A manhã acontece com a tranquilidade própria dos primeiros dias de setembro. Uma pausa entre o corrupio das férias e o do trabalho. O caminho quase deserto. A brisa fresca convida à preguiça no terraço. Um fundo azul-céu. O sol a derramar dourado sobre a paisagem. A luz a tocar ao de leve as copas verdes dos pinheiros mansos. Luminosas por fora. Sombrias por dentro. O vaivém dos pássaros a traçar linhas entre as árvores do mato e as do quintal. Os hibiscos floridos. Grandes. Alegres. Nas paredes, osgas gordas, moles, a aproveitar o que resta do verão. Um dia perfeito. Um velho passa e dá de vaia. Daí a uns minutos, outro. Aposentados. Indiferentes ao calendário. Os dias são apenas dias. O percurso diário, circular como o tempo: exercício, terapia, passeio, lugar de encontro.
O senhor da bicicleta passa para cima e para baixo, para baixo e para cima. Dá as voltas que a idade lhe permite e que o médico recomendou. Não perde a oportunidade para lembrar às duas amigas que passam que: – Já não era para estar aqui hoje! Uma pessoa tem de se mexer. Elas confirmam, acrescentando a importância de espairecer. E lá vão. Elas para baixo, ele para cima. Poucos minutos depois, novamente a bicicleta. Cruza-se, desta feita, com uma senhora roliça, peito de pomba, passada lesta e ar de quem sabe coisas:
⎼ Vem aí trovoada! ⎼ exclama.
⎼ Pois vem! ⎼ confirma ele, continuando a pedalar.
Olho para o céu e não vejo os sinais. Também não questiono. A moleza tomou conta de mim. Continuo refastelada a observar. Reparo como se cruzam, mas não param. Por hoje, estão conversados. Conhecem-se bem. Sabem das vidas, das famílias, das maleitas uns dos outros. Além disso, um pouco mais adiante, um vizinho instalou um cadeirão debaixo de uma árvore e passa ali boa parte do seu tempo, garantindo que todos ficam ao corrente das novidades.
Ocorre-me, entretanto, que há vários dias que não vejo uma das senhoras que por aqui costuma passar. Aguardo alguém que me possa dar notícias. Mais uma vez, a bicicleta. Aceno e pergunto se sabe o que é feito da vizinha. Conta-me que cegou. Que já não sai:
⎼ Não vê nadinha! ⎼ reforça.
Está morta, penso. Tão triste!
Um pé atrás do outro, uma pedalada depois da outra, um cumprimento, a frase que se atira sem esperar resposta: Está fresquinho!; É preciso é ir andando!; Ah, valente!; É p’rá medalha! Provas de vida. Garantias renovadas de que ainda se está aqui. De que se é. O que importa saber se vem trovoada? Por aqui, confirma-se que se está vivo, que se vê e se é visto, que se ouve e se é ouvido. Exercita-se a certeza que se desmancha cada dia.
A senhora que sabe coisas volta a passar.
⎼ Vem aí trovoada! ⎼ grito-lhe.
⎼ Pois vem! Ênã lhe disse, J’quim? ⎼ responde, olhando para o meu interlocutor.
⎼ Tá visto que sim. ⎼ diz ele com um sorriso.
Um para cima, outro para baixo.
Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve
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Emigrando do Oriente, os descendentes de Noé inundaram a planície de Chinear. Foi a conta-gotas. Primeiro chegou Cuche e seu filho Nimerod, um valente caçador diante do Senhor; depois o primo, a seguir o sobrinho do cunhado, mais tarde o sogro do tio, pouco depois o genro do neto, e as respectivas mulheres, e tantos e tantos outros que, em pouco tempo, era tamanha a batelada de parentescos cruzados que já ninguém entendia ou percebia quem era quem em relação a Noé. Pouco importava: constituíam um povo uno e navegavam pelo quotidiano ao sabor de uma única língua.
Havia um clima aprazível, sem alterações, a paisagem se mostrava venusta, da terra manavam gados e verduras, os homens entretendo-se em labores e muito ócio, as mulheres em desvelos pelos filhos e comidas, e os velhos gozando resplandescentes tardes de cavilhadas num chão sempre húmido de refrescantes e curtas chuvas. Harmonia, paz e sossego reinavam naquelas paragens. O paraíso terreno pós-Éden. Andavam assim todos satisfeitos em suas vidinhas, sem malquerenças nem segregamentos.
Enfim, por tudo isto, vivalma queria arredar pé daquela planície, que de arraial passara a lugarejo, de lugarejo evoluíra para póvoa, de póvoa transmutara-se em aldeota, de aldeota crescera para vilarejo. E chegando-se a vila, quis-se mais. «Faça-se uma cidade», disse Nimerod. E a cidade fez-se. Muralhas, fortalezas, casas sólidas, poisos de descanso e de ócio. E o povo viu que era coisa boa, feita apenas pela mão do homem, sem qualquer ajuda nem orientação divina. E ambicionaram mais. «Uma torre, cujo cimo atinja os céus», decretou Nimerod, aplaudido por conselheiros.
Para isso, aditou alguém, havia de se encontrar alternativa às pedras. Nomeou-se portanto comissão adequada, task force como sói dizer-se agora, escolhendo para a liderar ancião hirsuto nos modos, mas de alva e imaculada barba, que, à quarta semana de investigações e experiências, inventou os tijolos, cozidos em fogo, e ainda um betume de asfaltos vindos mar e das fontes de água da terra de Sinar. «Assim, havemos de tornar-nos famosos para evitar que nos dispersemos por toda a superfície da Terra», declarou logo Nimerod.
Um arquitecto foi então nomeado para orientar uma grandiosa e não pouco majestática torre. Andando a obra em bom ritmo, os tijolos tão sólidos, que nem ferro precisavam, e já se alcançara os quatrocentos e sessenta e três cúbitos de altura, foi Deus servido descer à terra e, vendo aquela empreitada, vociferou: «Não gosto disto». «Mas quando os acabamentos se fizerem, vai ficar uma beleza», argumentou o arquitecto. «Não é uma questão de estética. Se principiarem desta maneira, coisa nenhuma vos impedirá, de futuro, de realizaram todos os vossos projectos», atirou o Senhor. «E qual é o problema? Se somos semelhantes a Vós, também podemos construir nesta terra sob os céus algo idêntico ao que presumimos exista nos próprios céus. Estou mesmo a conceber uma broca para, quando nos abeirarmos da porta, a furarmos para saber se é feita de barro, de latão ou de ferro», ainda replicou o arquitecto. «Pode ser útil para subirmos mais», acrescentou.
Deus saiu do sério: «Mas que estupidez é essa?! Era o que faltava quererem-me igualar. Os humanos vão para o céu quando eu os arrebato da Terra. E ponto final nesta conversa e nesta obra. E é para já».
Temeroso destas divinas ameaças – até porque, após o Senhor se ter eclipsado, trovejou rijamente, e um relâmpago estilhaçou um parapeito e deslocou um andaime –, o arquitecto remeteu um relatório circunstanciado às autoridades, solicitando que, com urgência e de forma clara, lhe indicassem se o seu projecto deveria ser reequacionado.
Horas depois, uma lacónica missiva de Nimerod chegou às mãos do arquitecto. «Em reunião de emergência, malgrado o que está em causa, e considerando as palavras do Senhor, informo que, sobre a questão em apreço, a nossa decisão é peremptória: NÃO, PARA JÁ». Portanto, assim sendo, lido o escrito, e sobretudo as maiúsculas, o arquitecto continuou obedientemente a obra, e sacou então de uma broca para furar os céus, convencido estava de o amanuense ter usado uma preposição.
Mas não: o amanuense apenas cumprira a norma de um novo acordo ortográfico que estabelecera a supressão do acento agudo na forma verbal do presente do indicativo do verbo parar.
Equívoco grave, como sabeis: com o barulho da broca entrando pelos céus, Deus irritou-se e tratou de confundir a língua deste povo. Os erros de construção sucederam-se, a torre colapsou, as gentes desentenderam-se e todos os descendentes de Noé acabaram se dispersando em caótica algaraviada pelos quatro cantos do Mundo, incluindo para o pequeno pedaço da Europa onde hoje ainda se fala português, e se escreve em acordo ou em desacordo com o tal acordo ortográfico…
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Logo após as Olímpiadas de Tóquio, em 2021, escrevi um artigo – intitulado “É a Oceania, estúpido!” – no qual afirmava uma obviedade pouco divulgada: o Continente vencedor da maior competição esportiva do Planeta era aquele formado por dois países de rarefeita população (Austrália e Nova Zelândia) e mais doze pequenas nações espalhadas por incontáveis ilhas. Agora, após os Jogos Olímpicos de Paris, vejo aquela afirmação assegurada por números ainda mais expressivos.
Mas vamos por partes, como dizem os legistas!
Critério burro
O quadro de medalhas aponta as nações que capturam o maior número de galardões, estabelecendo-se a colocação delas de acordo com os ouros conquistados, depois as pratas e, por fim, os bronzes. É um critério burro, acho.
Disse-me um amigo, José Cruz, reconhecido jornalista desportivo, que esse quadro não foi invenção do Comitê Olímpico, mas sim da imprensa. Nasceu, consolidou-se e, aparentemente, nunca ninguém se revoltou contra o fato de ser injusto.
Pesos diferentes
Penso que teríamos uma avaliação mais sensata, se déssemos um peso diferente a cada tipo de medalha. Exemplo: cada primeiro lugar valeria três pontos; uma segunda colocação representaria dois pontos; e uma terceira renderia apenas um ponto.
Já existe
Quando apresentei essa minha tese a outro jornalista, Mário Medaglia, ele me informou que, nos jogos Abertos de Santa Catarina (uma das mais fortes disputas desportivas do Brasil) a premiação vai do primeiro colocado (13 pontos) até o sexto lugar (1 ponto).
O Brasil avança
O Brasil, que foi o vigésimo classificado em Paris, com um total de 20 troféus, sucede a Irlanda, a décima-nona, que obteve somente. Por quê? Porque a terra de James Joyce ganhou quatro medalhas douradas enquanto Pindorama obteve só 3.
