Etiqueta: Cultura

  • O prenúncio do primeiro homicídio

    O prenúncio do primeiro homicídio

    ― Porque estás zangado e de rosto abatido?

    ― Senhor, todos os dias me levanto de madrugada para cavar, fresar, esmigalhar, plantar ou semear, sachar, raspar, amontoar, regar, colher, acarretar e, sei eu, e vós também, o que mais… Tudo isto faço, quer sob o sol inclemente quer sob a impedieosa chuva.

    ― Cuidado, rapaz… A chuva e o sol são criações minhas…

    reflective photo of clouds

    ― E também o jardim no Éden, que Vós concebestes sem enxadas nem enxertias. Imagino que Vos bastou um estalar de dedos… E depois de terdes mostrado o paraíso a meus pais, expulsaste-os, destinando-nos a estas terras, que amaldiçoastes, e de que só à custa de penoso trabalho, todos os dias das nossas vidas, conseguimos arrancar parco alimento.

    ― Não sejas insolente! Os teus pais transgrediram. Dei-lhes a vida, dei-lhes tudo para viverem sem esforço, apenas sob a condição de não comerem do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Violaram essa única regra. Eu até fui misericordioso, porque os ameaçara com a morte.

    ― Morte?! O que é isso?! Nunca vi tal bicho?

    ― Não é nenhum bicho, rapaz. Morte é o que sucede aos seres vivos quando por mim são chamados para a terra de onde foram tirados.

    ― Na terra ando já eu, desde que o sol nasce até fugir do horizonte. Bem que me queria tirar daqui…

    ― Irra! Estou bem fornido contigo. Eu deveria ter desconfiado da minha ideia em deixar os humanos se reproduzirem por si próprios, pela fornicação. Não deu bom resultado!… No Éden ficou a árvore da Vida, rapaz. Se os humanos comessem do seu fruto viveriam para sempre. Assim, sem isso, serão atingidos pela morte lá para os oitocentos ou novecentos anos, conforme me aprouver, caso a caso. A vossa vida cessa como a dos outros animais. Deixam de respirar, o coração pára os movimentos, ficam estáticos, os animais vos devoram, os insectos vos chupam, os fungos vos decompõem e os microorganismos vos desintegram até nada mais sobrar que nutrientes misturando-se na terra de onde eu formei teu pai…

    silhouette photography of person

    ― Não estou a entender nada… Sei apenas que meus pais comeram uma certa fruta no jardim, e que deu nisto… Mas eles não falam muito disto, a mim e ao meu irmão. Dizem que a culpa foi de um animal rastejante… Serpente, penso ser esse o nome. Poderíeis ter sido condescendente e apenas castigar o raio da besta do animal. Ou ter-lhe tirado a língua, quando o criaste, para que não falasse com minha mãe. Ou, melhor ainda, não o terdes deixado entrar no Éden… 

    ― Rapaz, pensas demais e mal, e isso leva-te ao pecado. Cuidado, ele tem muita inclinação para ti, mas deves dominá-lo.

    ― Inclinado ando eu todos os meus dias, na labuta da terra. E nem um sorriso levei de agrado quando ontem Vos fiz uma oferta de frutos da terra. Escolhi para Vós os mais viçosos pimentos verdes da minha horta… Ao invés, só tivestes olhos para aquele carneiro mal morto, cheio de banhas, entregue pelo meu irmão. Ainda por cima, ele fez uma fogueira e deixou aquilo esturricar-se tudo!

    ― Desgraçado. Não entendeste mesmo! As oferendas devem ser-me feitas sempre em holocausto, rapaz. É a mais nobre, diria a única, forma de me honrar e agradar desde o tempo dos tempos.

    ― E como eu haveria de imaginar isso, se somos os primeiros humanos e nunca nos orientaste para o melhor proceder?…

    ― O teu irmão, de bom coração, intuiu o meu gosto…

    Close-up of a Lot of Green Peppers

    ― Pois, pois… Fartou-se de se pavonear por o elogiares, o fedelho; E logo a mim, que lhe tomo a primazia na idade. Fiquei-lhe com uma fúria…

    ― Acalma a tua raiva. Vai chamar o Abel, e ele que te leve ao campo para mostrar como se faz um bom holocausto…

    ― E queres que eu asse os meus pimentos?!

    ― Sim!… Mas, olha, Caim: junta-lhe umas sardinhas!


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  • A lenta flecha da beleza

    A lenta flecha da beleza


    Gostava do final do ano. Novembro anunciava os meses de férias, época boa para se ler o dia inteiro sem adulto incomodando, pai ou mãe, mandando fazer os deveres.

    Nos dias de sol forte escolhia a calçada da sombra, da estreita faixa de sombra junto à parede, para caminhar até a biblioteca. Ao passar por baixo das árvores, gostava de ver os estranhos desenhos que o sol – varando a galharia – fazia-lhe nos braços. Era como se ele fosse um sujeito tatuado, um pirata dos mares do Sul.

    Toda segunda-feira, depois do almoço, saía de casa para a fornalha da rua. Com dois livros debaixo do sovaco, olhos cravados no chão, pensava às vezes: quem me vê logo percebe que eu sou um intelectual.

    Cruzava sucessivas ilhas de luz e de sombra: calçada, árvores, calçada, marquises, calçada, postes, calçada, toldos, calçada, tabuletas.

    Chegando ao centro da praça, detinha-se por uns minutos no chafariz para admirar os negros peixes de ferro que esguichavam pela boca escancarada e os peixes vermelhos que, sinuosos, brincavam de pega-pega na água verdolenga do tanque.

    five koy fishes

    Dali podia ver a fachada imponente da Biblioteca. Uma fábrica silenciosa. Era assim que ele gostava de pensar: uma silenciosa fábrica de histórias interessantes. As estantes e mesas eram as máquinas. Os livros eram a matéria-prima. Os leitores eram os operários.

    Deixando o chafariz, dirigia-se ao banco da praça que ficava bem na frente da Biblioteca. Sempre que estava por ali, fazendo hora até que fosse aberto o portão, ficava observando o bando de gurias reunidas diante do velho edifício. Era muita guria bonita junta num só lugar.

    De quando em quando seu olhar era atraído para uma das retardatárias que atravessavam a rua correndo sem olhar para os lados. Vinha-lhe, então, um vago pressentimento: um dia, um auto vai atropelar uma dessas estabanadas.

    Quando a gigantesca porta de madeira maciça era aberta, elas enveredavam pelo corredor que levava ao interior do edifício centenário: dezenas de gurias de saia azul e blusa branca – agitadas, falantes – apertando as pastas escolares contra os seios nascentes.

    Ainda sentado, dando um tempo para que elas se instalassem nas mesas do grande salão, ele fechava os olhos e imaginava o atropelamento de uma delas. Via a guria estirada no calçamento de pedra, os encaracolados cabelos castanhos em volta do rosto pálido, os braços abertos, livros e cadernos espalhados e um fiapo de sangue escapando-lhe pela comissura dos lábios.

    Comissura, gostava da palavra. Ela aparecia em todo livro de aventuras que lia. Sempre tinha uma briga e alguém acabava sangrando pela comissura dos lábios.

    vintage books collection

    No caso da guria atropelada, claro, tinha que haver um pouco de sangue. Bem pouquinho. Se tivesse muito, ficaria nojento.

    Então ele se via correndo até ela. A pobrezinha abria a boca e tentava dizer alguma coisa, mas não conseguia. Lentamente, os olhos dela se fechavam. Pronto, estava desmaiada. Com a vítima nos braços, ele partia correndo em busca de socorro.

    Está certo, ele sabia que não era possível erguer uma garota com tanta facilidade e, menos ainda, sair correndo com ela no colo. Sabia que não se levanta do chão um atropelado. Isso ele aprendera numa aula de primeiros-socorros. A pessoa podia ter uma lesão na coluna ou uma fratura. Um osso quebrado podia, por exemplo, perfurar um pulmão. Morte certa.

    Mas digamos que, apesar de tudo, ele resolvesse correr com a guria nos braços. Bem, para isso, ele tinha de ser um cara forte para burro. O que não era o caso dele. Até que era bastante alto, mas muque não tinha.

    – Tu pareces mais um varapau! – dizia o pai dele.

    Bem, mas e se a guria atropelada fosse bem levinha?

    No dia em que decidiu que seria um escritor quando se tornasse adulto, o guri não atravessou a rua logo depois do sumiço da última menina. Permaneceu sentado no banco da praça, de olhos fechados, reflexivo. E se um dia tivesse que fazer uma redação sobre elas, o que escreveria?

    person holding book sitting on brown surface

    *

                  Uma cidade cheia de gurias.

                  As ruas estão eletrificadas. Gurias são fios desencapados. Se o sujeito trisca na mão delas, recebe uma baita descarga elétrica.

                  Gurias parecem pombas, não param de arrulhar. E falam muito rápido. Mudam de assunto a todo instante. Aliás, as frases delas não têm final. Umas não ouvem as outras. Falam tanto que, de vez em quando, no meio de uma conversa mais acesa, uma delas sente falta de ar.

