Etiqueta: Cultura

  • O Miguilim da gruta

    O Miguilim da gruta

    Aninhado no ventre da mãe, embalava-o já aquele som melodioso. Uma espécie de canção entoada a dois. Ora em uníssono, ora revezando-se, as vozes da mãe e do pai abraçavam-se.

    Os serões do jovem casal eram passados na cozinha. Ela bordava. Ele fazia-lhe companhia. Contava-lhe como tinha sido o dia na mina. Perguntava-lhe se tinha passado bem. Se o bebé se tinha mexido. Queria saber o que ela estava a bordar. E ela mostrava. Dois passarinhos.

    ⎼ E o que vai escrever nesse paninho, Mariana?

    Machozinho e fêmea – às vezes davam beijos de biquinquim. ⎼ respondeu. António acrescentou:

    ­⎼  a galinholagem deles. – “É preciso olhar para esses com um todo carinho…”.

    De todos, o pássaro mais bonito gentil que existe é mesmo o manuelzinho-da-crôa. – completou ela. 

    black and yellow wall sconce

    Era esta a melodia que atravessava a mãe e embalava o filho. As palavras dos textos de Guimarães Rosa. Aprenderam-nos quando eram Miguilins. Deixaram-se encantar pelas palavras do escritor nascido na sua terra. Foi ali, naquela escolinha de Cordisburgo, que se conheceram e se apaixonaram. Na cidade do coração.

    O bebé nasceu prematuro. Tão pequenino e delicado que dava até medo de pegar. O pai segurou-o cuidadosamente. Receava magoá-lo com os seus braços fortes e as mãos calejadas:

    ⎼ Olha só, Mariana, tão pequenininho. Parece um manuelzinho-da-crôa.

    ⎼  … o passarim mais bonito e engraçadinho de rio-abaixo e rio-acima. – respondeu ela com um sorriso.

    Estava escolhido o nome: Manuel. Como o passarinho mais delicado, mais bonito e engraçadinho do sertão.

    As palavras de Guimarães Rosa vivas. As paisagens e as personagens. Os bichos. As pessoas. As plantas. O chão. Tão familiares e tão estranhos. Eram o ali e o além.  Manuelzinho memorizava as palavras dos pais. Repetia-as para si próprio. Às vezes, procurava compreendê-las.

    Aos 12 anos, juntou-se aos Miguilins. Finalmente! Dedicou-se de corpo e alma à tarefa do grupo: memorizou um a um os textos que lhe foram confiados. Aprendeu a dizê-los com a voz, com o corpo, com a alma. Orgulhosos, os pais ajudavam-no. Os serões eram agora a três.  Não havia na terra motivo de maior alegria do que ter um filho nos Contadores de Estórias Miguilim.  Orgulho da cidade, o grupo que carrega o nome da personagem rosiana é a sua bandeira e o seu melhor embaixador.

    open book lot

    Tal como para todos aqueles jovens, a aventura de Manuelzinho terminou aos 20 anos. Era chegado o momento de voar noutras direções. Sabia o que queria.  Ia para a universidade estudar literatura. Compreendia agora a nostalgia dos pais:

    ⎼ Uma vez Miguilim, para sempre Miguilim. ⎼ diziam.

    A universidade foi um sonho que durou apenas 4 meses. O dinheiro não chegava. Regressou a casa. Procurou emprego. Encontrou um ali bem perto, na Gruta do Maquiné. Agradou-lhe a ideia de ser guia. Gostava de contar histórias. Na gruta não seria diferente. Manuelzinho abraçou aquela sombra. Amou-a.  A gruta era agora o seu sertão:  Sertão é onde o pensamento da gente se forma maior que o poder do lugar, tinha aprendido.

    O silêncio, as salas gigantes, o vazio. Preenchia-os com a sua luz, com as histórias, as personagens e as paisagens que povoavam a sua mente. Talvez por isso, recebia os turistas com um sorriso tímido, mas acolhedor. Palavras e gestos doces. À medida que atravessava cada uma das sete salas, contava a sua história: quem as descobriu, quando, o que ali achou, os filmes que ali foram gravados.  Apontava a lanterna para as formações rochosas e mostrava castelos de fadas, abóboras gigantes, morcegos de pedra, uma língua de vaca que saía da parede. Um ralo aberto na rocha que ia dar ao Japão. Ou talvez fosse um portal para outra dimensão, quem sabe?

    Certo dia, uma turista curiosa perguntou-lhe se Guimarães Rosa alguma vez tinha visitado a gruta. Manuelzinho apressou-se a dizer algumas frases do escritor a propósito daquele lugar. E fê-lo com tal entusiasmo e arte que a visitante não conseguiu esconder a perplexidade. Perguntou-lhe como tinha ele aqueles textos na ponta da língua, assim, sem qualquer preparação.  Manuelzinho cresceu. Encheu o peito. Compôs o capacete. Aprumado, respondeu:

     ⎼ Bem, é que eu sou um ex-Miguilim, mas ex-Miguilim não existe não, moça. Ser Miguilim não sai da gente.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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  • Anthony Fauci, o artista

    Anthony Fauci, o artista

    Nos tempos que correm, passe a expressão coloquial, a Arte estende-se para muitas zonas, e uma delas é aquilo que se convencionou chamar de bioarte, que é o uso da biotecnologia como meio na produção de objectos artísticos, sendo por isso mesmo uma arte conceptual de difícil compreensão, como quase todas.

    Essa disciplina percebeu muito bem o comportamento humano e as sua engenharia associada, sendo por isso muitas vezes praticada por pessoas ligados à ciência e aos seus dúbios mercados.

    Ilustração de Alex Farac

    Especialistas acham mesmo que há uma relação directa em regime de parceria, entre os caminhos que a bioarte vai tomando e a galeria Tavistock. Já para não mencionar a ligação ao fantasma do sinistro projecto MK-Ultra levado a cabo pela CIA nos anos 60, ainda que considerado um projecto obscuro e perigoso principalmente porque não controlado por artistas.  

    Acredita-se que a primeira obra de bioarte foi criada em 1936 por Edward Steichen, e apresentada no Museum of Modern Art, em Nova York (Lipton, 2003), embora cientistas sociais mais contemporâneos contraponham essa moldura, dizendo que a bioarte é muito mais extensível à vida e aos seus sofismas que aos confins de galerias e laboratórios, uma vez que segundo princípios hodiernos muito em voga, a arte já saiu das galerias há muito tempo e foi dar uma curva até Big Billards (Bilhar Grande em português), para nunca mais voltar à casa de partida.

    E assim chegamos a A. Fauci, um artista de Brooklin, New York que devemos ter em conta e por isso acompanhamos o seu trabalho com interesse, pelo menos aquele que não está no segredo dos Deuses do Olimpo (MoMa).

    Ilustração de Alex Farac

    A Fauci é um criador e cientista ligado às artes performativas/visuais dos Estados Unidos há muito tempo. As artes aí nesse país, ao contrário do que muita gente pensa, são financiadas e produzidas em regime de co-produção com o próprio Governo, tendo tido um incremento e significativo avanço durante o legado do governo Obama, através de subsídios do Reserva Federal, pensa-se, não sendo um assunto muito claro para alguns especialistas. Ao contrário do que é comum pensar-se, os EUA não são um país de índole apenas capitalista ou mesmo liberal, como muitas vezes é eufemisticamente apelidado, e para o provar temos a obra pública deste renomado artista plástico, que não se deixa cativar só pelas feiras de Veneza e pelos Fóruns de São Paulo (ainda hoje controlados pelo curador Lula da Silva, outro artista de calibre magnum), mas também pela arte pública contemporânea já hegemónica em muitos países, com

    artistas revolucionários a ocuparem imensas fachadas locais e mesmo estações de metro e pastelarias.

    O mundo mudou definitivamente.

    Hoje sabe-se por exemplo, que a própria CIA financiou Jason Polock, mostrando não ficar à época atrás do KGB, que também financiou inúmeros artistas soviéticos, incentivando-os mesmo a brutais e magnificas performances para além de residências na Sibéria, que muitas vezes acabavam na morte dos próprios criadores naquilo que se chamou de Gulagart.

    Sabe-se hoje que a bioarte acarreta os seus perigos e não fossem os Estados a financiarem os criadores, seria uma arte de difícil expansão e aceitação, tendo mesmo na esfera pós-moderna ido para além da moral e até mesmo da ética como infelizmente adivinhamos que terá de ser, uma vez que esse é um dos apanágios da própria disciplina para que a evolução aconteça. Senão, como teríamos saído das cavernas?

    Ilustração de Alex Farac

    Michele Foucault e muitos outros legitimam teoricamente estas acções de intoxicação voluntária, pelo menos queremos acreditar, até mesmo pelas experiências corporais infringidas pelo próprio filósofo numa cultura sado-masoc, para se insurgir e desconstruir (e bem quanto a nós), a mediocridade e hipocrisia do poder dominante ainda elencado por pessoas e políticas conservadoras ligadas a Vichy. Também acreditamos que se trata de uma difícil tarefa para os artistas que não deixam também de ser vitimas de si mesmos, se olharmos para a psicanálise, ou mesmo para se tornarem mártires pós-modernos a quem muito temos de agradecer pelos seus sacrifícios a bem da humanidade e do progresso (não estando a ser cínico evidentemente mas sim clinico como mandam as regras do bom jornalismo).

    Podemos atirar as “culpas” também a outro vulto chamado Charles Darwin, apelidado por alguns dadaístas de monkey-artist (artista-dos-macacos), tendo sido a sua teoria da transmutação da espécie aceite pelo sistema depois de fortes polémicas.

    Não só as artes agradeceram a generosidade destes artistas, como também a própria ciência de onde provém inicialmente A. Fauci, vindo, no entanto, a doutorar-se mais tarde em Artes Performativas, sendo sempre agraciado pelos distintos governos, tanto democratas como republicanos, provando que a sua criatividade ultrapassa horizontes e fronteiras tanto horizontais como verticais.

    Fauci também tem ligações profundas a laboratórios de pesquisa na China onde tem feito e incentivado residências, nomeadamente na cidade de Huan, onde esfomeados morcegos se alimentam de ingénuos pangolins, tornando-se um terreno fértil de pesquisa no singular país dos dois sistemas.

    E por falar em fauna, sabemos também que o performer americano fez experiências com cães de raça com um exorbitante contrato federal de 1,8 milhão de dólares para performances científicas com cães de uma raça específico que por falta de dados não conseguimos apurar (tendo também em conta toda a desinformação que existe na Net).

    Ilustração de Alex Farac

    Este caso levantou sérias preocupações e questões a senadores conservadores que nada percebem de arte conceptual nos EUA, dedicando-se muitas vezes a doar fundos para igrejas e para “artistas” evangélicos. Naquele caso foi Joni Ernst do inefável e ignorante Estado do Iowa, que observou que experiências anteriores financiadas pelo Governo Federal, em cães sob a tutela de Fauci, incluíram cortar as suas cordas vocais, infestar os cães com pequenos aracnídeos ectoparasitas hematófagos, e ainda colocar os mesmos em gaiolas com moscas infecciosas em regime de co-habitaçao. Experiências artísticas com animais já tiveram melhores dias, mas Fauci não quer limitar-se a canídeos já que pretende fazê-lo também com humanos.

    Mas os caminhos já haviam sido abertos há muito pelo coelho de Beuyes, ou pelas ovelhas de Dolly, passando pelos tubarões de Damian Hirst ou pelos elefantes dos caçadores colonialistas. Temos pena.

    É preciso haver progresso.

    Sabe-se pelo Economist e, ainda que não tão detalhadamente, pelo New York Times, que A. Fauci prepara uma performance duradoura, arriscada, minuciosa e claro, como todas as geniais, sofrida, a nível mundial, em que os diferentes governos dos muitos países se propuseram financiar numa epopeia mais que transatlântica. Mas, devendo-se a um natural e aceitável segredo artístico-científico, sabemos apenas de alguns pormenores.

    Confirma-se, no entanto, a expectável excitação da maior parte dos artistas dos diferentes países, tanto conhecidos como menos, tendo já estes declarado o seu entusiasmo publicamente, chegando mesmo a voluntariarem-se uma boa parte para auxiliar na difícil tarefa performática a que o artista se propõe.