Aplicando-se a fórmula (de pesos diferentes) que propus acima, o Brasil (com 3 ouros, 7 pratas e 10 bronzes) somaria 33 pontos. Já a Irlanda (4 ouros, nenhuma prata e três bronzes) ficaria com exatos 11 pontinhos.
Um só ponto
Vamos a outro critério possível: cada medalha (indiferentemente da matéria em que foi forjada) valeria um ponto.
Assim, o Brasil (com 20 medalhas) saltaria para a décima-terceira posição, logo atrás do Canadá (27), e ultrapassando Uzbequistão (13), Hungria (19), Espanha (18), Suécia (11), Quênia (11), Noruega (8) e Irlanda.
População
Deixando de lado essas especulações, passemos a uma avaliação que me parece, realmente, a mais representativa do verdadeiro papel que o esporte representa na vida de cada país. Ou na vida dos cidadãos de um determinado país.
Trata-se do critério relação medalha/população.
EUA e China, os vencedores que não ganharam
Os Estados Unidos, vencedores desta Olimpíada, amealharam um total de 126 prêmios. Dividindo-se esses galardões pelo número de habitantes (333 milhões) do País do Mickey Mouse, constatamos que cada medalha saiu do suor de um grupo de 2,6 milhões de cidadãos.
Seguindo na mesma toada, a segunda colocada, a China, com suas apenas 91 medalhas, divididas pela sua incalculável população (1,4 bilhão), conseguiu um prêmio para cada 15,3 milhões de cidadãos.
Japão
Continuemos na mesma linha. A terceira nação mais premiada, o Japão, que tem uma população (120 milhões) entre dez e onze vezes menor que a chinesa, obteve quase que a exata metade (45) de prêmios arrematados por aquele seu (incômodo, garantem os maldizentes) vizinho.
Explicando melhor aos ruins de Matemática: o Japão deu uma medalha a cada 2,7 milhões de seus moradores. Índice quase idêntico ao dos Estados Unidos.
Em outras palavras, proporcionalmente, o país de Kurosawa ganhou cinco vezes mais troféus que a terra daquele gorducho, anteriormente chamado Mao Tsé Tung, que recentemente ganhou um nome horrível.
Oceania
Sigamos. A pequena Nova Zelândia (5 milhões de habitantes) conquistou dez medalhas. Ou seja, uma medalhinha para cada 500 mil habitantes. O mesmo ocorreu com sua vizinha, a Austrália, que (com suas 53 medalhas) deu uma premiação a cada meio milhão de seus cidadãos.
Ou seja, proporcionalmente, australianos e neozelandeses ganharam 30 vezes mais prêmios do que seus vizinhos não tão distantes assim, os cidadãos do Império do Meio.
No tapa
Já nós, tupinambás, teremos que dividir, aos tapas ou aos golpes de tacape, uma medalha entre cada dez milhões de habitantes. Não chega a ser um número ruim, se observamos a China. Mas é péssimo, quando nós nos voltamos para a Oceania.
Temperaturas decentes
Aliás, dizem alguns que Austrália e Nova Zelândia são países favorecidos – na prática desportiva – pelo seu clima, marcado por temperaturas decentes.
Como se sabe a vocação desportiva dos anglo-saxões é irrefutável. Inventaram quase todos os esportes, com exceção do frescobol, do futevôlei e do vôlei de praia, criados por uma “gente bronzeada” que sabe “mostrar seu valor” (como apregoa a cantiga dos Novos Baianos).
Mas os moradores do Reino Unido não foram privilegiados no quesito clima. Isso, não. Padecem muita chuva e muito frio.
Assim, quando me refiro a “temperaturas decentes”, estou levando em conta que há muitos países do Norte da Europa que contam com invernos que duram nove meses. E a prática desportiva por lá só pode ser desenvolvido em ginásios. Nada muito problemático para aquelas nações, em geral muito ricas, mas ao ar livre seria mais divertido e confortável.
O detalhe do solzinho
Para alguém nascido nas vizinhanças da linha do Equador passar nove meses por ano sem um solzinho no lombo seria uma tortura insuportável.
Continentes
Dos vinte países que encabeçam a lista dos mais premiados em Paris, dez são europeus (França, Holanda, Grã-Bretanha, Itália Alemanha, Hungria, Espanha, Suécia, Noruega e Irlanda), quatro são asiáticos (China, Japão, Coreia e Uzbequistão), dois são da América do Norte (EUA e Canada), dois da Oceania (Austrália e Nova Zelândia), um da América do Sul (Brasil) e um da África (Quênia).
Quase todos são países de renda média elevada, com exceção do pobre Quênia e do desconhecido Uzbequistão (república integrante daquilo que anteriormente era conhecido como Sovietistão).
E do Brasil, claro, que embora tenha o quinto território mais extenso, a sétima maior população e o sétimo Produto Interno Bruto, consegue manter boa parcela da sua população circulando em volta da chamada linha da pobreza.
Lembranças
Para comparar, vejamos os dados da Olimpíada de 2021. Nela, a Nova Zelândia, que ocupou o décimo-terceiro posto – logo atrás do Brasil – ganhou 20 medalhas. A Austrália subiu 46 vezes ao pódio.
Cadê Cuba?
Vale mais uma lembrança, a de uma nação americana que antigamente se destacava na competição. Há três anos, Cuba obteve 15 medalhas e acabou em décimo-quarto lugar da classificação geral. Agora, caiu para o trigésimo-segundo lugar, com apenas 9 medalhas.
Teve, claro, melhores desempenhos nos anos em que recebia ajuda econômica da defunta União Soviética.
O mistério
Mas o grande mistério olímpico continua sendo o Quênia (66º lugar em PIB), dos grandes corredores de longas distâncias.
Explicando o título
Muitas vezes precisamos reforçar aquilo que nos parece óbvio. O óbvio ululante, como diria o nosso maior teatrólogo.
No caso deste artigo, recorri a uma frase – “The economy, stupid” (É a economia, idiota) – que teria sido forjada em 1992 por James Carville, na época o estrategista da campanha presidencial de Bill Clinton contra George H. W. Bush para reforçar a ideia de que a economia – isso é claríssimo, patente, manifesto – tem um papel determinante em uma eleição presidencial.
Lourenço Cazarré é escritor
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Tinha saudades de casa. Fecho os olhos. A luz intensa atravessa-me as pálpebras. Mergulho numa paz absoluta. A monotonia por que ansiava há tanto. O som das cigarras, ondas que se desfazem num murmúrio ao encontrar a areia. Um contínuo. Som que é silêncio. Apenas o canto das rolas marca o compasso e nega a suspensão do tempo. A sombra imperfeita das videiras. A aragem a brincar com a minha pele, a soprar-me os pelos das pernas e dos braços: fresca, quente, quente, fresca, quente…
O telemóvel vibra junta da minha perna. Não queria atender, mas nunca se sabe:
⎼ Tou? Toninho, já cá tás, filhe? ⎼ perguntam do outro lado.
⎼ Estou, sim, tia. Cheguei de madrugada. ⎼ respondo.
⎼ Ai, graças a Deus, filhe.Tavaaqui em pulgas. Ainda deves tarcansade. Mas quande quiseres passa por’qui. Vem almoçar ca gente. Tenhe cá uma coisa p’a t’amostrar.
A tia tem razão. Ainda estou muito cansado. Vim de carro. Já me tinha desabituado. Mas vim de vez. Parece mentira. De vez… Combinamos um almoço para sábado.
Os tios esmeram-se.
⎼ Isto aqui não é à grande e à francesa, mas é à grande e à algarvia! Vá lá, toca a comer que isto quem na presta pra comer na presta pra trabalhar. ⎼ brinca o primo Ernesto, enquanto põe em cima da mesa uma travessa de sardinhas assadas.
⎼ Carcanholas da ria, berbigão, xarém com conquilhas, saladinha montanheira, sardinhas, panitopra pôr por baixo… Sirvam-se que disto não apanham vocês lá na França. ⎼ acrescenta.
⎼ Ah, pois não, mas agora já sabes que estou logo aqui ao lado. É só convidares-me mais vezes. ⎼ respondo.
As longas sardinhadas no alpendre dos tios. Os risos, as conversas que se misturam com os sabores, os odores, as cores, as memórias. Ouço-os, como às cigarras: doce banda sonora de verões passados.
O Ernesto, de pano de cozinha na mão, vai enxugando uma enorme melancia encharcada.
⎼ O frigorífico é para melancias enfezadinhas. – explica – Esta esteve dentro do tanque desde de manhã para ficar fresquinha. A melancia quer-se grande, para dar umas boas talhadas.
Seguem-se um café e um medronho para ajudar a digestão. A tia Alice surge de dentro de casa com uma tesoura de jardinagem numa mão e uma fotografia na mão.
⎼ Vê lá se conheces aí alguém. ⎼ desafia-me, colocando a fotografia em cima da mesa.
– Deixe lá ver. Tenho de pôr os óculos. – respondo.
⎼ Ai, filho, se já nem tu vês bem… na hei de eu tar velha… ⎼ desabafa a tia entre o lamento e a brincadeira. E eu percebo que nunca vai entender como é possível o filho da irmã já estar aposentado. Na verdade, espanta-a sempre que já esteja maior que ela.
⎼ Não diga isso, que a tia está mais nova do que eu. ⎼ respondo, enquanto ela, ligeira, sobe à cisterna, que já só serve como poiso para as centenas de vasos que são o seu orgulho:
⎼ Vou-te mandar aqui umas podas. Tens de dar um jête àquele quintal. Pôr lá umas florinhas, que morreu tudo à sede e a tu mãe tinha sempre tude chê’delas. ⎼ diz.