                  Namoro é o assunto predileto delas. Todas vivem se exibindo, dizendo que os guris andam atrás delas, de joelhos. Até mesmo as mais feiosas. Na escola, durante o recreio, ficam horas e horas falando sobre meninos. Mas ninguém serve para elas. Um é exibido, o outro é nojento. O pior é quando dizem que o sujeito é asqueroso. E mentem na maior cara de pau. Dizem que recebem bilhetes apaixonados. Mentira deslavada. Um piá normal nunca vai se rebaixar a escrever um bilhetinho. Só se for um bocó. As mais descaradas inventam até beijos.

                  Elas não olham diretamente nos olhos da gente. Não encaram nunca. Olham de banda, e depois falam torcendo as mãos úmidas de nervoso. E se movem sem parar, têm bicho-carpinteiro pelo corpo. Parecem estar sempre com muita pressa, mesmo quando nada têm para fazer. Na saída da escola, elas gostam de andar em grandes bandos, falando pelos cotovelos. De braços dados, tomam a calçada toda, da parede à beirada. E saem varrendo. As pessoas têm que se equilibrar no meio-fio.

    Nos meses de verão, quando caminham pelas ruas, as meninas deixam um cheiro bom e um rastro luminoso como…

    woman putting her left arm on her forehead

                  *

    Olhou para os dois lados antes de atravessar a rua. Se fosse atropelado, nenhuma guria viria socorrê-lo. Tem isso: elas gostam que o cara se arrebente por elas, mas nunca juntariam do chão um sujeito machucado, ainda mais sangrando.

    Pelo corredor sombrio, dirigiu-se à portaria, onde entregou à funcionária os livros que havia retirado na semana anterior.

    – Tu és um leitor onívoro – a mulher sorriu por trás das lentes cortadas pelo meio.

    – Obrigado – respondeu.

    Teria de consultar o dicionário para descobrir o significado daquela palavra monstruosa: onívoro.

    De posse da carteirinha de sócio, com a entrega já carimbada, encaminhou-se para o salão.

    Naquele dia ficou inquieto com a presença de tantas gurias por ali. Nem se arriscou a olhar para os lados. Certamente elas estavam de risinhos, as patetas.

    Concentrou-se na escolha dos livros que levaria para casa.

    Em geral, escolhia pelo título. Mas levava em conta principalmente o número de páginas e o tamanho da letra. Livro grosso demais não era com ele. E nem livro de letra miudinha. Se o título lhe agradasse, e se o livro tivesse um número razoável de páginas – digamos, no máximo, trezentas -, ele o abria ao acaso. Lia um parágrafo e já sabia se gostaria ou não. Nunca se enganava.

    Abriu um dos livros mais grossos. Não pretendia levá-lo para casa, claro. Queria apenas se exibir, fazer com que as gurias pensassem que ele era um garoto-prodígio.

    assorted book lot

    Gostou do título daquele capítulo: A lenta flecha da beleza. Começou a ler pensando que fosse uma história de índios. Mas de saída, já na primeira frase, deu de cara com nove vírgulas. Era tanta vírgula que o sujeito ficava tonto, desnorteado, nem sabia para onde a história estava andando. Ah, e tinha muita palavra com mais de quatro sílabas. Tempestuosos, altissonantes, embriagadores. Odiava escritores que abusavam dos polissílabos. Aquele devia ser um livro igual a todos os outros de adultos: a história de um rapaz pobre apaixonado por uma moça rica. Ou vice-versa. Coisa bem chata.

    Abandonando o livrão na prateleira, escolheu quatro ou cinco livros de aventuras, de capas coloridas. Depois, equilibrando-os nos braços magros, dirigiu-se à carteira mais afastada, no cantinho do salão. Só na hora de ir embora, escolheria os dois que levaria para casa.

    Com gestos cuidadosos distribuiu pela carteira os livros, abertos, como via fazerem os estudantes de Medicina ou Direito. Queria que as garotas pensassem que ele era um cara super estudioso.

    Armado o cenário, ele apanhou na pasta os cadernos de matemática e de português. Rapidamente, resolveu cinco continhas e, em seguida, fez uns exercícios vagabundos de análise sintática. Pronto, havia matado o dever daquele dia.

    Não, ele não era muito estudioso. Sempre fazia o dever o mais depressa possível para ter mais tempo de olhar fotos e mapas nas enciclopédias. Era louco por enciclopédias ilustradas.

    Se lhe perguntassem do que ele mais gostava na biblioteca, responderia que era o silêncio daquele lugar. Todos os que entravam ali, até mesmo as gurias mais novas, caturritas de nove, dez anos, logo começavam a falar em voz baixa.

    O silêncio do enorme salão só era cortado de quando em quando pelo estalido das folhas de livros que iam sendo viradas. Ah, claro, também tinha um piado bem fraquinho, irritante, que vinha das gurias, sempre rindo e sussurrando.

    book lot on table

    Mas, naquele dia, terminado o dever, ele não foi à estante das enciclopédias, como costumava fazer. Abriu e o caderno resolvido a escrever a redação que imaginara, pouco antes, quando estava em frente à Biblioteca:

    Nos meses de verão, quando caminham pelas ruas, as meninas exalam um cheiro bom e deixam um rastro luminoso como o de uma lesma.

    Não gostou do final da frase. Aquela palavra – lesma – não era legal. Foi à estante dos dicionários. Depois de consultar o mais robusto deles, um que tinha mais de mil páginas, voltou a escrever:

    Nos meses de verão, quando caminham pelas ruas, as meninas exalam um cheiro bom e deixam um rastro luminoso como o de um molusco gastrópode terrestre, cujo corpo é desprovido de concha.

    Também não aprovou. Era muita palavra difícil em apenas duas linhas de caderno: molusco, gastrópode, desprovido.

    Resolveu escrever um poema. Mas tinha um porém: ele não gostava de poema moderno, desses sem rima, bagunçados. Queria tudo rimado, certinho. Escreveu:

     A menina andarilha

    Nas tardes de verão

    Deixa um rastro na trilha

    Que nos leva ao alçapão

    Ficou melhor, mas incompleto. Porque, pensando bem, gurias não deixam só o rastro. Elas exalam também um cheiro, que é parecido com o de uma flor esmagada pelos pés de uma pessoa distraída. Não, não, o cheiro delas é o da lagoa, na época da seca, quando as águas ficam lustrosas de limo grosso. Melhor ainda: cheiro de pêssego maduro exposto numa banca de feira.

    red apple fruit on four pyle books

    Suspirou e fechou o dicionário.

    Vou ficar louco, se pensar tanto em gurias.

    Levou a mão à testa. Talvez estivesse até com uma pontinha de febre.

    Perguntou-se: onde está o problema?

    A resposta era simples.

    Ele não era poeta. Era um guri que só gostava de livros de aventuras.

    Rasgou a folha do poema.

    Escreveu:

    Era uma vez uma bela garota que cheirava a pêssego maduro. Um dia, quando atravessava a rua diante da Biblioteca, ela foi atropelada por um automóvel que trafegava em altíssima velocidade. Ao vê-la caída ao solo, um jovem intelectual que frequentava a referida biblioteca correu para socorrê-la. Percebendo que ela sangrava pela comissura dos lábios, ele a ergueu com a força de seus poderosos braços e…

    Lourenço Cazarré é escritor


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  • Coisa

    Coisa

    Nenhuma outra coisa se afigura mais obscura ao génio e simultaneamente mais clara ao néscio do que a natureza das coisas. Sendo tudo e nada, tocando o corpóreo e o incorpóreo, tangendo o incognoscível e o sabido, tratando do desmesurado infinito e do imensurável infinitésimo, tropeçando no inanimado e no animado, e transcorrendo o nominado e o inominado – que, em abono da verdade, podem ser a mesma coisa, dependendo do conhecimento das coisas que cada um detém –; repito de novo: e transcorrendo o nominado e o inominado, dissertar sobre coisas pode resultar em tratado de epistemologia, ou simplesmente redundar em sudário de imbecilidades. Sai sempre uma das duas coisas.

    Fina e ténue é a fronteira entre uma coisa e uma outra. Temo, assim, que, por ausência de aptidão, por falhas de preparação, e por inabilidades de volição, abrolhe deste texto coisas sem jeito, triste desenlace para quem, em seu íntimo, até almejava coisa grande, nada menos que coisa maior que Da Natureza das Coisas, do filósofo romano Tito Lucrécio Caro – ou, para dar ares de coisa grandíloqua, do autor do poema De Rerum Natura, que isto de escrever em latim é outra coisa.

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    Antevejo que escrevendo eu assim todas estas coisas sem conta, pensareis, talvez com razão, que me deu coisa má, que já não digo coisa com coisa, e que, enfim, este texto não é lá grande coisa. E, de facto, não estou bem em mim, que ontem sucederam-me coisas do arco-da-velha, que desconfio terem sido coisas do coisa-ruim. Apenas vos digo que se me ficaram bem pretas as coisas, e só depois de obrar coisas e loisas consegui escafeder-me do demo.

    Portanto, não tive sezão para melhor endireitar a coisa, ou seja, compor um decente texto. E, por isso, se desprazimento aqui vos trago, desculpai qualquer coisinha. Ou então, parafraseando Machado de Assis nos prolegómenos de Memórias Póstumas de Brás Cubas, se esta coisa não te agradar, fino leitor, talvez seja melhor te pagar “com um piparote, e adeus”. Ou coisa e tal.


