Etiqueta: Cultura

  • Viva a Liberdade!

    Viva a Liberdade!

    A pretexto dos 50 anos da Revolução dos Cravos, um texto da autoria do rapper Estraca.

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    Viva a Liberdade!

    A liberdade do politicamente correto,

    do pensamento único,

    do silêncio das cantigas.

    Cuidado, avisem os poetas que existe um novo dicionário das palavras proibidas.

    Liberdade moderna, dirias tu, o maior ditador das nossas vidas.

    Fascistas que se acham democratas,

    democratas que são fascistas,

    são as feridas do passado que reflectem na ignorância deste povo fraco, que a única coisa que sabe fazer é andar com cravo na mão a gritar Liberdade…

    É Abril, a igualdade, grita a tia da Lapa, toda ela cheia de privilégios com a sua mala de marca, a cantar o Grândola Vila Morena.

    Mas sabem uma coisa? Eu não tenho pena.

    Que se lixem todos com este sistema que legitimam com a vossa cegueira ideológica.

    Acreditam mais em políticos do que em vocês mesmos.

    É este o país que temos, onde o voto virou um acto de preguiça.

    Votas para ser governado, entregas tudo ao senhor engravatado, que te rouba, explora,

    e diz-te que não és escravo.

    E tu repetes: eu não sou escravo, isso são coisas do passado, eu não sou escravo, eu dou metade daquilo que eu ganho a um Estado que nada me dá,

    mas não sou escravo…

    Eu penso algo diferente daquilo que eles querem que eu pense, e sou censurado,

    mas não sou escravo.

    É a política do tem que ser,

    tem que haver respeitinho…

    Então, isto agora é assim?

    Viramos todos uns rebeldes?

    Temos que respeitar os senhores que cuidam com muito carinho e dedicação da nossa vida e da nossa nação,

    que nos oferecem a ração,

    que nós pagamos,

    que nos dão metade daquilo que nos tiram,

    mas pelo menos dão.

    E sim! Eu sou livre.

    A televisão disse-me que eu era livre.

    Os políticos e até os meus ídolos me confirmaram que eu era livre…

    É porque eu sou livre.


    Só seremos livres quando soubermos que somos escravos. Esse é o primeiro passo para a Liberdade!


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  • Ah, os aviões!

    Ah, os aviões!

    Ah, os aviões! Dinossauros gigantes a galgar a pista. Um rugido grave que se aproxima. Suave, primeiro. Forte. Novamente suave, até desaparecer. Patas engolidas pelo ventre. Foi. E já no céu surgem ao longe os olhos de fogo dos que em poucos segundos tomarão o seu lugar. Pousarão bruscos e pesados. Tremerá o chão. Mas aterrar acalma-os. Mansos e dóceis, rosnam baixinho enquanto procuram um sítio seguro para deixarem sair os minúsculos seres que transportam.

    Luísa inveja as estátuas que, no centro da rotunda, olham fixamente o céu sem que lhes doa a cervical. As luzes de aproximação. O nariz apontado às nuvens.  O céu riscado a giz. Adivinhar origens e destinos. Na sua mente, silenciosos, um “Boa viagem!” ou um “Bem-vindos!”.

    blue and red airplane on sky

    O aeroporto e os aviões sempre presentes na vida dos farenses. Não admira, pois, que à pergunta: “O que queres ser quando fores grande?”, ela tenha respondido desde muito cedo “⎼ Hospedeira.”. Consequência das muitas tardes passadas junto à rede do aeroporto a ver desembarcar as tripulações. As hospedeiras, assim se chamavam nesse tempo, fascinavam-na. Fardas elegantes, mulheres esbeltas, impecavelmente penteadas e maquilhadas. Exalavam glamour, classe, sucesso e uma liberdade pela qual sempre tinha ansiado. O que poderia ser mais libertador do que voar? E, entenda-se que, na sua lógica de criança, não era preciso ter aquele conjunto de características para ser hospedeira. Era ser hospedeira que garantia que se tornaria igual a elas. Perfeita!

    Tudo isto seria normal, da mesma forma que o foi mudar de ideias já na universidade. O que é menos normal é que este seu desejo coabitasse com o  pavor de voar. Viajar de avião é uma decisão tomada apenas quando não existem alternativas viáveis. Cada voo é um misto de felicidade por ir, por saber que chegará rapidamente ao destino, e o terror de sentir que não tem chão.

    Afastada uma carreira que se adivinhava auspiciosa, manteve-se porém a necessidade de voar de vez em quando.

    people sitting in airplane

    Na última viagem que fez a Roma, ao embarcar no regresso a casa, deparou-se com um piloto imberbe. Calafrios instantâneos. Suores. Punhos cerrados. Dor de estômago. Enquanto procurava o seu lugar, repetia para si mesma que quanto mais jovem o piloto menor a probabilidade de ter um AVC ou um enfarte. Que melhores eram os reflexos e a visão… Acalmou um pouco. Sentou-se, recorrendo a posições de ioga cuja finalidade finalmente percebeu. E, surgiram então os assistentes de bordo com os coletes salva-vidas e as máscaras de oxigénio a recordar-lhe que poderiam ter de aterrar no mar. Tentou não ouvir. Ninguém prepara os passageiros para o caso de um comboio descarrilar, pensou. Qual era a probabilidade? Não queria ouvir.  Abriu o livro que trazia consigo e começou a ler. 

    Uma das assistentes pegou no microfone e apresentou-se. Tinha o nome da sua falecida mãe, Lucrécia. Raríssimo. Ativou o modo supersticioso e assumiu tratar-se de um sinal. Só podia querer dizer que estava protegida.

     –Vai correr tudo bem. – murmurou.  

    O avião descolou e Luísa tranquila como nunca.

    Pouco tempo depois, a máquina foi envolvida por um temporal pavoroso. Abanava por todos os lados. O medo dos passageiros era audível.  Luísa manteve o controlo durante algum tempo. Porém, passados poucos minutos, começou a desconfiar de que o facto de a assistente ter o nome da sua mãe podia não ser sinal de proteção, mas sim de que me iria juntar a ela não tardava mesmo nada. Ativou, então,  o modo religioso. E vá de rezar até o avião pousar. Se foi das orações, das figas ou de uma mãozinha do Além, não sabia, mas tendia a desconfiar que o milagre pudesse ter sido obra do miúdo loiro da cabine…

    people sitting on chair inside building

    Para chegar a casa, havia, no entanto, que apanhar um segundo voo. Uma passagem pelos lavabos, permitiu-lhe refrescar-se, salpicando o rosto repetidamente até se sentir mais calma. Estava aterrorizada com  a ideia de voltar a entrar num avião, mas não havia alternativa. À chamada, caminhou com passo lento e coração acelerado em direção à sala de embarque. Olhou rapidamente em redor para ver quem iria embarcar consigo. Muitas crianças era bom auspício. Nunca se ouviu falar de cair um avião cheio de crianças. Gente feliz e com ar saudável. Excelente prenúncio. Não tinham ar de quem ia morrer naquele dia. Uma cara ou outra com ar mais mortiço provocavam-lhe maus pensamentos. Passava adiante. Ao fundo, a um canto da sala, um homem captou a sua atenção. Meio enrolado na cadeira, debruçado sobre uma mochila preta, ar de poucos amigos, uma barba farfalhuda. Passou-o de imediato pelo seu detetor de riscos aéreos. E foram necessários alguns segundos até que se apercebesse de que se tratava afinal do seu pobre marido, ainda enjoado, e com muito pouca vontade de embarcar numa nova centrifugação.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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  • É certo porque é impossível

    É certo porque é impossível

    Ó cores viscerais que jazeis subterrâneas

    Fulgurações de azul, vermelhos de hemoptize,

    Reprezados clarões, cromáticas vesânias,

    No limbo onde esperais a luz que vos baptize,

    As pálpebras cerrai, ansiosas, não veleis.

    Camilo Pessanha

    POEMA FINAL in CLEPSYDRA (1920)


    Proponho-vos aqui toda uma série[1] que será um exercício de raciocínio livre, já que, até aterrar sem aviso nesta rubrica do PÁGINA UM, ainda não constou antes de nenhum romance, de nenhum livro de texto, nem de nenhum artigo científico. Mas vamos lá, que a ideia vale por si. Ainda ninguém pensou que há diversas semelhanças entre um ornitorrinco e um urso polar?

    Entre um monotrémato oleoso com pés de pato e um caniforme desgrenhado de patas plantígradas?

    Hm.


    Toda a gente tem, pelo menos, a noção de que os ornitorrincos representam uma grande quantidade de bichos diferentes amalgamados num só. Mas como é no mínimo improvável que toda a gente saiba tudo no respeitante a esta amálgama, tenham santa paciência, mas vamos começar pela rememoração das principais características que eles partilham com vários outros grupos animais, todos muito distanciados entre si.

    Antes de mais nada, a cor e a cauda do ornitorrinco são iguaizinhas à do castor[2]. Pensaríamos de início que esta ligação seria de grande importância, porque a cauda do ornitorrinco é extremamente importante para ele: é a sua única reserva de gordura, e quem diz gordura diz protecção e energia.

    Mas não.

    Falso alarme.

    Por muito importante que seja a cauda de castor na vida de um ornitorrinco, e por absolutamente imprescindível que seja a ligação à água doce na vida de ambos os bichos, não há absolutamente mais nada que os aproxime. Mesmo a forma como o castor vive na água doce, formando grandes famílias e construindo diques que lhe dão imenso trabalho a montar e a manter, isto não se assemelha em nada à forma ensimesmada e preguiçosa característica da vida do ornitorrinco. Como toda a gente sabe, a América do Norte e a Austrália não correspondem a posturas filosóficas similares.

    Ornitorrinco (em imagem gerada por inteligência artificial).

    Seguidamente, e tal como o Urso Polar[3], estas criaturas estão de tal forma bem adaptadas à vida na água[4] que acabaram por ser classificadas como semi-aquáticas[5]. À semelhança de qualquer urso, quando se encontram em cativeiro mostram que podem perfeitamente ter um regime alimentar basicamente omnívoro. No entanto, as características particulares do seu habitat condicionaram-lhe desde há muito as preferências gastronómicas.

    E então aqui vai uma boa história de selecção convergente[6].