Examino a fotografia. Um primeiro olhar e viro-a. Na parte de trás, esborratada e já quase ilegível, a inscrição “Ludo, 1954”. Oito mulheres e cinco crianças. Estão em pé, alinhadas. Sorriem para a câmara. Trabalhadoras das salinas. As roupas, pouco mais que farrapos. Vestidos andrajosos. Camisas que não fecham. Saias presas à cintura por cintos velhos ou baraços. As vestes das meninas destoam das das mães. Limpas. Engomadas. Chapeuzinhos de palha. Aperaltadas para a fotografia, com certeza. Na imagem, um único rapaz. Ao contrário das meninas, está coberto de pobreza. Tem um ar sujo. Sobre o corpo, uma camisa curta. Apenas isso.
As mulheres usam lenços por debaixo dos chapéus. Por cima, as rodilhas ajudam a equilibrar as canastras. Pés de lama. Nus. Negros até aos tornozelos.
⎼ Então? Não conheces ninguém? ⎼ pergunta o tio António, enquanto arrasta a cadeira para junto de mim.
⎼ Reconheço a tia. Toda nova e jeitosa. Olhe para isto. Parece uma garça, aqui com uma pernoca alta e toda desempenada. – provoco-a sorridente. Ela ri-se e diz qualquer coisa que não percebo.
⎼ Olha, a prima Amélia. Estás aqui prima, à frente das nossas vizinhas: a Idalina, a Estrudinhas, a Marcelina. Aqui ao lado, a mãe da Natércia e da Noélia. Elas à frente. As feições não mudaram nada. E, se não me engano, esta é avó delas. Não me lembro do nome. ⎼ digo enquanto passo o indicador uma a uma.
⎼ Vangelina. ⎼ lembra a tia. ⎼ E a do lado. Sabes quem é? ⎼ pergunta.
⎼ A minha mãe, claro. Que saudades! ⎼ os olhos enchem-se-me de lágrimas, a garganta prende-se um pouco. Tusso e ajeito-me na cadeira. É dia de festa.
⎼ Grandes senhoras! – exclamo, sabendo que o repetirão em coro.
Lembro-me bem destas mulheres e destas crianças. Sei de cor as suas histórias. Apesar de a vida nos ter levado por caminhos diferentes, agosto foi sempre o mês do reencontro. De pôr a conversa em dia, mas também de lembrar. Repetiam todos os anos as suas histórias, como se essa partilha garantisse que o seu passado tinha realmente acontecido: a gripe espanhola que levou o pai e a mãe da Estrudinhas quando ela tinha dois anos; a guerra do Ultramar que matou o noivo da Noélia; o marido da Ti Vangelina, que emigrou para a Venezuela e nunca mais deu notícias; o sangue vendido para pôr um teto sobre a cabeça dos filhos; o aborto causado pelo peso do sal; a exploração; as jornas de trabalho de sol a sol; a fome que se enganava com figos secos; a penúria que obrigou os meus pais a emigrar. Também eu preciso que confirmem. Que à mesa me digam que estou certo. Que foi assim que aconteceu.
⎼ Oh, tia, eu sei que a miséria era muita. Mas não me diga que não dava ao menos para me taparem as miudezas para a fotografia? ⎼ pergunto.
⎼ Tu até tinhas uns calçanites que te fez a avó Julinha, que Deus tem. Mas eras muito pequeno e a tua mãe não tinha tempo para te andar a limpar o rabo. Nem havia cá fraldas, o que é que pensas? Vocês eram mecinhes, andavam per‘li uns c’os outres. Não havia cá onde os deixar. – explicou a tia. – Pareciam pilrites, ós saltinhes dum lado pró outre.
⎼ Era duro, hã…? – pergunto.
⎼ Era, mas a gente também se ria muito. Contávamos muita anedota. Cantávamos. Dizíamos umas asneiras p’rá gente se ir entretende. Éramos moças…Ele em havende pás sopas e pa vocês se irem criande… mas trabalhava-se muite.
Exatamente o que vejo nesta fotografia, nestes sorrisos: um misto beleza, sofrimento, força e doçura. Sorrisos abertos, francos. Sorrisos de gente feliz. Impossíveis de compreender sem conhecer estas mulheres. Não me lembro daqueles tempos em que era tão pequeno que ainda não tinha direito a calções. Para mim, elas só entraram na minha vida anos mais tarde. Mas reconheço os sorrisos. São os mesmos. Sorrisos felizes, mesmo quando as histórias dos tempos difíceis lhes colocavam um véu de tristeza no olhar. O segredo por detrás deste sorriso aberto? Acredito o sal que lhes curtiu a pele lhes temperou a alma. Eram divertidas, bem-dispostas, naturalmente felizes ou, pelo menos, decididas a sê-lo.
Ao almoço pega-se o lanche. Os tios insistem que fique para jantar. Já me tinha esquecido do que significa “passa cá por casa”. O estômago diz-me que não aguento. Que não posso ficar sentado. Decido fazer uma caminhada no Ludo. Está um final de tarde lindo. Vou até às salinas. As águas turvas dos tejos coloridas pelos azuis, rosas e dourado do céu. Manchas do branco das nuvens. Aproximo-me na esperança de ver ali resquícios do passado, mas a água já não espelha a imagem das marnotas: um bando de flamingos cruza-se com um avião que levanta voo. Os que chegam e os que partem. Pergunto-me quantos lá irão na esperança de um dia virem de vez.
Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve
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Num destes sábados de Agosto, a RTP 2 emitiu um memorável filme de Miguel Gomes – Aquele querido mês de Agosto, de 2008, e revi-o.
Com o passar dos anos, este filme ainda parece que ficou melhor, como se surgisse de uma boa casta cinematográfica, que com o tempo vai ganhando mais corpo e elegância (fazendo uma analogia com o vinho, e com os seus eternos segredos).
Sem dúvida, que o tempo é amigo da boa arte.
Ajusta-se e consagra-se nela e pode, no caso de ser compreendido, tornar-se no melhor ansiolítico para os artistas.
De uma forma geral, os filmes de Miguel Gomes têm qualidade e são extremamente bem pensados por alguém que passou pela crítica de cinema e que se habituou a ver filmes para escrever sobre eles.
Indubitavelmente, o cinema também é escrito, é palavra, e aqui temos um exemplo disso, fazendo, de uma forma muito sóbria, tudo encaixar em tudo, até Portugal lá está metido ao barulho, a fazer de Portugal. É um filme sobre o tempo, em que a espera e a falta de dinheiro verdadeiro ou não, contribuem e supostamente mudam a acção. Um filme que tem a urgência de ser cinema, mais do que a de agradar aos produtores. Isto podia ser a sinopse, ou mesmo a falsa sinopse, já que a longa-metragem vive dessa dicotomia entre realidade e ficção, elevando a arte a um ponto-chave, assinalado vezes sem conta por Jean-Luc Godard com as suas célebres afirmações acerca do documentário e da ficção, sendo que o ideal para o suíço é um integrar-se no outro.
Lembro-me de outro singular filme de Joaquim Pinto –Uma Pedra no Bolso –, cuja acção também se desenrola durante o Verão num Portugal específico, em Porto-de-Barcas, vila piscatória que conheço bem e onde também em tempos já pesquei imagens. Um filme talvez esquecido, que teve presença na RTP2 em Agosto, há um par de anos, mas que imaginamos o tempo a fazer o seu trabalho, para que estes fantasmas melancólicos ganhem corpo, já que alma têm de sobra, sendo mesmo essa alma a marca de uma boa parte do cinema português de autor.
Vem-me à memória ainda Os Contos de Verão do super-francês Éric Rohmer, passado nas mágicas praias da Bretanha, em que a nostalgia e a palavra são iguarias do cardápio burguês e culto, tipicamente gaulês, como é hábito em Rohmer. Claro, há muitos outros filmes cujo calor contagia e derrete o ecrã. O Pecado Mora ao Lado de Billy Wilder é um deles e “queima” definitivamente o televisor sempre que aparece por aí, mas deste já se disse tudo e a Marylin Monroe tem direito ao seu descanso, uma vez que em vida não o conseguiu sem a ajuda de benzodiazepinas, imortalizando-se qualquer dia mais por elas do que pela sua presença nos fotogramas.
Pessoalmente, adoro ver um bom filme de verão… No Verão. Mesmo se o céu não anda tão azul, chegando mesmo a não sair durante dias a fio dos tons cinzentos característicos desta época… Gris.
Outra era virá, se o cinema, ao contrário de Deus, assim o quiser. A Cinemateca Portuguesa está lá para nos sussurrar ao ouvido, a doce melancolia da morte anunciada do cinema, que nunca mais chega.
Em qualquer um destes quatro filmes que enumerei, é o amor que anda no ar, ao invés de drones. O filme de Miguel Gomes, como entidade própria que já é, percebeu que o cinema e a vida mais os sons que só existem na cabeça das pessoas sensíveis, têm mistério suficiente para não mais nos abandonarem os pensamentos. O cinema é um espírito com o qual os cinéfilos fazem telepatia. Porque o cinema também é memória, sobretudo memória futura para que a poética (seja ela qual for) nunca desapareça no meio da convulsão geral em que mergulhámos definitivamente, com guerras e ódio por todo o lado, tendo sido esta a marca destes últimos tempos bestiais.
Aquele Querido Mês deAgosto vale e até “informa” mais do que um ano de telejornais e tem uma acção realisticamente climática sobre o espectador, coisa que a realidade vai paulatinamente abandonando, porque se transforma ela mesmo numa imitação de uma rede social.
Neste filme ambicioso disfarçado de filme humilde, que tem a acção em terras da Beira Alta, durante o Verão, quando os emigrantes voltam para as férias e é tempo de bailaricos, procissões e incêndios, o povo não é só vítima ou testemunha, como habitualmente é tratado pelos media em geral. Aqui a realidade grita pela existência e saboreamos um documentário a fazer de ficção, senão mesmo de uma ficção a fazer de documentário, para citar o crítico Luís Miguel Oliveira a citar Godard.
Aqui, o povo tem voz e canta a sua angústia através da lente justa e sonora do realizador e da sua equipa. Mesmo tratando-se da cruel realidade a que ninguém escapa, no qual se exalta o realismo mágico, mesmo que a ideia de terror sobrenatural parta mais de um trecho de um filme, que aparece dentro do filme, que da própria encenação de Miguel Gomes, trazendo para a sala uma preocupação estilística, participe de uma visão estética da vida que não exclui de todo a experiência do real.