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  • Olhão

    Olhão

    Olhão. Final de tarde. Estacionam perto da Marina e seguem a pé junto à Ria. Procuram o concerto anunciado para aquele jardim.

    Têm tempo. Saboreiam o ar fresco que vem do mar e tempera a brisa morna de um verão que principia. O amigo visita pela primeira vez o Algarve e  Leonor explica-lhe  a origem da designação “Olhão, cidade cubista”. Abrandam o passo. Ela aponta e pergunta:

     ⎼Vês os cubos? Vês como se sobrepõem? Olha ali, um maior na base, depois um mais pequeno e por fim um bem menor. Parecem legos.

    a yellow and white boat in a body of water

    Ele sorri e imagina mãos de crianças a descobrir formas e volumes. A experimentar equilíbrios. Prosseguem. Vão olhando e comentando os edifícios mais próximos. Cubos, mirantes, platibandas, açoteias… Tudo é para ele novidade e espanto.  Mas a atenção de ambos é subitamente desviada para outras formas. À sua direita. Parecem vir do mar. Formas completamente opostas à  geometria retilínea das casas. Uma ondulação de pedra que  prolonga em terra firme a da água agitada pelo vento. Os bancos de jardim e a calçada ondulantes a replicar-lhe o movimento. Uma réstia de sol a espalhar sobre a tarde as sombras trémulas das folhas das árvores. No chão, no rosto, nas costas e palmas das mãos. Tatuagens flutuantes.

    Ecoam então os primeiros acordes e vislumbram-se ao fundo os movimentos redondos da orquestra. A melodia enche o jardim. Enche a tarde. Sinuosa, sobe em direção às gaivotas suspensas numa dança hipnótica. Música e aves pairam embaladas pela brisa. Lânguidas. Tranquilas.

    Tudo parece encenado. Um bailado grandioso. Uma coreografia rigorosa. Atenta aos mínimos detalhes: orquestra, maestro,  público, aves, árvores, vento. Os aviões que surgem hesitantes entre o descer e o planar. Essas aves imensas. Aproximam-se ao ritmo da música.

    a flock of birds flying over a body of water

    Subitamente, um movimento firme, um braço em riste, uma nota  forte que atravessa o ar e os corpos. Duas andorinhas, em perfeita sintonia, rasgam o céu. Caças velozes num voo rasante em direção ao palco. Um pequeno cão a fazer acrobacias. Saltita. Ladra. Disputa o protagonismo com Tchaikovsky. A vida a  entrar pela música. A música a entrar pela vida.

    Leonor convida-o a ir com ela até ao lago dos patos. A música envolve-os ainda. Passam o Mercado do Peixe, depois o da Fruta. A alegria de Leonor depressa dá lugar à perplexidade. O lago já não existe. Mas os patos estão lá. Não de carne e osso, como antigamente. Apenas pequenas estátuas que evocam a sua existência. Uma instalação escultórica: o “Jardim dos Patinhos”.

    ⎼ Que alívio! Afinal não sou só eu que me lembro. Olha que até duvidei da minha memória. Vir até aqui era parte de um ritual. Ia-se ao mercado, depois comer um gelado à Gelvi e, claro, tínhamos de vir ver os patos. ⎼ explica ao amigo.

    Outros tempos. Outros patos. A estes não os embala a água. Embala-os o som dos violoncelos. Observa-os e consegue sentir o incómodo do metal que se enfiava debaixo das costelas quando se debruçava sobre a vedação. Sente as mãos da mãe a segurá-la pela cintura. A  elevá-la e a sustê-la enquanto ela se estica e tenta tocar as penas com as pontas dos dedos…

    a woman sitting on a chair next to a body of water

    O concerto termina.  Leonor procura escapar à nostalgia que a assalta. Agarra na mão do amigo e puxa-o até à proa simulada de um navio que entra pela Ria adentro. Ensaiam a famosa cena do Titanic. Trauteiam a música da Céline Dion e riem da figura que sabem estar a fazer. Registam o momento numa fotografia divertida e encetam o caminho de regresso. Os olhos de Leonor seguem as linhas traçadas pelo rasto de um barco que ruma à Culatra. A perfeição da linha reta desfeita pelo movimento ondulante das águas. Também é Olhão.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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  • Meia encarnada dura de sangue

    Meia encarnada dura de sangue

    Tudo numa plastada de sangue… tudo manchado de vermelho, toda a alvura daquelas coisas bonitas como que bordada de colorado, num padrão esquisito, de feitios estrambólicos… como flores de cardo solferim esmagadas a casco de bagual!…

    “Contrabandistas”, Contos gauchescos 

    João Simões Lopes Neto


    Pois este meu avô, disse o Poeta, dava a alma por um dedo de prosa. Parece que estou a vê-lo, pequeno, não media mais de um metro e meio, sentado na frente da nossa casa ali no Corredor das Tropas, naquela rua que desce da igrejinha de Nossa Senhora da Luz, com a cuia de chimarrão na mão esquerda, chaleira tisnada na direita, catando entre os passantes apressados do fim de tarde alguém que quisesse jogar fora um pouco de conversa.

    Meninos de canelas embarradas, nós estávamos sempre pela volta, aproveitando a última réstia de sol, ou na calçada, brincando de esconde-esconde, ou no campinho, que demarcamos no terreno baldio. Era só juntar dois ou três ao redor de meu avô que interrompíamos a brincadeira. Para escutar.

    Foi com ele que aprendi a dar valor à conversação. Primeiro aquela lengalenga sobre o tempo, se vai chover, ou fazer frio, e depois as trivialidades – como lhe vai a família? Por fim, quando um dos passantes se mostrava decidido a seguir seu caminho, o velho começava um causo.

    white Chevrolet vehicle parked near building during nighttime

    Meu avô era brigadiano, não sei se já te disse. Passou anos e anos ao relento, sozinho, seja na nossa cidade, seja nas cidadezinhas da volta, atravessando madrugadas frias sem ter com quem trocar um só cumprimento. Porque esses vultos esquivos que vemos pelas trevas da noite, no geral, nada querem com um sujeito de farda, nem mesmo trocar um buenas.

    Por isso, creio, ele tinha aquela quase desesperada necessidade de estar sempre conversando. Sim, porque passava a manhã na venda do Corcunda, dando trela aos que entravam e saíam; e depois da sesta se ia para a barbearia do Português repassar os dramas do dia, do passado, da nossa cidade, de todo o Rio Grande.

    Tinha uma história para cada assunto, muitas para vários: creio que o amor e a morte eram seus temas preferidos, e também as catástrofes inexplicáveis desencadeadas por forças desconhecidas, e honra, dignidade e hombridade, lealdade e amizade, os valores que, dizia ele, estavam desaparecendo de nossa cidade e, de resto, do mundo.

    Então, numa dessas tardes, falavam de futebol. Alguém comentava o dinheiro estúpido que estavam pagando a um porto-alegrense cheio de bossa que gostava de dar chapéus, que driblava o marcador até que se esparramasse sobre a grama, e que arrematava enfiando a bola por entre as pernas do goleiro. Um carrasco!

    O meu avô mateava e sacudia a cabeça, descrente, contrariado, e já aceso para pegar a palavra, enquanto o outro seguia discursando, indignado, porque o tal cretino ganhava mais do que a maioria dos trabalhadores honestos, porque com um dinheirão daquele podiam alimentar umas quantas famílias de miseráveis.

    Aí, quando o outro se calou, o meu velho contou a história do crioulo. Sabia muitas histórias de futebol porque ele mesmo havia sido um jogador, um ponta irritante, daqueles pequenos que são como flechas e que, por não terem nem altura nem força, se obrigam a ser mais velozes e matreiros e mais gambeteiros e mais debochados, para irritar os laterais.

    two boy's playing soccer near building during daytime

    O velho dizia que naquele seu tempo, sim, aquilo era um esporte para homens, porque os juízes só marcavam falta se o cara sangrasse, e só expulsavam o agressor quando o outro ficava estirado sobre o barro, desmaiado. E falava de como eles se cuspiam e davam cotoveladas e socos e como gostavam de esfregar as agarradeiras nas canelas dos outros e demais barbaridades.

    Mas voltemos ao rio, deixemos as vertentes. O tal crioulo foi o primeiro jogador profissional da cidade. Não sei quando, mas creio que pelo meio ou pelo final da década de trinta, porque o meu velho contava que por esse tempo, esse sujo tempo em que os atletas começaram a ganhar dinheiro pela sua arte, ele já estava fora dos campos com os joelhos arrebentados.

    Pois o crioulo jogava pelo Grêmio Esportivo Brasil, o time dos negros e mulatos. O campo deles ficava nos banhados da Estação Ferroviária. Aos dezenove anos, era o maior driblador e fazedor de golos da época. Nem alto nem baixo, era magro como a peste, leve como a brisa e dançarino como as borboletas. E frio. Jogava de olhos abertos, cabeça erguida. Calculista, ele não só queria fazer o golo, como queria também que seu marcador ficasse por terra, e gostava de ver o goleiro esmurrar a grama. Jogava rindo. Conheces o tipo, não é? Não era um sorriso, era mais um arremedo, uma máscara risonha que nada tinha a ver com o que lhe ia pelas entranhas. Ele ria daquele jeito só para enfurecer os adversários, para fazê-los perder a cabeça e começarem a querer matá-lo. Nada pior para o time da gente do que jogadores de cabeça quente. A gente grita que quer sangue – me mata esse filho da puta! – e eles partem para o pau, mas aí o jogador frio dá sempre aquele pulinho para o lado, aquele toque sutil, e ganha a parada.