    Porque é que o Urso Polar, podendo ser omnívoro, se tornou carnívoro?

    Ora, não gozem com o povo normal.

    O Urso Polar é carnívoro porque, como é evidente, no Ártico há sempre focas, mas não existem plantas durante a enorme maioria do ano. Talvez o seu sistema digestivo se tivesse adaptado aos conteúdos dos caixotes de lixo das pessoas, como aconteceu com o de tantos outros ursos, especialmente nos que vivem perto dos parques naturais. Mas, para que tudo isto acontecesse, era preciso que vivessem mais pessoas nas condições extremas em que vive o Urso Polar. Estive duas vezes no Alasca, cruzei muitas estradas de terra completamente desertas, atravessaram-se-me três vezes uns ursos vagarosos à frente do carro, mas eram sempre ursos castanhos. Mesmo que um Urso Polar partilhe por breves instantes algum território com alguns Inouits, os povos do Ártico não têm  minimamente o hábito de considerar que seja o que for é lixo, pelo que procuram reciclar tudo e não deitar nada fora[7]. E o habitat do Urso Polar não desce tão baixo que atinja as regiões onde a tundra se enche de mirtilos no pino do Verão[8]. Se comesse alguns gostava de certeza – mas de certeza  que que nenhum Urso Polar fica alimentado só com umas boas razias nos mirtilos deliciosos da tundra.

    polar bear on snow covered ground during daytime

    Então e o Ornitorrinco?

    Se já tem milhões de anos de existência em o registo fóssil nos diz que cobriu quase toda a Terra habitável, se é o mais antigo de todos os mamíferos dos nossos dias, não poderia ter recorrido a essa primazia para tirar proveito de todos os tipos de dietas antes de existirem sequer novos rivais? E se, ainda por cima, quando observado em cativeiro demonstra que pode mesmo ser omnívoro, porque é que decidiu dar ideias ao Urso Polar e ser carnívoro?

    Ah, pois é.

    A adivinha que se segue agora é que já não é para qualquer um.

    Antes de mais nada, qual é a dieta deste carnívoro, e de onde é que ela vem?

    O ornitorrinco revolve o fundo das águas onde mora à procura de camarões, ameijoas, peixinhos, larvas, vermes, cobras, ou outras delícias fáceis de engolir, juntamente com pedrinhas, lama, ou ainda raízes e caules aquáticos[9]. Não tem dentes, mas tem placas trituradoras nos maxilares, e é com elas que faz a primeira mistura de tudo isto, para depois a guardar  de reserva nas bolsas das bochechas[10]. Quando essas bolsas estão cheias, vem até à superfície, tritura tudo até fazer uma papa, e só nessa altura é que a engole. Depois vai logo para o fundo buscar mais comida.

    Porquê?

    Porque os monotrématos não têm estômago.

    Segue-se o grande sobressalto que seria de esperar.

    Mas…mas…

    Mas como não têm estômago?

    E, se não têm,

    porque é que não têm?

    polar bear standing in front of three walrus on water

    Olha que gaita, porque sim. Porque a evolução existe, a selecção natural também, e este grupo deu-se bem com o seu regime[11].  Para satisfazerem as exigências resultantes do sistema lunático em que se especializaram, os ornitorrincos passam doze horas por dia dentro de água à procura de alimentos.[12]. São óptimos nadadores, e estão altamente especializados nesse sentido. Numa performance que volta a recordar-nos o Urso Polar, conseguem mergulhar durante dois minutos blindando os olhos, os ouvidos, e as narinas.

    Ai é?

    Ah pois é.

    Não desistam ainda, camaradas e amigos. A série continua. Dentro de mais um mês, talvez venhamos a saber como é que os ornitorrincos conseguem encontram o seu alimento debaixo de água  com todos os órgãos dos sentidos blindados. E talvez este conhecimento os aproxime ainda mais dos ursos polares.

    Algumas charadas progridem muito devagar.

    Mas progridem.

    E a sua lentidão permite-nos ir pensando.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    N.B. O título é retirado de Tertuliano, padre do século II, nas primeiras fases do Cristianismo.


    [1] Ficamo-nos por “série” porque o contéudo não estica para “telenovela”. Nem ninguém leria nada do que se segue depois de semelhante introdução. Espero eu, não sei. Vivemos tempos difíceis.

    [2] Sabiam que, no século XVIII, quando já se conhecia praticamente toda a fauna do mundo e a Europa do Iluminismo foi a votos para escolher o Rei dos Animais, várias vozes se levantaram em defesa do CASTOR? Ah pois foi. Mas essa é toda uma outra história, que, por este andar, terá que ficar para bastante mais tarde.

    [3] Ah-ah! Mais um regresso do URSO POLAR. Alguém quer apostar qual será o último? Façam concursos, façam. Quando derem pelo que aconteceu, acabaram de celebrar os vossos respeitáveis setenta anos e de contrair matrimónio com uma espécie qualquer de semideus que vos entrou à noite a voar pela janela. Será que este semideus é o Espírito Santo? Bem, isso ele nunca confirma nem desmente.

    [4] Embora, no caso do Ornitorrinco, não se encontre qualquer evidência de que começaram por ser mamíferos absolutamente terrestres, como por exemplo os ursos. Daí a necessidade de uma classificação à parte também só para eles: não são terrestres nem aquáticos, são semi-aquáticos.

    [5] Et voilà. Ou seja, “ora aí está”, mas a Autora não quer exta pequena exclamação traduzida do francês. Insiste em exibir-se culta até ao fim. NT.

    [6] Duas espécias muito diferentes adquiriram características semelhantes ao longo do tempo devido às suas adaptações progressivas ao ambiente onde vivem.

    [7] Refiro-me aos que continuam a viver naquele que é desde há milhares de anos o seu habitat natural, e onde, de facto, tudo serve para alguma coisa. Esqueçamos, por favor, todos aqueles que vieram instalare-se nas cidades, onde vivem maioritariamente de orçamentos governamentais. É uma tristeza ver uma esquimó obesa, de fato de treino cor-de-rosa e ténis pretos com luzres que acendem nas solas, o cabelo pintado de verde já com as raízes à mostra e com uma permanente que também já começou a perder o vigor, a deitar para o lixo a sua terceira lata de Coors enquanto acende um cigarro e fala ininterruptamente com um grupo de gente tão feio de ver como ela. Claro que é feio, mas enfim. A vida não é nenhum conto de fadas.

    [8] Ou antes, está agora a começar a descer por escassez de comido mais a Norte – e a consequência imediata destas explorações desesperadas é que há cada vez mais ursos polares sumariamente abatidos a tiro.

    [9] É aquilo a que se chama um bottom-dweller, ou seja, um explorador do fundo. As nossas tainhas, por exemplo, fazem exactamente a mesma coisa. E querem lá saber se estão a revolver o fundo mesmo ao lado de um esgoto. Fritam-se, temperam-se com algum sal e muito vinagre, e quando chegam à mesa estão absolutamente deliciosas.

    [10] Aqui podemos, também, considerar que o ornitorrinco tem qualquer coisa de hamster.

    [11] Tudo bem, claro – quando ainda não existiam outros grupos, era um regime tão bom como qualquer outro.

    [12] Parte deste tempo passado na água deve-se ao facto de, muito embora sejam omnívoros, precisarem de ingerir todos os dias metade do seu peso em carbohidratos para manterem a energia e a capa subcutânea de gordura que os mantêm vivos e activos. Outra parte é porque precisam de procurar todos os dias alimento que chegue para ingerir todo esse peso alimentar. E, finalmente, uma última parte destas doze horas é preguiça: a água doce não tem tão pouca gravidade como a água salgada, mas sempre tem bastante menos gravidade que a terra firme.


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  • 25 de abril chega devagarinho

    25 de abril chega devagarinho

    Ele corre pela pista fora. Pequenino. Muito magro. Moreno. Cabelo levemente ondulado.  Olhos e lábios inchados. Brilhantes como os de quem chorou longas horas.

    Veste uns calções pretos e brancos de turco. No peitilho, um urso conduz um carro vermelho. E ele corre. Veloz. Os braços acompanham o ritmo. Agarro-o. Agarramo-lo os três. Um sopro de felicidade envolve o reencontro.  

    É esta a imagem que retenho do regresso a Portugal. Da primeira vez que vi o meu irmão.  Uma falsa memória, porém.  Hoje sei que não foi assim. E sei-o simplesmente porque não pode ter sido. Os factos contrariam a curta-metragem que a minha mente gravou. E, contudo, é tão viva, tão clara quanto a dos meus dedos a saltitar sobre o teclado neste momento. Talvez por isso, nunca me ocorreu perguntar como foi a chegada. Assumi sempre que sabia. Só recentemente me apercebi das incongruências e  questionei a veracidade das minhas memórias.

    man holding handbag

    Uma criança a correr solta pela pista de um aeroporto. A família a aguardá-la junto ao avião.  O suficiente para questionar este episódio. Não o fiz. Nem sequer desconfiei da perspetiva. Vejo o pequenito lá ao fundo, de frente para nós. Apesar da distância que nos separa, um grande plano permite-me observá-lo em pormenor. Começa a correr e, nesse momento, acompanho o trajeto colocando-me ao seu lado. O vento afasta-lhe o cabelo do rosto e vejo-o de perfil. O meu olhar desliza, foca-o de perto. É uma câmara sobre carris. Sempre ao seu lado. E ele corre célere, ansioso, em direção a três desconhecidos.

    Três. Insisto neste número nem sei bem porquê. O pai que tinha então bigode e segurava a minha mão esquerda enquanto descíamos a escada do avião. O pai que correu para abraçar o filho que tinha visto uma única vez e o levantou no ar à nossa frente, não viajou connosco. E, todavia, vejo-o nitidamente. Um sorriso  inconfundível. Mas não estava lá. Regressámos sós,  a mãe e eu. A desmobilização dos soldados ocorreria meses mais tarde.  A reunião da pequena família, mais uma vez adiada. 25 de abril. Um dia extraordinário. Mas um dia que foram dias, anos, décadas. Que não aconteceu em simultâneo para todos e ainda está por acontecer para muitos.

    Nem mesmo a felicidade que me lembro de sentir enquanto vi o meu irmão pode ser real. Não o conhecia. Não conhecia ninguém. Tinha acabado de ser arrancada ao lugar das minhas primeiras memórias. Afastada da minha única realidade: do pai, dos amigos, da casa, dos animais de estimação, das cores, do cheiro a caju e mangas maduras.  