E alicerçado nesses degraus de continuidade, o fantástico filme vai cavalgando e surpreendendo por entre rituais em que até os próprios incêndios igualmente o são, como se vê nas cenas da torre de detecção e no plano dos botões luminosos no centro de controlo.
Importante para a compreensão conceptual do filme, são travellings, como aquele em que a câmara acompanha de frente a carrinha de bombeiros com a música de Toni Carreira –Sonho de Menino – a instalar-se paulatinamente na acção.
Em poucos filmes, o som e o tratamento acústico estão tão singularmente presentes para habitar o campo narrativo, em que se ouve, mas pode não se ver, e escuta-se de “olhos bem fechados” (para citar Kubrick), devido às cinzas orgânicas que parecem sair do ecrã ou da tela. Esta é a poética do filme que arde, mas não se vê.
A banda sonora assinalável é fundamental para o desenvolvimento das histórias fragmentadas, sobretudo da história central em que um pai, uma filha e o seu namorado-primo se relacionam, trazendo sempre novidades narrativas, até porque os próprios protagonistas fazem parte de uma banda musical que deambula pelas aldeias da zona, cantando-se e interpretando-se a si mesmos aludindo aos musicais clássicos.
A banda sonora tem títulos como: ‘Escravo do teu encanto’, ‘Som de cristal’, ou ‘Passear contigo’, todas elas bastante reconhecíveis pelo público em geral.
O verdadeiro e real(?) Vasco Pimentel que faz dele próprio a fazer dele próprio, dá-nos uma lição no fim da película acerca da eternidade e dos fantasmas que habitam os filmes, numa dimensão em que a imagem se apaga no som. A tecnologia desaparece perante tamanha grandeza e apenas prevalece aquilo que queremos acreditar ser a vida. A vida para lá de todas as vidas, a vida em que, como dentro dos filmes nunca nada morre. É sempre tudo a fingir.
Esta película não parou no tempo. Esta e outras obras cinematográficas feitas com arte, fazem, sim, parar o tempo. E como o Verão me torna melancólico, vou parecê-lo e dizer que o cinema também é amor e com ele mantenho uma relação de fidelidade amorosa ao longo dos anos, sabendo e aceitando a indústria e a sua artificialidade, e até reconhecendo a abundância de criminosos nefastos como o Harvey Weinstein que produziu filmes que hoje são autênticas elegias ao amor, como Shakespeare in Love, ainda que não seja grande filme.
O cinema perdoa, daí a sua possibilidade de catarse. Se a vida fosse um filme, salvava-se, mesmo sabendo que o cinema foi o principal agente manipulador e transmissor de mensagens subliminares para o século XX e veículo de persuasão com sede em Hollywood. Mas a contradição é a flor e a pistola dos artistas e a realidade ganha sempre depois de vermos um bom filme.
Ainda assim, sabemos que o cinema traz valor acrescentado e é muito mais do que isso, e esse cinema-muito-mais-do-que-isso é onde este filme se inscreve, e não será vítima do novo tecno-mundo, cujos realizadores são anónimos e não precisam de actores, podendo mesmo fabricá-los a partir da A.I. Isso não é Ser Cinema.
Aqui o conteúdo de elementos mágicos ou fantásticos percebidos como parte da “normalidade” pelas personagens não é claro, mas existe, sim, a presença de elementos mágicos algumas vezes intuitivos, mas nunca explicados, ou mesmo a presença do sensorial como parte da percepção da realidade, trazendo uma singular distorção do tempo para que o presente se repita ou se pareça com o passado, baralhando-se cronologicamente. Como exemplo disso temos o “milagre” operado na personagem do pai do Fábio, quando fala na transformação que se deu no seu cativeiro impregnado de dor, ao cruzar-se com a Rainha Santa, feita de cerâmica, durante a procissão quando experimentava o auge da agonia, até ao triunfal cruzamento onde a dor desaparece definitivamente. Não conseguimos saber se aconteceu mesmo ou é produto do argumento ficcionado.
Talvez pertença aos dois, e é isso que as novas tecnologias digitais inteligentes não percebem.
Uma personagem inesquecível é o Paulo Moleiro, que não faz nada, segundo um amigo, mas todos os anos em fevereiro dá um salto da ponte para mostrar que está vivo.
Aquele Querido Mês deAgosto é esse salto que nunca se vê.
Ruy Otero é artista media
Ilustrações de Manuel Silva
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
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Raquel Rodrigues regressa ao PÁGINA UM com uma proposta de viagem de Inverno: Itália e Suíça através do Bernina Express, uma rota classificada como Património da Humanidade.
Foi em Novembro de 2022 que li um post de um amigo, que como eu adora viajar e é um apaixonado por Itália. Na mesma hora, liguei-lhe a dizer que ia marcar a viagem e seria maravilhoso se as agendas coincidissem e viajássemos juntos.
Marquei os voos de Lisboa para Bergamo, e comecei logo a preparação da viagem. Como já conhecia a imponente Bergamo, La Città Alta, cidade muralhada, com um centro histórico muito bem preservado, segui a recomendação do meu amigo e começámos o roteiro por Brescia, onde chegámos a tempo de um almoço rápido, ainda com tempo para explorar a cidade.
Estacionámos o carro alugado no parque de estacionamento da “Piazza della Vittoria”, e daí seguimos a pé. Nesta praça nota-se o estilo racionalismo italiano, de 1926-1943, onde se localiza o Palazzo de la Poste; o Il Torrione, o primeiro arranha-céus italiano e, primeiro da Europa, construído em cimento armado. Seguimos a pé para a Piazza della Loggia, construída na época em que Brescia fazia parte da República de Veneza. Aqui encontramos o magnífico Palazzo della Loggia e a bonita Torre do Relógio. Depois, seguimos a pé pelos corredores de lojas até à Piazza del Duomo onde a Duomo Nuevo e a Duomo Vecchio se encontram e juntos fazem o postal da cidade. É obvio que a Duomo Vecchio é muito mais fascinante, em primeiro lugar por ser um edifício redondo, e depois pela histórica que carrega, com ruínas de mosaicos paleocristãos.
Mas a história de Bréscia não termina aqui, pois remonta ao período pré-românico, com as ruínas de Brixia, o nome romano da cidade. Esta área arqueológica, a mais bem preservada do norte de Itália, reúne na Piazza del Foro e Capitolino, as estátuas de Juno, Júpiter e Minerva, um teatro romano e um santuário de século I com frescos e pavimentos do século II antes de Cristo, muito bem preservados. A joia da coroa é o Castelo Alto de onde conseguimos ter uma perspectiva fantástica da cidade.
Final da tarde. Seguimos para Iseo, a 45 minutos de Bréscia, a cidade que dá o nome ao lago e onde jantamos, em cima do lago, numa pizzaria que muito recomendo, Leon D´Oro. Terminando o jantar ,seguimos para Pisogne, a 30 minutos de Iseo, onde dormimos as duas noites e ficávamos a meio caminho de Tirano, o ponto de partida do fantástico “Trenino Rosso”.
Chegamos a Pisogne tarde, mas a simpatia de Bárbara e sua família fez-nos sentir que tínhamos feito a escolha certa para esta estadia no Lago Iseo.
O B&B Alveare Sul Lago é um pequeno paraíso para “gourmands” que apreciem o conforto da cozinha e gastronomia italiana, um lugar onde nos sentimos em casa. Uma localização privilegiada com uma fantástica vista para o lago.
No dia seguinte, tomámos o pequeno-almoço às 7 horas, e ainda não passara uma hora e seguimos viagem para Tirano. A paisagem é muito bonita, passando pelas aldeias alpinas italianas, e em hora e meia chegámos a Tirano. O estacionamento no parque é gratuito, e atravessando o túnel da primeira estação regional, encontramos a estação internacional do Bernina Express.
Viajar de comboio é algo que se entranha, são viagens que não esquecemos, que prolongam as memórias, e esta, em particular, é quase mágica. Passámos por aldeias alpinas pintadas de branco, que contrastavam com um intenso azul do céu e as escuras colinas mais escarpadas. Garantidamente, uma das viagens de comboio mais deslumbrantes que se podem fazer.
Sempre a subir. Partindo de Tirano, a 429 metros de altitude, passamos por Bernina a 2.253 metros de altitude. Cumes impressionantes. A carruagem panorâmica tem um fee de pagamento, mas isso vale cada cêntimo. É uma viagem incrível no primeiro comboio de cremalheira electrificado.
Depois de duas horas e meia de cenários de cortar a respiração chegamos à sofisticadíssima Saint Moritz. Saindo da estação seguimos a pé até ao teleférico, que nos levou ao pico da montanha mais alta, almoçámos literalmente entre as nuvens.
Descendo do teleférico, pode-se passear pelo centro da cidade no meio de um deslumbre luxuoso. As pessoas parecem, e são, simpáticas e bem-educadas. As lojas são de sonho, embora não para qualquer carteira. A estância de ski é uma das mais fantásticas do Mundo e Saint Moritz tem ainda o Badrutt´s Palace Hotel onde, mesmo que seja impossível pernoitar, vale pela experiência do Chá das Cinco. Regressando de volta à estação, viajámos de regresso a Tirano, no lado contrário da viagem de ida, mostrando outra perspectiva, embora por pouco tempo, pois a noite, nesta altura do ano, chega cedo.
Chegados a Tirano, regressámos a Pisogne onde o Chef Cláudio Faustini nos aguardava com uma magnífica pasta fresca com trufa, pães e foccacia feita em casa e ainda um “Vino Rosso”. Podia ser melhor? Não podemos crer.
No dia seguinte, acordámos com paz de espírito, tomámos um pequeno-almoço tardio, com produtos caseiros e frescos, e seguimos então para a nossa aventura pelo Lago.
A primeira paragem foi Lovere, considerada uma das cidades mais bonitas de Itália, mesmo junto ao lago. Paragem obrigatórias para quem quer desejar boas memórias dos lagos italianos.