    Sabe-se também da anuência dos diferentes canais mainstream a nível global em que se incluem países diferentes como a Polónia, a Itália ou mesmo a Hungria do ditador Orban. O estranho aqui, mas digno de festejo, é a exuberância e entusiasmo dos diferentes quadrantes políticos desde a extrema-esquerda à extrema-direita que têm aderido ao quase-manifesto do artista norte-americano, provando que a arte esbate fronteiras sempre que seja o Humano a estar em jogo para nos unir nesta epopeia com contornos de novela gráfica.

    Ilustração de Ruy Otero

    Sabemos hoje que somos todos iguais, mas como diz Orwell ainda há uns mais iguais que outros. Ora é mesmo esse um dos paradigmas que o artista quer evidenciar criticamente.

    Temos conhecimento também que tem o apoio, entre outros monstros assinaláveis, da Bayer e mesmo da esquecida Pfizer. Ouvimos pela própria boca do artista que será na China onde a primeira performance terá lugar, o que só prova também a abertura democrática do país insular.

    Outro dos aspectos que se ouve falar em off é a do pedido especial às populações de todo o mundo, mesmo contando com a Tanzânia, para o uso prolongado da máscara hospitalar e da permanência em casa durante pelo menos quinze dias, de forma que o artista possa aplanar a curva em segurança.

    Ruy Otero é artista media


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


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  • Ilhados

    Ilhados


    E disse Maria ao anjo: Como se fará isto, visto que não conheço varão?

    Lucas I, 24


    Choveu a noite inteira.

    Com as trevas, veio a chuva. De início, mansa, silenciosa, pouco mais que uma garoa. Então todos se recolheram às suas casinhas de madeira e pouco depois as luzes foram apagadas porque eram pescadores e teriam de sair cedo para a lagoa no dia seguinte. Era uma vila de casebres, que pareciam ter sido improvisados sobre a areia estéril da praia, nada mais que frágeis caixotes de madeira corrompida, vulneráveis.

    E todos eles dormiram embalados pela chuvinha sobre o teto e, mais tarde, quando começou o temporal, tiveram sonhos ruins. Eram ribombos sacudindo as janelas, raios finos retalhando o céu e um vento frio que se enfiava pelas frestas. Parecia que aquela tormenta não teria fim.

    Por causa dos trovões e dos laçaços da chuva no teto de zinco das casinhas, ele pode serrar e martelar tranquilo, como se fosse marceneiro e não pescador. Ninguém viu quando ele, lutando contra o vento, lampião balouçando na mão, saiu para o pátio e pegou a tora de madeira. Dois ou três raios se afogaram nas águas distantes enquanto ele a arrastava até a porta dos fundos, que estava escancarada. Como tinha empurrado as cadeiras para o canto, pôde passar, espremido, entre o armário e a mesa.

    photo of body of water and droplets

    Depositou a madeira no chão de terra batida, soltou o lampião em cima da mesa e puxou o banquinho. Ainda havia tempo para recuar. Não que tivesse qualquer dúvida a respeito do valor que sua empreitada teria para Deus, que aceita de bom grado todos os nossos sacrifícios, mas porque acreditava, justo que era, que, no fundo da alma, os homens conspurcam tudo que fazem, mesmo suas mais nobres ações, se pensam em demasia sobre elas.

    Fazia aquilo por amor a Deus ou por orgulho e soberba? Não era, ele próprio, também um pecador? Tudo muito confuso.

    Mais do que a indiferença dos homens, temia a chacota, porque podemos muito bem suportar os corações desapiedados, que se fecham à nossa passagem, mas a dor que sentimos quando zombam da nossa fé é insuportável, e não adianta nos lembrarem que Ele ofereceu a outra face porque a ira que nos invade o peito é irrefreável. De todo modo, talvez o temporal, que prendia todos dentro de suas casas, que os tornava surdos para a barulheira do serrote, fosse um sinal positivo do Senhor.

    Colocou a tora sobre o banquinho e se pôs a serrar.

    Cortou confiando no olho, não mediu nada. Como a madeira estava úmida, padeceu com o serrote enferrujado. Gostava da palavra madeiro. Madeiro era palavra de homem de fé. Rezava enquanto o serrote, penosamente, subia e descia.

    Na hora de nossa morte, amém.

    Pensou na estrada até o barranco, que teriam de percorrer de pés descalços. Sangrariam por causa das pequenas pedras pontiagudas do caminho. Mas fazia parte do holocausto.

    O Senhor nos dará forças.

    Quando a madeira se partiu, respirou fundo. Perfume bom de terra molhada e de serragem. As coisas de Deus cheiram bem. As dos homens, não. Os bafios da sua própria casa, por exemplo: a sopa do magro jantar, o último cigarro e o ranço peculiar, entre doce e amargo, de fêmea adormecida.

    brown cross on brown surface

    Tinha agora dois pedaços de madeira, o mais curto era para os braços. Marcou o lugar onde deveria fazer o encaixe. Recomeçou a serrar. Difícil concentrar-se nas orações. Pensava num homem de barbas brancas, seminu, voando entre anjos, quando murmurava Pai Nosso que estais no Céu. Via um letreiro luminoso, desses de fachada de loja grande, quando rezava Santificado seja o Vosso nome.

    Pegou o formão para fazer o chanfrado. Um cansaço quase invencível pesava-lhe nas pálpebras. Podia dormir, uns minutos só, sentado numa cadeira. Não! Passou a mão áspera pelo rosto, esfregou os olhos e persignou-se. Aquela soneira, está visto, era tentação do Capeta. Sacudiu os ombros magros e foi apanhar os pregos na gaveta do armário.

    Arrastando os dois pedaços de madeira, saiu para a tempestade. Aproveitou-se da nesga de luz do lampião, que escapava dançarina pela porta aberta, para cruzá-las. O encaixe não ficou lá essas coisas, mas ele não era marceneiro, como José. Os pregos entraram com facilidade na madeira úmida. O lenho. Gostava das palavras que o padre usava na missa. Santo Lenho. Guardou no bolso os pregos, para as mãos. A voz do padre dava dignidade até mesmo às coisas bem pequenas. O madeiro. O Santo Lenho.

    Martelando afastara o cansaço.

    Livrai-nos do mal, amém.

    Para onde teria o vento furioso levado o som dos golpes do martelo?

    Olhos fechados, chuva braba no rosto erguido para o céu negro, o homem ficou escutando o batuque do seu coração acelerado. Sentiu o sangue pulsando forte nas têmporas. Tudo é usado pelo Tinhoso para distrair a gente das rezas. Mas ainda bem que o trabalho duro mantém o demônio longe de nós.

    Venha a nós o Vosso reino: um castelo; assim na terra como no céu: um castelo entre as nuvens.

    Rezava para não pensar. De que adianta viver se atormentando? As coisas só se resolvem quando O Pai quer que se ajeitem. Às vezes, nos sonhos ou na vigília, Ele nos diz o que devemos fazer. Aquela cruz, no pátio, sobre o barro, por exemplo.

    Mas tinha de partir logo! Um homem de crença não pode vacilar. Um cidadão de bem não pode ficar parado sem fazer nada quando Deus Pai lhe deu uma missão. A cruz estava pronta. Não sabia quanto tempo gastariam para vencer a estrada. O barranco, frente à lagoa, era alto como um morro santo. A voz doce do padre. O Gólgota.

    a hammer and a block of wood on top of a bench

    *

    Por uns instantes, quando começou a chover mais forte, a mocinha sentiu uma alegria intolerável. Riu, rosto enfiado sob as cobertas. Uma alegria explosiva no coração. Água nas ruas, água dentro dela. No centro do corpo, atrás do umbigo, a nascente de água. Pensou naquele barulho quando a gente toma água demais. Marulho interior. E no meio das águas um menino encantador, Pequeno Polegar.

    Depois veio a tristeza, grossa e visguenta, como a aflição dos pesadelos, como o desalento que nos invade quando descobrimos que todos os dias são iguais e que seguirão sendo iguais até o final dos tempos.

    Perdera a mãe um ano antes. Recordava o dia terrível em que ao chegar da escola se defrontou com o pai na porta da casa, a esperá-la. Tua mãe morreu, disse ele. Vamos à cidade. Aquele foi o dia mais doloroso e lento de todos. Sentada no banco duro do hospital esperou pelo pai que percorria as funerárias pechinchando o preço do caixão. Por fim, por uns poucos instantes, pode ver pela última vez o rosto de sua mãe; mas não conseguiu beijá-la, porque os coveiros estavam com pressa. E no dia seguinte não foi mais à escola.

    Nas noites frias, gostava de dormir agarrando os joelhos ossudos contra os seios pequenos, mas tinha de parar com isso agora. Sufocava o Pequeno Polegar.

    Na escola, os dias eram diferentes porque sempre alguém dizia ou fazia uma coisa engraçada e na hora do recreio pegavam sol na cara. E elas, as meninas mais velhas, até flertavam, mesmo sendo aqueles guris uns crianções. Olhavam para eles de cima, não só porque eram mais altas, mas porque tinham seios e fluxos. E eles apenas corriam feito loucos e se davam coices e empurrões.

    Os dias se tornam iguais, tristes, quando a gente deixa a escola. Quis continuar estudando, bastava-lhe um expediente para fazer a lida: varrer a casa, lavar e passar a roupa, cozinhar. Mas o pai não permitiu. Disse que ela tinha de ser a dona da casa e ele não sabia de donas de casa que estudassem.

    Se, pelo menos, possuíssem um radinho de pilha! Gostava de música. E nem na janela podia ficar, o pai não deixava.

    Agora estava grávida, tinha dentro de si o Pequeno Polegar, não precisava de mais ninguém. De início temera a reação do pai, mas ele não falou nada. Sabia, sim, que a filha estava prenha, via a crescente barriga redonda, mas não disse lhufas. Ele, que já não falava quase, simplesmente se fechou. Isso foi o pior. Esperava ser xingada e agredida, talvez até mesmo expulsa de casa, mas o pai apenas se entrincheirou num mutismo ainda mais impenetrável. Agora, viviam como inimigos, inimigos que se vigiavam o tempo todo.

    Já nos primeiros dias, quando sentiu que não lhe vinha o sangue, decidiu que, por nada neste mundo, confessaria o nome do pai da criança. Guardaria sozinha o terrível segredo.

    sky filled with stars photography during nighttime

    Mocinha com criança na barriga fica mais esperta, mais matreira. Sabia que não podia esperar boa coisa do pai. Aquele mutismo era de rancor. Era silêncio de tocaia, de bicho caborteiro preparando o bote. Alguma coisa ele estava arquitetando, calado. Ela até pensou mesmo em morrer, em se deixar matar, mas isso foi no começo, nos dias de maior vergonha e desespero, quando queria encontrar aberta uma passagem para as chamas do inferno. Sim, a vergonha queimava como fogo. Aquele era pecado dos brabos, mortal, coisa para danação eterna. Pecado sem remissão. O pior dos pecados do mundo. Por isso aceitaria morrer junto com a semente que trazia no ventre. Não se pode matar um ser humano, está certo, mas e na sua condição? O que se pode esperar de uma criança gerada no mais hediondo dos pecados?

    Mas tudo neste mundo de Deus tem um fim, até mesmo a maior das vergonhas e o pior dos remorsos. Especialmente quando se sente o primeiro chute da criança. Então a gente se transforma. Por isso, agora, vigiava todos os movimentos do pai, movimentos de gato traiçoeiro.

    Quando sentiu no corpo o visgo da umidade fria do temporal estava com muito sono, olhos areentos, braços pesados. O pai ainda estava no seu quartinho, sentado na cama, fumando. Ela sabia que só poderia dormir depois de ouvir o estralejar do colchão de palha sob o magro corpo do seu pai. Poderia então relaxar um pouco, dormir o sono inquieto dos que temem uma armadilha. Depois de um primeiro sono, breve e profundo, dormiria outros, mais demorados, porém mais leves. Acordaria, então, ao menor movimento do homem que vigiava. Sabia que a cada dia tinha de redobrar os cuidados, mas a sucessão das vigílias sem incidentes a esgotara. Por isso, naquela noite, não escutou nem o serrote nem o martelo.

    Foi acordada pelo pai, que tinha o mesmo rosto fechado do dia em que lhe morrera a mulher.

    – Vamos!

    Permaneceu calada por uns instantes, seus sentidos captando toda a noite ao redor: a chuva grossa, o rugido dos trovões, o silêncio da casa adormecida, a respiração ofegante do pai, o frio que penetrava pela porta aberta da cozinha e o cintilo dos raios entrando pelas frestas. Ruim mesmo era o que não via nem ouvia, o horror que pressentia escondido no convite.