    A decisão de nos juntarmos ao pai em África revelar-se-ia trágica. A separação deixa marcas indeléveis. A partida nunca é verdadeiramente compreendida ou aceite por quem fica. Corrói a alma o sentimento de se ter sido deixado para trás, de se ter sido privado de uma vida que existe apenas para os que partiram. Ele nunca se encaixará no nosso pequeno mundo. Estará ausente das nossas histórias, das nossas aventuras, das nossas canções. Nós. Um nós que não desejámos. Que se supôs transitório e se fez perene. Ele nunca pertencerá.  Crescerá na incerteza de nos amar ou odiar profundamente.  Insegurança, carência, agressividade, dor, desespero. Um ressentimento que, passados 50 anos, determina ainda as nossas vidas. Uma ferida reaberta em cada almoço de domingo, em cada jantar de Natal, em cada aniversário, minando-os até à sua extinção. 

    white airplane parked during daytime

    A ilusão de que aquele dia poderia devolver-nos a uma ordem primordial idealizada esboroou-se lenta e impiedosamente.

     A verdade é que o meu irmão não correu para nós. Nunca correu para nós. Nunca voltámos a ser família. Cinco décadas decorridas e os nossos mundos ainda não se encontraram.

    O  25 de abril  acontece  aos poucos. Vai chegando  e recuando, e chegando mais um pouco. Chegará, certamente. Mas nesse dia já cá não estarão os que conhecem o significado de não ser abril. 

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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  • A segunda morte de Miguela de Alcazar

    A segunda morte de Miguela de Alcazar


    A primeira publicação de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar ocorreu em meados de 1991, quando um amigo de peladas de futebol de salão do Clube da Imprensa, Vicente Sá, poeta e jornalista da área de Cultura, me convidou para escrever um folhetim para o BsB Letras, suplemento literário de um semanário de distribuição gratuita no Distrito Federal.

    Acho que já tinha uns capítulos escritos, mas não estou certo disso. O fato é que me comprometi a partejar um capítulo de umas quinhentas palavras por semana. E foi o que fiz, metralhando de madrugada num computador pré-histórico que me custou uma boa grana. Título da época: Morte no Brasília Palace.

    O primeiro capítulo saiu em 28 de abril de 1991. Depois, vieram 21 semanas, sem pular uma só, até que no dia 15 de setembro apareceu o derradeiro. Tenho todos esses hoje amarelados fascículos nos meus arquivos implacáveis. Para mostrar aos inimigos, se a isso for desafiado.

    Lourenço Cazarré

    Passaram-se uns dez anos e um dia falei a um amigo, Jorge Schelb, sobre o folhetim. Ele se interessou, quis ler. Passei-lhe então uma cópia. Ele leu, ou mentiu para mim que leu, e me incentivou a recuperar aquela historieta, dando a ela mais altura, largura e profundidade.

    Foi assim que, em 2001, o livro começou a crescer. Trabalhei nele por alguns anos, vitaminando episódios, apimentando diálogos e retocando os personagens. Mas sempre me rindo muito porque A Misteriosa morte de Miguela de Alcazar é, antes de tudo, um livro de humor. Ou dito de outra forma: é uma sátira aos romances policiais.

    Confissão de leitor: durante décadas consumi literatura policialesca. Comecei com o belga Georges Simenon, em 1972, quando comprei, numa promoção da Livraria Mundial, em Pelotas, dez volumes protagonizados pelo detetive Jules Maigret. Depois, li os americanos Raymond Chandler e Dashiell Hammett.

    Voltando ao Miguela. Em 2009, com o apoio do Fundo de Cultura do Distrito Federal, o livro foi publicado pela editora Bertrand Brasil. Pelo que sei, não teve lá uma vendagem muito boa. Talvez até se possa dizer que foi péssima. Mas a verdade é que o panfleto teve uma boa recepção por parte da crítica. Guardo cópias de várias dessas resenhas positivas. Para mostrar aos inimigos, se isso eles me exigirem.

    Pois bem, rolaram mais alguns anos e lá por 2017 conheci em Lisboa um escritor português, Pedro Almeida Vieira, autor de romances históricos e crónicas que se passam no Brasil (Assim se pariu o Brasil e O profeta do castigo divino). Encontramo-nos no Chiado, ao redor de um bacalhau, Pedro, Enio Squeff e eu. Enio é um artista plástico gaúcho radicado em São Paulo que ilustrou livros meus e do Pedro.

    Edição original em livro de ‘A misteriosa morte de Miguela de Alcazar’, publicada no Brasil em 2009.

    Algum tempo depois, falei para o Pedro sobre A misteriosa morte. Confessei a ele que nunca havia ficado satisfeito com as frases que inventara para o personagem coadjuvante, o lusitano senhor Joaquim Manoel Batota.

    Mal comparando, o Batota, o gerente de um hotel de Brasília, é feito da mesma matéria-prima que Watson, o auxiliar de Sherlock Holmes.

    Aliás, já que falamos do ajudante, não custa nada dizer algumas palavras sobre o principal personagem do livro, Campestre de Campos Campelo, um jovem jornalista gaúcho recém-chegado ao Planalto Central. Anarquista e debochado, é ele quem narra a confusão que ocorre durante um Seminário Internacional de Escritores Policiais, que não se realizou em Brasília em meados dos anos 1970.

    Voltando ao Pedro. Depois de ler o original, ele decidiu a participar da brincadeira. Mais que isso, eu diria que ficou muito entusiasmado diante do desafio de assumir a grave missão de dar à dicção de Batota a parecença de uma fala realmente lusitana. E de plantar, aqui e ali, flores de sarcasmo português pelo meio de um folhetim tupinambá.

    Seguindo. Pode-se dizer, sem medo de errar, que este é também um romance sobre alguns dos muitos sotaques da língua portuguesa. Título da resenha do poderoso O Globo: “Uma divertida homenagem à literatura”.

    Pois muito que bem, todos os escritores que participam do tal Seminário falam português, com diferentes sotaques brasileiros.

    A russa Fedorova Smerdlova Dornascostasviskáia, por exemplo, fala exatamente como o vigarista cearense – conhecido nos seus anos de degredo na Sibéria – que consertava relógios, no escuro, usando só os cotovelos.

    Primeiro capítulo publicado em 28 de Abril de 1991 no BsB Letras do folhetim então intitulado ‘Morte no Brasília Palace‘.

    Já a inglesa Lady Águeda Christine pratica o mineirês, um jargão no qual a palavra você perde o v. Aliás, os mineiros, quando conversam, ficam o tempo todo girando. “Aí, ela virou pra mim e disse”. “Aí, eu virei pra ela e disse”.

    Já o belga Sim et Nom se socorre do carioquês, dialeto em que os esses deslizam, os erres derrapam e o esse final é trocado pelo x (pronuncia-se doix, treix).

    Vem depois o americano Dax Chamber, conhecedor do gauchês, um linguajar meio espanholado, cheio de metáforas campeiras (quase sempre grosseiras), cujos falantes, em todas as suas frases, metem um bah e um tchê, expressões que não têm significado algum.

    O chinês Foo Li Shi Man fala como um paulistano, ou seja, alguém que chama os outros, o tempo todo, ou de mano ou de meu. Ah, e que pronuncia cinqueinta por ceinto.

    Só agora, passados trinta e tantos anos, vejo que não dei um sotaque específico ao argentino Jorge Luís Bugres. Se o desse, hoje, seria o curitibano, difícil de satirizar porque as pessoas da capital do Paraná pronunciam perfeitamente todas as letras como elas parecem dentro de uma palavra.

    São conhecidas por falarem corretamente a frase “leite quente da dor de dente”, brincadeira que não pode (obviamente) ser reproduzida em um texto (obviamente) impresso.

    Pois bem, agora, durante vinte e duas semanas, se é que a matemática não em engana, Pedro e eu trabalhamos na versão final, que é essa que os leitores do PÁGINA UM tiveram diante dos olhos. Sinceramente, espero que nossos improváveis leitores tenham se divertido tanto quanto nós, ao escrever. Trocando (a trocar) e-mails todas as semanas, fomos afinando a ironia e a zombaria, a mofa e a galhofa. Rindo sozinhos diante do écran (tela) luminescente, destilamos doses de veneno bem maiores que as das edições anteriores.

    Uma das recensões do folhetim policial aquando da sua publicação original em livro.

    Como se sabe, escritores do Brasil gostam de falar mal do seu país tanto quando os portugueses adoram atacar a mítica Terrinha (vide Eça).

    Agora, nos unimos, Pedro eu, para, pela primeira vez na História da Humanidade, apresentar uma novela policialesca escrita por gajos separados por quase oito mil quilômetros de distância. Sim, senhoras e senhores luso-falantes, orgulhem-se: nós saímos na frente. Porque não se sabe de iniciativa semelhante levada à frente por americanos e ingleses, que, como dizia Oscar Wilde, são separados por um oceano e por uma língua.

    Assim como nós, na falta de coisa melhor para fazer, imagino que aqueles que passaram os olhos por essa história deram algumas boas risadas. E, se houve alguém que não soube ou quis apreciar esta obra de finíssimo e sutil lavor, nele daremos, Pedro e eu, como sugeriu Machado de Assis, uns valentes piparotes.


    Leia todos os capítulos de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

  • E o mato, fica longe?

    E o mato, fica longe?

    Nascida numa família abastada de Castelo de Paiva, Eulália, a quem carinhosamente chamavam Menina Lalita, tinha das janelas de casa a vista para os quadros que compunham o seu mundo. O mundo da família. O jardim de cameleiras na frente da edifício. Dali se ia à vila. O mundo dos trabalhadores da casa, nas traseiras. Uma colmeia de sorrisos tristes. O mundo dos trabalhadores rurais. Estendido pelos montes a perder de vista. O mundo dos que iam e vinham. Estradas, caminhos, carreiros. Os mineiros de Pejão. Os cantoneiros de onde quer que a estrada tivesse parado. Saíam ao domingo  à tarde e regressavam à sexta-feira à noite. Lalita mal os conseguia distinguir, de tal modo vinham camuflados pelo pó das minas e pelo negro do alcatrão que espalhavam de sol a sol. Daquela janela, via também os caixeiros viajantes que abasteciam as lojas da vila. E via as mulheres e meninas a equilibrar pesados fardos de lenha à cabeça. De vez em quando, a motorizada do Sr. Padre acelerava  por ali  fora para ir acudir a uma alma aflita. O carro do pai acudia ao corpo.