De Lovere passámos de carro pelos túneis de Castro. Sentimo-nos um pouco como James Bond nos filmes gravados nestes cenários italianos. Continuámos viagem até Sulzano, e aí se pode apanhar um barco para Monte Isola.
Chegando ao porto de Sulzano, apanhámos então o barco, que faz a viagem de 20 em 20 minutos. Monte Isola tem sido considerada uma das belas cidades europeia. Ainda que seja pequena, é a maior ilha lacustre da Europa, a pérola do lago Iseo. Aqui não existem automóveis para alugar, pelo que a melhor opção passa por alugar uma bicicleta ou seguir a pé. Em todo o caso, o santuário no topo da ilha só faz sentido se se visitar de autocarro.
Em 2016, durante duas semanas o Monte Isola esteve em destaque, com a Floating Piers, uma instalação artística do artista búlgaro Christo e da sua companheira Jeanne-Claude, que pela primeira vez uniram a aldeia de Sulzanno a Monte Isola e a Isola de San Paolo, um pequeno pedaço de terra nunca alcançado sem esta plataforma flutuante. Contabilizaram-se então mais de 1,2 milhões de visitantes. Hoje, ainda podemos ver um memorial celebrando o momento.
Passear pela ilha é bastante relaxante, mas há locais que não se devem perder: Borgo di Siviano,Borgo di Novale, Borgo di Peschiera Maraglio, Museo della Rete, Rocca Martinengo e Santuário della Madonna della Ceríola, no topo do monte.
Depois de umas horas em Monte Isola, tivemos de regressar no barco que nos devolveu a Sulzano, e daí fomos obrigados a apanhar um carro e seguir para o aeroporto, de regresso a casa.
Foram, passe o lugar comum, apenas três dias de viagem, mas que souberam a sete num deslumbrante cenário alpino entre Itália e Suíça.
Para quem começar o ano com uma viagem desta qualidade, em pleno Inverno, já só desejará uma próxima. Prepare-se.
Dicas da viagem para uma viagem no Inverno:
Em Novembro, comprar voos Ryanair: Lisboa – Bergamo – Lisboa
Estadia: Hotel B&B Alveare Sul Lago (2 noites)
Alugar carro: Rentalcars (procurar com aluguer rodas de neve gratuito ou incluído)
Bernina Express: Viagem de Ida e Volta a 65 euros por pessoa
Mochila: dois pares de calças; roupa interior e extra de neve (camisola, calças e meias); cachecol, gorro e luvas; camisolas.
Raquel Rodrigues é gestora, viajante e criadora da página R.R. Around the World no Facebook.
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O que se encontra no coração dos homens permanece um mistério para mim. Desdeaquela época, tenho observado vários tipos de pessoas – escroques, falsários, gente que matou ou morreu por dinheiro – e todos eles parecem pessoas normais; fico confuso.
Relato autobiográfico, Akira Kurosawa
Dias atrás, de manhã, fui até essa porta, mas não consegui ultrapassá-la. Não que houvesse problema com a fechadura. Girei a chave e, depois, simplesmente, meu braço se recusou a movimentar a maçaneta.
Não, não ria. Embora também ache que a situação é ridícula, eu lhe peço que não se entregue à zombaria antes de ouvir o que tenho a dizer. Também nunca levei a sério essas histórias de sujeitos que se veem, repentinamente, impossibilitados – por uma espécie particular de loucura – de realizar atos insignificantes do cotidiano.
Porém, foi exatamente isso que se deu comigo.
*
Na primeira semana, ninguém reclamou da ausência do velho.
É possível que alguém tenha estranhado a falta dele, sim, mas o certo é que o tal aluno não se perdeu em considerações sobre o assunto porque aqui, mais que em qualquer outro campus, uma folga inesperada é sempre bem recebida.
A vantagem de uma universidade nos trópicos é que a coisa toda é levada na maciota, por alunos e professores. Vejamos pelo nosso lado. Em geral, não ganhamos bem, mas, em compensação, quase não trabalhamos. Resumindo: professores fingem que lecionam; estudantes fingem aprender. O mundo nem para nem gira mais depressa por causa desse nosso jeitinho inzoneiro.
Em outras palavras: uma gazeta professoral, mesmo que larga, não espanta ninguém por aqui. Professores estão sempre viajando para conferências, seminários, mesas-redondas ou outras tapeações. Nos nossos banheiros faltam torneiras e papel higiênico, mas há bastante dinheiro para passagens aéreas.
Vocês podem achar que falo assim por despeito. É verdade, sou ressentido porque não fui esperto o suficiente para descolar um doutorado no exterior. E falo maldosamente sempre que posso porque sou do signo de escorpião.
Fui menos amargo quando jovem, mas a vida me triturou tanto que acabou por me transformar nessa poção venenosa. Namoros ridículos, um casamento fracassado e uma vida profissional medíocre fizeram de mim uma víbora peçonhenta.
O certo, repito, é que na primeira semana nem deram pelo sumiço do velhote. Acontece que os alunos dos primeiros semestres, que são justamente os que ele leciona, gostam muito de ficar a maior parte do tempo no pátio, namorando, dizendo bobagens e rindo como idiotas. Já os mais espertos preferem as áreas arborizadas, onde podem, incógnitos, queimar a sua maconhazinha cotidiana.
Nem tão incógnitos, é verdade, porque o cheiro nos invade as salas e sempre tem alguém pedindo para ir ao banheiro. Aí, eu digo:
– Vá, mas vá correndo, porque já devem estar na bagana.
*
Eu sentia que não devia sair do apartamento. Em silêncio, eu me dizia: Caetano Antunes, pare, não abra a maldita porta!
Assim, deixei a chave na fechadura, ali, onde ela se encontra até agora, como você pode ver, e voltei ao meu quarto. Deitado, eu pensava no cômico da situação, e ria. Mas também chorava. Eu já sabia que jamais poderia sair daqui.
Agora, passados tantos dias, sei o motivo pelo qual estou confinado neste apartamento. Se você tiver tempo e paciência, eu poderei lhe falar sobre…
*
Não, o velho nunca foi considerado maluco. Neurastênico, impaciente, áspero e sarcástico, isso sim. Mas doido, não.
Embora sua ironia seja invariavelmente ranzinza e raivosa, em toda turma que leciona ele sempre consegue capturar a cumplicidade de dois ou três gozadores que se divertem com suas tiradas ferinas.
*
Percebo que agora, enquanto me observa, entre condoído e assustado, você se pergunta se não estou louco. Reconheço que tem todos os motivos para pensar assim, mas acontece que jamais estive tão lúcido.
No fundo, o que você mais teme é que eu lhe tome demasiado tempo com o relato dessa história.
*
No final da segunda semana, a coisa veio à tona.
O alarme foi dado por uma aluna. Estava eu na secretaria da faculdade, passando a limpo as notas de uma das minhas turmas, quando a garota se apresentou no guichê, afoita, querendo saber o que estava ocorrendo com “o bode velho”.
– Será que ele agora está fazendo uma greve particular, uma continuação da paralisação de quarenta dias que os vagabundos dos nossos professores fizeram no início do semestre? Ou será que se acostumou a ficar em casa, de papo para o ar, coçando o saco murcho?
A tal mocinha é um caso raro de muito estudo mesclado a vocabulário de quartel.
Permaneci com a fuça enfiada nos papéis temendo que sobrassem xingamentos para mim. Como a maioria dos professores, adotei a tática da invisibilidade.
A funcionária que a atendia – uma das pessoas mais preguiçosas e cínicas da face da terra – perguntou:
– Você está falando de quem, afinal, minha filha?
– Não sou sua filha e, obviamente, estou falando do professor Caetano. Quem mais se parece com um bode velho do que ele?
– É verdade – disse a funcionária. – Você tem razão, faz dias que ele não aparece por aqui. Vou informar esse fato ao chefe do Departamento.
– Fale agora mesmo! – retrucou a garota. – Se ele não voltar logo às aulas, entro com uma representação contra ele no Conselho Universitário.
*
Como você sabe, sou homem de poucas palavras. Sempre fui obrigado por esta nossa exigente profissão a papagaiar bastante nas salas de aula. Por isso, sou lacônico fora delas.
Nunca ninguém me viu – em mais de trinta anos em que leciono aqui – fazendo em sala confissões constrangedoras, que são os sinais mais fortes da vulgaridade.
Tenho um pudor quase invencível no meu relacionamento com outras pessoas. Como sempre me considerei o maior dos maçadores, preferi viver fechado em mim mesmo. Se me abro hoje, com você, é porque este é o momento de falar para, em seguida, calar-me para sempre.
Só lhe peço que me escute com a atenção que, em tese, é devida a um homem de setenta anos.
*
No final daquela manhã, fui chamado ao gabinete do chefe do nosso Departamento, o Mascarenhas.
Sabendo que eu era vizinho do professor Caetano, ele me pedia para dar uma passada pelo apartamento do velho a fim de verificar o que estava acontecendo com ele.
– Sujeito idoso e meio pirado. Sempre lendo, dia e noite. Os miolos vão se gastando, como o resto. Um dia, a casa cai. Fora uma ida às livrarias, nas manhãs de sábado, nunca deixa o apartamento. A velhice, a solidão.
Mascarenhas, que sempre fala como se estivesse tratando com alunos imbecis, riu amarelo e arrematou:
– Faça-me esse favor. Veja se o bruxo não está morto debaixo de uma pilha de livros.
Era uma sexta-feira chuvosa.
*
Há cerca de vinte anos, comecei a lecionar sobre teatro e cinema. Antes devo frisar que, na época, não me interessava nem um pouco por essas duas artes. Sempre fui um homem de letras. Letras impressas. Um homem totalmente de papel. Nunca havia me interessado por outra realidade além daquela – aparentemente falsa – que encontramos nas obras de ficção.
Certo início de ano, Margarida, a então diretora, pediu-me que ministrasse umas aulas de Dramaturgia. O titular da disciplina pedira demissão. Não me recusei. Naquele tempo, éramos poucos professores. A partir dali, passei a ler loucamente sobre teatro.
Dois anos depois, inventaram uma cadeira chamada Linguagem Cinematográfica, que também acabou caindo sobre os meus ombros.