    Era assim dentro do campo, implacável. Fora, era outra coisa. Um rapaz gentil, tímido, de fala mansa, cerimonioso. Sempre saía do campo de cabeça baixa, como que pedindo desculpas por jogar tanta bola.

    Trabalhava num matadouro. Mas não sei te dizer qual. Ficava para as bandas do Porto. Ele também morava por lá, na ruazinha que corre paralela ao canal e que devia ser naquela época ainda mais triste e suja. Morava com sua mãe, viúva. Durante a semana, gastava o dia dentro daqueles galpões sombrios – iluminados apenas pelo cintilo fugaz dos facões afiados – resvalando pelo chão ensanguentado.

    Era tão hábil com a faca quanto com a bola, dizia o meu avô. O negócio dele era a desossa. Desmanchava um boi em questão de minutos. E não deixava um só fiapo de carne nos ossos. Com a mesma precisão e elegância com que escapava dos coices do adversário, recuando o corpo apenas os milímetros necessários, ele destrinchava os animais.

    Aos domingos brilhava nos campos.

    Depois de perder quatro ou cinco jogos, de enfiada, os dirigentes do Esporte Clube Pelotas começaram a se perguntar se não estariam fazendo uma grande asneira em não aceitar jogadores de cor. E o meu avô dizia: está certo que esses negros são uns mandriões, e eu conheci não mais de sete que gostavam de trabalhar, mas a verdade é que nas safadezas, coisas como serenatas e jogos de bola, eles são bons. Então um inglês, que palpitava muito nas reuniões de diretoria, tanto encheu que acabaram aceitando conversar com o crioulo. Um dos diretores do clube, da família Almeida Guimarães, um cara que tinha tantos contos de réis quanto milhos há numa espiga, disse que cederia ao tal crioulo uma casa velha que tinha lá para os lados da Cerquinha. Se aceitasse o convite, podia morar lá de graça, enquanto servisse ao time.

    Então mandaram alguém falar com o rapaz.

    Moravam ele e a mãe num rancho de paredes vacilantes e teto de palha. Muitas vezes, nas cheias do rio, tinham que botar os trastes nas costas e sair para a casa de uns parentes, nas Terras Altas. Baixava a enchente, lá vinham ele e a mãe de volta. Mas não foi isso que o decidiu.

    Ele demorou muito para aceitar. Não que estivesse negaceando, como fazem esses jogadores de agora para ganhar mais uns trocados. Não! Gastou dois ou três meses pesando os prós e os contras porque sabia que a partir do momento em que concordasse em jogar pelo Pelotas não seria apenas mais um crioulo: seria o crioulo vendido. E o meu avô dizia: a gente de hoje não tem ideia do que se passou pelo coração do coitado, que nem mais dormia direito pensando no que fazer. Naquele tempo o valor dos homens era medido não pelo dinheiro que tinham, mas pela capacidade de manter a palavra empenhada.

    Por uma mulher, decidiu-se.

    Essa negrinha, que trabalhava numa casa de família, no centro da cidade, pesou mais que a honra ou o orgulho que ele pudesse ter. Se ficasse no seu time do coração, teria apenas os aplausos e os abraços de homens tão pobres quanto ele, ou mais, num desses melancólicos finais de tarde de domingo que trazem não só tristeza e neblina mas também a desesperada perspectiva de mais uma semana de trabalho duro.

    Nas incontáveis noites mal dormidas, sonhou com a casa da Cerquinha que já visitara, numa manhã de domingo, sentindo no braço esquerdo dobrado a pressão mais forte dos dedos da namorada, sonhou com a casa e se viu dentro dela, e fora, na soleira, dedilhando o cavaquinho, que ainda não possuía, numa noite de lua. Chegou a escutar o vagido de um anjinho que ainda não nascera. Sonhou, com um misto de orgulho e desvanecimento de proprietário, que passava as trancas nas portas e que se deitava ao lado da mulher, e que adormecia, como um homem normal.

    Aceitou. Aceitou porque se não aceitasse teria de continuar morando naquele casebre. E, como passaria a ocupar com a mulher o único quarto, sua mãe teria de dormir na sala, a sala cheia de goteiras.

    Disse que sim ao terceiro emissário.

    Faltava uma semana para o jogo.

    O tal inglês encarregou-se de espalhar o fato aos jornalistas e eles não pouparam nem tinta nem papel para execrar o mulato, para colocá-lo lado a lado com os flagelos da humanidade: Átila, Solano Lopez e todos aqueles caudilhos argentinos e uruguaios.

    Não teve mais paz. Não por causa dos jornalistas, pois os jornais não chegavam àquele canto da cidade, mas por causa dos risinhos, das piadas e das ofensas pesadas dos colegas de matadouro, mulatos e negros como ele. Esse era o desprezo que lhe dizia respeito.

    Aí ele perdeu a confiança em si mesmo, disse meu avô. Aquela mão que jamais havia tremido agora jogava a faca contra os ossos. E ele que nunca afiara o facão sem ter desmanchado uns três ou quatro animais precisava afiá-lo seguidamente.

    Sentia-se triste e solitário, acabado.

    Tinha o carinho da mãe e os afagos da namorada, mas a vergonha, que era muita e doía tanto, ele não poderia compartilhar com ninguém.

    white and blue soccer ball on green grass field during daytime

    O jogo seria no domingo.

    O acidente deu-se no final da manhã de sábado, quando estavam por fechar. Os outros já tinham saído, mal tocara o sino, mas ele ainda estava lá, sozinho, trabalhando. Não poderia acompanhá-los até o bolicho para a cachaça de todo o sábado porque sabia que não mais tinha mais direito a um lugar na beira do balcão. Não ouviria nem contaria piadas. Nem cantaria aquelas marchinhas. Não mais teria o direito de pedir emprestado o cavaquinho ao dono do boteco. Estava acabado para ele, era um vendido.

    Creio que foi uma lágrima, dizia o meu velho, que causou o acidente. Ele não dominava a faca como antes e aí, no instante em que a lágrima lhe toldou a visão, ele perdeu o comando da mão.

    Estava desossando uma carcaça no chão, como gostava de fazer, sobre a laje ensanguentada. Usava não só as mãos, mas também os pés descalços, para firmar a ossamenta. Quando a faca escorregou, ele não sentiu nada além de uma pequena ardência, quase uma cócega, na parte de dentro do pé esquerdo. A faca escapara e correra ao longo de todo o seu pé, do dedão ao calcanhar, abrindo um talho comprido. No primeiro instante, achou que tinha sido coisa pouca, mas então o sangue começou a manar, grosso, vermelho.

    Sozinho no pavilhão, ele escutava apenas o roçar da vassoura do negro velho que fazia a limpeza do pátio.

    Correu ao seu armário e pegou as botinas. Felizmente tinha vindo com elas. Quero dizer, viera com as botinas que usava nos sábados porque ao levantar, naquela manhã, não se dera conta de que era um homem marcado e que, por isso, não poderia ir para a cachaçada. Calçou-se. Rapidamente acabou o trabalho, sem se preocupar com o fio da faca, sem atentar para as pelancas grudadas nos ossos. Precisava ir embora logo. No vestiário, ao tirar o avental, notou que o sangue já escapava por entre os cadarços. Voltou ao pavilhão, tirou o calçado e verteu o sangue sobre a laje. Observou o ferimento: perdia sangue ainda. Lembrou-se de fazer um torniquete: pegou uma guasca. Tinha prática naquilo, não passava mês sem que alguém se cortasse feio. Ao sair, levava no bolso um pedaço de tripa seca. Já sabia o que teria de fazer. Na calçada, piscou os olhos para a luminosidade baça do dia e saudou o carroceiro que levaria a carne ao Mercado, mas não teve resposta. Aliás, o negro, acintosamente, virou-lhe a cara.

    Foi direto para casa. Almoçou e deitou-se, mas sem tirar as botinas, e manteve o pé sobre a guarda da cama.

    A mãe dele saiu do quarto com a sombrinha pendurada no braço:

    – Por que tu tá desse jeito, com as perna pra cima, se recém almoçaste?

    – Pra descansar os músculos, mãe. Amanhã tem jogo.

    – É, mas isso deve de fazer mal pro estômago. Tem tempo, faz isso mais tarde.

    – A senhora vai sair?

    – Sim. Vou benzer o filhinho da Matilde. O guri anda com a barriga floxa faz uma semana.

    Quando sua mãe saiu, ele calculou que teria meia hora no máximo. Levantou-se, pegou a bilha e verteu água na bacia de latão. Foi depois para baixo da bergamoteira florida, no pátio,

    Lavou o pé. O ferimento já não sangrava. Voltou à sala. Procurou no guarda-louça o caixote de marmelada no qual sua mãe guardava as coisas de costura. Escolheu uma agulha que servia, de furo largo. Pegou debaixo do colchão sua faquinha afiada e com ela tirou um tento da tripa, fino que nem barbante. Meio metro, mais ou menos. Daria. Então costurou o lado do pé, do dedão ao calcanhar. Uma costura bem apertada. Guardou a faca e recolocou a caixa de marmelada no guarda-louça sem portas.