    O Dr. Brandão, que os mais velhos ainda tratavam por doutorzinho, tinha herdado do avô e do pai a quinta, o consultório, os empregados e o respeito dos habitantes da vila. Só dali saíra para estudar em Coimbra. Pai de três filhas e um filho, rapidamente traçou para cada um deles um destino em conformidade com a tradição da família. O filho estudaria medicina e assumiria o consultório. As duas filhas mais velhas casariam com rapazes de boas famílias. A mais nova iria para freira. O ideal seria ter um filho padre, mas Deus só lhe tinha dado um varão.

    Foi neste mundo que Lalita cresceu. A mãe  ensinou  às meninas as primeiras letras, a tocar piano e a bordar. O Ruizito andava no colégio. Era rapaz.  As irmãs, Antónia e Francisca, casaram assim que a idade o permitiu. Já Lalita não mostrava qualquer vontade de desposar Cristo. Preferia a casa. Tímida. Cada vez mais solitária. Empalidecia a cada dia. Dava grandes preocupações aos pais.

    ⎼ Se a metes no convento, ainda morre por lá. ⎼ dizia a mãe.

     E o pai nem se atrevia a falar no assunto.  Nem queria pensar. Não bastava não ter uma religiosa a zelar pela sua alma, ainda tinha de ficar com uma filha solteirona.

    O Ruizinho, depois de sete anos em Coimbra que lhe pareceram sete dias, regressou. O diploma é que ficou por lá.

    ⎼ Sabe lá o paizinho como aquilo está. Uma pessoa quer estudar e não consegue. Não é como no seu tempo.

    A casa passou a ter outro fulgor. Amigos não lhe faltavam. Até porque o Ruizinho não trouxe a licenciatura, mas trouxe um gira-discos. E as janelas já não serviam só para deixar entrar o  mundo. Agora Lalita passeava-se à volta da casa para ouvir as músicas que escorriam lá de dentro e inundavam o jardim.  Ouvia cantar em línguas e ritmos desconhecidos. Mas só quando o pai não estava, claro está. Não se conformava, o pobre homem.

    Entre os novos visitantes da quinta apareceu um tal de José António. O filho do Brasileiro, um comerciante da vila que tinha feito fortuna no Brasil e regressado há pouco. A fartura do pai não se refletia no corpo do filho. Baixo, demasiado magro, pálido. Tinha sido ele a razão do regresso. O Brasileiro buscava os bons ares e águas da terra natal para ver se o rapaz arrebitava.

    photo of black turntable

    Com um olhar doce e os modos de um príncipe, José António rapidamente cativou o coração de Lalita. Não era bem o que o Dr. tinha imaginado. Mas entre um casamento com quem pudesse cuidar dela e ficar para tia, não hesitou. O casamento fez-se sem a presença de Ruizinho, entretanto chamado para a guerra. Moçambique. Os dias da família passavam entre a ânsia e o receio de receber notícias daquele fim de mundo. Lalita tinha o conforto de o seu José António não ter saúde para ir à guerra.  Preocupava-a tanto o irmão. Até que um dia chegou uma carta.

    – É da tropa! – anunciou a empregada.

    A mãe desmaiou antes mesmo de a receber. Lalita correu a telefonar ao pai a pedir que viesse. José António agarrou o envelope. Abriu-o lentamente. Leu.

    – É para mim. – disse  – Vou para a Guiné.

    E a família repetiu o caminho até Lisboa, a despedida, o embarque. Um último beijo, um adeus ao longe  já sem a certeza de a quem estavam a acenar.

    O vazio da espera entre cartas. A mensagem de Natal na RTP. Não mais de três segundos,  mas valiam por uma vida inteira.

    O Ruizinho voltou. Mas já não ligava o gira-discos. O seu mundo era agora o fundo da garrafa de aguardente. Acendia um cigarro com o outro e tinha umas mudanças de humor que ninguém compreendia. Ia pela vila, bebendo um copito aqui e outro ali. Arranjando desacatos.

    –É para apontar. – pedia.

    E os comerciantes envergonhados por cobrar ao Doutorzinho que não merecia tal sorte. E o Dr. envergonhado, a mandar um homem de confiança à procura das dívidas do filho.

    Na Guiné, José António cumpriu o seu tempo de serviço na cozinha. Não tinha corpo para combater. E o pai, mesmo ao longe,  garantia que não lhe faltava lá nada. Se alguém precisava de um relógio, de uns sapatos civis ou de uma qualquer bugiganga, era só encomendar ao Silva. De tal forma a  vida lhe corria bem por lá que não quis regressar. Gostava do clima e das frutas tropicais que lhe recordavam o Brasil da infância. Gostava das pessoas. Gostava da liberdade. Percebeu que Paiva nunca seria o lugar dele. Mas sentia falta de Lalita. Escreveu-lhe a contar que tinha comprado uma casa e estava a montar uma loja. Já todos se tinham habituado a recorrer aos seus préstimos quando precisavam do que quer que fosse. Falou-lhe de um país maravilhoso. De gente boa. Explicou-lhe que a guerra era longe dali. No mato. Muito, muito longe. Em Mansoa não havia qualquer perigo. Para ele  ser feliz só lá lhe faltava ela.

    assorted armchair on wall near door

    De todos os homens que partiram para o Ultramar, José António seria o último que os paivenses imaginariam singrar por lá.

    – Fez-se homem! ­ – exclamavam com orgulho no rapaz da terra, de quem antes diziam ser um fraca figura que nem para comer servia quanto mais para trabalhar.

    E, perante a incredulidade de todos, Lalita fez prontamente as malas e preparou-se para partir.  O seu lugar era ao lado do marido, dizia. Foi num estado de atordoamento que deixou o seu mundo e rumou ao aeroporto de Lisboa. Viu pela primeira vez um avião. Entrou aterrorizada no bicho que a devorou e a depositou num lugar onde os montes não eram verdes. Pensou que teria andado por ali incêndio. Apanhou o voo de ligação do Sal para Bissau. Fez a viagem a pensar como sobreviveriam os donos daquelas quintas e pinhais queimados.

    Chegou finalmente ao destino. A terra muito vermelha lembrou-lhe que ali havia uma guerra. Teve medo. Muito medo. E se o José António não a viesse buscar? E se lhe tivesse acontecido alguma coisa desde a última carta? Mas veio. Quase não o reconhecia. Mais cheio, com um bigode farfalhudo, cigarro na mão. O olhar doce e o sorriso franco com que a conquistou. Reparou que usava calções. Riu-se. Nunca tinha imaginado vê-lo assim.

    A viagem entre a capital e Mansoa fez-se num carro emprestado por um amigo. Lalita contou a José António sobre o incêndio na Ilha do Sal. Conhecendo-lhe  a bondade e inocência e receando que ela ficasse a remoer sobre  como sobreviviam as pessoas numa terra tão pobre, explicou-lhe que no outro lado da encosta a ilha era muito verde. Que era ali que vivia a maior parte da população e que o que viu ardido era apenas uma pequena área.

    – África é muito grande e muito rica, meu amor!

    ocean waves under white sky during daytime

    Lalita estranhou a paisagem. Não era assim que imaginava África. Perguntou-lhe pelas girafas, pelos elefantes, pelos leões… e ele, sempre pronto a esclarecê-la, explicou que estavam mais para o interior.

    – Lá no mato.

    -E a guerra?

    -Também. Lá no mato.

    – E o mato é longe daqui?

    – Ah, sim. Muito longe. Às vezes ouve-se um bocadinho quando vento está de lá para cá. Mas é muito longe.

    Foi a primeira vez que Lalita andou num descapotável. E também a primeira em que sentiu que poderia vir a ter de destapar os ombros em público. Um calor infernal.

    – Chegámos!

    – Chegámos?

    A vila não era de todo o que esperava. Três ruas. O marido ia relatando o que via: o clube, os correios, a igreja, o mercado, a escola, lá adiante o restaurante e virando ali o quartel. A casa, a loja. Estava dececionada, mas não queria que ele percebesse. Decidiu que seria feliz ali.

    O Silva era agora o dono do maior estabelecimento comercial da terra. A pequena loja anexa à casa estava cheia de mercadoria até ao teto e fazia sucesso. Colchas pesadas a imitar pele de tigre,  tapetes com pavões, garrafas de whisky . Predominavam os motivos orientais: nas toalhas de mesa e de banho, pijamas bordados, serviços de café e chá. Loiça muito fina. Dragões alados em relevo.  Os soldados acumulavam tudo isto como podiam. Debaixo das camas. Dentro das gavetas das secretárias. E sonhavam com as férias.

    Lalita garantia que nas suas encomendas o marido não se esquecia de mandar vir tela e linhas para os seus bordados.  Bordava camélias, rosas, paisagens com montanhas verdejantes. Bordava o mundo em que vivia no interior da casa de que pouco saiu nos anos que ali passou. Nunca aprendeu crioulo. Não tinha jeito para línguas, dizia. O marido fazia a ligação aos empregados e acompanhava-a nas raras saídas. Iam ao cinema. Aos domingos, a missa foi substituída por um almoço no restaurante do Simões e um gelado em Bissau. Lalita era feliz assim.

    green plant on soil

    Mas quando o sol se punha, ouvia tiros. Não lhe pareciam assim tão longe como José António lhe dito que o mato ficava.

    – Tens razão. – confirmou  – Estes tiros são aqui perto. Os homens, à noite, vão aos coelhos.

    E ela cheia de pena de o seu José António não se ajeitar com a espingarda. Tinha saudades do coelho em vinho verde tinto que a cozinheira fazia quando o paizinho ia à caça.

    ­ – Não lhes podes comprar um? – pedia com o ar de criança que o deixava sempre desarmado.

    – Podia, sim, Lalita, mas os homens comem tão mal no quartel que até tenho dó.

    – Coitados. Deixa-os estar. – dizia conformada.