Aos poucos, com a contratação de novos professores, fui repassando minhas disciplinas originais.
Por fim, há cinco anos, acabei ficando só com essas duas: Dramaturgia e Linguagem Cinematográfica.
Que ironia!
Veja: eu, amante da Literatura, acabei afastado da palavra escrita. Empurraram-me para a escuridão dos teatros e dos cinemas. Mas os homens se acostumam a tudo, e eu não sou diferente.
Agora, ao cabo de tantos anos, creio que posso dizer que adoro essas disciplinas que estudei com afinco de jovem mesmo sendo já um sujeito maduro.
Sempre tive consciência do valor de meu papel como professor. Digo, agora que estou velho, que sou um homem feliz, pois sempre trabalhei naquilo que mais gosto. Nasci para estar em uma sala de aula, de pé, falando e gesticulando, a cabeça enfiada num redemoinho em busca das palavras mais exatas, dos exemplos mais significativos, das histórias mais engraçadas, de tudo, enfim, que consiga prender a peregrina atenção dos estudantes.
Todo professor é um homem do mundo livresco. O nosso parco saber nos vem dos livros. Há quem saiba ler no chamado livro da vida, mas eu não consegui jamais decifrá-lo. Aliás, parece-me bastante mal escrito.
O ensino da Dramaturgia levou-me a perceber, com nitidez, as pequenas trapaças que eu próprio vinha encenando há tanto tempo. Tive consciência então dos truques, tiques, escamoteações e trejeitos dos quais me utilizava ao longo de tantos anos nas salas de aula.
Todo professor é um ator, só que extremamente privilegiado: tem público cativo, casa sempre cheia e seu espetáculo fica um ano inteiro em cartaz. Uma aula, como uma peça, tem de comover e fazer rir, alternadamente, num ritmo meticulosamente ajustado.
Ao entrar em sala eu me sentia como se estivesse ingressando num túnel, do qual sairia um outro homem. Ao fim da aula, eu tinha que respirar fundo para voltar a ser o que era antes.
Assim ocorre com os atores, creio, que costumam deixar abertas as portas de suas almas para o vaivém dos personagens.
Confesso que me sentia eletrizado – quase levitando – ao fim das aulas de Dramaturgia. Mas essa agradável impressão durava pouco porque o impacto de um bom espetáculo de teatro, como o de um belo poema, só permanece em nós por instantes fugazes. Em seguida, o mundo nos avassala com suas solicitações e estrangula nossos sonhos de beleza.
Num certo momento, notei que não mais estava preparando aulas; o que eu fazia era imaginar monólogos. Pela reação previsível dos alunos, bocejos ou risadas, eu retocava esses monólogos. De um ano para outro, aprimorava-os. Por fim, cheguei à sofisticação de engendrar diálogos. Sim, eu estabelecia perguntas e imaginava as respostas mais prováveis dos alunos e, para todas elas, preparava réplicas jocosas. E, assim, fui tomado por um homem espirituoso quando, na verdade, meu pensamento é extremamente moroso. Jamais tive uma resposta pronta na ponta da língua.
Estudei cuidadosamente a marcação. Depois de algum tempo, eu sabia o exato momento de me levantar da cadeira para ir à janela. Havia momentos de fitar sonhadoramente o céu. Ou de encarar silenciosamente os alunos. Há frases para serem ditas andando. Há palavras que só podem ser pronunciadas por um homem que, sentado, taciturno, observa o entardecer.
Poderia falar muito mais, baseado na minha experiência, sobre a colocação da voz, os movimentos das mãos e o uso desta máscara de infinitas possibilidades que é o nosso rosto. Mas chega!
Preciso lhe dizer também algumas palavras sobre Cinema.
*
Peguei o carro e fui direto ao decrépito edifício cujos apartamentos a universidade nos aluga a precinhos camaradas. No elevador, por força do hábito, apertei o botão do quinto andar. Morava ali há três anos. Estava já desembarcando quando me lembrei que precisava subir até o sexto, onde residia o professor Caetano. Tornei a pressionar o botão.
O corredor do sexto andar é idêntico ao do quinto andar: cerâmicas frouxas, pintura descascada e iluminação deficiente. Quando ia premir a campainha, tive um instante de vacilação. Por que aceitei o pedido do idiota do Mascarenhas?
Parei o gesto no meio, braço no ar, indicador esticado. Não seria melhor descer ao meu apartamento sem falar com o velho? Na segunda-feira, inventaria qualquer mentira para engambelar o Mascarenhas.
Mas acabei apertando o botão. Afinal, não é todo dia que um pacato professor de Literatura Brasileira tem a oportunidade de bancar o detetive.
*
Quando não consegui abrir a porta, considerei num primeiro momento que estava apenas com medo de sair à rua. Nada mais natural do que ter medo de deixar nossa casa hoje em dia. Nas ruas, há sempre carros dispostos a atropelar um pedestre desatento como eu. Nos becos, há sempre assaltantes à espera de um velhote que não possa reagir.
Mas não, não era esse tipo de medo que me retinha.
Eu não saí de casa porque, se passasse da porta, se cruzasse o umbral, o mundo desapareceria todo comigo. O mundo seria sugado.
Vejo que mais um sorriso quer tomar conta de seus lábios e percebo também que você luta para escondê-lo. Não se contenha, ria. Porque o que eu estou lhe contando parece mesmo sem pé ou cabeça.
Porém, devo ser honesto com você, ainda que parecendo bizarro.
Confesso que antevi o que aconteceria se eu chegasse ao corredor: o mundo se desintegraria por trás de mim, cidades, campos, árvores e fábricas, homens e animais, tudo sumiria às minhas costas, todas as coisas seriam sugadas e tragadas por um abismo negro, tudo o que foi construído, plantado ou sonhado seria diluído na escuridão. O mundo desapareceria, em meio a uma nuvem de poeira e a um rascar estridente, exatamente como some a lição escrita no quadro-negro, ao fim da aula, quando movimentamos o apagador. Ou melhor, o mundo sumiria como um pedaço de celuloide consumido pelo fogo.
Se fosse um sujeito vulgar, você venceria o espanto e o desconforto que o tolhem neste momento e me perguntaria: onde foi que o senhor arranjou esta maluqueira, professor Caetano?
Mas como você é comedido, e não me fará essa pergunta, eu tomarei para mim a tarefa de lhe explicar esse tipo particular de doidice.
*
A campainha soou forte.
Prolongavam-se os segundos e eu não escutava nada. Passos, ruído de chaves, pigarro ou tosse. Nada.
Será que o velho morreu?
Um calor nervoso me subiu ao rosto. Esfreguei as mãos úmidas.
Eu vacilava, sem saber se apertava de novo na campainha ou se me ia embora, quando a porta foi aberta.
De repente, sem um ruído, escancarou-se.
– Que surpresa! – disse o velho.
O professor Caetano Antunes era um homem de estatura média, mais para o gorducho, com uma barbicha branca pendente da ponta do queixo. Encimando a boca chupada, um imenso nariz. A mão que estendeu para mim era grande e seu aperto vigoroso e visguento.
Uns olhos castanhos, escondidos por trás de lentes garrafais, me fitavam com intensidade.
– O que o traz ao meu modesto apartamento?
Ao fim de uma caótica introdução, recheada de perdões e escusas, expliquei a ele que ali me encontrava, a pedido do chefe do Departamento, para ver como ele estava passando.
– O Mascarenhas está preocupado com a sua ausência. Intelectuais, em geral, não cuidam da própria saúde ou são orgulhosos demais para admitir que estão doentes. Por isso, ele me mandou até aqui. Para ajudar, se preciso.
– Diga ao Mascarenhas que ele deve preparar o edital para a contratação de meus sucessores nas duas disciplinas.
Depois dessas palavras, o professor Caetano explodiu numa formidável gargalhada, daquelas que trazem junto seu próprio eco.
Enquanto ele gargalhava, troquei o pé de apoio três vezes.
– Mas entre um instantinho!
Embora intimidado por aquele riso histérico, avancei. A visão das paredes da sala, inteiramente cobertas de livros, do chão ao teto, me puxou para dentro do apartamento.
Havia livros por todos os lados: na mesa, nas cadeiras, nos sofás, nos aparadores. Por toda a sala, como soldados de um batalhão em debandada, erguiam-se pilhas vacilantes de livros que exalavam o aroma da poeira longamente acumulada.
O professor Caetano retirou braçadas de livros de duas cadeiras.
– Sente-se! Há muitos anos não recebo a visita de ninguém. Estou contente em vê-lo, professor. Quero aproveitar sua presença aqui para dar início ao meu processo de desligamento da universidade.
*
Apaixonei-me também pelo Cinema. Acho que não há arte que exija mais talento que essa. É preciso ser um gênio para falar através de imagens em movimento. De início, o meu amor era platônico, quase frio, o único tipo de amor que nós, intelectuais, sabemos viver. Passei depois a adorar as imagens tanto pelo que estampavam quanto pelo que escondiam. Admirava Fellini, Buñuel e Kurosawa, os três gênios. Mas um amor só se transforma em paixão quando é amplo e generoso. Passei, então, a apreciar também as comédias, os musicais, os faroestes, as aventuras para crianças e os filmes policiais.
Vejo que neste momento, discretamente, você tenta ler o mostrador do relógio. Está com pressa. Ou com fome. Ou cansado. Deve estar doido para chegar em casa e tomar uma cervejinha. É sexta-feira. Compreendo. Não se preocupe. Vou concluir rapidamente.
Diga ao Mascarenhas que me mande até aqui alguém com a relação dos documentos que devo apresentar para requerer minha aposentadoria. Acrescente, porém, que jamais porei um pé para fora deste apartamento. Diga-lhe que aqui estou e que aqui ficarei até o fim dos meus dias, que não deve tardar.