    Calçou as botinas.

    Lembrou-se então da bacia suja debaixo da árvore. Correu até lá. Chegou justamente a tempo de jogar a água em cima do canteiro porque sua mãe já estava entrando pela cozinha. Passou a mão para limpar uns poucos respingos vermelhos.

    – Ué, já tomaste banho? Tão cedo?

    – Não, mãe, eu só lavei as mãos e o rosto.

    – Tu tá meio esquisito, hoje, guri!

    – É, tô preocupado com o jogo de amanhã.

    – É o que eu sempre digo: não tem bicho mais burro que homem. Durante a semana passam se gastando lá no serviço e no fim de semana, que Deus fez pra gente descansar, se metem na gandaia com as sem-vergonhas ou na cachaça. E agora, pra piorar, ainda tem esse tal de jogo de bola. Mas burras mesmo são as mulheres, que nunca deixam de parir outros homens.

    a person laying in bed with their head on a pillow

    Ele deitou-se e afundou num sono pesado, inçado de pesadelos. Sonhou que estava em campo, mas que não conseguia correr porque não tinha mais o pé esquerdo. E pela volta, por trás da cerca, homens riam e debochavam e gritavam: aí, perneta vendido, agora mesmo é que eu quero te ver fazer um golo.

    Foi acordado pela mãe, à tardinha.

    – Tá na hora do banho.

    – Não vou tomar banho hoje, mãe.

    – Ué, por quê? Deste agora pra relaxado? E a tua noiva, o que vai dizer?

    – Não vou até lá, mãe. Tô meio cansado hoje.

    – Não é nada disso, guri. Vai ver que tu brigou com ela! Alguma coisa tu tá tentando me esconder, mas eu vou descobrir porque a mim tu não me engana. Eu te conheço desde que não tinhas dentes e fazias cocô preto. Não te esquece que eu te fiz dentro da minha barriga. Sei tudo de ti, até mais do que tu mesmo. Agora, anda tomar banho antes que eu te meta a vara de marmelo.

    Quase não dormiu naquela noite. Só fechou os olhos quando viu, por entre os postigos, a chegada do sol, que nascia lá para cima, na lomba da Quinze.

    Almoçou cedo e saiu para o estádio. Teve sorte porque um carroceiro lhe ofereceu carona. Era um mulato claro que não parou de falar todo o trajeto. Pedia-lhe golos, muitos golos, porque o negócio era arrebentar com os almofadinhas da Avenida. Foi em silêncio, calado, porque não poderia dizer que faria golos, sim, muitos golos, mas que esses golos seriam para o time dos almofadinhas da Avenida.

    Pediu ao carroceiro que o deixasse a uma quadra do campo. O homem insistiu, queria ter o prazer de levá-lo até o portão. Não! Que parasse ali mesmo. Precisava passar antes na casa da namorada, mentiu.

    Desceu e fez o resto do caminho a pé. Meio às tontas procurou o portão de entrada dos sócios e atletas, onde jamais negro ou mulato algum havia pisado, a não ser os faxineiros, e, embaraçado, teve que dar uma longa explicação ao porteiro, um sujeito de bigodes de pontas reviradas. Estava nisso quando foi abraçado por um senhor muito alto, com jeito de alemão, que o arrastou até os vestiários e gritou para os homens seminus que ali estava o novo companheiro, o grande craque. Procurou um canto de banco, onde estava mais escuro, para tirar a roupa. Tinha vergonha em mostrar sua nudez marrom a todos aqueles brancos. O mesmo sujeito claro voltou, falando alto e gesticulando, e o rapaz demorou a entender que ele queria saber o número do seu pé para lhe dar chuteiras novas. Agradeceu. Disse que jogaria com as suas, velhas, desbeiçadas. O homem dos olhos azuis riu, disse que sim, mas que, pelo menos, era preciso dar um brilho nelas. E ordenou a um negrinho, que estava sentado em sua caixa de engraxate, que lustrasse aquelas chuteiras acalcanhadas.

    gray steel locker room inside the room

    Como se vindo de outro mundo, distante, chegava-lhe aos ouvidos o zunzum do próprio vestiário, marcado aqui e ali por risadas nervosas. Lento, renitente, sem olhar para os lados, envergou a camiseta amarela que desde menino se acostumara a repudiar.

    Percebeu, quando o engraxate ergueu para ele uns grandes olhos cheios de uma luz negra, que o menino tinha visto o enorme talho costurado com tripa. Colocou o pé direito sobre o esquerdo enquanto vestia as meias brancas. E depois permaneceu cabisbaixo enquanto o guri lhe lustrava as chuteiras.

    – Vai doer muito, seu moço.

    – Cala a boca, moleque! Cuida do teu trabalho!

    O menino continuou a lustrar, levantando de quando em quando os olhos para o jogador.

    – Tá pronto, seu moço.

    Então, espantado, ele viu o garoto se abaixar e beijar o bico reluzente da chuteira.

    – Não importa de que lado o senhor vai jogar. O que interessa é que o senhor é que vai fazer os golos.

    Então houve um lampejo, e apenas pelos olhos eles se entenderam: caminhavam contra o vento e o frio em uma interminável procissão de corpos vergados e rostos escuros, um atrás do outro, campo fora, tendo como destino lugar nenhum.

    two pairs orange-and-black Umbro shoes

    O que mais eu lhe posso dizer, meu amigo, perguntava meu avô neste ponto da narrativa. Pouca coisa, respondia ele próprio. Só que o mulato fez uma festa. Marcou três. E olha que os caras bateram nele! Saiu com os olhos escondidos debaixo de inchaços, um talho no supercílio. Apanhou muito dos seus antigos companheiros, mas em momento algum pediu para sair, como fazem esses frescos de hoje em dia. Foi até o apito final. E esbanjando categoria. Parecia um toureiro se esquivando daqueles animais furiosos. E dava chapéus neles, bola pelo meio das pernas então era mato! E os caras chutavam não a bola, ele, e ele só dava de banda, e a chuteira passava. Três golos, sabe o que é isso?

    Foi o último a deixar os vestiários porque não queria que lhe vissem a meia empapada de sangue. Naqueles tempos eles próprios tinham que arranjar quem lavasse o fardamento. Saiu do estádio sem que ninguém, além do engraxate, tivesse descoberto seu segredo.

    E como não queria que mais ninguém soubesse, especialmente sua mãe, foi até a casa onde trabalhava sua namorada e por sobre o muro, no fundo do pátio, entregou a ela a meia encarnada, dura de sangue seco, como uma espécie de dote, penhor, hipoteca.

    Lourenço Cazarré é escritor


    [1] Pode ser uma imagem extremamente desagradável para quem, como eu, detesta cãezinhos; mas que lá estão sempre limpinhos e escovadinhos, isso é indiscutível que estão.

    [2] Note-se que este “veiculo” tanto pode ser um pequeníssimo Smart como um colossal camião de caixa aberta todo pingado das obras. Não há volante que a Celina não maneje.

    [3] O meu galo de briga da Malásia, e melhor amigo do Sebastião.

    [4] Quando as pessoas se preparam para votar num Partido ao qual desconhecem o nome da Cabeça de Cartaz, digam-me se as coisas podiam estar piores.

    [5] Liberdades poéticas, claro.


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  • O sal e o açúcar

    O sal e o açúcar

    Entro pela noite. Gato pardo, deslizo pela cidade. Contorno-a. Esgueiro-me pelas estradas que a cintam. A hora vazia convoca os sentidos. A passada forte. A respiração profunda. A noite perfumada e fresca. Oliveiras, pampilhos, amendoeiras, canaviais, salgados. Maresia.  O piso vermelho iluminado. Encontro a maré baixa e viro na rua em cotovelo. Um pequeno bando de flamingos alimenta-se preguiçosamente na água turva das salinas. Surpreende-me que se alimentem à noite. Nunca tinha visto. Detenho-me a observá-los. Fotografo-os. Dois cães com tamanho de gato e ladrar soprano surgem do nada. Ameaçam-me como podem. Atrás deles um homem de andar ligeiro. Invulgarmente magro. Calças arregaçadas até ao joelho, balde numa mão, cana de pesca na outra. Pés de lama. Assobia e grita:

    – Pipoca! Micas! Já para aqui. Eles não mordem. Boa noite.

    pink flamingo

    Devolvo o cumprimento. O homem pára  e pergunta se estou a fotografar as muralhas. Respondo que sim. Não tenho a certeza de haver motivo para continuar a conversa. Mas o homem dá alguns uns passos na minha direção. Pergunta-me se sou de cá.  Não sei porquê, digo-lhe que não.

