasca, como poderíamos ter ido de vela. A imprevisibilidade nos jogos do Benfica já se torna previsível.


    Hesito, mas não muito. A dúvida instala-se como incerto anda a meteorologia deste Fevereiro, sem ser suficientemente enevoada para me fazer recuar, mas incómoda o bastante para me obrigar a pensar duas vezes se trago o chapéu de chuva. Esta tarde não chovia, mas veio-me a pergunta que não cala: vou ou não vou ao jogo? Sei que, no final, a resposta quase sempre é afirmativa, embora, a cada jornada que passa, a interrogação se torne um ritual — uma espécie de exame de consciência benfiquista, um exercício de ascese futebolística. Vale a pena? E não é só pelo resultado do Glorioso que pesa; é a antecâmara do jogo, a travessia, a incerteza do que ali me espera.

    Bem sei que, se o Benfica me desse apenas alegrias, não haveria grande mérito em ser benfiquista. O fervor clubístico vive de uma mística que se alimenta do triunfo, se bem que também de alguma provação, não demasiada, para que a felicidade se mostre ainda mais dulcífera. E é nesta última que a reflexão se impõe.

    Como Job a questionar a justiça divina, dou por mim a interrogar-me sobre as razões pelas quais me imponho esta jornada, sabendo que pode redundar em euforia galopante – o Campeonato está no papo –, mas também em aborrecimento taciturno – com esta equipa não vamos lá – ou, pior, naquela cólera amarga que apenas a ineficácia ofensiva e a displicência defensiva conseguem produzir – e aqui não reproduzo palavras por decoro.

    (ena, ena… um brinde do VAR que nos oferece um penálti… e golooooooooo! PAVlidis, sem hipóteses!)

    Bom, mais bem-disposto, embora não o suficiente para me fazer esquecer a viagem de metro. Ah, o metro. Esse purgatório subterrâneo onde se comprimem almas sofredoras de todas as condições, algumas com cachecóis encarnados, outras alheias ao rito futebolístico, mas todas reféns da mesma lógica de transporte errático. No Metropolitano de Lisboa, a passagem de um comboio não é nunca uma certeza, mas uma hipótese estatística, sujeita a atrasos e a falhas técnicas que soam a castigo divino. Quando não, o melhor que se aspira é um trem de sete em sete minutos, ou dez, sempre cheio nas proximidades do início e fim do jogo. Ando cada vez mais exigente desde que andei de metropolitano de Copenhaga: três minutos e lá vem mais um. De certeza.

    (e goloooooooooo!!! PAVlidis de novo. Finalmente, com veia goleadora o grego; finalmente, a fazer jus às três primeiras letras do nome)

    Estou mais animado, mas, enfim, agora tenho de continuar a minha reflexão. Dizia eu que, mais de uma vez parado numa plataforma pejada de fiéis e de curiosos, questiono-me se a peregrinação à Luz será assim tão distinta da Via Dolorosa. Pelo menos Jerusalém tem uma mística que a justifica; já a estação do Alto dos Moinhos, onde de ordinário saio para apanhar a credencial, nada tem para devaneios místicos.

    Mas avanço, porque a recompensa há-de vir – um dia. Há-de vir, mesmo sem saber que recompensa me espera: a Liga dos Campeões ou só o (habitual) campeonato nacional? Em todo o caso, a chegada ao estádio é sempre um alívio. Sair do metro e respirar o ar fresco – mesmo que cheire a castanhas queimadas, a torresmos suspeitos e a bifanas de qualidade duvidosa – traz um conforto que só quem passou vinte minutos em contacto forçado com a axila de um estranho pode verdadeiramente apreciar.

    Mas depois de subir do piso -2 até ao piso 4, começa a ascensão, mas já nada heróica, e sim lenta e implacável: a grande escadaria que tenho de calcorrear, até chegar à Varanda da Luz – esse meu santuário laico onde a devoção se consume –, anda a inclinar-se com os anos. Os meus anos, diga-se. Aqui, permito-me mais uma analogia bíblica: Moisés subiu ao monte Sinai para receber os mandamentos; e eu subo esta ladeira maldita para receber, com sorte, um golo bem construído. Mas se Moisés seguia ao encontro aprazado com Deus, eu, amiúde, nada tenho garantido.

    (olha!, temos golo do Moreirense; como é possível!)