Diga a ele que estou me lixando para tudo, diga que tenho setenta anos e que agora quero descansar. Diga a ele também que pretendo assistir a todos os filmes que foram feitos no mundo e que para isso basta que eu levante o telefone e ligue para a loja que aluga fitas de vídeo que logo chega o rapaz da motocicleta com belos filmes suecos, japoneses, italianos, franceses, espanhóis e alemães. Existem milhares de filmes e não me resta vida para assistir a todos eles, como antes não pude ler todos os livros, mas…
Diga ao Mascarenhas que não abri minha porta porque finalmente compreendi que este mundo faz parte de uma única peça escrita e dirigida por um só diretor, um sujeito cuja face ninguém conhece, que eu chamo O Sem Rosto; e que, por fim, eu percebi que esta fabulosa peça teatral vem sendo filmada o tempo inteiro por um diretor, que ninguém jamais conheceu, e que eu chamo O Sem Olhos, que pretende um dia montar um filme que seja a síntese perfeita da história da humanidade, e quem não é tolo sabe que o sol não passa de um canhão de luz, que nós nada mais somos que figurantes, e que os olhos d’O Sem Olhos são câmeras, e que um dia, se eu sair por essa porta, Ele vai gritar: Corta!
Lourenço Cazarré é escritor
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No ano mil seiscentos e cinquenta e seis do Anno Mundi 1656, ao décimo sétimo dia do Marcheshvan, rompendo todas as fontes do grande abismo e abrindo-se as cataratas do céu durante quarenta dias e quarenta noites, Deus salvou Noé pela segunda vez. A primeira foi quando Deus incumpriu a sua sentença, decretada ainda antes do cataclismo, em encurtar os dias dos homens para centos e vinte anos. É que Noé já contava seiscentos anos quando entrou na arca.
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Noé, sua mulher, seus três filhos e noras não eram uma família justa ou perfeita; na verdade, eram uma família misantrópica. Só assim se compreende que Deus os tenha escolhido; só assim se compreende que Noé, avisado por Deus do extermínio sobre a Terra – uma violência divina contra a violência humana –, não tenha tentado auxiliar os seus patrícios mais próximos. Nem sequer os compadres.
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Enquanto serrava as madeiras resinosas e comprava betume, enquanto construía a arca de trezentos côvados de comprimento, cinquenta côvados de largura e trinta côvados de altura distribuídos por três pisos, enquanto carpintejava tudo isto e calafetava tudo aquilo, enquanto reunia os animais para o acompanharem, que desculpas ou justificações deu Noé a quem lhe perguntava o que estava fazendo?
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Se de antemão Noé sabia que apenas ele e a sua família mais próxima entrariam na arca, que apenas ele e a sua família mais próxima se salvariam do dilúvio, terá comprado a madeira e o betume a pronto ou a crédito?
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Os oceanos, mares e baías possuem 1,386 mil milhões de quilómetros cúbicos de água, os lagos salgados e doces cerca de 176.400 quilómetros cúbicos, os rios somente 2.120 quilómetros cúbicos e os pântanos 11.470 quilómetros cúbicos. Deus tinha assim disponível para inundar a Terra apenas cerca de 47,8 milhões de quilómetros cúbicos, contabilizando as águas das calotes polares, dos glaciares, das neves permanentes, do pergelissolo, do gelo subterrâneo e dos aquíferos doces e salgados, bem como o vapor de água e a água existente no solo e nos seres vivos animais e vegetais, embora neste último os matasse logo a todos se a utilizasse.
Ora, sabendo-se que a superfície terrestre total é de 509,6 milhões de quilómetros quadrados; sabendo-se ainda que, para uma inundação uniforme, teria de se fazer chover nos oceanos, nos mares, nas baías, nos rios, nos lagos, e nos pântanos similar volume ao que se precipitasse em terra; então concluiu-se que um dilúvio global apenas atingiria 93,79 metros acima do actual nível médio das águas do mar. Como se diz ter Deus coberto os altos montes existentes debaixo do céu, ultrapassando em quinze côvados (cerca de 9,9 metros) o cimo de todas as montanhas, incluindo portanto os montes de Ararat, onde haveria de pousar a arca, que se situa a 5.137 metros acima do nível do mar, e sobretudo o monte Evereste, na cordilheira dos Himalaias, que se encontra 8.848,43 metros, uma questão se coloca: onde foi Deus desencantar tanta água? E para onde foi depois do Dilúvio?
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Antes de aplacar o Dilúvio, solicitou Deus a Noé que recolhesse tudo quanto houvesse de comestíveis e os armazenasse na arca, a fim de servirem de alimento à sua família e aos animais. Ora, se muitos desses animais eram carnívoros, quantas espécies se terão extinguido em plena arca durante os cinto e cinquenta dias que durou a inundação, sem contabilizar também os animais que padeceram de doenças, de má nutrição ou de desadequadas condições higieno-sanitárias?
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Deus decretou que Noé recolhesse sete pares de cada espécie de animais puros e apenas um par de cada espécie de animais impuros, porque o primeiro grupo podia ser comido e servia também para sacrifícios em holocausto durante o período de inundação. Quantas espécies se extinguiram às mãos de Noé enquanto todos estavam na arca?
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Se na Criação fez Deus todos os seres vivos – aves, monstros marinhos, peixes, animais domésticos, répteis e animais ferozes – em apenas um dia e meio, qual a razão para depois, aquando do Dilúvio, ter sobrelotado a arca com sete pares de todos os animais puros, mais um par de todos os animais impuros, e sete pares de todas as aves? Não terá sido mais fácil recriar todos os animais de novo, tornando assim mais cómoda, para Noé e sua família, a estadia na barcaça?
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No decurso do Dilúvio, as chuvas caíram durante quarenta dias e quarenta noites. Por mais cento e cinquenta dias esteve o mundo coberto pelas águas. Depois, «Deus recordou-se de Noé e de todos os animais, tanto domésticos como selvagens, que estavam com ele na arca», mandando «encerrar as fontes do abismo e as cataratas dos céus», ao mesmo tempo que «mandou um vento sobre a terra e as águas começaram a descer». No dia dezassete do sétimo mês do ano de mil seiscentos e cinquenta e seis após a Criação, «a arca poisou sobre os montes de Ararat. As águas foram diminuindo até ao décimo mês. No primeiro dia do décimo mês, emergiram os cumes das montanhas». Somente ao fim de quarenta dias Noé abriu a janela da arca e soltou um corvo, que «saiu repetidas vezes, enquanto iam secando as águas sobre a terra». Mais tarde, largou uma pomba que, «não tendo encontrado sítio para poisar», regressou à arca. Somente sete dias depois foi feita nova largada da pomba que, desta vez, regressou com uma folha verde de oliveira no bico. Noé aguardou mais sete dias e tornou a soltar a pomba «mas, desta vez, ela não regressou mais para junto dele». Desconhece-se as razões, mas a hipótese de esta pomba ter morrido está fora de hipótese, pois o seu par, o pombo, tê-la-á encontrado mais tarde, de contrário a espécie extinguia-se. Porém, subsiste um enigma: como sobreviveu a viçosa e verdejante oliveira durante todo o tempo do Dilúvio?
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Aninhado no ventre da mãe, embalava-o já aquele som melodioso. Uma espécie de canção entoada a dois. Ora em uníssono, ora revezando-se, as vozes da mãe e do pai abraçavam-se.
Os serões do jovem casal eram passados na cozinha. Ela bordava. Ele fazia-lhe companhia. Contava-lhe como tinha sido o dia na mina. Perguntava-lhe se tinha passado bem. Se o bebé se tinha mexido. Queria saber o que ela estava a bordar. E ela mostrava. Dois passarinhos.
⎼ E o que vai escrever nesse paninho, Mariana?
⎼ Machozinho e fêmea – às vezes davam beijos de biquinquim. ⎼ respondeu. António acrescentou:
⎼ a galinholagem deles. – “É preciso olhar para esses com um todo carinho…”.
⎼ De todos, o pássaro mais bonito gentil que existe é mesmo o manuelzinho-da-crôa. – completou ela.
Era esta a melodia que atravessava a mãe e embalava o filho. As palavras dos textos de Guimarães Rosa. Aprenderam-nos quando eram Miguilins. Deixaram-se encantar pelas palavras do escritor nascido na sua terra. Foi ali, naquela escolinha de Cordisburgo, que se conheceram e se apaixonaram. Na cidade do coração.
O bebé nasceu prematuro. Tão pequenino e delicado que dava até medo de pegar. O pai segurou-o cuidadosamente. Receava magoá-lo com os seus braços fortes e as mãos calejadas:
⎼ Olha só, Mariana, tão pequenininho. Parece um manuelzinho-da-crôa.
⎼ … o passarim mais bonito e engraçadinho de rio-abaixo e rio-acima. – respondeu ela com um sorriso.
Estava escolhido o nome: Manuel. Como o passarinho mais delicado, mais bonito e engraçadinho do sertão.
As palavras de Guimarães Rosa vivas. As paisagens e as personagens. Os bichos. As pessoas. As plantas. O chão. Tão familiares e tão estranhos. Eram o ali e o além. Manuelzinho memorizava as palavras dos pais. Repetia-as para si próprio. Às vezes, procurava compreendê-las.
Aos 12 anos, juntou-se aos Miguilins. Finalmente! Dedicou-se de corpo e alma à tarefa do grupo: memorizou um a um os textos que lhe foram confiados. Aprendeu a dizê-los com a voz, com o corpo, com a alma. Orgulhosos, os pais ajudavam-no. Os serões eram agora a três. Não havia na terra motivo de maior alegria do que ter um filho nos Contadores de Estórias Miguilim. Orgulho da cidade, o grupo que carrega o nome da personagem rosiana é a sua bandeira e o seu melhor embaixador.
Tal como para todos aqueles jovens, a aventura de Manuelzinho terminou aos 20 anos. Era chegado o momento de voar noutras direções. Sabia o que queria. Ia para a universidade estudar literatura. Compreendia agora a nostalgia dos pais:
⎼ Uma vez Miguilim, para sempre Miguilim. ⎼ diziam.