    – Vamos pra onde?

    O homem não respondeu. A filha notou então que ele estava com a cinta na mão. Apanhara muito antes de ter sua primeira regra, estava acostumada, mas naquela noite notou que a fivela de ferro pendia na ponta da cinta dobrada ao meio. Levantou-se. Não podia apanhar, não por ela, mas pela criança. Como era mulher, insensivelmente, ajeitou os cabelos. O sono se fora e o cansaço também. Alguma coisa tinha de ser feita e ela a faria, o mais depressa que pudesse, porque a criança tinha que voltar para o quente da cama. Enfiou a capa de oleado.

    silhouette of cloud with sunlight

    Saíram para a chuva.

    A nesga de luz que fugia pela porta da cozinha iluminava a cruz.

    *

    O dia se insinuava por trás da lagoa quando o padre e o comerciante entraram no casebre.

    Na sala, viram a mocinha deitada no sofá que usava como cama, o rosto virado para a parede, o cobertor cinzento moldando-lhe as curvas do corpo.

    Passaram ao quarto. Afundado na cama, o rosto tisnado destacando-se contra o branco do travesseiro, o pescador parecia ainda mais magro e triste. Seus olhos, pequenos e duros, luziram, entre raivosos e resignados, ao ver os visitantes.

    O padre ajoelhou-se ao lado da cama e, sem olhar diretamente para o pescador, perguntou-lhe se queria se confessar.

    O comerciante tomou a palavra:

    – Ele não deu um pio na vinda até aqui, padre. No geral, ele quase nunca abre a boca. Acho que agora não vai falar nada.

    – Mas eu preciso saber exatamente o que aconteceu, pra perdoá-lo.

    Cabeça abaixada, mãos unidas, o sacerdote parecia rezar.

    Depois de um fundo suspiro, o comerciante voltou a falar:

    – O pobre vivente não mexe um só dedo. É como eu lhe disse, padre. Ele deve de ter quebrado o espinhaço quando caiu de cima do barranco. Como é que pode um homem ficar louco de uma hora pra outra? Onde ele foi buscar a ideia daquela cruz…

    – Cruz? – indagou o padre. Era um homem jovem e bonito. Cabelos negros, olhos índios, pele amorenada.

    – Eu já não lhe falei na cruz? Ela estava cravada no chão no alto daquele barranco que tem ali na curva da estrada. Uma cruzona de mais de dois metros.

    O pescador voltou o rosto para a janela fechada, desinteressado dos homens que o ladeavam.

    person touching hands

    Depois de uma breve pausa, o comerciante recomeçou a contar, com a mesma ênfase caótica, a desencontrada história que iniciara ao bater na porta da sacristia.

    – Como lhe disse, eu estava voltando pra casa, porque não consegui ir até a cidade. Eu queria comprar combustível. Bem, quando cheguei na ponte sobre o arroio, vi que a água já estava cobrindo tudo. Aí, pensei cá comigo: estamos ilhados de novo. E comecei a voltar. Eu vinha até meio desatento, xingando Deus e o mundo. Estava muito escuro ainda. De repente, um raio mais forte alumiou tudo e eu pude ver aquela barranca bem alta perto da margem da lagoa. É tudo pelado lá em cima, sem uma árvore, porque o vento não deixa nenhuma semente se criar naquele ponto. Na beira do barranco, eu vi a cruz.

    O comerciante persignou-se.

    – De início, tive medo, seu padre. Cruz é coisa de Deus. Depois, em seguida, me atentei pra uma outra sombra. Parecia gente acocorada. Parei o jipe e fiquei olhando a escuridão, mas, aí, quando veio outro raio, vi mesmo a cruz e aquilo outro que devia de ser uma pessoa.

    Cabeça inclinada, o sacerdote observava atentamente o homem que falava.

    – Saltei do carro. E me botei a patinar no lodo da encosta em direção ao alto da barranca. Penei uma barbaridade pra subir. Veja, um homem da minha corpulência! Lá, em cima, encontrei a guria ajoelhada diante da cruz, de mãos postas, rezando. Parecia em estado de choque, a coitadinha. Comecei a falar com ela. De início, ela não dizia coisa com coisa. No chão, eu vi uns pregos grandes e um martelo. Aos poucos, ela foi se acalmando. E falando. Então eu entendi o caso. O pai queria crucificar a pobrezinha. Mas ela se defendeu, e acabou jogando ele lá de cima do barranco. Bah, estava um frio bárbaro lá no alto! Aí, peguei ela pela mão e, resvalando, descemos a ribanceira. No jipe, passei uma manta por cima dela.

    O comerciante fez uma pausa. Sabia que tinha toda a atenção do padre.

    – Depois de acomodar a guria, saí do carro e, de lanterna em punho, me fui procurar o pai. Não demorou nada. Mal meti o facho de luz nas macegas, eu vi esse pobre homem aí – com um gesto do queixo trêmulo, apontou o pescador – caído no chão, estatelado, os braços abertos. Arrastei o coitado até o jipe. Era um peso morto, um saco de batatas. E aquela areia fofa da praia cansa demais as pernas da gente. Deitei ele na traseira e pensei cá comigo: deve de ter caído de ponta-cabeça e arrebentado o espinhaço, não escapa de ficar paralítico.

    Pelas frestas da janela fechada entravam os primeiros raios grises do dia.

    a church with pews and stained glass windows

    – Aí, quando eu ia dar a partida no carro, a manta caiu de cima dos ombros dela. Fui ajeitar. Senti então uma coisa gosmenta nos meus dedos. Foquei a lanterna e vi. Era sangue mesmo. Devia de ser de carregar a cruz nos ombros. Mas será que tinha levado a cruz daqui até lá, estirão de uns dois quilômetros? Perguntei, mas ela não me respondeu. Só gemia. Aí, me vim, desembestado, pra cá. Mas o pior aconteceu aqui, na chegada. Quando descia do carro, ela fez água. Muita água. Aí, eu entendi que ela estava prenha. Devia de ter arrebentado a tal de bolsa. De modos que o parto é coisa pra logo, pensei. Larguei eles por aqui e fui correndo chamar o senhor. Veja, seu padre, uma guria que nem quinze anos tem!

    Depois de renovar o ar dos pulmões com mais um largo suspiro, o comerciante voltou a falar.

    – É como dizia minha mãe: em casa de pobre, o pão cai sempre com a manteiga pra baixo. O pai endoidou, quis pregar a filha numa cruz. A guria empurrou ele de cima do barranco e o coitado, agora, na certa vai ficar paralítico. Já a guria, pelo lado dela, está buchuda e resolveu parir justo quando estamos ilhados, justo quando não temos como chegar ao hospital.

    O homem interrompeu a narrativa ao mesmo tempo que um sorriso malicioso corria-lhe pela carantonha.

    Lentamente, agachou-se ao lado do sacerdote e sussurrou-lhe no ouvido:

    – Sabe o que me passou pela cabeça?

    – Não! – respondeu o padre, sobressaltado.

    – Que a guria foi embarrigada pelo próprio pai. Ele sempre foi meio maluco, mas piorou depois que a mulher dele morreu. Deve de ter abusado da filha. Aí, quando viu que ela estava barriguda, revolveu crucificar.

    – Vá correndo buscar a parteira! – disse o sacerdote e se pôs de pé.

    *

    A mocinha permanecia na mesma posição.

    Perto da porta, olhando o homem gordo que se afastava, o padre perguntou, voz quase inaudível:

    – Contaste pra alguém?

    photo of dried brown soil

    Ela voltou seus olhos para ele. Uns olhos que estampavam um rancor duro. Os olhos do padre desceram para o chão.

    Devagar, ela se sentou. Depois, colocou os pés no chão. Levantou-se. Caminhou na direção dele. Seus pés nus deixavam marcas de sangue no piso de tábuas.

    O padre recuou um passo.

    A guria sentia-se maior e mais forte do que ele. Havia carregado a cruz por toda a longa estrada, havia aguentado as chibatadas sem gritar, havia suportado o corte das pedrinhas nos pés descalços. Depois, lá em cima, havia tido forças para empurrar o seu próprio pai barranco abaixo.

    Pesando tudo, era uma pessoa muito forte. Certamente conseguiria criar sozinha o filho que tinha no ventre, não precisaria da ajuda do homem que a havia deflorado.

    – Fora daqui, seu porco! – disse ela e empurrou o sacerdote para a luz suja de mais um dia chuvoso.

    Lourenço Cazarré é escritor


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  • O equívoco minimal-repetitivo do gorila que está sempre fora do seu devido lugar

    O equívoco minimal-repetitivo do gorila que está sempre fora do seu devido lugar

    A hereditariedade é governada por tantas leis ou condições desconhecidas
    que até parece agir de maneira caprichosa.

    Charles Darwin


    Fique estranhamente culto nesta Verão

    ESTE SABER VAI OCUPAR UM LUGAR COMPLETAMENTE VAZIO

    A partir do último livro de Charles Darwin, THE ASCENT OF MEN & THE SEXUAL SELECTION

    No contexto de uma nova tradução, revista e comentada, de todas as obras de Darwin, que entrará em publicação a partir de Dezembro de 2024 na editora Exclamação


    Esta é uma história muito antiga, de traços marcadamente universalistas, onde a narrativa costuma ter mais do que três personagens: primeiro, a deusa, ou rainha, ou fada madrinha, protectoras de um principezinho que vai subir a escada da perfeição até ao cimo, mas não conseguirá fazê-lo sozinho; depois, o primeiro autor que é capaz de inventar estes cenários com escadas de perfeição que é necessário subir até ao cimo para que os nossos antepassados se transformem em nós; e, finalmente, o público culto que lê e debate estes livros, concorda ou não concorda com eles, e se diverte com frequência a resumir as suas ideias em cartoons hilariantes.

    Esses mesmos cartoons, no entanto, perdem completamente a graça quando são associados ao livro errado, e assim fazendo nos baralham as pistas. Este é, por excelência, o caso do cartoon em que Darwin é um gorila, que aparece com uma frequência espantosa na capa de variadíssimas edições modernas de A ORIGENS DAS ESPÉCIES, nas mais diversas línguas europeias – quando, se pensarmos nisso durante cinco minutos, aquele desenho nunca faria sentido na capa daquelelivro, masapenas no livro que se lhe segue. Eu própria tenho uma ORIGEM DAS ESPÉCIES francesa dos anos 80, publicada em dois volumes, e a capa do primeiro volume é logo o famoso gorila com cara de Darwin. Como se algum detalhe desta cronologia fizesse sentido.

    É indecente insistirem em baralhar os jovens que continuam a querer deixar a sua pequenina marca nas Ciências da Vida desta da maneira.


    Embora todos os cartoons onde Darwin (ou alguns dos seus apoiantes) apareçam hoje associados à ORIGEM DAS ESPÉCIES, a verdade é que essa associação nos induz seriamente em erro. É inegável que o livro causou um frisson enorme em toda a Europa e logo a seguir na América. Embora não diga nada a este respeito, foi por várias vezes utilizado como sendo, no humano, a explicação da formação, nascimento, dureza, e sobrevivência das mulheres. Houve missionários, sobretudo em África, que usaram a selecção natural para explicarem que, formando grandes grupos de amigas tal como as hienas formam alcateias com grandes números de fêmeas, as mulheres treinassem secretamente nesses grupos as artes da sobrevivência, da obtenção e da divisão justa de alimentos, da medicina caseira elevada ao seu mais alto nível, bem como da leitura e discussão dos Clássicos[1] e das suas armas[2]

    Mas não foi neste livro que Darwin falou da questão de o homem descender do macaco.

    No entanto, houve anteriormente “Livros do Macaco” de outros autores antes, que causaram o escândalo que seria de esperar por muito incorretos que ainda estivessem. Também se debateram acaloradamente inúmeras “Teorias do Macaco” enquanto iam saindo várias edições da obra de Darwin. De todos estes, o debate mais notável travou-se entre o melhor anatomista do seu tempo, Richard Owen, e o melhor porta-voz da ciência natural em Inglaterra[3], Thomas Henry Huxley, que veio a abraçar e defender a teoria evolutiva de Darwin com tal fervor que ficou conhecido por Darwin’s Bulldog. O público acompanhou estas trocas de argumentos – bons argumentos, de parte a parte, vindos de homem de ciência segura – com um entusiasmo colectivo que pode ser difícil de entender nos dias de hoje, mas se compreende bem na altura. E se os macacos tivessem fé?