    E ia eu embalado para escrever que, quando finalmente atinjo o meu lugar, olho para a imensidão do estádio e sinto, momentaneamente, que tudo valeu a pena… Mentira: hoje sinto que, mais uma vez, vamos andar à rasca, como têm sido quase todos os jogos deste campeonato, tirando um ou outro. O relvado está ali, verde e aparentemente promissor, como se cada jogo fosse um novo começo, uma nova possibilidade de redenção – mas não… Os dois primeiros golos do Pavlidis concederam-me esperança – não para o mítico 15-0 –, mas surgem demasiados adormecimentos…

    De facto, nos últimos tempos, a esperança inicial tem cedido demasiadas vezes à frustração. O jogo começa e, em poucos minutos, aquilo que deveria ser um caminho glorioso revela-se uma provação. A bola não circula com a fluidez desejada, os passes saem denunciados, e a nossa defesa parece acreditar mais na fé do que na marcação aos atacantes.

    E eu pergunto-me: vale a pena tudo isto? Vale a pena suportar o metro, a escadaria, a angústia dos minutos que passam sem golo? Por regra, quando o adversário marca, o estádio mergulha num silêncio fúnebre, a dúvida a todos assola, incluindo os jogadores. Talvez esta Via Sacra seja, afinal, um castigo. Talvez Deus (ou Eusébio, que, no fundo, são manifestações do mesmo princípio metafísico) me esteja a pôr à prova.

    (goloooooooo… 3-1, marca Otamendi)

    Pelo menos há animação… isso não posso questionar. E vou agora descansar um pouco que o intervalo está a chegar.

    (e vem o intervalo…)

    … e recomeça o jogo.

    Aqui está o texto corrigido, mantendo o acordo ortográfico anterior a 1990:


    Portanto, continuemos: sina ou malapata, de jornada em jornada, de dúvida em dúvida, de sofrimento em sofrimento, cumpre-se a minha peregrinação. Sei que voltarei a questionar-me se devo meter-me no metro, se quero mesmo subir aquela escadaria, se tenho estofo para mais uma noite de emoções extremas no resultado, mas de exibições pouco consistentes. Mas também sei que, quando cá chego, quando finalmente me sento na Varanda da Luz, fico sempre com esperança de que tudo melhore. Na verdade, por mais irritante que por vezes esteja, o Benfica não se explica – cumpre-se.

    E cumpre-se sempre da forma mais imprevisível possível, confesso. Porque, no fundo, o Benfica já nem é apenas uma equipa de futebol – é uma experiência existencial, um exercício contínuo de fé cega e teimosia emocional. Cada jogo traz consigo a promessa de redenção, mas também a ameaça de um martírio. E é neste limbo que me encontro desde que comecei estas crónicas, e nem sei que lição tenho de aprender.

    No fundo, talvez seja isso que me mantém preso a este ritual: a ilusão de que, um dia, deixe de sofrer – e só haja prazer. A chatice é que esse El Dorado nunca mais chega – e eu, aqui, de coração nas mãos.

    E jogo a jogo tudo recomeça. Sempre recomeça, como um ciclo vicioso de esperança e frustração. Os jogadores voltam a correr, a bola volta a rolar, e eu volto a iludir-me, a acreditar que desta vez será diferente, que hoje veremos uma exibição convincente, sem tremores nem sobressaltos. E eu a repetir-me. Já acho que fazem de propósito. O Benfica é mestre na arte de manter os seus adeptos em suspense, de os obrigar a viver cada minuto como se fosse o último, de os fazer passar do êxtase ao desespero num simples passe mal medido. E, por mais que todos se queixem, por mais que resmunguem e ameacem nunca mais voltar, o Benfica sabe que estarão aqui na próxima jornada, no mesmo lugar, a repetir o mesmo ritual.

    (e golo do Moreirense; grande porcaria: 3-2 para sofrer)

    E pronto, instala-se de novo o pânico. O estádio, que há instantes parecia exalar um alívio quase festivo, regressa ao estado natural de inquietação. As mãos voltam à cabeça, os murmúrios ganham volume, e já vejo quem pragueje de pé, indignado com a facilidade com que se sofrem golos.

    E o relógio, esse maldito, mexe-se agora numa sádica lentidão, e eu sei o que me espera: uns dez minutos, com descontos, de mais tormento – uma vergonha para um Benfica de glórias perante uma equipa de Moreira de Cónegos. Pelo amor do Santo Padre!!!

    (… nem vale dizer nada sobre o jogo…)

    Pronto! Mais uma vitória suada, com golos sofridos, uma porcaria! Regresso no próximo. Claro!

  • Famalicão 4.0 (seguido de Barcelona 4.5)

    Famalicão 4.0 (seguido de Barcelona 4.5)


    Há derrotas que doem e há derrotas que humilham. E depois há ainda aqueloutras cuja única redenção entronca no olvido. Aquela do Benfica contra o Braga, em tempos hodiernos na cronologia, mas em tempos de antanho na memória, inscreve-se neste último e mui ingrato capítulo. Quem vive de paixões não deve escrever sobre uma ferida ainda aberta, dizem os médicos, tal como não se narra um naufrágio enquanto o submarino não emerge. Mas disso não entendo nada, talvez seja melhor ao Almirante Gouveia e Melo, mesmo arriscando que, estando já na reserva, se tenha esquecido de muita coisa.