    E o ar da noite no rosto. O cheiro do coelho bravo estufado,  do arroz no forno e da regueifa quente a entrar pelas narinas. As mangueiras e os cajueiros a libertarem o odor de  pinheiros, ulmeiros e castanheiros.  Os mineiros e cantoneiros enfarruscados a entrar pelo mato adentro.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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  • A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

    A misteriosa morte de Miguela de Alcazar


    Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…

    … em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira


    64 – Álibis mais furados que penico de tiro-ao-alvo

    O chinês voltou a sorrir. Ou melhor dizendo, sorriu de outro modo. Sim, um riso mais brejeiro, latino, correu-lhe pela face redonda. Certamente estava se divertindo muito e também ele queria tirar sua lasquinha daquele pobre policial brasileiro.

    – Não matei a velhinha, meu! Eu apenas topei o desafio que ela me fez. Mandei o gás, exatamente como ela pediu.

    – De todo modo, o senhor é aqui o sujeito que mais tem jeito de bandido. – Aroeira levantou-se. – Aliás, tem cara de frio assassino oriental.

    – Não discordo, mano, mas não posso ser responsabilizado pelo conjunto da obra. Eu assumo só a parte do pulmão. Mas tem um detalhe sórdido: é quase certo que dona Miguela já estava morta quando mandei o gás.

    Aparvalhado, Aroeira voltou a sentar-se e, com uma pungência hamletiana, interrogou-se ou interrogou-nos em voz alta:

    – Que devo fazer? Prendo todos ou mando todos embora? Um alega que foi o outro, e assim por diante. É o maior jogo de empurra que vi na minha vida.

    Suspirou fundo e depois de encarar os escritores, com olhos úmidos de lágrimas que desejavam se libertar, acrescentou:

    – Acho que vocês vieram ao Brasil com o fim único e exclusivo de me enlouquecer. Prefiro os bandidos brasileiros!

    Resolvi dar apoio moral ao desolado policial:

    – É isso aí, doutor Aroeira. Perto desse povo, bandido brasileiro é fichinha. Aqui é só tiro na cara e facada no bucho. Não tem essas firulas de veneno e zarabatana!

    Com um breve gesto de cabeça, o policial me agradeceu e a seguir apontou um dedo para Dax Chamber:

    – E o senhor aí, que tentou se fazer de invisível, calado o tempo todo, por acaso, não se meteu no assassinato de dona Miguela de Alcazar?

    – Bah, tchê, tô fora! Sou o único inocente. Nunca vi tanta gente malvada junto. Olha, vou te dizer uma coisa: já na chegada ao hotel eu notei que a velhota castelhana estava em pânico, mais sobressaltada que cozinheira de hospício.

    – Como assim?

    – Perguntei pra ela: “Por que tu tá tão encagaçada, Miguelita?” Ela me respondeu: “Bah, Dax, sinto que vou morrer aqui nesta cidade muquirana”. Como a coitada da velha chorasse de fazer barro, pedi a ela que se acalmasse. Aí, ela se lamentou: “Dax, tu ganha muito mais dinheiro do que eu”. Eu respondi que isso não tinha importância porque dinheiro na minha mão dura tanto quanto cuspe em ferro quente.

    – Quer dizer que o senhor era amigo íntimo dela?

    – Não muito. Ela era dissimulada. Quando queria enrolar alguém, ela arrodeava mais que cachorro com pulga na cola. E tinha mau hálito, a vivente, fedia mais que arroto de urubu.

    – Mas ela lhe disse alguma coisa concreta sobre o seu mau pressentimento?

    – Necas, delegado. A pobrezinha estava desanimada, mais caída que orelha de perdigueiro. Pra consolar a coitada, eu disse: “Não te preocupa que tu ainda vais escrever um livro que preste”. Pra quê? A mulherzinha ficou mais braba do que touro laçado pelos bagos. Aí, ela me disse: “Por que você não aproveita que está aqui no Brasil e vai à merda?”

    – Só isso? O senhor não tentou depois, por nenhum meio, matá-la?

    – Bah, claro que não! Se tivesse tentado matá-la, acertava de primeira. Americanos são eficientes em tudo que fazem. Não sou como essa gente aqui que fica apresentando desculpas mais esfarrapadas que camisas de pobre. Os álibis deles são mais furados do que penicos de tiro-ao-alvo. Eu, se fosse o senhor, prendia todos eles. E ficava famoso no mundo todo. Mas, infelizmente, acho que o assassinato foi cometido verdadeiramente por uma pessoa de menor importância…

    – Como assim? – Aroeira agitou-se. – O senhor tem algum suspeito?

    – Não! Suspeito é coisa para quem tem dúvidas, tchê. Eu conheço o assassino, sei o nome dele.

    black and white round analog clock

    65 – Ameaça velada de boicote à compra de bananas

    Vagarosamente, o americano estendeu seu braço esquerdo. Depois espichou o indicador. A seguir, sempre lentamente, foi girando o braço. Deteve-se quando na sua mira estava a carantonha de Manoel Joaquim Batota.

    – Foi o portuga! – gritou Dax. – Ele está mais quieto que guri cagado porque sabe quem tem culpa no cartório. Foi ele quem meteu arsênico na comida da castelhana.

    – Bem sacado! – exclamou Aroeira.

    E de imediato pôs a mão no ombro do gerente do hotel. Por fim, tinha um criminoso. Sorriu feliz. Não, mais que isso. Exultou como Arquimedes ao descobrir que banheira, quando cheia, transborda se alguém entra nela.

    – Considere-se preso! – disse o policial. – É você o principal culpado, sem dúvida. Agora, vejo tudo muito claramente. Sem dúvida, a morte da velha decorreu do rango envenenado. Depois, já agonizando, lambeu estricnina, recebeu o golpe na cabeça e a zarabatana no pescoço. O veneno inodoro, obviamente, só foi injetado no apartamento depois da porta ter sido fechada, quando a velha já estertorava. O enfarte, acredito eu, decorreu também do almoço. Sim, tudo partiu de você.

    Estarrecido, diante daquela reviravolta que o levava ao inferno, Manoel Joaquim Batota abriu a boca, mas não conseguiu emitir uma só palavra. E a seguir, enquanto torcia as mãos dramaticamente, seu rosto foi assumindo um assustador tom arroxeado.

    Senti muita pena do pobre lusitano. Resolvi então me intrometer na conversa:

    – Delegado, acho mesmo que o seu Batota é inocente!

    – O que sabe você, gaúcho? Que sabem fazer os gaúchos além de ordenhar vacas e roubar ovelhas?

    – Perdão, doutor Aroeira, mas a verdade confirmada pela estatística é que portugueses só matam sardinha. Nem bacalhau matam mais, deixaram o serviço sujo e cruel para os noruegueses. O senhor, por acaso, já prendeu um português?

    – Pensando bem, nunca, nenhum – admitiu o delegado. – Mas tudo me leva a crer que o almoço envenenado pelo cidadão português desencadeou o falecimento da bruxa velha. Havia arsênico na comida, segundo o laudo. O resto veio depois, de cambulhada.

    Voltei-me para o gerente do Imperial Hotel da República e o interroguei:

    – Seu Manoel, reflita antes de responder: o senhor, por acaso, encontrou com alguém pelos corredores do hotel enquanto levava a comida para dona Miguela?

    – Acho que não – respondeu o lusitano, quase chorando.

    – Pense bem! – insisti. – O senhor corre o risco de ir parar atrás das grades. Quem estava por perto do senhor, no restaurante, enquanto preparava a comida?

    – Ah, sim, o senhor Chamber! – o português exultou. – Ficou ao meu lado, o tempo todo, a recomendar-me quanto deveria colocar no prato. Disse-me que era próximo de dona Miguela e que sabia exatamente aquilo que ela gostava de comer. Ah, fez também questão de pôr o sal. E foi bastante. Disse-me que a senhora espanhola era apaixonada por comida bem salgada.

    – O senhor não terá confundido o saleiro com um potinho de arsênico? – perguntou Aroeira ao americano.

    Dax moveu-se inquieto na cadeira e defendeu-se:

    – Bah, esse português é mais falso que idade de mulher. Ele jamais vai conseguir provar o que disse aqui. Mas, mesmo que tivesse provas, de que valeriam elas? Pelo que sei, até hoje nenhum americano foi condenado num país latino-americano. Não daria certo pra vocês.

    – Por que não daria certo? – perguntei.

    – Porque pararíamos de comprar bananas e a economia de vocês afundaria em uma semana.

    – O duro é que esse gringo safado tem razão – suspirou Aroeira. – Se prendo ele, tomo um inquérito disciplinar pelos cornos.

    – Mas então o senhor não vai prender ninguém pela morte de Miguela de Alcazar? – indignei-me. – Esses sujeitos vêm pra cá, cometem um múltiplo e bárbaro assassinato e não lhes acontece nada!

    – Como não acontece nada? – perguntou o policial, ofendido.

    E deu então o mais poderoso dos seus muito murros naquela pobre mesa:

    – Todo mundo em cana! Todos para o xilindró! Assassinos!

    Como aquela situação estivesse mais parecendo uma cena de manicômio, eu ainda tentei reagir:

    – Mas, doutor Aroeira, eu e o português não participamos do crime!

    O delegado olhou-me fixamente e sentenciou: – Esses bandidos estrangeiros não poderiam ter cometido esse crime sem a ajuda de cúmplices locais!

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    66 – Fecham-se as cortinas

    À meia-noite, chegamos à penitenciária da Papuda. Lá, fomos enfiados os oito – os seis escritores, Batota e eu – em um enorme xadrez onde já se encontravam os três assassinos, os seis assaltantes e os nove sequestradores presos naquele dia.

    Antes da uma da madrugada, começaram a pipocar telefonemas na casa do secretário de Segurança Pública de Brasília. Eram vários embaixadores credenciados junto ao governo brasileiro, indignados, gritando cada um em um idioma diferente.

    Homem público sério como lápide, o secretário da Segurança Pública resistiu o máximo que pode. Acho que quase meia hora.

    Por volta das duas da madrugada todos os escritores estrangeiros estavam de volta ao Imperial Hotel da República. Lá, arrumaram suas malas e, na companhia da defunta Miguela de Alcazar, embarcaram pouco depois em um jatinho fretado com destino a São Paulo, de onde voariam depois para seus países de origem.