    Owen defendia existir uma nítida discrepância entre os componentes cerebrais do macaco e sua distribuição e os do homem, provando que o homem se erguia acima de toda a Criação, sozinho numa classe superior à parte. Huxley defendia que esses componentes estavam presentes em todos os Grandes Primatas, exactamente no lugar onde estavam no homem, e o mesmo acontecia até em macacos menos desenvolvidos. Isto provava que o homem não se distinguia da restante Criação – com todos os problemas éticos, morais, espirituais e intelectuais que o conceito levantava à Europa do seu tempo. Huxley e os seus aliados acabaram por ganhar o debate, mas deixaram o campo de batalha cheio de cadáveres.

    Um campo de batalha cheio de cadáveres nunca é bom para o progresso de uma ideia.

    Sempre muito timorato, Charles Dickens, o escritor mais amado de todos os ingleses dos seus tempos, fez involuntariamente um grande favor a Darwin quando deitou água na fervura e acalmou os espíritos afirmando que a origem das espécies através da selecção natural era uma daquelas ideias brilhantes, que só os que não temem o trabalho e são audazes são capazes de conjurar, que de tempos a tempos vêm à superfície, norteiam o pensamento dos povos, têm o seu período de lugar ao sol – e depois somem-se no nevoeiro sem deixar vestígios, deixando tudo como era antes.

    Observando toda esta agitação, Darwin sabia, sem qualquer dúvida, que escreveria o seu próprio “Livro do Macaco” mais tarde. Mas a ORIGEM DAS ESPÉCIES não é nenhum “Livro do Macaco”.

    No entanto, se o autor quisesse poderia facilmente ter sido.

    Aquele olhar irresistivelmente assustador de Darwin na caricatura do gorila mostra-o tão poderosamente seguro de si que, se não pagou explicitamente a algum artista menor para associar os seus traços humanos com as características do impressionante Grande Primata que afinal existia mesmo[4], então é, pelo menos, exactamente o que parece[5]. É sem dúvida um olhar de triunfo. Pela primeira vez na sua vida, está a considerar a possibilidade de tomar os comandos do lugar da selecção natural, para fazer tudo andar muitíssimo mais depressa. Darwin começou a refletir devagarinho, quando voltou da viagem do Beagle já tinha a Selecção Natural esboçada na sua cabeça, mas, consciente da violência com que a Inglaterra Vitoriana ia receber todos estes novos desvios à norma, em vez de se precipitar para a publicação dos seus resultados ficou a ver o que é que acontecia aos seus pares que também propunham modelos de Selecção Natural, que novos espécimes eram descobertos nos mundos longínquos[6] e o que que é que os seus descobridores diziam sobre eles, e ainda, pois que isso conta sempre na altura de pedir financiamento às Academias e à aristocracia, o que é a quota-parte de maledicência  que vive e respira livremente em cada um de nós ia contanto, com cada vez mais audácia, sobre o dia-a-dia destas infames caças ao dinheiro.

    E, seja por caça ao dinheiro seja por assegurar o respeito de suficientes colegas, Darwin não ia entrar a matar e escrever, logo à partida, um livro que diz taxativamente “o homem descende do macaco”.  Em 1859, o seu professor mais estimado, Adam Sedgwick, a quem Darwin mandou uma das primeiras edições de A ORIGEM DAS ESPÉCIES com uma dedicatória cheia de estima, escreveu-lhe de volta uma longa carta, onde abundam passagens como esta:

    A coroa de glória da ciência orgânica é conseguir, através da causa final, ligar o material ao moral. Você ignorou esta ligação; e, se percebi bem a sua intenção, fez o melhor que pôde para quebrá-la. Se fosse possível quebrá-la (o que, graças a Deus, não é possível), a humanidade poderia brutalizar-se, e afundar-se num grau de degradação mais baixo do que qualquer um em que já tenha caído desde o início da sua história registada.”

             Perante esta e muitas outras reacções chocadas e iradas vindas de homens profundamente respeitados por toda a comunidade científica, depois de ter começado a publicar A ORIGEM DAS ESPÉCIES, de ter assustado de morte meio mundo de arcebispos e outros fiéis devotos, Darwin absteve-se sempre de estabelecer qualquer parentesco entre o homem e o macaco nas edições sucessivas do seu livro. Por junto, deixou que todas as ondas de choque e de enorme escândalo andassem à solta à solta e ficassem à vontade para irem formando os novos padrões que permitiram o entendimento generalizado de como funciona a selecção natural no processo da formação das novas espécies, e, com ele, a compreensão cada vez melhor da utilidade dos novos caracteres que os seres vivos foram adquirindo – ou perdendo – ao longo do tempo. Mas nunca falou de como nada disto acontecia especificamente no homem. Não o fez nem na famosa 6ª edição, em que deixou todo o seu quadro evolutivo por ordem, e considerou, por fim, a sua obra acabada.

    É de calcular que Darwin já tivesse as suas ideias a esse respeito perfeitamente claras. Enquanto cientista, baseando-se no seu próprio raciocínio e na correspondência com dezenas de correspondentes de vários tipos localizados em todas as partes do mundo, estava certamente pronto para falar de como seria a evolução do homem a partir de um certo tipo de antepassado com vários descendentes. Mas era notório que a sociedade vitoriana que o rodeava não estava, de todo, pronta para ouvir dizer que “o homem descende do macaco”. Observando a tempestade à sua volta desde a primeira hora – desde a publicação de livros muito anteriores ao seu – no que dizia respeito à origem do homem, Darwin limitou-se a dizer que mais tarde, depois de mais estudos, “talvez venha a fazer-se alguma luz sobre o assunto”.

    E essa luz data apenas de 1871, quando, passados mais de dez anos de discussões que muitas vezes foram outros colegas que tiveram por ele, Darwin publicou finalmente “A ASCENDÊNCIA DO HOMEM E A SELECÇÃO SEXUAL”, a que o público laico, científico, e religioso prestou uma atenção muito menos raivosa de um lado e do outro das bancadas, mesmo confrontado com a implicação já muito mais aberta de que o homem era um Primata como outro qualquer, apenas sem cauda e com muito menos pelo, aqui provavelmente também por obra da selecção sexual – do arquétipo primitivo, as fêmeas da nossa espécie terão preferido, sistematicamente, os machos com menos pelo e sem cauda; e fenómenos destes podem acontecer porque “podemos admitir que o gosto é flutuante, mas  não é, de todo, arbitrário.

    E aqui sim, a caricatura do gorila passa a fazer sentido.

    Por isso, e de uma vez por todas, tirem-na da capa da ORIGEM DAS ESPÉCIES, quando ainda ninguém podia ter feito esta caricatura porque em 1859 ainda ninguém sabia se os gorilas existiam mesmo. Passem-na para a capa da ASCENDÊNCIA DO HOMEM, que é o seu verdadeiro lugar. Há já muito tempo que este equívoco deixou de ter graça.

    Ainda por cima, é um desrespeito à sabedoria do autor, que conseguiu aguentar-se calado durante várias décadas, à espera de que os seus conterrâneos e colegas se acalmassem, e que os leitores se habituassem de tal forma à noção de selecção natural que incluir o homem no processo já não torturasse os espíritos. Pelo que lhe dizia respeito, claro que ele já sabia de tudo isto há muito tempo. Digamos que desde a sua juventude distante. Num dos seus cadernos de apontamentos preenchidos febrilmente em Londres logo a seguir à chegada da viagem do Beagle, Darwin quase que grita de alegria ao anotar a descoberta da mudança de paradigma que finalmente dá um sentido realista ao mundo vivo:

    Platão diz no FÉDON que as nossas ideias imaginárias têm origem na preexistência da alma e não provêm da experiência. Ler macacos em vez de preexistência da alma.

    Muito bem visto, Sr. Darwin.

    E que sábia estratégia, essa de ficar à espera.

    Entretanto Charles Dickens morreu, e nunca chegou e medir a dimensão do seu erro.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    Exemplos de títulos ou citações baseados em Darwin

    “A ascendência do dinheiro tem sido fundamental para a ascendência do homem”?

    É preciso ter lata.

    “A força mais poderosa na ascendência do homem é o prazer que lhe dá o seu próprio talento. Gosta de fazer bem aquilo que faz, e, tendo feito uma coisa bem, gosta de fazê-la ainda melhor.”

    Imaginem, por exemplo, todas as escolas do País…

    Extra-história

    A falta de senso causada pela

    possibilidade de extinção devido ao aquecimento global e

    à caça furtiva para roubar o marfim

    HISTÓRIA VERDADEIRA DOS TRÊS ELEFANTES AFRICANOS

    Estavam três magníficos machos de elefantes africanos reunidos num bebedouro resguardado pela folhagem, trocando impressões em tom soturno sobre o futuro da sua espécie, que cada vez parecia menos promissor. O mais velho de todos recordava-lhes os tempos de Darwin, e das suas considerações sobre a reprodução dos elefantes registadas em A ASCENDÊNCIA DO HOMEM E A SELECÇÃO SEXUAL, em que o velhote considerava que a seleção sexual teria que incorporar truques ainda não conhecidos para limitar o número de animais enormes, tais como os rinocerontes e eles próprios, senão ao fim de mais algumas gerações deixariam de caber no seu habitat natural – e demonstrava tudo isto com tabelas cheias de números incompreensíveis e tudo. Agora o belíssimo rinoceronte branco estava reduzido a um macho, o que era o mesmo que dizer que estava extinto, já, que não poderia reproduzir-se antes de ele próprio morrer de velho. Os outros rinocerontes eram considerados espécies protegidas, tal era a loucura da caça furtiva para lhes levar o corno, que mais de metade das pessoas do mundo acreditava ter propriedades afrodisíacas formidáveis. E eles… da morte de Darwin em 1882 a este ano de 2024… onde o geólogo inglês pensara que as suas populações teriam que ser naturalmente limitadas ali estavam eles próprios ameaçados de extinção, incapazes de perceber a parvoíce das pessoas – que, essas sim, eram cada vez mais – com cada vez menos recursos e menos água…

             … e estavam nesta tristeza quando apareceu entre eles a Entidade Protectora dos Elefantes.

             – Elefantes, elefantes! – disse a Entidade – Não deixem que a tristeza destrua a vossa longevidade! Estou aqui para dar a cada um de vocês aquilo que mais quiser. Tu, elefante mais velho, o que é que mais queres?

             – Ah! – disse o elefante – Quero uma tromba muito grande, muito grande, muito grande, que possa atravessar toda a África Subsaariana.

             – Que bonito – respondeu a Entidade – Mas queres essa tromba para quê?

             – Ah! – disse o elefante – Eu quero essa tromba para ir buscar água onde houver água, e aspergir com água todas as partes de África onde falta água, e assim tentar recomeçar a estabelecer o equilíbrio em que vivíamos dantes.

             A Entidade, comovida, deu-lhe um pequeno toque na tromba, que imediatamente ficou enorme, larguíssima, capaz de regar todas as secas africanas. Depois virou-se para o segundo elefante e perguntou-lhe, da mesma forma, o que é que ele mais queria.

             – Ah! – disse o segundo elefante, sem a mínima hesitação – Eu quero umas orelhas tão grandes, tão grandes, tão grandes, que possam fazer sombra sobre savanas inteiras e ponham os ventos a correr sobre o equador por forma a moverem as nuvens e provocarem as chuvas na altura certa.

             E a Entidade, sempre muito comovida, tocou-lhe nas orelhas, que ficaram logo de tal forma enormes que quase permitiam ao animal levantar voo com elas. Finalmente, chegou a altura de perguntar ao terceiro elefante o que é que ele mais queria.

             Ah! – respondeu logo o terceiro elefante, também ele sem a mínima hesitação – Eu quero umas pestanas tão compridas, tão escuras, tão enroladinhas, tão bonitas, que todos os outros animais parem só para me verem passar.

             – Mas… – perguntou a Entidade depois de uns segundos de surpresa, enquanto os primeiros elefantes escutavam com toda a atenção – Tu queres essas pestanas para quê, terceiro elefante?

             Ah! – respondeu o terceiro elefante, fechando os olhos num sorriso apetitoso ao mesmo tempo que cruzava as patas da frente – Mariquices.