    Em todo o caso, no registo filosófico que me cabe nesta crónica, declaro: há momentos em que o silêncio não é apenas um acto de prudência e de sabedoria, mas uma ética de sobrevivência.

    Ora, mas no que concerne – não costumo usar este termo; enfim, fica… – à escrita desta crónica, dois fenómenos se apresentam de natureza complementar – uma espécie de proverbial casamento entre a fome e a vontade de comer. Por um lado, a minha indolência em dissecar o que foi, aos olhos do mundo, aquele descalabro do Glorioso contra os homens de Bracara Augusta. Por outro, a sábia decisão do director desta “casa” – que, por feliz acaso, sou eu – que, em exercício digno de Cícero, ponderou: “É justo perpetuar na memória uma catástrofe que até o mais benfiquista dos benfiquistas prefere esquecer?” Não, caro leitor. Não é justo. Como não foi justo o passe em falso, a defesa em apneia ou… o árbitro – sempre o árbitro, porque o árbitro é, invariavelmente, parte do enredo.

    É bem verdade que um silêncio jornalístico sobre uma tragédia desportiva pode parecer parcialidade. Tanto mais a notícia é o homem a morder o cão, e neste caso notícia seria o Braga vencer o Benfica. Mas já dizia Voltaire – e se não dizia, devia ter dito, porque me dá jeito meter aqui um filósofo para sustentar a minha tese – que não há imparcialidade no amor. E amar o Benfica é, afinal, o destino que se abraça com a mesma intensidade que fez um Romeu à sua Julieta, mesmo que por vezes nos esfaqueie, ou fraqueje, o coração.

    Aliás, muitos leitores do PÁGINA UM me criticam por esta Da Varanda da Luz, dizendo, com razão, ser inconcebível um jornalista que se reputa de isento andar nestas andanças – com pleonasmos à mistura. Mas quem, em futebol, espera uma crónica honesta, imparcial e detalhada? Afinal, cansa ser neutro – e para se ser imparcial nas notícias mostra-se necessário um escape. E qual é o melhor escape que não a bancada de um estádio?

    Aliás, voltando ao silêncio sobre o Braga: a História está repleta de exemplos de momentos em que o silêncio foi estratégico. Vasculhei por aqui, e li que Esparta, após a batalha de Leuctra, optou por não relatar a derrota aos cidadãos, temendo abalar o orgulho nacional. Li também que Roma – não Associazione Sportiva, mas a dos romanos –, quando derrotada por Aníbal Barca em Canas, fez esquecer a humilhação, varrendo a derrota da memória colectiva e focando-se somente na vingança, alcançada pouco mais de uma década depois na Terceira Guerra Púnica.

    Pois bem, partilho o mesmo espírito: por que relatar, com detalhes lancinantes, aquilo que já dói sem narração? Afinal, a dor colectiva já deve ter ficado expressa por mui benfiquistas nos cafés, nas redes sociais e no silêncio constrangido nos lares. Que mais há para dizer, portanto?

    Poderia, claro, aproveitar este espaço para filosofar sobre a decadência do futebol moderno, sobre o preço dos passes milionários ou sobre a fragilidade de uma equipa que se imortalizou nos anos 60, deu uns fogachos nos anos 80, e que custa a levantar voo, apesar das águias. Mas, convenhamos, tal seria um exercício cínico num momento em que a derrota já foi sentida nos ossos. Se já há o fardo da existência, deixemos o peso da derrota para os outros.

    E assim fica completa a crónica que não foi. Ou antes, a justificação para a ausência de crónica que, em si, é uma manifestação de puro benfiquismo: abraça-se a glória, mas vira-se o rosto à humilhação. Não é covardia; é elegância. E nem foi, convenhamos, por falta de tema. Foi falta de ânimo, é certo – mas também uma delicada aliança entre a necessidade de não perpetuar a desgraça e a vontade de avançar para vitórias que certamente me esperam hoje.

    Além disso, e como diz o povo, acumulada por sabedoria de milénios de adversidades e de vinho, muita água faz o tempo correr por baixo da ponte. E, em duas semanas, não só correu água, como, depois da tristeza, já o Benfica levantou um caneco – a Taça da Liga –, à custa do mesmo Braga e também do Sporting. E, portanto, temos hoje Benfica renascido. E, aliás, renascido, e sei isso, porque estando a alinhavar esta crónica, já estão dois encaixados nas redes do Famalicão.