    – A parte amarela não pertence à muralha. Foi um enxerto que ali puseram. Era para ser uma fábrica de cerveja, mas nem uma mini! – Diz por entre uma gargalhada desdentada. – É verdade, menina. Só tem o nome. Cerveja, nem uma gota. – E avisa-me de que não devia andar por ali sozinha àquela hora. Diz que à noite é muito deserto. Não costuma haver problemas, mas nunca se sabe. E sem me dar tempo para retorquir, pousa o balde. Encosta-lhe a cana. Puxa de um cigarro. Acende-o:

    – Antes de entrar em casa. A minha Maria não gosta que eu fume. Marafa-se toda.

    E, entre baforadas, explica-me que as casas no outro lado da estrada são quase todas da família dele. Já os avós ali viveram. Eram marnotos. Trabalharam toda a vida nas salinas. Fizeram ali “umas barraquinhas para ter onde enfiar a cabeça”.

    gray smoke digital wallpaper

    – Era no tempo da fome, menina. Muita miséria. A vida era custosa. A minha mãe tinha seis filhos para criar. Uma vagoneta de sal cortou-lhe dois dedos e no dia a seguir já lá andava.

    Diz-me que agora não é assim. Já não vivem do sal. As coisas estão melhores. Não são ricos. Ele tem de ir ao mar de vez em quando para dar uma ajuda. Mas é comerciante. Vende nas feiras. Dá para as sopas e deu para pôr a filha a estudar.

     – É enfermeira. Vive numas boas casas. – explica, num misto de orgulho e felicidade.

    Apaga o cigarro. No ar, um odor a fatias douradas sobrepõe-se ao da maresia.

    – Vou andando que já há jantar. As fatias da minha Maria e uma pelangana de café? É o “desimagina”. 

    Despedimo-nos. Vejo-o entrar numa casa de madeira, pobre, antiga, mas cuidada. À porta uma roulotte com imagens do Noddy, do Mickey e do Shrek. Letras garrafais com o nome da família. Logo abaixo: “Pipocas”,  “Algodão doce”.

    white ceramic bowl on pink textile

    Tiro mais algumas fotografias. Já não há flamingos. Capto a inútil fábrica da cerveja. Enquadro a lua. O quarto crescente hasteado sobre as muralhas remete para a sua origem.

    De dentro de casa, ouvem-se risos. Uma mulher vem à rua deitar comida aos cães.

    Penso nas rabanadas. Cheiram a afeto temperado com uma pitada de sal e muito açúcar. Penso nas vidas das pessoas que habitaram e habitam este lugar à margem da cidade. Em como trouxeram o sal e trazem agora o açúcar às vidas dos outros.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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  • Espelho meu…

    Espelho meu…

    Mora cá em casa um espelho a que poderia chamar antigo, vintage, relíquia. Mas que, na verdade, é apenas um espelho velho, antiquado, com manchas cinzentas. Um espelho de casa de banho, ovalado, com um rebordo de vidro castanho. Em ambos os lados lâmpadas. A luz filtrada pelo mesmo vidro que desenha o contorno do objeto. Adquirido em finais dos anos 70, reflete o melhor design da época. Com luzes difusas a sofisticar o ambiente. A suavizar os contornos de quem nele se mirava. Uma lavadela de cara, um jeito ao cabelo e voilá, lindos. O nosso espelho nunca nos falhou. Nada tem a ver com os seus pares que,  entalados entre medonhos armários branco-enfermaria, se vingavam lançando-nos uma luz gélida e cruel. O  velho espelho foi sempre generoso. E, por isso, quando chegou a altura de mudar de casa, já a oxidação começava a fazer os seus estragos, não ficou para trás. Mudou-se também. Não se pode abandonar tamanha lealdade. Pendurámo-lo novamente. E ele, grato, retribuiu devolvendo-nos, como sempre, uma imagem suavizada de nós próprios. Até que as pessoas desapareceram. A luz apagou-se. A  casa ficou desabitada. E ele ali. À espera. Sem rostos para acarinhar. Os anos foram passando, passando…

    empty living room

    Um dia, porém, veio a decisão de regressar ao lar da adolescência. De o reorganizar. De o preparar para acolher uma nova geração. Obras aqui, móveis novos ali… e o espelho, no lugar de sempre. Retiro-o para pintar a parede, decidida a substituí-lo.  Mas volto a colocá-lo no seu lugar. ⎼ É só até comprarmos outro. ⎼, vou repetindo, quase certa de que não o vou fazer. Tem cada vez mais manchas e, ainda assim, disfarça as minhas.

    Adquiro um espelho novo. Moderno. Bonito. Adequado ao resto da  decoração. Mas, no momento de retirar o antigo, vacilo. Acredito que me devolve o olhar. Aproximo-me um pouco. Depois um pouco mais. Olho fixamente e não sei de quem são  as rugas que vejo. Os cabelos brancos. De quem é o sorriso complacente. Serão meus? Serão do meu pai? Da minha mãe? Terá o espelho guardado as nossas memórias? Afasto-me um pouco. Estico-me. Alongo o pescoço. Procuro a imagem de uma miúda escanzelada, loira, de cabelo escorrido. Em bicos de pés, como se estivesse de saltos altos. E o espelho não tarda em mostrá-la. A camisa de noite de algodão, comprada na Voga. Comprida, fundo branco, salpicado de pequenas flores em rosa claro,  rosa vivo e rosa velho. Três a três.  Uma mão atrás das costas a ajustá-la ao corpo. A outra a apanhar o cabelo. Sente-se crescida.  Acha-se muito bonita. Quando tiver 30 anos vou ser assim,  pensa.  A memória desliza-me os dedos pelo cabelo, pelas faces sardentas, pelo algodão macio da camisa. Quando tiver 30 anos…

    Decido não me desfazer do espelho. Quero preservar as imagens que guarda. Memórias  que já só nós dois partilhamos. Só ele se lembra da menina que fazia as tranças à sua frente. Da adolescente a experimentar a maquilhagem da mãe. A ensaiar com um lápis os movimentos para fumar com estilo. A praticar olhares sedutores, de aparelho nos dentes. A testar visuais para as saídas de sábado à noite. E só nós os dois sabemos que se um dia a saudade for insuportável, bastará sussurrar-lhe os nomes dos que partiram e ele, sempre leal,  trá-los-á em meu auxílio. Ficaremos os dois cá em casa. Cobertos pelos sinais da idade que alastram nos corpos de ambos. O pacto está feito: olharemos com benevolência as manchas um do outro. Espelho meu, espelho meu…

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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  • A que cheira Izmir?

    A que cheira Izmir?

    A nuvem que envolve a baía pinta a cidade de uma cor parda que não engana. Izmir cheira a poluição, a borracha queimada e a tubo de escape. Mas, no grande caos que acontece dentro desta cúpula, somos interpelados por outros odores que se nos colam à roupa, ao corpo, ao cabelo. Que nos entram pelas narinas e se fundem no nosso cérebro, criando uma paisagem única. Izmir cheira a tabaco, a dejetos de gato, a miséria e a dinheiro da emigração. Cheira a café acabado de moer, a kebab, a especiarias, a chá e a perfume. Mas cheira, sobretudo,  a orgulho, a amor à pátria e a hesitação entre a tradição e a mudança. Seis milhões de pessoas. Uma cidade. Muitas almas. Muitos corpos a viver concomitantemente no mesmo espaço e em universos distantes. Como se cada um destes seres fosse ele próprio apenas um aroma. Suficientemente forte para se impor e suficientemente difuso para que nada o possa impedir de fluir, de ser como é, independentemente do que o rodeia.  

    Izmir cheira a tradição islâmica. A incontáveis mesquitas. E, a apenas alguns metros destas, cheira a prostíbulos.  Abertos em pleno dia. Tocas escuras. Imundas. Música insinuante. Espelhos. Muitos espelhos. Couro negro e encarnado. Mulheres apáticas. Cigarro na mão. Perna cruzada. Vestidos ridiculamente pequenos. Olham em busca de clientes. Na rua, mulheres de hijab recolhem plástico e cartão. Formigas que arrastam atrás de si sacos gigantescos que são simultaneamente coletores, berço, creche. Corpos mirrados que arrastam a vida. Vergados. Olhos de fome.

    two mosque minarets under calm sky

    Os vencidos da cidade. As prostitutas. Os cães abandonados. Os mendigos. Os que vendem roupa cheia de nódoas, puída, mas briosamente passada a ferro. Os que a compram. Gente que escorre dos bairros miseráveis que se erguem nas colinas em torno do centro.

    Nas  avenidas, centenas de lojas de noivas. Vários pisos. Modelos de contos de fadas. À porta, uma mesa de plástico, três homens. Chá e amostras de tecido. Faz-se negócio. Ao fundo, a transação é outra.  “Night clubs”, onde noivas felizes de outrora vendem um sonho perdido. A esperança, a crença numa vida feliz a dois, tão valorizada, tão presente nas montras sumptuosas. Imagens radiantes de mulheres princesas. Corpos dormentes de mulheres tristes.

    Desloco-me para os arredores. Ao passar por um centro comercial, o motorista que me conduz enumera os nomes das lojas. Sem surpresa, as mesmas que encontramos em qualquer cidade europeia.  Os olhos dele brilham. A voz, porém, muda:

    – Muito barato para vocês. A Turquia é um paraíso para os europeus. É um inferno para os turcos.