    [1] No caso de grupos de mulheres brancas, onde pelo menos uma ou duas fossem capazes de ler para as outras – e as outras fossem capazes de entender o enredo daquelas estranhas histórias. Os outros Grupos de Mulheres serviam para quaisquer selvagens, e eram uma boa demonstração da tendência universal das Mulheres para o secretismo.

    [2] Se estão interessadas em armas, é porque não estão interessadas em nada de bom. É evidente que estão cercadas por animais ferozes, mas nunca é essa a primeira ideia que ocorre aos missionários.

    [3] E também o homem que cunhou a palavra AGNOSTICISMO – o não é propriamente uma brincadeira de crianças para o período em causa.

    [4] A existência do gorila foi discutida até muito tarde. Embora o animal figurasse em muitas lendas, só mesmo a partir de 1864, quando o missionário americano Thomas Savage trouxe alguns crânios do Gabão, é que os cientistas obtiveram provas materiais da sua existência. Um dos primeiros grandes anatomistas a conseguir reconstituir um gorila por inteiro a partir de material recebido pelo Museu Britânico em 1861 foi exactamente o anatomista Richard Owen, que publicou a sua monografia sobre o gorila em 1865.  As descrições da famosa postura bípede do macho maior, quando enche o peito de ar e lhe bate com os punhos produzindo um som semelhante ao se um tambor, ao mesmo tempo que solta um urro possante destinado a afastar os intrusos, demoraram o seu tempo a ser levadas a sério, e impressionaram profundamente todos os leitores.

    [5] Toda esta passagem é pura especulação, mas não deixa por isso de ser provável.

    [6] Darwin fez a viagem enorme do Beagle através do mundo; depois disso, no entanto, nunca mais fez uma única viagem.


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  • Ilusões e quiches de espinafres

    Ilusões e quiches de espinafres

    Agarrou o livro. Abriu-o, pressionando a palma da mão contra o vinco que teimava em fechá-lo. Leu os dois primeiros parágrafos. Releu-os em voz alta. Fechou-o. Era tudo o que a capa e o título prometiam. Voltar a amar, a silhueta de um casal sobre um pôr-do-sol em tons de Inteligência Artificial. Oferecera-lho a tia:

    ⎼ Como gostas de ler… e tens de começar a pensar em refazer a tua vida. És muito nova!

    Pois gosto, pensou. Gostava também da tia. Gostava ao ponto de guardar aquele livro. Não tencionava lê-lo. Guardá-lo-ia como qualquer outro objeto que ela lhe tivesse oferecido. Livro-pisa-papéis. Livro-de-não-ler. Livro-há-mesmo-alguém- que-acha-que-isto-é -literatura. Livro-como-é-possível-abater-árvores-para-imprimir-isto. E, o mais incrível, livro-número-1-no-TOP-de-vendas. Este sucesso que não conseguia perceber fez com que um turbilhão de pensamentos lhe atravessasse a mente. Lembrou-se dos anos 90. Das  supermodelos. Perfeitas. Poderosas. Cindy, Naomi, Linda, Christy. Desfilavam, posavam, eram ricas e famosas. Ser como elas era o sonho de milhares de miúdas e miúdos por todo o mundo. Mas mais do que isso, passou a ser o sonho de muitos pais e mães. Embevecidos com a beleza das suas crias, viam ali a possibilidade de uma vida bem sucedida. Começaram a surgir escolas de manequins um pouco por todo o lado. “Caçadores de talentos” convenceram as famílias a apostar o que tinham e o que não tinham na realização dos sonhos dos mais novos. Dos que tinham tudo para dar certo. Mas também dos que não tinham rigorosamente nada que pudesse apontar nesse sentido. Sentada à mesa do escritório, livro nas mãos e olhar perdido naquele pôr-do-sol impossível, continuava a pensar nas crianças e jovens que qualquer leigo na matéria teria percebido não terem a mínima possibilidade de virem a ser modelos. Deixaram para segundo plano os estudos, atraídos por uma carreira nas passerelles ou na publicidade. Bem mais apetecível do que estudar, sem dúvida. Anos à espera da grande oportunidade. Amargurados, a  sentir-se injustiçados. A acumularem rejeições e traumas. Anos e anos até perceberem, ou não, o que lhes tinha acontecido.

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    Olhou novamente para aquele monte de folhas impressas e achou que poderia servir para elevar um pouco o monitor do computador. Afinal, sempre teria alguma utilidade.  Abriu-o mais uma vez. Já agora, queria ver como terminava. Leu o parágrafo da última página. Ah, felizmente tinha uma lombada com a altura ideal para o que precisava. 

    Das pseudoescolas de manequins, o seu pensamento deslocou-se para as escolinhas de futebol. Para os meninos arrastados pela ideia de que a fama é tudo. De que estudar dá trabalho. Ganhar a vida a dar uns chutes na bola é bem mais fácil e apelativo. Talento e sacrifício são pormenores. Abre-se uma “escola”. Enfiam-se os miúdos nuns equipamentos giros. Depois, basta ir sussurrando aos ouvidos dos pais que têm ali o próximo Ronaldo e a mensalidade não falha. Sonham com aviões particulares, mansões em lugares paradisíacos, contratos de milhões a fazer capas de jornais. O tempo vai passando. O secundário faz-se a custo. O sentimento de injustiça. A revolta. A frustração que tantas vezes poderia ter sido evitada. Bastaria alguma honestidade. Bastaria que se dissesse claramente que a maioria dos meninos e meninas se podem divertir, mas nunca  serão profissionais. Só que a honestidade custa dinheiro. O problema é que no futebol é que não há como vingar sem verdade. Já na literatura… Suspirou. Voltou a olhar para o livro. Poderia o texto da contracapa induzir os compradores em erro? Começou a ler. Não aguentou mais de duas linhas. Não. Nem era esse o caso.

    E voltou a pensar nas sanguessugas que, sempre atentas, vão diversificando o negócio, tirando proveito das ilusões e ingenuidade alheias. Alimentam-se  agora do sangue de um novo grupo de vítimas. Atacam-nas nas águas pantanosas das editoras, que nascem um pouco por todo o lado, entaladas entre uma escola de modelos/atores (vai dar tudo ao mesmo) e outra de futebol. E é ver entrar e sair os aspirantes a escritores.  Entram apreensivos, ansiosos. Saem com o ego massajado e a carteira mais leve. A maioria das editoras é hoje um negócio que vive de alimentar sonhos e explorar sonhadores. Publicam manuscritos com mais erros de ortografia e sintaxe do que parágrafos. Enredos ao nível da composição “As minhas férias”. Um discurso que convence o autor de que será o próximo Saramago. Mas em bom, claro!  O outro nem pontuar sabia! O editor vai metendo milhares de euros ao bolso, ano após ano. Sim, porque os leitores não foram lá à primeira, mas hão de reconhecer o génio. Não se pode desistir assim. O próximo volume não falha. Faz-se uma capa ainda mais chamativa e embala-se num saquinho com brilhantes, fechado com uma fitinha de seda. Monta-se uma banca com flores de plástico nas feiras do livro e fazem-se sessões de autógrafos. É fundamental que o texto tenha muitas frases de encher o ouvido. Daquelas a escorrer azeite. Pode até ter atores das telenovelas a ler uns excertos. Custa dinheiro. Mas é um investimento. Depois é publicar mais um. E outro.  E até outro, se o pé de meia ainda não se tiver esgotado.

    man playing soccer game on field

    E vem-lhe então à memória a recordação de uma antiga professora da FLUL. Uma conhecida catedrática com tanto de competente como de pouco diplomática que, certo  dia, após a apresentação de um trabalho, perguntou à autora se havia um prato que cozinhasse particularmente bem.

    ⎼ Quiche de espinafres! ⎼ retorquiu a rapariga.

     A resposta não se fez esperar:

     ⎼ Então, vá para casa e faça imensas quiches de espinafres. Mas deixe a literatura em paz que não lhe fez mal nenhum.

    E ela foi.

    Cruel? Sim. Honesta, porém.

    Leonor coloca finalmente o livro debaixo do monitor. Lombada virada para a parede. A cor da capa e o título são-lhe insuportáveis.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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  • Dia décimo sexto de Marcheshvan do Anno Mundi 1656

    Dia décimo sexto de Marcheshvan do Anno Mundi 1656

    ― Estás mesmo decidido a romper amanhã as fontes do grande abismo e a abrir as cataratas do céu?

    ― Assim será!

    ― E julgas, portanto, que com esse simples acto lavarás e renovarás a Humanidade…

    ― Fecundarei de novo a Terra, extinguindo a iniquidade e a corrupção. O novo Homem deixará de ter os seus pensamentos e desejos guinados sempre e unicamente para o mal.

    ― Estás optimista! Amanhaste este mundo em sete dias criando metendo a tudo um homem e a sua costela, e apenas bastaram quatro destes seres para , logo se assistir a uma desobediência grave, diria uma traição, e até a um homicídio por inveja. E depois foi o que se viu até agora. E ainda supões que, desta feita, tudo será diferente…

    sun rays through white cumulus clouds

    ― Estabelecerei uma nova Aliança. Colocarei o meu arco nas nuvens para que aqueles que aqui se mantiverem vejam o sinal desse pacto entre mim e a Terra.

    ― Divina ingenuidade! As quezílias humanas serão perpétuas. Quando terminar o flagelo que anuncias para amanhã, cedo o teu escolhido se embebedará, se colocará em pelota e depois zangar-se-á com um dos seus filhos, lhe lançará uma maldição. Lá se vai a concórdia por água abaixo… Se fosses mesmo presciente, como eu sou, escusavas de lançar esse cataclismo. Ou então não salvarias ninguém. Nunca acabarás com a maldade nos homens, por mais flagelos que apliques. A maldade nos homens vive porque os homens vivem.

    ― Estarei atento; de futuro não os deixarei perder o norte!

    ― Concedeste-lhes o livre arbítrio; desorientam-se por mor das suas paixões. Eles nunca buscam o norte ou o sul, nem o este ou o oeste; em breve desejarão atingir o céu. E tu cometerás então um erro crasso: quando estiverem construindo uma torre, lhes confundirás as vozes, os obrigarás a dispersarem-se pela Terra. Quebram-se os laços, aumentam as cobiças, as violências, as guerras… Vais andar num fandango, por séculos…

    ― Se algo correr mal, tenho em mente enviar o meu filho.

    ― Será crucificado…

    ― Lavará os pecados dos homens com o seu sangue, se necessário for; com o meu sangue. E os homens se emendarão aos pés de uma nova igreja…

    ― … que somente alimentará mais cóleras. Sob a tua bandeira, serão cometidas violências sem fim, por tempos infindáveis. Pretextando defenderem a tua obra, bispos e reis matarão e oprimirão justos e pecadores, maus e bons, crentes e incréus. Pelo que sei, apenas dois milénios após a chegada desse teu filho à Terra, essa tal igreja minguará em poder, deixando de produzir e alimentar maldades.

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    ― Ainda haverá tempo para então se salvarem muitas almas antes do Juízo Final.

    ― Não sei como. És mesmo um incorrigível optimista. Aliás, só assim se justifica a tua imprudência em engendrar o Homem e pensar tê-lo como inquilino num mundo que desejavas perfeito. Falhaste e falharás. E os teus homens, os homens dessa tua igreja, mesmo quando se tornarem mais mansos, em nada contribuirão para aplacar o mal. Olha-me aqui para o futuro: ali estão eles, visitando umas pobres gentes, em postura solene, hirtos e retraídos, agaloados nas suas ricas vestes, chorando lágrimas de compaixão. Mas céleres regressarão ao aconchego dos seus aposentos, esquecendo o que viram, calando a raiva sob os poderosos, recusando perder as suas mordomias e sinecuras terrenas… Enfim, achas mesmo necessário amanhã abrir as comportas do Céu?


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  • Um só corpo, corcovado e imenso

    Um só corpo, corcovado e imenso


    Lembrou-se da surra que levara e da noite passada na cadeia. Sim senhor. Aquilo ganhava dinheiro para maltratar as criaturas inofensivas. Estava certo?

    Vidas Secas. Graciliano Ramos


    – Se pudesse, eu metia logo um balaço na perna dele – diz o sargento.

    – Melhor no braço – retruca o soldado. – Facilitava pra gente ir pra cima ele.

    – Tu tá achando que a gente vai chegar nele de novo?

    – Sim, mas eu quero é ir sozinho.

    – Tu? – espanta-se o sargento. Depois ri. – Não é hora de brincadeira.