A universidade foi um sonho que durou apenas 4 meses. O dinheiro não chegava. Regressou a casa. Procurou emprego. Encontrou um ali bem perto, na Gruta do Maquiné. Agradou-lhe a ideia de ser guia. Gostava de contar histórias. Na gruta não seria diferente. Manuelzinho abraçou aquela sombra. Amou-a. A gruta era agora o seu sertão: Sertão é onde o pensamento da gente se forma maior que o poder do lugar, tinha aprendido.
O silêncio, as salas gigantes, o vazio. Preenchia-os com a sua luz, com as histórias, as personagens e as paisagens que povoavam a sua mente. Talvez por isso, recebia os turistas com um sorriso tímido, mas acolhedor. Palavras e gestos doces. À medida que atravessava cada uma das sete salas, contava a sua história: quem as descobriu, quando, o que ali achou, os filmes que ali foram gravados. Apontava a lanterna para as formações rochosas e mostrava castelos de fadas, abóboras gigantes, morcegos de pedra, uma língua de vaca que saía da parede. Um ralo aberto na rocha que ia dar ao Japão. Ou talvez fosse um portal para outra dimensão, quem sabe?
Certo dia, uma turista curiosa perguntou-lhe se Guimarães Rosa alguma vez tinha visitado a gruta. Manuelzinho apressou-se a dizer algumas frases do escritor a propósito daquele lugar. E fê-lo com tal entusiasmo e arte que a visitante não conseguiu esconder a perplexidade. Perguntou-lhe como tinha ele aqueles textos na ponta da língua, assim, sem qualquer preparação. Manuelzinho cresceu. Encheu o peito. Compôs o capacete. Aprumado, respondeu:
⎼ Bem, é que eu sou um ex-Miguilim, mas ex-Miguilim não existe não, moça. Ser Miguilim não sai da gente.
Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve
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Nos tempos que correm, passe a expressão coloquial, a Arte estende-se para muitas zonas, e uma delas é aquilo que se convencionou chamar de bioarte, que é o uso da biotecnologia como meio na produção de objectos artísticos, sendo por isso mesmo uma arte conceptual de difícil compreensão, como quase todas.
Essa disciplina percebeu muito bem o comportamento humano e as sua engenharia associada, sendo por isso muitas vezes praticada por pessoas ligados à ciência e aos seus dúbios mercados.
Ilustração de Alex Farac
Especialistas acham mesmo que há uma relação directa em regime de parceria, entre os caminhos que a bioarte vai tomando e a galeria Tavistock. Já para não mencionar a ligação ao fantasma do sinistro projecto MK-Ultra levado a cabo pela CIA nos anos 60, ainda que considerado um projecto obscuro e perigoso principalmente porque não controlado por artistas.
Acredita-se que a primeira obra de bioarte foi criada em 1936 por Edward Steichen, e apresentada no Museum of Modern Art, em Nova York (Lipton, 2003), embora cientistas sociais mais contemporâneos contraponham essa moldura, dizendo que a bioarte é muito mais extensível à vida e aos seus sofismas que aos confins de galerias e laboratórios, uma vez que segundo princípios hodiernos muito em voga, a arte já saiu das galerias há muito tempo e foi dar uma curva até Big Billards (Bilhar Grande em português), para nunca mais voltar à casa de partida.
E assim chegamos a A. Fauci, um artista de Brooklin, New York que devemos ter em conta e por isso acompanhamos o seu trabalho com interesse, pelo menos aquele que não está no segredo dos Deuses do Olimpo (MoMa).
Ilustração de Alex Farac
A Fauci é um criador e cientista ligado às artes performativas/visuais dos Estados Unidos há muito tempo. As artes aí nesse país, ao contrário do que muita gente pensa, são financiadas e produzidas em regime de co-produção com o próprio Governo, tendo tido um incremento e significativo avanço durante o legado do governo Obama, através de subsídios do Reserva Federal, pensa-se, não sendo um assunto muito claro para alguns especialistas. Ao contrário do que é comum pensar-se, os EUA não são um país de índole apenas capitalista ou mesmo liberal, como muitas vezes é eufemisticamente apelidado, e para o provar temos a obra pública deste renomado artista plástico, que não se deixa cativar só pelas feiras de Veneza e pelos Fóruns de São Paulo (ainda hoje controlados pelo curador Lula da Silva, outro artista de calibre magnum), mas também pela arte pública contemporânea já hegemónica em muitos países, com
artistas revolucionários a ocuparem imensas fachadas locais e mesmo estações de metro e pastelarias.
O mundo mudou definitivamente.
Hoje sabe-se por exemplo, que a própria CIA financiou Jason Polock, mostrando não ficar à época atrás do KGB, que também financiou inúmeros artistas soviéticos, incentivando-os mesmo a brutais e magnificas performances para além de residências na Sibéria, que muitas vezes acabavam na morte dos próprios criadores naquilo que se chamou de Gulagart.
Sabe-se hoje que a bioarte acarreta os seus perigos e não fossem os Estados a financiarem os criadores, seria uma arte de difícil expansão e aceitação, tendo mesmo na esfera pós-moderna ido para além da moral e até mesmo da ética como infelizmente adivinhamos que terá de ser, uma vez que esse é um dos apanágios da própria disciplina para que a evolução aconteça. Senão, como teríamos saído das cavernas?
Ilustração de Alex Farac
Michele Foucault e muitos outros legitimam teoricamente estas acções de intoxicação voluntária, pelo menos queremos acreditar, até mesmo pelas experiências corporais infringidas pelo próprio filósofo numa cultura sado-masoc, para se insurgir e desconstruir (e bem quanto a nós), a mediocridade e hipocrisia do poder dominante ainda elencado por pessoas e políticas conservadoras ligadas a Vichy. Também acreditamos que se trata de uma difícil tarefa para os artistas que não deixam também de ser vitimas de si mesmos, se olharmos para a psicanálise, ou mesmo para se tornarem mártires pós-modernos a quem muito temos de agradecer pelos seus sacrifícios a bem da humanidade e do progresso (não estando a ser cínico evidentemente mas sim clinico como mandam as regras do bom jornalismo).
Podemos atirar as “culpas” também a outro vulto chamado Charles Darwin, apelidado por alguns dadaístas de monkey-artist (artista-dos-macacos), tendo sido a sua teoria da transmutação da espécie aceite pelo sistema depois de fortes polémicas.
Não só as artes agradeceram a generosidade destes artistas, como também a própria ciência de onde provém inicialmente A. Fauci, vindo, no entanto, a doutorar-se mais tarde em Artes Performativas, sendo sempre agraciado pelos distintos governos, tanto democratas como republicanos, provando que a sua criatividade ultrapassa horizontes e fronteiras tanto horizontais como verticais.
Fauci também tem ligações profundas a laboratórios de pesquisa na China onde tem feito e incentivado residências, nomeadamente na cidade de Huan, onde esfomeados morcegos se alimentam de ingénuos pangolins, tornando-se um terreno fértil de pesquisa no singular país dos dois sistemas.
E por falar em fauna, sabemos também que o performer americano fez experiências com cães de raça com um exorbitante contrato federal de 1,8 milhão de dólares para performances científicas com cães de uma raça específico que por falta de dados não conseguimos apurar (tendo também em conta toda a desinformação que existe na Net).
Ilustração de Alex Farac
Este caso levantou sérias preocupações e questões a senadores conservadores que nada percebem de arte conceptual nos EUA, dedicando-se muitas vezes a doar fundos para igrejas e para “artistas” evangélicos. Naquele caso foi Joni Ernst do inefável e ignorante Estado do Iowa, que observou que experiências anteriores financiadas pelo Governo Federal, em cães sob a tutela de Fauci, incluíram cortar as suas cordas vocais, infestar os cães com pequenos aracnídeos ectoparasitas hematófagos, e ainda colocar os mesmos em gaiolas com moscas infecciosas em regime de co-habitaçao. Experiências artísticas com animais já tiveram melhores dias, mas Fauci não quer limitar-se a canídeos já que pretende fazê-lo também com humanos.
Mas os caminhos já haviam sido abertos há muito pelo coelho de Beuyes, ou pelas ovelhas de Dolly, passando pelos tubarões de Damian Hirst ou pelos elefantes dos caçadores colonialistas. Temos pena.
É preciso haver progresso.
Sabe-se pelo Economist e, ainda que não tão detalhadamente, pelo New York Times, que A. Fauci prepara uma performance duradoura, arriscada, minuciosa e claro, como todas as geniais, sofrida, a nível mundial, em que os diferentes governos dos muitos países se propuseram financiar numa epopeia mais que transatlântica. Mas, devendo-se a um natural e aceitável segredo artístico-científico, sabemos apenas de alguns pormenores.
Confirma-se, no entanto, a expectável excitação da maior parte dos artistas dos diferentes países, tanto conhecidos como menos, tendo já estes declarado o seu entusiasmo publicamente, chegando mesmo a voluntariarem-se uma boa parte para auxiliar na difícil tarefa performática a que o artista se propõe.
Sabe-se também da anuência dos diferentes canais mainstream a nível global em que se incluem países diferentes como a Polónia, a Itália ou mesmo a Hungria do ditador Orban. O estranho aqui, mas digno de festejo, é a exuberância e entusiasmo dos diferentes quadrantes políticos desde a extrema-esquerda à extrema-direita que têm aderido ao quase-manifesto do artista norte-americano, provando que a arte esbate fronteiras sempre que seja o Humano a estar em jogo para nos unir nesta epopeia com contornos de novela gráfica.
Ilustração de Ruy Otero
Sabemos hoje que somos todos iguais, mas como diz Orwell ainda há uns mais iguais que outros. Ora é mesmo esse um dos paradigmas que o artista quer evidenciar criticamente.
Temos conhecimento também que tem o apoio, entre outros monstros assinaláveis, da Bayer e mesmo da esquecida Pfizer. Ouvimos pela própria boca do artista que será na China onde a primeira performance terá lugar, o que só prova também a abertura democrática do país insular.
Outro dos aspectos que se ouve falar em off é a do pedido especial às populações de todo o mundo, mesmo contando com a Tanzânia, para o uso prolongado da máscara hospitalar e da permanência em casa durante pelo menos quinze dias, de forma que o artista possa aplanar a curva em segurança.
Ruy Otero é artista media
N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.
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