    É um homem simpático, de meia-idade. Tem boa aparência. Se tivesse de adivinhar, diria que vive bem. Mas a conversa continua e explica-me exatamente o que é o inferno de se ser turco na Turquia.  A conversa fará eco na minha mente durante o resto da viagem. Faz ainda. Percebo agora a  abundância de malas de viagem de contrafação que se vendem por todo o lado: nas boutiques, nos supermercados de esquina, nos bazares, nas sapatarias, nas farmácias. Percebo o enorme desejo de partir. A necessidade de ter as malas sempre à mão.  De não perder a oportunidade.

    assorted-color spices

    Trânsito louco. Travagens ruidosas. Carros a cair aos pedaços. Viaturas de luxo. Motas. Carrinhas modernas, em que bancos de jardim garantem que cabe sempre mais um. Jovens de minissaia, tatuadas, cabelos coloridos, caminham com amigas que mostram apenas o rosto. Anúncios a clínicas. Estrangeiros e emigrantes com botox até à alma. Cabeças rapadas a exibir implantes capilares recentes.

    E, no meio disto tudo, uma gente prestável. Afável. Que nos momentos mais inesperados saca de um frasco de perfume e se borrifa até onde os braços chegam. Enquanto nos atendem na receção de um hotel ou ao balcão de uma loja. Enquanto nos abrem a porta do táxi. A meio de uma conversa na rua. Os frascos aparecem e  desaparecem num passe de mágica. Perfumam o corpo, a casa, o carro,  os escritórios, as esplanadas… Sim, Izmir cheira a sobrevivência. Mas também cheira a perfume. A perfume, a gente boa… e a gatos.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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  • E ergue-se, magnífico, rodeado de relâmpagos

    E ergue-se, magnífico, rodeado de relâmpagos

    Ó cores viscerais que jazeis subterrâneas

    Fulgurações de azul, vermelhos de hemoptize,

    Reprezados clarões, cromáticas vesânias,

    No limbo onde esperais a luz que vos baptize,

    As pálpebras cerrai, ansiosas, não veleis.

    Camilo Pessanha

    POEMA FINAL in CLEPSYDRA (1920)


    Lembram-se? Continuamos aqui as contribuições deste mês para a grande charada que vos sugeri o mês passado a título de novíssimo ensaio científico: o que é que estabelece pontes tão estreitas entre o Ornitorrinco e o Urso Polar?

    Deixámos para trás os Ornitorrincos ocultos debaixo de água, iguaizinhos a outros tantos Ursos Polares, a caçar tudo o que precisam de comer por dia e com sistemas, também remeniscientes dos que existem no Urso Polar, de  blindar olhos, ouvidos, e narinas, de cada vez que voltam a mergulhar.

    Mas então, se debaixo de água não vêem, não ouvem, nem cheiram – como é que se alimentam, por muito que andem por ali a cirandar durante  doze horas?


    A forma de caçar do Ornitorrinco foi outro ensaio ousado da Natureza que se revelou muito bem sucedido. E, como costuma acontecer nestas aventuras, o monotrémato semi-aquático não foi o único bicho onde a evolução testou o potencial de sucesso do sistema: depois do mergulho, com os orgãos dos sentidos bloqueados automaticamente, estas criaturas detectam as suas presas, tanto animais como vegetais, através de um radar semelhante… ao dos morcegos[1].

    Pois, morcegos.

    Nada a ver.

    Ora toma que ensaio é ensaio e onde corre bem já não se mexe.

    brown and black bat opening mouth

    No caso específico do Ornitorrinco, o radar vem de centenas de células altamente especializadas do seu famoso bico de pato, que detectam as ondas de energia eléctrica que qualquer ser vivo emite, sobretudo quando está em movimento, mesmo que esse movimento seja só tentar esconder-se dentro do lodo e depois ficar lá muito quietinho. O radar dos monotrématos[2] é de tal forma preciso que os entendidos lhe chamam “o sexto sentido.”

    Os animais não costumam ter sextos sentidos.

    Será porventura que os Ursos Polares…?

    Faça-lhe justiça desde já: o Urso Polar também passa vários minutos debaixo de água nas suas expedições de caça, e tem vários mecanismos específicos que lhe permitem fazer proezas submarinas que mais nenhum mamífero caçador de focas faz. Mas não, desta vez a charada não vai por aqui. O Urso Polar não caça com radar. Tem outros truques na manga. Lá iremos.

    Agora, e antes de mais nada, acalmem-se por fim os ânimos e vamos por fim à pequena lista de tudo o que combina com os patos. Se o pressuposto desta grande charada estiver correcto, mais cedo ou mais tarde o que tem a ver com os patos há de ter a ver com o Urso Polar.

    Os Ornitorrincos têm bico de pato[3]. E, nos dedos das patas da frente, possuem uma membrana interdigital destinada a facilitar a natação, que é também igual à dos patos[4]. E note-se que todo este conjunto da pata e do pé é por regra completamente preto[5], o que o torna mais igual ainda ao que os patos ostentam como maquinaria de grande classe para nadar durante horas se fôr preciso[6].

    Outra característica dos monotrématos que lembra os patos é a sua cobertura: faz-nos logo recordar a brilhante expressão portuguesa “água em pena de pato”, que usamos quando queremos referir-nos a qualquer ideia que, por maiores e mais inteligentes que sejam os nossos esforços, argumentos, e metáforas, não conseguimos nem por nada meter na cabeça dos nossos alunos, ou dos nossos filhos, ou dos nossos cães, ou mesmo dos nossos maridos[7]. É que, embora sejam mamíferos, e portanto estejam cobertos de pêlos, e não de penas, também os Ornitorrincos têm o corpo revestido de um óleo que repele a água, à semelhança dos patos.

    Não escondendo nada neste jogo, note-se desde já que o pêlo da lontra, sobretudo o da lontra-marinha, outro mamífero que também passa a vida dentro de água, está igualmente preparado com grande engenho para afastar as águas. O caso mais interessante é sem dúvida o da lontra-marinha americana[8], destinado maioritariamente a proteger os animais das águas gélidas do Pacífico Norte junto à costa da Califórnia mergulhada nas mesmas brumas que constantemente engolem San Francisco, sobretudo durante os meses de Inverno. Esta lontra-marinha tem o pêlo mais denso de todos os mamíferos terrestres[9], mil vezes mais denso do que o cabelo humano, semeado a uma média de um milhão de pêlos por polegada. E, como não podia deixar de ser, também este pêlo formidável está revestido de óleo hidro-repelente. Aliás, é exactamente esse óleo que torna os casacos, os chapéus, ou as malinhas de pele de lontra, todos sempre tão lustrosos e macios, tão assombrosamente resistentes ao tempo. O que faz com que sejam vendidas pelo valor mínimo de cem dólares por lontra sem defeito no corte[10].

    brown and black seal in water

    Mas, lá por ser tão fino na passerelle, o óleo das lontras-marinhas não é um óleo tão potente na Natureza como o dos Ornitorrincos, que saem da água praticamente secos. Isto é porque há certas coisas que as lontras não possuem, por muito que se tenham adaptado à sua vida marinha com aquela estranha dieta estrita de ouriços do mar que elas próprias partem com dois seixos enquanto nadam de costas, absolutamente encantadoras[11]: nenhuma lontra do mundo, nem nenhum outro mamífero do mundo dado a passar grandes temporadas na água, possui as duas camadas de pêlo do ornitorrinco. Estas duas camadas cumprem duas funções diferentes. A camada externa repele a água, e a camada interna mantém uma câmara de ar sempre presente entre a pele do animal e o seu pêlo.

    Meninos, para que é que isto serve?

    Ah, isto é incrível.

    E, por incrível que pareça, não deixa de ser verdade: esta dupla face é pura qualidade de vida. Não implica nenhum esforço, está sempre ali, e serve para o Ornitorrinco estar sempre seco.

    Sequinho sequinho, sequinho sequinho. Com esta dupla face nunca molha o rabinho.

    Desculpem a leviandade mas não resisti. Eu sei que parece publicidade a fraldas para bebé. Agora olhem, façam publicidade com esta história do Ornitorrinco e vão ver se não vendem fraldas aos milhares.

    Retomando a seriedade que a charada merece.

    É o Rei, sem sombra de dúvida. Nisto de ser um mamífero semi-aquático não há que negar que o Ornitorrinco é o rei. Mas, já que veio a propósito: querem inserir aqui outra camada de explorações evolutivas?

    towels hanging on clothes line

    O pêlo imensamente denso da lontra-marinha cobre o animal para o proteger das águas gélidas do Pacífico. Sem dúvida. E, quando adaptado às pessoas, é indisputácel que esse mesmo pêlo nos cobre de casacos flexíveis, leves – e muito quentes. Mas e na Natureza como é, a manta térmica da lontra é mesmo o pêlo?

    Não é bem.

    Sabem por que é que é um pêlo muito grosso e muito rugosso, que a lontra usa o mais emaranhado possível? Porque este é o seu truque para estar sempre a capturar, mergulho após mergulho, ouriço após ouriço, mais e mais e mais bolhas de ar, que as rugosidades do pêlo, sempre em movimento quando submersas, empurram automaticamente para baixo: por baixo de toda aquela floresta, junto à raiz, a pele da lontra-marinha está quase seca. E, enquanto não estiver toda molhada, a lontra-marinha nunca estará toda arrepiada.