    Os dois trocam um rápido olhar. Depois, por entre os galhos ressequidos, voltam a espiar o homenzarrão na outra margem do pequeno canal.

    brass-bullet cases

    – Se o senhor deixar, eu vou.

    – Tu tá é maluco! Se ele te acerta um tiro não é nada, porque aquela espingarda dele é de chumbinho, mas o duro é se ele te agarra pelo pescoço. Aí tu podes encomendar a alma.

    – O que não pode é a gente continuar aqui, parada, com ele ali cantando de galo. É um desaforo.

    – Acho que vou pedir reforço pelo rádio da viatura.

    – Não, sargento! Isso seria mais humilhação ainda. Me deixa pegar ele!

    Estão deitados na margem direita do canalete, por trás duns caraguatás, observando o homem alto e gordo, sem camisa, que grita e gesticula diante deles. A separá-los, o leito quase seco do riacho, cortado pelo negro fiapo da água suja que serpenteia entre os monturos.

    – Mas o que é que tu tá pensando, homem de Deus? – pergunta o sargento, impaciente.

    – Tenho um plano. Num minuto estou com ele derrubado no chão. Aí, vocês chegam e metem as algemas nele.

    – Falar é fácil, língua não tem osso. Ele já botou o Caldeira e o Braga pra dentro do lodo! E eles são mais fortes que tu!

    – Deixa comigo, chefe – o soldado sorri. – Meu braço está comichando de vontade de apertar aquele pescoção.

    lighted wall sconce

    O sargento suspira fundo.

    – Faz o que tu quiseres. És maior de idade e vacinado. Agora, uma coisa é certa: eu não me responsabilizo. Faz de conta que tomaste a iniciativa sem eu saber. Se ele te torcer o pescoço, azar.

    – Fechado.

    O soldado ergue-se. É muito jovem, terá no máximo uns vinte anos, e franzino.

    Enquanto corre, agachado, em direção aos casebres, escuta os gritos irônicos do grandalhão.

    *

    – Adonde tu vai com essa pressa toda, franguinho? Vai procurar tua mãe? Pois aproveita e te esconde debaixo das asas daquela galinha! Ou será que tu vai chamar mais brigadianos? Chama bem uns vinte que eu tomo conta deles tudo! Bando de cagão! Brigadiano só serve pra bater em mulher e criança! Que venham! Vou fazer com eles o que já fiz com os outros dois trouxas!

    *

    – Olha, lá, Caldeira! – diz o soldado grisalho, levantando o braço e apontando com o dedo. – Viste? Era o Magro correndo! Pra onde será que ele vai?

    – Acho que foi se esconder no meio dos barracos – responde o soldado negro, passando a manga da túnica pelo nariz. – Deve estar se cagando de medo.

    – O Magro não é medroso. Já me vi em hoscas com ele e ele sempre vai em frente. O que tem de leviano de peso tem de valente.

    – O que tu acha mesmo que o Magro foi fazer? – pergunta o soldado negro, enquanto olha para a mancha de sangue na manga.

    – Buscar reforço. Só pode ser isso.

    – Aí, sim. Quando a gente chegar no Luisão, ele vai ver o que é bom pra tosse. Vou dar uma porrada na boca dele.

    – Mas antes a gente vai ter que pegar ele. E aí é que eu quero ver! Não vai ser fácil!

    – Ele não tem nem três nem quatro colhões. Não é mais macho que nós!

    – Mais macho não é, mas que o bicho é forte, isso é – o soldado grisalho leva a mão ao queixo. – Já tivemos uma amostra hoje.

    – O filho da puta me quebrou o nariz, acho.

    – É caborteiro.

    – Tenho é vontade de afogar ele nessa água suja.

    – Isso nem é água mais.

    – Parece suco de merda. Tu já percebeu o quanto nós tamos fedendo, Braga? Credo! Esse puto vai lavar a minha farda lá no quartel!

    green and brown plant on brown tree

    – Ele é mais gabola que bandido.

    – Se o sargento tivesse deixado a gente usar o revólver!

    – Aí não tinha graça.

    – Eu meteria um balaço no meio daquela cabeça cabeluda.

    – Não precisa. Quando não tá bêbado, o Luís Gordo é gente boa – diz o grisalho, sempre observando o homenzarrão, que continua gritar e esbravejar. – Mas, bebum, ele gosta de cantar de galo.

    *

    Ao atingir o casario, o soldado se levanta. É de estatura meã, mais para baixa. Apressado, avança por entre as casinholas de paredes de lata, de compensado, de refugos de madeira e até mesmo de papelão.

    O barro negro das ruas está seco, não chove há muito. Mulheres e crianças escondem-se por trás das paredes vacilantes do Templo dos Crentes – um barraco um pouco maior, mas igualmente frágil – prontas para fugir caso Luís Gordo atravesse o arroio.

    O soldado circula os olhos pela gente assustada. Aponta para um velho barbudo.

    – Tu aí, me dá tua roupa. Vamos, ligeiro! Onde tem um lugar que a gente possa se trocar?

    O velho não diz nada.

    O soldado arranca a própria túnica, joga-a no chão. Depois toma a camisa do velho.

    – Vamos, tira a calça também!

    Um sussurro de espanto corre entre as mulheres.

    – Virem a cara pro lado! – ordena o soldado, ao mesmo tempo que veste a camisa remendada.

    Sentado no meio da ruela, desamarra os cadarços, tira as botinas. Despe a calça do uniforme. Seus gestos são rápidos, nervosos, De novo de pé, enfia a calça do outro, que está imunda. Por fim, arranca da cabeça do velho o roto chapéu de palha, deixando-o completamente nu.

    Este cachaceiro está podre de borracho, pensa o soldado. Inspira fundo e sente a catinga de canha da camisa que vestiu. Lança um olhar duro ao velho estupidificado, de cuja boca aberta pende um grosso fiapo de saliva.

    – Quem é o dono do bolicho? – pergunta o soldado, apontando a placa na porta de um barraco.

    Ninguém responde.

    – De quem é a merda do bolicho? – grita ele para os que estão escondidos por trás do Templo. – É bom dizer antes que eu ponha a porta abaixo!

    Um homenzinho balofo surge vindo de não se sabe onde.

    – De que é que o senhor precisa?

    – Pega uma garrafa de pinga. Rápido! E já me traz sem tampa!

    black and silver round coins

    Pouco depois, o bodegueiro chega com a cachaça. O soldado bebe um gole largo. Depois, de pés descalços, encaminha-se, vacilante, como se estivesse muito bêbado, para a pontezinha que atravessa o canal.

    É uma pinguela de duas pranchas largas de madeira, precária, vacilante. Na época das chuvas é retirada para que as águas não a levem.

    Agarrado ao fio de arame que serve de corrimão, o soldado observa Luís Gordo pelo canto dos olhos.

    Ele continua lá, na frente do minúsculo barraco, a berrar e a bracejar com a passarinheira segura, pelo cano, na mão direita. Seu largo peito glabro brilha suarento sob o sol cruel do meio-dia.

    O soldado magricelo tenta escutar o que ele diz, mas não há vento para trazer os sarcasmos daquela voz rouca até ali. Luís Gordo fala demais, pensa.

    Trôpego, assoviando uma desconchavada musiquinha, com a garrafa na mão esquerda, o soldado travestido em mendigo encaminha-se para onde está Luís Gordo.

    Deixa cair a cabeça para o lado. Espiando por baixo da aba do chapéu, consegue entrever, do outro lado do fosso, os seus colegas, deitados entre a vegetação ressequida.

    *

    – Braga, tem um cara atravessando a pinguela.

    – E tá pra lá de bêbado.

    – Era só o que nos faltava: um outro borracho pra se juntar com o Luísão!

    – Peraí! Aquele cara é o Magro! Com roupa de mendigo. E se fingindo de bebum!

    *

    Era menos que uma vila, era até menos que uma favela porque os que ali viviam eram menos que gente, eram qualquer coisa acima de bichos porque sabiam falar.

    Vieram de todos esses campos aí pela volta da cidade. Lá fora viviam mal das pernas, quase sem roupa e sem remédios, mas, no geral, tinham o que comer. Plantavam para o gasto, uns pés de milho, uma ponta de arroz, e carneavam uma ovelha de vez em quando, roubada quase sempre. Tinham galinha para os ovos e para a canjinha, quando adoeciam. Até passarinhos eles matavam, a bodocaços, quando a fome apertava.

    Na cidade só se tem ruas de asfalto e de calçamento e ninguém, a não ser Pedro Malasartes, desencava comida das pedras. Que lhes resta quando percebem que vieram de outro tempo e de outro mundo e que ali não tem lugar para eles? Se arrinconam lá pelas voltas do Forno do Lixo, sob um céu sempre negrejado por bandos de urubus. Ali podem colher alguma coisa, como antes colhiam no campo.

    São catadores de papel, vendedores de vidro e ferro, carroceiros, jardineiros, changueadores, biscateiros. Como chegaram há pouco, ainda não dominam os misteres urbanos, nos quais serão mestres seus filhos: ladrões de botijão de gás, punguistas na volta do mercado, gigolôs de perebentas, flanelinhas raivosos, cheiradores de cola, assassinos de velhas.

    blue plastic bottle on green grass field

    Por terem chegado há pouco do campo, foram obrigados a se acomodar nos confins da cidade, nas terras encharcadas, ao lado do arroio sinuoso que pastoreia os detritos da cidade toda. E lá ergueram suas casinholas, na maioria com paredes de lata, latas de conservas e de óleo de soja retalhadas a abridor.

    *

    Luís Gordo estava há um bom tempo por ali. Mas morava meio afastado, só ele naquela margem do arroio, porque não gostava de gente. Não se misturava Era um verdadeiro bicho do mato. No começo, ganhava uns trocos cabeceando sacos numa arrozeira, mas depois se deu bem, arranjou uma boca de leão-de-chácara num puteiro. Não era de briga, mas isso não importava porque era muito alto e forte. E tinha cara feia, cara de índio, com aquela cabeleira negra escorrida e uns olhinhos achinesados que botavam medo até mesmo nos vagais siderados pelo pico. Só o jeitão dele já amansava os chinelões mais brabos.

    Era conhecido dos brigadianos, por pacato e respeitador, mas, de longe em longe, acordava com os bofes virados e se passava na canha, como naquele domingo. Aí, a coisa desandava.

    De manhã, no bolicho, sentado num saco de feijão, bebera uma garrafa inteira, sozinho. Igual que sempre, estava meio emburrado. Depois, pateara o balcão. E saíra pela vila a dizer palavrões cabeludos, a inticar com as mulheres e a desaforar os homens. Gritou que eram uns machos de merda, e meteu a mão nos dois ou três que não tiveram tempo de se afastar. Que chamassem a Brigada! E se fora sestear.

    Estava no bem bom do sono quando bateram à porta do barraco. Eram dois brigadianos, um velhusco e um negro fortão. Disseram que ele tinha de ir à delegacia responder pela arruaça, que um cidadão tinha prestado queixa e que eles estavam ali, de viatura e tudo, para conduzi-lo ao distrito.

    Mas, bah, nem disse nada! Só enfiou o braço. Mandou um murro em cada um. Foi pá e pá. O grisalho se foi direto para o riacho, desconjuntado, mas o negro ainda conseguiu se equilibrar. O jeito foi dar-lhe uma cotovelada na cara. E ele, caindo de costas, foi se juntar ao outro.

    Num vupt, Luisão pegou a passarinheira que mantinha atrás da porta e fez mira na testa deles, que já tentavam escalar de novo a margem barrenta. Que se sumissem! Encagaçados, eles saíram patinhando pela água suja e galgaram a outra margem e foram se refugiar entre as unhas-de-gato.

    Pouco depois, vindos da camionete, juntaram-se a eles o sargento e o soldado magro.

    *

    – Tão pensando que eu sou o quê? Um alimal? Vocês tão é muito enganados! Acham que esta cidade é grande merda só porque tem um batalhão de brigadianos? Me cago pros brigadas! Tô de saco cheio disso aqui! Qualquer dia volto lá pra fora. Tem sanga limpa e não esse arroiozinho de merda. Tem cancha pra carreira e salão de dança. O que é que tem aqui pra se fazer num domingo? Nada. Tem futebol, mas isso é coisa de maricas. Meto-lhe uma bala num!