    Quanto a Batota e eu, bem, nós dois ficamos em cana por uma semana inteirinha, isolados em duas pequenas selas, submetidos a uma dieta que nos ajudou bastante na redução do peso.

    No dia seguinte ao da misteriosa morte de Miguela de Alcazar, o delegado Jerônimo Aroeira e seus agentes, aqueles sujeitos mal-encarados que haviam roubado as garrafinhas de bebida do hotel, foram até a sede do meu jornal e lá, em breve conversação, recomendaram ao Medalhão que nada publicasse sobre o tal Congresso porque, de fato, na verdade, ele não havia se realizado.

    Manoel Joaquim Batota recebeu visita semelhante dez dias depois, ao reassumir a gerência do Imperial Hotel da República. Talvez por ser ele estrangeiro, os policiais foram ainda mais enfáticos na sua admoestação. Fizeram saber ao lusitano que ele, se abrisse o bico sobre o tal Congresso, acabaria comendo capim pela raiz. Aliás, quando me informou dessa ameaça, disse-me o bom Batota:

    – Os gajos disseram que me iam lerpar…

    – O significa essa palavra horrorosa?

    – Lerpar é o mesmo que arranjar acomodação no Hotel dos Pés Juntos para ser tratado pelo doutor Torrão.

    Foi por isso que não cheguei a escrever uma só palavra da tal reportagem que iria me tornar planetariamente famoso.

    Aquele tempo, final dos anos setenta, foi bastante ruim para a imprensa brasileira. Mas agora, quase meio século depois, resolvi reviver aqueles dias. Liguei um velho gravador e escutei as muitas fitas gravadas na época. Reli também todas as minhas anotações, E, por fim, me entreguei ao teclado do computador.

    Foi assim, senhoras e senhores, que nasceu este livro, que é o meu testemunho sobre o Primeiro Congresso Internacional dos Escritores de Histórias Policiais, infelizmente não realizado em Brasília.

    Pena que não existam fotos para provar a autenticidade da minha história. Lembram que o fotógrafo do jornal só iria ao hotel no dia seguinte?

    Pois bem, visitei ainda os arquivos da Polícia, mas não encontrei lá nenhum laudo sobre a morte de uma mulher chamada Miguela de Alcazar. E, obviamente, não localizei as fotografias tiradas pelo lambe-lambe da Perícia.

    Pois bem, o Batota já não está mais por aqui.

    Dias atrás, visitei o Imperial Hotel da República para saber notícias dele.

    – O senhor Batota reformou-se – disse-me o atual gerente do hotel, também lusitano, de Quinta de Comichão, na Guarda.

    – Reformou-se? – me espantei. – Como assim? O Batota parou de meter medo nas pessoas com aquele seu gigantesco canivete?

    – Sim, aposentou o canivete. Não precisa dele em Portugal. Mas reformar-se, em Portugal, é o mesmo que aposentar-se por aqui. O senhor Batota voltou para a terrinha, mais especificamente para a aldeia de San Tiago de Piães, em Cinfães, e por lá, como um “brasileiro” de Eça de Queiroz, cultiva rosas numa casinha erguida no alto de um outeiro.

    Se agora eu divulgo este meu relato é porque, como dizia o falecido Medalhão, a verdade, como defunto afogado, sempre acaba vindo à tona.

    Já a morte de dona Miguela, defunta no seco, nunca pode ser esclarecida.

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    FIM


    Sobre os autores (actividade literária)

    Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.

    Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).

  • Basta

    Basta

    A música de intervenção deve fazer, em certos contextos, parte da cultura de insubmissão de um povo. E um povo deve estar sempre insubmisso, sobretudo em democracia, porque a insubmissão é sobretudo um sinal de que estamos despertos.

    Através de letras duras, impactantes, talvez excessivas pela necessidade de uma eficácia imediata, não se pode esperar por eufemismos na música de intervenção. A Arte não tem limites nem é aceitável limitações. Não tem um sentido literal, mas tem um objectivo: evitar a estagnação ou recuos em direitos, liberdades e garantias.

    Por esse motivo, Basta, do rapper Estraca, não é uma música meiga, nem quis ser, nem poderia ser no actual ‘estado de coisas’. Mais ainda neste ano de 2024, e neste mês. Mas mais do que um ‘ataque político’, literal ou metafórico, apresenta-se sobretudo como um ‘murro no estômago’ contra nós, como sociedade, que se foi deixando amansar pelo ‘politicamente correcto’, pela política do respeitinho, e que não pôs em ‘mira’ (ou em sentido) os políticos que, em 50 anos de democracia, mataram, ai sim, literalmente, os nossos sonhos.

    Foi por termos aceitado que os “filhos da puta de progressistas do caralho da revolução que vos foda a todos!” nos mandassem “lavar as mãos antes de ir para a mesa”, como se insurgia José Mário Branco, no seu FMI, em 1979, que estamos agora órfãos de um país que se sonhava decente. Hoje, parafraseando esse ‘hino de José Mário Branco, “não somos senão este tempo que decorre entre fugirmos de nos encontrar, e de nos encontrarmos fugindo”.

    Pedro Almeida Vieira com Estraca, sentado ao centro, e os ‘figurantes’ do vídeo ‘Basta’, algures em Fevereiro deste ano.

    Necessário não seria, mas, neste tempos de perseguição àquilo que se pensa e diz – mesmo se sob a forma de Arte (de intervenção) -, convém reafirmar: esta ligação do PÁGINA UM ao rapper Estraca no lançamento de ‘Basta’, como já sucedera em ‘Vício’, deve-se a dois simples factos: à inalienável liberdade de expressão, e por, pessoalmente, considerá-lo como um dos poucos consistentes e assertivos músicos de intervenção em Portugal do século XXI. E bem que precisamos de mais. Pelo menos, “venham mais cinco“… e de uma assentada, como diria Zeca Afonso.

    Pedro Almeida Vieira

    Director do PÁGINA UM


    .

    Letra

    Vícios, by Estraca

    Basta!

    de escumalha no poder.

    Basta!

    trabalhar para nada ter.

    Basta!

    de ser escravo de um governo,

    a merda vai mudando

    mas o cheiro é sempre o mesmo

    Basta!

    de escumalha no poder.

    Basta!

    trabalhar para nada ter.

    Basta!

    de ser escravo de um governo,

    a merda vai mudando

    mas o cheiro é sempre o mesmo.

    Está em morte lenta uma tuga que se aparenta ser

    país tranquilo é para quem tem, não para quem tenta ter

    e um zé povinho sempre a rasca que só lamenta

    sem fazer a tal diferença na inocência de que o voto é poder

    Urgência privado ou morres a espera

    miséria que impera,

    num país em que o povo tolera

    as mentiras,

    matéria de um socialismo sujo que opera

    são décadas de decadência,

    a falência de quem lidera

    Sem saúde, habitação, república sem bananas

    Galamba só 300 euros declarado as finanças

    caramba

    discreto,

    melhor só mesmo o estado em cobranças

    ou o esquecimento do Salgado a escrever sobre lembranças

    Desperta!

    Primeiro o povo, depois o partido:

    promessas!

    Campanhas pra te deixar entretido

    são peças!

    que só nos afastam do colectivo

    Eu grito: basta;

    junto as tropas, unidade, esse é o perigo

    Basta!

    de escumalha no poder.

    Basta!

    trabalhar para nada ter.

    Basta!

    de ser escravo de um governo,

    a merda vai mudando

    mas o cheiro é sempre o mesmo.

    Basta!

    de escumalha no poder.

    Basta!

    trabalhar para nada ter.

    Basta!

    de ser escravo de um governo,

    a merda vai mudando

    mas o cheiro é sempre o mesmo.

    O povo paga os reparos dos carros caros

    e fatos

    livre de impostos, e até reforma, é tudo à pala dos parvos

    tapar buracos a TAPs, entre contratos e tachos,

    e tu calado no teu espaço,

    na classe de endividados

    E que é que eu faço?

    Sai à rua, mas sem zecas e cravos.

    Primeiro passo, tirar fora os 200 deputados

    sentados sem fazer um caralho,

    e mesmo assim são bem pagos

    Povo no poder!

    Tirar o poder a cobardes

    e em vez de tinta era uma bala na cabeça,

    resposta,

    a revolta é muita num país que já não sabe em quem vota

    e então aposta

    novamente na confiança de um Costa

    que fez de Portugal a nova Venezuela da Europa

    Esta falência de um país: Segurança e Educação,

    Saúde, Agricultura, Cultura e Habitação,

    na exportação, os melhores, de jovens para emigração,

    alteração de identidade de um país sem direcção.

    Basta!

    Basta!

    de escumalha no poder.

    Basta!

    trabalhar para nada ter.

    Basta!

    de ser escravo de um governo,

    a merda vai mudando

    mas o cheiro é sempre o mesmo.

    Basta!

    de escumalha no poder.

    Basta!

    trabalhar para nada ter.

    Basta!

    de ser escravo de um governo,

    a merda vai mudando

    mas o cheiro é sempre o mesmo.

    Basta!

    Basta!

    Basta!

    Basta!

    Basta!

    Basta!

    (A toda a Iniciativa Liberal, Bloco de Esquerda, Chega, à família PS, PSD, a todos os deputados que não fazem um caralho: abandonem as instalações da Assembleia da República o mais rapidamente possível. A festa acabou. Viva Portugal!)


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  • A misteriosa morte de Miguela de Alcazar

    A misteriosa morte de Miguela de Alcazar


    Um romance policial do brasileiro Lourenço Cazarré…

    … em nova versão com o aportuguesado dedo (e ironia) de Pedro Almeida Vieira


    61 – Eu só acredito em heróis loiros de olhos azuis

    Antes que Aroeira me pedisse o nome do suspeito seguinte, uma figura pequena, entalada num terno preto, levantou-se do outro lado da mesa.

    – Palavras servem mais pra enganar do que pra apontar a verdade – começou Foo a filosofar. – No Oriente também é assim, mas nós, pelo menos, botamos um pouco de poesia no meio: flores, pássaros e luares. Todos nós nos perdemos na escura floresta das palavras, manos. Mas o que diferencia um escritor de um homem comum é que o escritor sabe escapar do intrincado labirinto das frases sinuosas. Ele segue a exata e reta rota das palavras e acha a saída, mesmo que ela esteja próxima da porta da cadeia. Sacou, meu? Delegado, o senhor está tentando agarrar com a mão um peixe ensaboado.