    Já agora: esta crónica também vai ficar diferente, porque não me dá jeito escrever sobre as incidências do jogo. Entrei mais uma vez atrasado, e quando entrei já o Benfica ganhava. Não cheguei para ver o golo inaugural, mas cheguei a tempo de testemunhar uma coisa tão rara quanto fascinante: uma bancada central cheia de lugares vagos. Não resisti à tentação, claro. Em vez de uma colina himalaica que tenho de subir até à Varanda da Luz, fiquei aqui mais por baixo, com a promessa de uma visão privilegiada do relvado e, ao que parece, um festival de palavrões que os sócios mais antigos, e seguramente mais experientes, têm na ponta da língua… e com a qual vão mimando o árbitro, apesar de estarmos a vencer.

    Sentar-me na bancada central, embora impossibilite escrever confortavelmente, foi uma decisão calculada. Melhor vista? Sim. Mais palavrões? Com certeza. Menos tumulto? Nem por isso. Porque se há uma coisa que aprendi no futebol é não há papas na língua. Um destes dias ainda escrevo uma crónica só com palavrões e dichotes enquanto se assiste aos 90 minutos. Estes são os verdadeiros cronistas, mais ferozes do que qualquer jornalista, mais eloquentes do que qualquer filósofo. De cada vez que o árbitro apita contra o Benfica, lá vem um ensaio oral, misto de tragédia e comédia. Uma falta contra o Benfica, e a mãe do jogador adversário é vilipendiada.

    Com o Benfica em vantagem no marcador, tenho garantida uma noite tranquila. O Famalicão, ao que parece, está disposto a facilitar a vida. Nem um chuto digno de nota. O Trubin daqui a nada adormece.

    Por agora, contento-me com esta bancada central, com os seus cronistas de língua afiada e vista atenta, com a promessa de mais golos e mais emoções. Se a noite acabar em goleada, tanto melhor. Se não, bem… há sempre espaço para mais uma crónica, mais uma análise, mais uma ópera de palavrões. Afinal, na Luz, nunca há dias iguais – só noites cheias de histórias para contar.

    E encerro esta crónica – e vou armar-me em espectador normal. Até vou sair do estádio como adepto normal, num lento magote até ao Colombo. Terça-feira cá estarei: o Barcelona espera-me, ou espera-nos.


    Recepção ao Barcelona. Liga dos Campeões. Não é todos os dias nem para todos. Terceira-feira de dilúvio. Debaixo de chuva, os céus prometeram uma noite épica, e tudo começou com uma ilusão – palavra parecida com o castelhano ilusión, que significa mais entusiasmo ou mesmo alegria –, mas que terminou isto num aguaceiro de frustrações. Desta vez metido numa ala lateral da Varanda da Luz, uma espécie de coxia, porque houve mais jornalistas do que mães para assistir ao jogo, mas aparentemente escolhido para maximizar a irritação: não só pingava – um gotejar rítímico e implacável que, se fosse numa cela medieval, seria tortura reconhecida – como ainda me puseram junto de jornalistas vindos da Catalunha.

    O Benfica, confesso, começou como um furacão, levando-me a acreditar que, finalmente, o colosso catalão seria domado. Percebi a aflição de um jornalista, a meio lado, com sotaque brasileiro. Ao intervalo, tínhamos um 3-1 vistoso e galvanizante. Mas, mas, mas… na Liga dos Campeões, o Benfica é uma espécie de Estoril na nossa Liga que está a ganhar por 3-1 ao intervalo, mas inseguro de alcançar a vitória final.

    Aos 65 minutos, o Benfica esmoreceu e os golos do Barcelona começaram a cair, cada um mais doloroso que o anterior. A última machadada, aos 95 minutos e uns quantos segundos, imediatamente depois de um lance que deveria (pelo menos com o lusitano VAR) dar penálti a nosso favor, pareceu-me castigo divino, como se os céus dissessem: “De que serve sonhar tão alto se não tens guarda-chuva nem defesa sólida?”

    Se a derrota já era difícil de digerir, a cereja no topo foi ter de encontrar uma dose extra de fair play para continuar a sorrir para o simpático jornalista brasileiro, radicado na Catalunha, com quem fui compartilhando as incidências do jogo e os pingos de chuva.

    Não se perdeu tudo: o Lucas, assim se chama, trabalha para o site brasileiro do Barcelona. Fiquei com o contacto dele, prometendo que, numa próxima oportunidade, visitarei o Camp Nou. Assim, pelo menos, com as suas indicações, não passarei pelo que lhe aconteceu aqui em Lisboa: andou às voltas durante uma hora, perdido e irritado, à procura de uma entrada que parecia ter sido escondida de propósito.

    Talvez, numa outra noite, menos molhada e menos caótica, consiga redimir esta frustração – em todo o caso, mais memorável do que a derrota com o Braga. Mas, por agora, fico apenas com a certeza de que, no jogo e na vida, há dias em que os deuses do futebol decidem deixar-nos à chuva. Literalmente.