    *

    E Luís Gordo estava falando ainda, empolgado pela canha que lhe fermentava nas entranhas, quando o bêbado de camisa remendada entrou na pinguela e se veio na direção dele. Vinha bem devagarzito, desenhando a beira da barranca, quase que se despencando.

    three men standing wearing hoodies

    Era só um pobre borracho magro e miserável, de olhar turvo e boca aberta, um fiapo de homem. De pés descalços. Uma coisa à toa. Não merecia atenção. Desinteressado do pinguço, Luís Gordo continuou a despejar a mágoa armazenada. Com sua voz grossa e rouca, repetia, com pequenas variações, as mesmas frases. Sempre segurando a passarinheira pelo cano.

    Aí, de repente, sem mais nem menos, o bêbado, saltou nas costas dele. Os braços magros se aferraram em torno do grosso pescoço moreno e as pernas em torno da grande barriga, com os pés se entrecruzando na frente.

    De primeiro, os olhos arregalados mostraram estupor. Em seguida, raiva. E Luís Gordo se pôs a pinotear como se estivesse com um piá nas costas, o filho que não tinha, brincando de upa-upa cavalinho. Sufocado, não conseguia falar mais nada, apenas urrava como um burro triste, saudoso de sua querência.

    Nem podia mais pensar direito, o pobre homem. Tinha era que arranjar um jeito de se livrar daquele carrapato.

    Foi então que ele viu os três brigadianos descendo pela outra margem do arroio. Tropeçando na raizama, vinham de cassetete em punho. E em seguida, no embalo, pularam sobre o lodo preto que era o leito do arroio e começaram a subir o barranco.

    Pressentindo que ia entrar na borracha, Luís Gordo resolveu guarnecer as costas. Encostou-se então contra a parede do seu barraco e levantou a espingarda, como se ela fosse um tacape. E esperou os três brigadas que se vinham de cacete em punho, furiosos.

    Enquanto esgrimia com eles, Luís Gordo lembrou que na parede do seu barraco havia umas cabeças salientes de pregos enferrujados e umas rebarbas pontiagudas de lata.

    Aí, pôs-se a esfregar contra ela as costas, as costas do soldadinho magro, que estava agarrado a ele como uma sanguessuga.

    Foi como se sentisse a dor do outro, os cortes, as fincadas, os lanhos na própria carne. Mas, como estava com aquele molambo de homem nas costas, Luís Gordo perdeu o jogo de cintura e se tornou alvo fácil para as porretadas dos brigadas.

    blue and brown brick wall

    Para se distrair, ele até se botou a contar as lapadas que levava e espantou-se porque elas cada vez doíam menos. Já estava chegando a vinte quando lhe acertaram uma no pé do ouvido.

    Então ele foi arriando, se encolhendo como um tatu mulita, devagarzinho, já entregue. Mas, de repente, não se sabe de onde, ele conseguiu arranjar um resto de força. Aí, se levantou e, lentamente, caiu para a frente. Se foi em direção ao leito imundo do arroio levando consigo, de carona, o bêbado das costas ensanguentadas. Na queda, Luís Gordo e o soldadinho nele agarrado pareciam um só homem, um só corpo, corcovado e imenso.

    Lourenço Cazarré é escritor


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  • 1984: uma exposição

    1984: uma exposição

    Estava a fazer scroll no meu iPhone quando o aparelho estremeceu. Para os metais roubados ao Congo que sustentam o telemóvel foi um terremoto de grau 9. Até me assustou. Era a Teresa e atendi.

    – Então man!

    Man? Sucumbiste aos estrangeirismos?

    Respondi, perguntando com maldade.

    – E tu! Que estás sempre a dizer layer em vez de camada!

    – Tens razão. Tás boa?

    – Estou. E tu? Já viste as notícias no telejornal?

    – Vai-se andando. Estás a ligar-me por isso? 

    – Não. Claro que não, mas repara que Paris está a arder. 

    Disse ela com leveza.

    – Paris já está a arder há muito tempo. 

    – Chamem os bombeiros! (Ri-se).

    – Agora não tenho aqui nenhum ecrã à frente. Quando chegar a casa, ligo a CNN. Eles sabem tudo o que não se deve saber sobre terror. 

    – (Interrompendo) E o meu texto para o PÁGINA UM?

    Perguntou à bruta.

    – Ah, então era por isso!..

    – Também. 

    A razão destas palavras  é uma exposição da Teresa que está a decorrer na Galeria da ZDB e que acaba dia 20 de Julho. Disse-lhe que escreveria um texto sobre ela. A exposição chama-se 1984.

    Continuei,

    – Não sou uma máquina de escrever Olivetti, calma! Não é fácil escrever sobre isso do controle e da lobotomia. Lobotomia vem de lobo?

    – Não. Vem de Nobel. Não sejas parvo!

    – Não posso escrever um texto parvo? Agora, ficaste séria?

    – Podes, podes. Os textos já não são escritos para serem lidos. Se calhar porque hoje, principalmente reescreve-se demais. Inventa-se pouco. 

    – De qualquer forma, vou fazer uma analogia com os media provavelmente, é inevitável, mas esses, em geral, não fazem lobotomia às massas, fazem outra coisa bem pior. Tornam tudo abstracto. As tuas peças não são abstractas, muitas vezes até são chapa 4 e aqui nesta exposição há uma impossibil… (Ela não deve ter ouvido esta parte, ficou sem rede). 

    – … Disseste o quê?

    – Fiquei sem rede. Estava num túnel e estava a dizer que posso também escrever sobre a ZDB.

    – Vais dizer mal da ZDB?

    – Não. Não vou dizer nada sobre a Galeria. Dizer mal não me fica bem.

    – É melhor. (Rindo)

    – És feminista? Ando há meses para te perguntar mas tenho-me esquecido. É para o texto. 

    – Feminista como? Tás a gozar comigo! É por aí que vais pegar? 

    (Não consegui conter o riso). 

    – Não. Estava a tentar ser contemporâneo. É que sou pela ig…

    (interrompendo)

    – Estou a ficar sem bateria. Aparece lá amanhã em minha casa à u… 

    Caiu a chamada. Deduzi que quisesse dizer à uma.

    Eu e a Teresa somos das pessoas mais pontuais que existem e, por isso, à uma em ponto do dia seguinte, a Teresa abriu-me a porta do sexto andar do seu apartamento em Benfica. Trata-se de um prédio dos anos 70 com e sem alma, nunca percebi. Subi de elevador e ía morrendo.

    Estava um calor normal para o mês de Julho e não deixei de pensar no aquecimento global. Mesmo quando o tempo é normal, pensamos no aquecimento global. Fui na minha Yamaha e percebi nesse dia que Lisboa ainda podia ter salvação. A Teresa e eu somos lisboetas a sério.

    Abriu-me a porta com aquele seu andar apressado. 

    – Então estás bom? O meu texto?

    – Não vim cá para isso propriamente. E isso é assim logo a abrir?..

    – Vieste porquê?

    – Tive de ir à Loja do Cidadão ali em baixo e prefiro falar ao vivo que na minha câmara de filmar.

    Menti.

    – Hã?…

    – Sim. O telemóvel é a minha câmara.

    Aqui não menti.

    – Ok.

    – De qualquer forma tínhamos combinado.

    – Não tínhamos não.

    – Tínhamos, tínhamos. Está escrito lá atrás quase no início. Isto aqui é como o Big Brother da TVI fica tudo registado.

    – Tás a ver. É por isso que nas minhas exposições falo do controle.

    – Percebo. Ontem estava com o Cabral ao telefone e enquanto íamos falando eu tirava notas acerca do que ele dizia da tua exposição. É uma táctica que uso muitas vezes. Ouve: (vou às notas do IPhone).

    “A artista está constantemente a fazer-nos uma pergunta, ou melhor a pôr-nos uma questão inextinguível: onde fica a fronteira, o traço que nos divide, que nos exclui/inclui da actividade artística face à esfera social’”…

    – Ele disse mesmo assim ao telefone? (Interrompeu com surpresa).

    – Não. Claro que não. Assim, assim não. Ninguém fala assim. Ele dizia coisas e depois eu ía anotando, depois compus mais ou menos nas notas. Mas ouve o resto. Não interrompas. “… Por entre a deriva em explicar a Arte, na sua quietude e finitude, alcançamos, como pressuposto, uma ideia, por vezes, muito simples – ou seja, na tentativa de a compreendermos melhor, tentamos avaliá-la, ainda, em torno da sua antiga e discutível dicotomia – figurativo/abstracto, do maior ou menor emprego de valores tidos como simbólicos ou do modo como determinados procedimentos são empregues, entre outros”.

    – Uau! Isso é tudo verdade. Estou a gostar man.

    – Sabemos lá o que é a verdade.

    – É o contrario da m…

    – Ouve o resto. Falta pouco. “Neste contexto, deveremos colocar a irrecusável tentação de recorrer a tendências ou a correntes nas quais se podem filiar os objectos, bem como a tudo aquilo que nos possa ajudar a situá-los para além de um plano meramente artístico.

    – Posso assegurar-te que esta parte disse-a assim tout court.

    E continuei:

    – “É o caso da Escultura da Teresa Milheiro, que nos oferece aquilo que é a génese artística, o paradoxal – como pode a Arte ser feita como se fosse uma jóia, um precioso adorno sem, no entanto, colocar esse ditame em causa? A escultura dela apresenta-se sob a forma de uma jóia, é certo, mas recusa disponibilizar-se enquanto tal, é a Arte, na sua justa luta, do dia-a-dia, a manifestar-se”.

    O telemóvel da Teresa toca.

    – Desculpa tenho de atender o telefone. Sou capaz de demorar um quarto de hora. É da Turquia. Mas está espectacular.

    – Ok. Está como se estivesses em tua casa.

    Gracejei sem que ela ouvisse e sentei-me no sofá da sala.

    Escrever para esta nova exposição da Teresa não é evidente! Ela engendra objectos cada vez mais estranhos e escultóricos e é uma constante perguntar-me acerca do que é que se pode e deve abordar num texto. Do método? Dos temas? De nada? Da vida do artista com uma nota biográfica? Do processo e dos materiais? Soa-me sempre quase tudo a falso e aparecem sempre textos a despachar. Hoje, há pouco tempo para tudo e o pouco que há, não é para mandar um cego cantar e ficar a ouvir. 

    Pego no meu iPhone e vou até às notas onde tinha apontado o texto do Cabral que para mim ainda não cobria o essencial. Tinha anotado alguns items depois de uma conversa com a minha amiga:

    Fragilidade/Paradoxo. Forte. Resistente. Aceitação. Fragilidade do vidro. 

    Agressividade. Metal. Leucotomia/Lobotomia. Controle.

    Notas de merda que não servem para nada. Pensei que mais valia estar quieto e ir até à praia.

    Tangas contemporâneas que não querem dizer nada. Vejam as peças e perceberão logo isso… Ou não. O vidro por exemplo não é só representativo da fragilidade, o metal não é forçosamente a resistência, a lobotomia não é necessariamente uma metáfora. No mundo da linguagem, a paleta de cores é muito mais vasta e diversificada. Mas sim, precisamos da palavra, hoje mais do que nunca, mas da palavra certa no momento errado, duma palavra que não se auto-banalize, que não se auto-destrua à primeira má interpretação. 

    As peças dela já são por si um organismo, é isso que a define. Acima de tudo, as peças são ela. Têm o seu carácter, falam por si a maior parte das vezes. São acutilantes e irónicas, por vezes delicadas como ela. As palavras podem estar a dizer outra coisa, podem estar a apontar noutras direcções, podem pertencer a outros mundos paralelos, podem ser só sons e podem não implodir com o que resta da vida. 

    A Teresa apareceu de rompante ainda com o telefone na mão e perguntou se já tinha almoçado.

    – Não. 

    – Queres vir almoçar?

    – Não. 

    – Estás chateado comigo?

    – Não. Claro que não. 

    – Só dizes não?

    – Sim. 

    – Estás a pensar em quê? Estás sempre entre paradoxos. Lê lá outra vez essa ultima parte do Cabral!

    Concentrei-me, levantei-me do sofá e olhei-a nos olhos. 

    – Tu e eu, as tuas peças, este texto, a nossa ligação, estar aqui agora e tu aí, a linguagem que usamos para nos entendermos, tudo junto, é que é a melhor obra. E pode já não haver palavras para a definir. Aquilo que nós sabemos ser a grande obra, a mais poderosa, aquela que está para além da morte. Aquela que é vida a toda a hora. Já somos a própria representação, as tuas esculturas já fazem delas mesmas, fazem de ti porque deitas para lá todo o teu sangue. 