    – Belo discurso – constatou o policial, seco. – Pelo visto, o senhor também pretende irar o corpo fora. É isso mesmo?

    – Brasil e China são países amigos – disse o risonho escritor. – Por isso, vou auxiliar já o senhor a desvendar o caso. Quando eu entrei no apartamento 1313, notei que a mantilha de dona Miguela estava abaixada num ponto. Pensei: ôrra, mano, essa velha levou uma cacetada na cabeça! O assassino mais frio sempre ataca na cabeça.

    Adensou-se o silêncio. Os escritores não estavam gostando daquela conversa porque o chinês parecia disposto a falar a verdade, o que, para todos, seria algo inaceitável.

    – Orientais são mais pacientes. Temos mais saco, mano, entende? Calmamente, com muita atenção, examinei o tapete. Encontrei estranhas marcas de sapato, sapato de senhora, com salto alto e ponta fina. Percebi que as marcas desses sapatos quando avançavam pra dona Miguela eram diferentes das marcas desses mesmos sapatos quando eles deixavam o apartamento. Entendi então, mano, que ao se aproximar de dona Miguela, a dona do tal sapato fazia mais pressão sobre o pé direito. Depois, ao sair dali depois, apressada, essa mesma pessoa deixou marcas que se inclinavam para esquerda. Que puta mistério, meu! Aí a verdade apareceu inteira diante de mim: uma senhora tinha entrado no apartamento carregando um troço pesado na mão direita e saído depois, às pressas, levando esse mesmo objeto na mão esquerda…

    Nesse ponto a narrativa foi cortada por um espirro nervoso de Batota.

    – Passei então a examinar a cabeça de dona Miguela – continuou Foo Lee Shi Man. – Logo percebi que a idosa senhora havia sido ferida por algo arredondado como… halteres! Pensei: puta, mano, usaram o meu próprio halter pra matar a espanhola!

    Aroeira lançou-me um olhar esperançoso, um olhar que falava: agora vai!

    Eu, porém, gato escaldado, tinha dúvidas. Preconceito meu, reconheço. Desde que me conheço por gente vejo filmes em que os orientais são sempre os bandidos. Quero dizer, nos filmes americanos os bandidos são sempre asiáticos, russos, alemães, índios, africanos e latinos. Reconheço que o cinema americano fez mal à minha cabeça: eu só acredito em heróis loiros de olhos azuis, preferencialmente protestantes. Aliás, não creio que heróis possam nascer na América Latina. O que mais nos aparece por aqui é bandido sanguinário. Do México ao Brasil temos metade dos assassinatos do mundo. Ou quase.

    red and white abstract painting

    62 – Silenciosos como gatos de pantufas

    Aroeira me pareceu estar cada vez mais confuso. Era como se fosse um detetive inglês que investigava um crime cometido em uma mansão servida por meia dúzia de mordomos.

     – Halter? – perguntou o delegado. – Que bicho é esse?

    – É um treco de fazer ginástica – explicou Foo. – É uma haste com bolas de ferro nas pontas.

    – Sei. Mas por que o senhor trouxe um bagulho desses pra cá?

    – Nas minhas viagens, sempre carrego um halter pra me exercitar…

    – Volte então à sua investigação – ordenou Aroeira, impaciente.

    – Aí, mano, quando cheguei à conclusão de que o meu halter havia sido usado no crime, levei um puta susto. Tremi na base, meu. Lembrei então de um negócio estranho que tinha acontecido pouco antes. Eu havia esquecido meu halter no restaurante durante o almoço, mas ele, misteriosamente, reapareceu depois no meu apartamento…

    O delegado Aroeira sacudiu-se como se tomado por calafrios e disse:

    – Vamos por partes, seu China, que estou ficando zonzo. Voltemos aos sapatos. De quem seriam os tais sapatos de salto alto?

    – De lady Águeda Christine – respondeu o sempre sorridente escrevinhador. – Aliás, ela está com eles neste exato momento.

    Todos os que se encontravam à mesa voltaram-se, num só movimento, para a escritora inglesa, que permaneceu impassível.

    – O senhor está querendo me dizer que essa velhinha de cabelo azul matou a centenária com um halter? – questionou o policial.

    O chinês não pode responder porque a escritora inglesa se intrometeu na conversa:

    – Esse senhor oriental tem razão. Por incrível que pareça, ele chegou à verdade. Sim, entrei no apartamento de Miguela com um halter na mão direita e de lá saí com ele na esquerda. Mas não fui lá com a intenção de matar Miguela, não! Tratava-se apenas de uma aposta…

    – Mais uma aposta, meu Deus do céu? – lamentou-se Aroeira e ergueu os olhos para o teto, como que esperando uma ajuda vinda do alto.

    O delegado já estava lutando bravamente contra o choro. Seu desespero era visível, genuíno e comovente.

    – Uai, foi isso mesmo! – prosseguiu a autora nascida no Reino Unido. – Nós, anglo saxões, adoramos apostar. Neste nosso caso, foi uma aposta inocente…

    – Inocente? – espantou-se o delegado. – Como foi essa aposta?

    – A gente vinha de camionete do aeroporto pra este hotel. De repente, Miguela se virou pra mim e debochou: “Admiro seus assassinos, Águeda, porque eles todos são silenciosos como gatos de pantufas”. Eu virei pra ela e retruquei: “Bobinha, meus assassinos são como eu, que não faço ruído ao caminhar”. Ela virou pra mim, riu e disse: “Se você é a pessoa mais silenciosa, eu sou a que tem o melhor ouvido, pois escuto até a grama crescendo”. Então, eu me virei pra ela e disse: “Aposto que me aproximo d´ocê sem qu´ocê perceba”. Aí ela virou pra mim e disse: “Ninguém se aproxima de mim sem que eu perceba”. Eu virei pra ela e falei: “Quand´ocê notar minha presença vai ser tarde demais da conta, ocê já estará morta”. Ela riu muito e estendeu a mão pra mim: “Vamos fazer uma posta: tente se aproximar de mim sem que eu perceba. Mas não seja burra. Se me matar, ocê ganha a aposta, mas não leva a grana”.

    A ficcionista inglesa colocou a mão diante dos olhos e contemplou um bocado seus muitos anéis antes de continuar.

    – Hoje, depois do almoço, quando vi aberta a porta do apartamento de Miguela, lembrei da aposta. Parei no corredor. Ela estava lendo bem quietinha. Resolvi me aproximar dela levando na mão um cortador de unhas, que representaria uma arma. Mas, ao abrir a bolsa, minha mão bateu em algo duro. Era um halter de três quilos que eu havia achado debaixo da mesa enquanto almoçava. Decidi empunhar aquele trem pra dar mais realismo à cena. Aí, pé por pé, entrei no apartamento dela. Mas eu estava com as mãos molhadas de suor. De nervosismo. Bem rapidinho me aproximei-me dela, por trás. Levantei o peso sobre a cabeça dela. Quando fui chamar, pra que ela visse que tinha perdido a aposta, o halter resvalou da minha mão úmida. O trem acabou batendo na cabeça de Miguela, que não reagiu. Achei que ela tinha desmaiado. Saí dali imediatamente, triste por ter sido desastrada. Saí sem cobrar os dez mil dólares da aposta.

    – A senhora assume a autoria da morte? – perguntou um vacilante Aroeira.

    A resposta foi imediata:

    – Não! Na verdade, quando soubemos que Miguela estava morta, cheguei a pensar que tinha matado a pobre mulher… Mas agora tenho certeza de que não a matei. Quando aquele troço de ferro bateu na cabeça dela, a bichinha já estava morta. Duas vezes morta, pra ser exata. Já tinha sido envenenada por Fedorova e pelo dardo de Sim Et Non.

    Aroeira sentou-se e levou suas patas dianteira à cara. Pensei que ia escorregar para o pranto.

    macro photography of black cat

    63 – Breves considerações em torno da palavra bofetada

    O delegado esteve assim, sentado, durante longos segundos, e depois soltou um suspiro que consumiu um minuto e meio entre o seu começo, sibilante, e o seu final, gutural. O mais tocante suspiro de desalento que presenciei até hoje. Depois, lentamente, voltou-se para o escritor chinês:

    – O que fazia a bosta do seu halter debaixo da merda da mesa do restaurante?

    – Aproveito o almoço pra fazer exercícios, mano. Boto o halter no peito do pé e fico levantando. Fortalece a panturrilha.

    Um tique nervoso repuxou com violência o rosto de Aroeira. Acostumado a enfrentar bandidos chinelões, sentia que pela primeira vez na sua vida profissional estava encarando suspeitos muito mais espertos que ele.

    Batota resolveu solidarizar-se com o delegado:

    – Todos aqui estão a tirar o cavalinho da chuva, como dizemos em Portugal. Estão a tirar o corpo fora, senhor doutor Aroeira. Sugiro-lhe que aperte o chinês! Seja duro, que ele certamente confessará. O senhor doutor delegado precisa de um culpado pra encerrar este caso. Sem culpado, os jornalistas vão escrever reportagens exigindo a vossa demissão.

    A mensagem do lusitano chegou rapidamente ao cérebro de Aroeira, que se aprumou. Levantou o queixo, ajeitou os ombros e encheu o peito de ar. As palavras de Batota tinham injetado nele a adrenalina de que necessitava para fechar o interrogatório.

    Então o delegado estendeu o braço direito na direção do chinês e falou com uma voz que era um verdadeiro trovão:

    – Até agora o interrogatório foi público, mas eu posso transformá-lo em reservado, o que é sempre ruim pra saúde dos depoentes. Em geral, só costumo começar as perguntas após o que chamo de bofetada inaugural. O senhor chinês conhece o significado pleno da palavra bofetada?

    – Seria o mesmo que tabefe? – indagou Foo Lee Shi Man. – Lá em Macau, quando eu era menino, usávamos também outros sinônimos: bofete, bolacha, lapada, chapuletada ou tapa de mão aberta…

    – É exatamente isso! – entusiasmou-se Aroeira. – A bofetada não visa ferir o interrogado, não. Serve apenas pra desmoralizá-lo. Porque pior que a bofetada propriamente dita é o estalo da mão espalmada na bochecha. Esse forte estalido nas proximidades do ouvido incomoda bastante o interrogado. Agora, falando em termos gramaticais, eu, pessoalmente, não gosto da palavra bofetada. Minha preferência vais para formas mais concisas, como tapona ou bifa…

    – Prefiro confessar em público – apressou-se o chinês a dizer. – A verdade, mano, é que eu também contribuí pra morte de Miguela de Alcazar.