    Há um padrão.

    O sistema da lontra-marinha é mais rudimentar do que o do Ornitorrinco, estes dois nadadores vivem nos antípodas um do outro e nunca se cruzaram, mas é evidente que há um padrão.

    Quanto ao Urso Polar…

    O Urso Polar molha-se, mas não se molha assim tanto como isso; e a seguir, quando se instala a devorar a sua foca em cima do seu bloco de gelo, seca logo num instante. Claro que também tem o pêlo oleoso. Ainda por cima, esse pêlo por onde a água escorre depressa fica exposto à secura dos ventos do Àrtico assim que aquelas trezentas toneladas saiem da água.

    polar bear on snow covered ground during daytime

    As trezentas toneladas contam. Primeiro que um mamífero desta envergadura sinta frio é preciso molestá-lo com águas muitíssimo mais frias do que as que têm por emblema umas lontras-marinhas do tamanho de um esquilo. E, para não deixar molhar um bicho acostumado a ambientes tropicais que no entanto vive dentro de água, claro de duas camadas de pele fazem todo o sentido.

    São tantas coisas tão bem feitas que as pessoas, pronto – a certa altura já não houve mesmo outro remédio senão inventar Deus.

    E esta foi a nossa grande lição de modéstia.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] Sistema de radar esse que, por seu turno, serviu de base à invenção do radar dos aviões, mas enfim. Isso já não são invenções da Natureza nem tirocínios pelo fogo da Selecção Natural.

    [2] Embora não capturem as suas presas na água, os únicos outros monotrématos que existem hoje, as misteriosas Equidnas, detectam as formigas e térmitas de que se alimentam através de um radar idêntico.

    [3] O tal bico onde estão alojadas as tais centenas de células do sexto sentido.

    [4] As patas de trás e a cauda são antes usadas como leme. Nos machos, há uma glândula de veneno injectável junto dos dedos de trás: embora seja raríssimo encontrarmos mamíferos venenosos, este é tão eficiente que mata cães e gatos em poucos minutos. Em terra, a membrana interdigital da frente retrai-se, para facilitar a corrida e a luta.

    [5] Claro que há excepções, e que há diferenças entre as excepções. Isto é Biologia, não é Política.

    [6] Os patos-bravos que fazem migrações mais longas podem ser obrigados pelas tempestades a pousar sobre as ondas. E, aí, em péssimas condições de navegação, podem mesmo nadar durante horas até aparecer terra à vista. Embora a história contada em A MARAVILHOSA VIAGEM DE NILS HOLGERSON ATRAVÉS DA SUÉCIA pela escritora sueca laureada Selma Lagerloff seja obviamente um trabalho de ficção, a migração dos patos-bravos aqui descrita não é ficcional de todo. A autora estudou-a cuidadosamente antes de escrever o livro, descobrindo ela própria fenómenos de resiliência e capacidade de corrigir rotas na água que desconhecia anteriormente.

    [7] Peloamor de Deus, não está aqui em causa nenhuma assimetria mal-intencionada. Falo daquilo que os maridos não entendem apenaas porque, como creio ser evidente e dispensar argumentos explicativos, nunca fui um marido a tentar desesperadamente explicar à minha esposa fenómenos que ela não consegue entender, já que o meu conhecimento lhe escorre pelas paredes exteriores do cérebro sem nunca conseguir lá entrar dentro, exactamente como “água em pena de pato”. Alguns exemplos: “querida, um bife do lombo e um bife de alcatra não são a mesma coisa só por ambos se chamarem bifes”; ou “querida, a tabuada dos quatro não é igual à tabuada dos oito só por ambas se chamarem tabuada”; e assim por diante.

    [8] Ou, pelo menos, sem dúvida o caso raro estudado com mais avidez. Há milhares de investigadores nos Estados Unidos, financiados por milhões de dólares. E estas lontras são umas completas malucas.

    [9] E também dos poucos semi-aquáticos que existem, pensando bem nisso.

    [10] Hoje em dia, a caça à lontra está severamente condicionada por cada estação, uma vez que o animal esteve quase extinto em 1900 por causa da febre dos casacos de peles. Os estilistas que querem construir modelos grandes preferem ter a segurança de lontras criadas em viveiro, que todos os anos lhes dão uma noção muito clara do que têm ao seu dispor. Dramas destes, ao menos, não infernizam a vida dos Ornitorrincos. Alguma vantagem haveria de ter ser-se yum bicho feio com um pêlo horrível.

    [11] Atenção, que este encanto é muitíssimo enganoso, porque as lontras-marinhas estão no topo da lista dos animais em que já se observaram rotinas mais sádicas. Por exemplo, roubar bebés-foca às mães que se distraem por um minuto para depois poderem andar a brincar com eles no meio das ondas, atirá-los ao ar, voltar a apanhá-los, deixá-los secar ao seu lado quando estão em terra – e manter estas práticas sempre com o mesmo bebé-foca durante uma semana, ou mesmo dez dias, obviamente muito depois de o brinquedo já estar morto.


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  • Eu só vim ver a Gloria Gaynor

    Eu só vim ver a Gloria Gaynor

    Ontem, em conversa com a filha de uma amiga, perguntei-lhe se já sabe o que quer ser quando for grande. Respondeu-me decidida que quer ser famosa. Voltei à questão: ⎼ Mas famosa como? Queres ser atriz? Cantora? Pianista? ⎼ Fiquei a saber que não tem preferência. Quer aparecer na televisão, usar roupas lindas com muitos brilhantes e ser rica. Não quer ter de trabalhar. Pareceu-me um excelente plano. Aos oito anos já percebeu que trabalhar é uma maçada sem glamour.

    No regresso a casa, a conversa trouxe-me à memória um acontecimento do verão passado. Era agosto e, junto à estrada, um cartaz gigante anunciava: “Gloria Gaynor, em Albufeira”. Não prestei muita atenção. Assumi que se tratava de mais um “tributo a”, designação recentemente encontrada para as bandas de covers. Confesso que a minha primeira experiência com estes supostos tributos foi também a única. Como diria o meu avô, que era um homem muito diplomático: ⎼ Está muito bem, sim senhora, mas pra mim tem avonde!

    Uns dias mais tarde, chamaram-me a atenção para o facto de ser mesmo um concerto da Gloria Gaynor. Custei a acreditar. Mas fiquei a saber que, aos 79 anos, Gaynor continuava a dar concertos um pouco por todo o mundo. 

    Entusiasmei-me. Não é todos os dias que vemos em carne e osso alguém cujas canções nos acompanham desde que nos lembramos de ser gente. A caminho da Praia do Pescadores, as ruas eram ribeiras de gente que escorria feliz em direção à diva. Lá em baixo, milhares de turistas esperavam pacientemente. Cantava-se. Conferiam-se conhecimentos ⎼  Lembras-te desta ….? E daquela …? – Para a maioria seria a primeira e a  última oportunidade de ver a grande estrela da Disco ao vivo.

    Por fim, os primeiros acordes. Gloria Gaynor subiu ao palco. O vulto branco soltou uma voz negra. Linda. Poderosa. Encheu a noite. Ficou bem clara a razão pela qual é uma superestrela. Mesmo os mais jovens estavam rendidos e acompanhavam. Reconheciam as letras de canções que foram sucessos ainda eu não era nascida. Por vezes, não na voz de Gaynor, mas em versões: – Esta é da Beyoncé! – … Enfim. São miúdos. Estão perdoados.

    Terminado o espetáculo, dei uma volta pela zona dos bares. Circulava-se como se podia naquele mar de gente em que não se ouvia uma palavra em português. Avancei até ficar presa entre um carro e uma jovem que descia a rua, trazida por uma corrente contrária à que me empurrava. Olhámos uma para a outra. Defeito de profissão, assumi de imediato que se tratava de uma aluna ou ex-aluna.  Olhámos uns segundos uma para outra, sem decidir se sorríamos ou não, até que a corrente voltou a empurrar-nos. Dois passos mais adiante, lembrei-me de quem era. Ainda olhei para trás. Seguia tranquilamente, de mão dada com um rapaz. Comentei com os meus acompanhantes. Também a tinham visto e ficado com a sensação de a conhecerem de algum lado. Percebiam agora quem era. Na verdade, ela não teria passado despercebida em qualquer outra rua de Portugal. No nosso país, esta miúda gira e pequenina enche estádios. Noutra rua qualquer, os fãs atropelar-se-iam por um autógrafo e uma selfie com a sua heroína. Não aqui. Não em Albufeira.

    Penso no que é afinal ser famoso. No contraste entre ser-se uma estrela mundial e uma estrela portuguesa. Recordo como há alguns anos, no auge da sua carreira, um grande comediante nacional dizia que para acalmar o ego bastava ir a Aiamonte. Passada a fronteira,  ninguém fazia a mínima ideia de quem ele era.  

    Lembrando o semblante da cantora, acredito ter visto no olhar dela o desejo de não ser reconhecida. Imagino-a aos 8 anos a sonhar aparecer na televisão, usar roupas lindas com muitos brilhantes e ser rica. Penso no contraste entre esse desejo de fama e uma expressão facial cansada que me diz “Por favor não me reconheças. Por favor deixa-me estar. Eu só vim ver a Gloria Gaynor.”

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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