    – Foi por causa de uma aposta maluca também? – perguntou Aroeira, ressabiado.

    – Infelizmente, foi. No aeroporto do Rio de Janeiro, lady Águeda me disse: “Foo, pra mim, um dos maiores mistérios do mundo é a mediocridade chinesa. Vocês são o povo mais numeroso da terra, mas contribuíram pouco pra história da humanidade”. Eu respondi que o mundo de hoje só é como é por causa dos chineses. Lembrei a ela que inventamos a pólvora e que, sem ela, e sem as guerras, a terra estaria superpovoada. Falei ainda do macarrão, do papel e da bússola. Então dona Miguela comentou: “Por que um povo que criou quatro coisas importantes no passado vive hoje só copiando o que fazem os outros povos?”

    – Escutando isso, você ficou com raiva e decidiu matá-la? – concluiu Aroeira.

    – Não. Eu retruquei dizendo que as grandes invenções chinesas eram cinco. Pólvora, papel, macarrão e bússola e mais uma, nova, bem recente. E lancei um desafio: “A senhora deveria conhecer essa quinta invenção porque se trata de uma maravilhosa técnica de assassinato”. Dona Miguela me respondeu com arrogância: “É claro que sei do que se trata. Use essa tal técnica contra mim. Se eu não o desmascarar no momento em que estiver me atacando, não me chamo Miguela de Alcazar”.

    – Qual é a quinta invenção chinesa, afinal? – o delegado mostrou-se interessado.

    – O gás paralisante inodoro. Por acaso, eu trazia comigo uma grande ampola com esse gás. Então hoje, por volta da uma hora, enfiei pelo buraco da fechadura do apartamento de dona Miguela uma agulha de seringa hipodérmica e injetei o gás, como ela havia pedido…

    – Mas esse gás é mortal?

    – Quase sempre, mano. Dependendo da umidade relativa do ar e da temperatura.

    – Mortal ou não, o que importa é que o senhor tentou matar dona Miguela!

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    (cont.)


    Sobre os autores (actividade literária)

    Nascido em Pelotas, no Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, em 1953, Lourenço Cazarré é autor de mais de 35 livros, entre novelas juvenis, contos e romances. Participou em 17 antologias de contos. Recebeu mais de 20 prémios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O calidoscópio e a ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados todos nós (1984). Um de seus livros para jovens, Nadando contra a morte, recebeu o Prémio Jabuti, em 1998, e o selo de “Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Ganhou ainda o Concurso Nacional de Contos Josué Guimarães, em 1993, e o Prémio Brasília para Livros Juvenis, em 1990. Em 2002, recebeu o Prémio Açorianos da Prefeitura de Porto Alegre, pelo melhor livro de contos, Ilhados. Como teatrólogo, foi premiado no Concurso Nacional de Dramaturgia da Funarte (regiões Norte e Centro-Oeste), em 2005, com a peça Umas poucas cenas vistas do caos. A primeira versão de A misteriosa morte de Miguela de Alcazar foi publicada no Brasil em 2009.

    Nascido em Coimbra, em 1969, Pedro Almeida Vieira teve a sua estreia na ficção em 2004 com o romance Nove mil passos, que aborda a construção do Aqueduto das Águas Livres, a que se seguiu no ano seguinte O profeta do castigo divino, com foco na vida do jesuíta Gabriel Malagrida e a trama no período imediatamente anterior ao terramoto de Lisboa de 1755. Em 2009 regressou ao romance do género histórico, com A mão esquerda de Deus, finalista do Prémio Literário Casino da Póvoa. Em 2011 e 2013 publicou um conjunto de crónicas em dois volumes sobre crimes em Portugal até à abolição da pena de morte, sob os títulos Crime e castigo no país dos brandos costumes e Crime e castigo: o povo não é sereno, com ilustrações do brasileiro Enio Squeff. Foi também o responsável pela redescoberta da obra de Guilherme Centazzi (1808-1875), médico natural de Faro, precursor do romance moderno português, reeditando o romance O Estudante de Coimbra, tarefa que lhe mereceu a Menção Honrosa do Prémio Grémio Literário de Lisboa em 2012. Publicou ainda um conjunto de crónicas sobre o Brasil colonial, compiladas na obra Assim se pariu o Brasil, com edição portuguesa em 2015, edição brasileira (português do Brasil) em 2016, e edição italiana em 2020. É autor também de diversos contos, além de ensaios na área do ambiente, entre os quais se destacam O estrago da Nação (2003) e Portugal: o vermelho e o negro (2006).

  • Sem chão

    Sem chão

    Nunca conversaram muito. Nunca foram amigas. Também nunca foram outra coisa qualquer. As vidas das duas mulheres cruzaram-se. Trabalham há muito na mesma empresa. Partilham alguns espaços e momentos. Muitos, na verdade. Mas nunca convergiram. Nunca aconteceu. E, no entanto, hoje aqui estão. Sentadas lado a lado, de mãos dadas.

    Encontrou-a sentada no carro. Debruçada sobre o volante. Hesitou, mas decidiu voltar atrás. E se desmaiou? Pode estar a sentir-se mal. A precisar de ajuda. Ana percebe rapidamente que a colega não perdeu os sentidos. As convulsões do corpo denunciam o choro. Fica sem saber se deve bater no vidro ou não. Não tem intimidade suficiente para se intrometer. Por outro lado, receia que esteja com dores. Que seja necessário chamar uma ambulância.

    a person driving a car on a road with mountains in the background

    Avança. Se não gostar, paciência, pensa. Mande-me embora. Três toques com os nós dos dedos. Aguarda um pouco e repete. Os olhos vermelhos de Sara, inchados e sem expressão surgem lentamente por entre as dobras da manga bege suja de maquilhagem. Volta a enterrar rosto no couro do volante e Ana pergunta-se se estará a ser inconveniente. Afasta-se.  Dois passos dados, ouve o seu nome:

    ⎼ Entras um bocadinho?

    Entra, obviamente. Não sabe porquê, mas não se surpreende com o pedido. Senta-se no lugar do passageiro. Aguarda que Sara se recomponha. Pousa-lhe uma mão no ombro. Com cautela. Com a hesitação de quem não tem o hábito de o fazer. Sara liberta um grito rouco. Chora compulsivamente durante longos minutos até o cansaço a impedir de continuar.

    É então que limpa o rosto. Assoa-se ruidosamente, uma e outra vez. E Ana, que até então sabia apenas como se chamava, o que fazia e que tinha três filhos, torna-se a sua maior confidente. Sara diz-lhe que o marido saiu de casa há dois dias. Estiveram juntos quase 20 anos. Ainda não encontrou a melhor forma de contar às crianças.

     – Achas que tens mesmo de fazer o já? Não te estarás a precipitar? Não há possibilidade de se reconciliarem? –  pergunta Ana.

    closeup photo of black analog speedometer

    Sara garante que não. Explica que quando a informou de que iria sair de casa, o João já tinha um apartamento alugado e mobilado há meses sem que ela soubesse. Duas ruas abaixo da casa onde vivem. Voltam a correr-lhe as lágrimas quando  diz que nunca se tinha apercebido de nada. Para ela, tinham o casamento perfeito. Não consegue entender, logo não consegue explicar. Sente-se perdida. Foram namorados de liceu. Escolheram a mesma faculdade para poderem estar juntos. Casaram. Tiveram filhos lindos. Construíram a casa com que sonharam. Fizeram viagens de sonho. Até o cão é perfeito. São, ou melhor, eram a imagem da felicidade. Pelo menos, era assim que ela via a sua vida. E, por entre muitos desabafos, explica que, por incrível que pareça, o que mais a magoou não foi o facto de ele ir embora, nem sequer as palavras. Ele foi doce. Educadíssimo, como sempre. Falou como um amigo que a tenta confortar. Disse-lhe que tinha de ir. Que ela tinha de ter paciência. Sara perguntou-lhe porquê. Ele baixou o rosto. Ela explicou-lhe que tinha de compreender para se poder conformar com a ideia. Além disso, como queria saber como iria ele explicar aos filhos o que se passava. Perguntou-lhe o que pretendia dizer-lhes. Como e quando o iria fazer. Não obteve resposta. Nem uma palavra. Nem um olhar.  A cabeça baixa. Não por pudor, acredita ela. Mas porque não pensou na necessidade de dar uma resposta. Porque assumiu que “ter de ir” era justificação suficiente. Voltou costas. Cabisbaixo. Desapareceu. O João não voltou a dar notícias e a única certeza que ela tem agora é a de que terá de ser ela a desferir esse golpe nos filhos. Que ficará sozinha a olhar a dor no fundo dos seus olhos incrédulos.

    As palavras e os atos já não a magoam, diz. Desiludem. O que a magoa é o baixar os olhos, o gesto que a deixa no vazio e que lhe traz de volta uma memória terrível. Conta que a sua mãe faleceu recentemente. Cancro. Ana lamenta. Cruzam-se quase todos os dias e não se apercebeu de nada.  Sara recorda o médico da mãe, a bata azul, o ar exausto, um cubículo improvisado com vista para o estádio.

    ⎼ A equipa fez tudo o que podia. –  explicou-lhe então.

    ⎼ Nada correu como esperado.

    a dark tunnel with a black background

     E ela de olhos fixos no relvado. A imaginar que não estava ali. Se não estivesse, não podia acontecer.

    ⎼ A ciência tem as suas limitações. –  ouviu.

    Não podia ser. Incrédula, perguntou:

    ⎼ E agora doutor? O que vão fazer? O que digo ao meu pai?

    Ele baixou os olhos. Encolheu os ombros. Ela formulou e reformulou a questão. E o silêncio cada vez mais pesado, mais doloroso. Desesperante. Olhos no relvado. O sol a encandeá-la através do vidro e a tornar tudo irreal. Do regresso a casa, recorda os vultos, o medo de pousar o pé a cada passo. Sem chão. O abismo.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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