    – Não fales em sangue que me faz logo lembrar… Sangue.

    – As tuas peças, se queres que te diga, são a maior metáfora disso. São meta. Pelo menos enquanto residirem aqui. Mas dizer metáfora está errado, não há folha de sala que não nos bombardeie com essa palavra que ficou oca de tanto a gritarem. Estas peças não têm nada a ver com a lobotomia, ou com o 1984. Têm a ver com uma certa linguagem, com uma certa crueza e transparência que há em ti e isso não é traduzível para texto

    – Estás acelerado. Pareces o Nico Rosberg.

    – Estou só concentrado.

    – Mas continua, estava a gostar 

    – A lobotomia pode ser a origem da inspiração, mas a lobotomia não tem beleza e isto não é uma ilustração da brutalidade. A violência em que a tua criatividade mergulha é que é assinalável. As melhores peças são aquelas que nos inspiram criatividade e a lobotomia faz justamente o contrário. Às vezes, penso que somos uma espécie de guerrilheiros urbanos que andamos por aí, pela rua, entre os inimigos e, nesse caso, as tuas peças são as minhas armas. Queres melhor? Tornas-te subjectiva e útil ao mesmo tempo. E, nesse caso, temos muitos combates ainda para fazer. De certa forma, a estética da violência une-nos. E há uma beleza contida na violência, mesmo na verdadeira. E tu não tens medo dela. Fazes uma guerrilha à própria violência. E eu escrevo-te assim. Não é giro?

    – Giro? 

    – Não vou escrever nada sobre os media tradicionais, nem fazer analogias com o Poder, nem com a fragilidade de seres mulher ou com o feminismo, pelo menos aquele que está em voga. Tu não tens nada a ver com isso. 

    E ela interrompe como se não estivesse a perceber partes:

    – Ainda estou atónita com essa tua conversa. Não queres mesmo ir até lá abaixo almoçar? Vamos ali à esplanada e vemos uns turistas a andar de trotinete para espairecer. Até Benfica já tem turistas.

    – Sim. Na tua cabeça. Ou melhor… Na minha.

    – Hoje, quando vinha para cá, ia sendo atropelada por uma. Nunca te aconteceu?

    Perguntou em tom irónico.

    – Claro que sim. Está sempre a acontecer-me. Hoje, quando vinha para cá, ia sendo atropelado por uma também. Ali, precisamente junto ao jardim Zoológico. Se não tivermos cuidado, somos sempre atropelados junto a qualquer coisa. Estou agora a lembrar-me que estava contigo quando íamos sendo atropelados por um turista. Se queres saber a verdade… não, não estava. É que eu não estou sequer agora aqui contigo; pensando bem, nem há pouco estava contigo e, pensando ainda melhor, nem muito menos me ligaste ontem. Pior, ontem não existiu e para complicar tudo ainda mais… Não existe tempo.

    – Estás a brincar comigo?

    – Talvez. Mas então é por aí que devo ir, que estou a brincar contigo, ou então dizendo que não há tempo e que as tuas peças são de alguma forma intemporais… Existem fora do tempo e até do próprio espaço. Estas palavras deveriam ser as tuas jóias, mas por outros meios como a guerra e a política. As tuas jóias, para mim, valem ouro, porque ao olharmos para elas, vêm-me palavras à cabeça. E as palavras acima de tudo precisam de ti. O mundo precisa de palavras. E os teus objectos são a possibilidade da palavra.

    – Mas eu estou aqui ou não?

    – Tu é que sabes.

    Respondi sem responder. 

    – Sou só palavras pensadas por ti?.. Ou isto é tipo um filme estúpido de terror do AXN em que a personagem está, depois não está, depois volta a estar… Desaparece… Aparece… Há tempo, depois não há tempo… 

    (NÃO) EPÍLOGO:  Este texto prescinde de um epílogo já que, enquanto o autor estava na iminência de o redigir, apareceu o Timóteo com uma bola na mão a chamá-lo para irem dar uns toques até à Alameda. Assim, por falta de tempo, marca da actualidade, o epílogo não foi escrito. A caminho do local onde a jogatana se iria dar e a pedido do autor, o Timóteo leu no smartphone o texto até este falso epílogo, e sugeriu que o texto acabasse justamente assim. Mesmo assim.

    Ruy Otero é artista media

    Fotografias de Eduardo Sousa Ribeiro


    1984 – exposição de Teresa Milheiro

    20.05.24 — 20.07.24

    Galeria Zé dos Bois

    Rua da Barroca nº 59
    1200-047 Lisboa, Portugal

    Horário ARCOLisboa:
    21 a 26 de Maio 12:00 — 22:00
    Entrada livre.

    Horário 27 de Maio a 20 de Julho:
    Segunda a Sábado 18:00 — 22:00
    Entrada: 3€

    Curadoria: Manuel Costa Cabral e Natxo Checa


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


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  • De baixo de uma pedra sai um lagarto, ou um herói, ou um general

    De baixo de uma pedra sai um lagarto, ou um herói, ou um general

    Corria o ano de 1950. Pelas ruas da cidade vagueava um cão abandonado. Ardiloso, escapava como podia à carrinha do canil municipal. A perseguição levou-o a procurar refúgio junto ao Liceu. Foi aí que o canídeo cor de mel foi adotado pelos estudantes e elevado ao estatuto de mascote. Deitado junto a um grupo, empoleirado junto a outro, alimentado por todos, Kanitov, assim lhe chamaram os estudantes, tinha encontrado um lar.

    Certo dia, porém, Kanitov afastou-se deste lugar seguro e voltou a percorrer as ruas da Baixa, onde, à vista de toda a gente, o inimigo lhe deitou finalmente a mão. Sem um dono que pagasse a licença, o destino do animal estava traçado.

    black and tan short coat medium sized dog sitting on green grass field during daytime

    A notícia da captura chegou rapidamente aos ouvidos dos estudantes. Juventino, aluno do 8.º ano, tinha então 16 anos. Era baixo para a idade, magro, pálido. Tão recatado que poderia desaparecer sem que os colegas dessem pela sua ausência. Só Kanitov lhe sentia a falta. Mal o via ao longe, o bicho corria desenfreadamente na sua direção, saltitando e abanando o rabo. Juventino, filho único, a quem nunca foi permitido ter um animal de estimação – não fosse o menino adoecer dos pulmões – encontrou em Kanitov um companheiro. Um fiel amigo com quem partilhava a sandes de iscas fritas que a anemia o obrigava a ingerir diariamente.

    A perspetiva de Kanitov ser abatido era inaceitável para os jovens. E, enquanto os colegas iam murmurando soluções, eis que Juventino, saído da penumbra em que vivera até então, saltou para cima de um banco e gritou: ⎼ Uma manifestação, companheiros! Isto pede uma manifestação! ⎼ Movidos pelo amor ao cão e pela inesperada atitude sanguínea do colega, os estudantes juntaram-se no pátio preparados para avançar.

    O Reitor, tomando conhecimento desta intenção, alertou os rapazes para o perigo que corriam. Não tinham autorização do Governo Civil. Mas Juventino, assumindo a liderança, falou por todos quando disse que a decisão era irrevogável. Estavam cientes do perigo. Sabiam que os ajuntamentos eram proibidos. Mas era o Kanitov, caramba! Era um deles!

    Foto: Inácio Ludgero

    Uma vaga de capas negras desceu a avenida e atravessou as ruas da Baixa, em direção à Câmara Municipal: – Viva o Kanitov! Libertem o Kanitov! – Exigiam.

    A população, assustada, dividia-se entre o desejo de se afastar para evitar problemas e a curiosidade de saber quem era Kanitov. Alguém esclareceu: – É um general russo. – E o rumor correu a cidade: Os alunos do Liceu, o futuro da região e do país, caminhavam pelas ruas cidade a exigir a libertação de um general russo. Uma vergonha!

    O meritíssimo juiz, posto ao corrente do escândalo, abandonou o café que tomava numa esplanada da moda e foi ver quem eram os meliantes. Não podia acreditar no que os seus olhos viam. A encabeçar o grupo de delinquentes, punho em riste e a gritar a plenos pulmões, o seu Juventino. Por instantes, pensou em ir até ele e arrastá-lo dali pela orelha. Mostrar que sabia educar o filho. Mas a vergonha foi maior. Dirigiu-se a casa. O passo pesado. Cabisbaixo. Pediu à mulher que lhe mandasse buscar uns sais. Sentia-se prestes a desfalecer:  – Ai, Valentina! Que grande desgraça! O nosso Juventino, Valentina! O nosso Juventino! Ai, que me foi para o Liceu normal e vem de lá comunista!

    Ao final da tarde, mascote resgatada, o novo líder estudantil dirigiu-se a casa de peito cheio. Ia feliz. Ansioso por partilhar o feito com os pais, por lhes explicar como se tinha sentido forte pela primeira vez na vida.

    Foto: Inácio Ludgero

    Bateu à porta. Ninguém abriu. Voltou a bater. A velha ama veio à porta, mas não o deixou entrar. Lavada em lágrimas, entregou-lhe uma mala de viagem e um envelope: – Fuja, menino! Fuja, e que Deus o proteja!

    Sem perceber o que se estava a passar, Juventino agarrou a mala e abriu o envelope. Lá dentro, algum dinheiro, dois cordões de ouro, um par de brincos e uma mensagem: “Querido filho, o seu pai denunciou-o à polícia. Vêm prendê-lo! Vá para Paris e procure a ajuda do seu tio. Um beijo, da mãe que tanto o ama e morrerá com a dor de não o voltar a ver.”

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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  • ‘Lamento se os desiludo. Estou-me nas tintas para a realidade’

    ‘Lamento se os desiludo. Estou-me nas tintas para a realidade’

    Ó cores viscerais que jazeis subterrâneas

    Fulgurações de azul, vermelhos de hemoptize,

    Reprezados clarões, cromáticas vesânias,

    No limbo onde esperais a luz que vos baptize,

    As pálpebras cerrai, ansiosas, não veleis.

    Camilo Pessanha

    POEMA FINAL in CLEPSYDRA (1920)


    O título é retirado do romance A educação sentimental dos pássaros, de José Eduardo Agualusa.


    Como não podia deixar de ser, a reprodução do ornitorrinco é do mais taxonomicamente pecaminoso que imaginar se possa[1]. Foi muito importante que a notícia geral da sua descoberta e o fim do debate em torno do seu entendimento só datassem de finais do século XIX e início do século XX. É que, se datassem do século XVIII, não deixaria de ser possível que Lineu desistisse de toda a sua nomenclatura binária[2] e dos critérios que a norteiam[3].


    A História Natural da Revolução Científica não trazia minimamente incorporado o conceito de que todas as regras têm desvios, e de que alguns desses desvios podem de início parecer-nos absolutamente blasfemos. Foi preciso chegar ao final do século XVIII para começarem a aceitar-se extravagâncias que hoje nos parecem tão naturais como a partenogénese nas pulgas de água ou a regeneração de partes cortadas na hidra[4]. Ah. Ambas criaturinhas de água doce, note-se. Vem de lá um ornitorrinco, apanha-as, e chama-lhes um figo.

    Os ornitorrincos vivem em comunidades, embora durante a maior parte do ano os membros de uma mesma comunidade não liguem assim muito uns aos outros. Mas a reprodução, que é sazonal, modifica este comportamento: cada população separada tem uma época diferente para se reproduzir, e respeita-a com um rigor quase cronométrico. O que também nunca varia é um outro desvio à norma, este relacionado com o facto de a cópula se passar forçosamente dentro de água, muito embora o ornitorrinco ainda não tenha chegado a merecer a chaveta de Mamífero Marinho, que mais depressa chegará ao Ártico do que à Austrália[5]. É que, se fosse um verdadeiro Mamímero Marinho, daqueles bem antigos e devidamente merecedores desse nome, tal poderá vir a acontecer ao Urso Polar[6], copular dentro de água faria parte da sua natureza. Agora, sendo o bicho apenas semi-aquático…

    rien n’est simple

    et tout se complique[7].

    É que viver em terra mas copular na água é a grande característica distintiva das rãs, dos sapos, dos tritões, das salamandras – ou seja, dos Anfíbios. Foram os primeiros Vertebrados a sair com sucesso da Sopa Primitiva para conquistar a Terra Firme. Conseguiram mesmo explorar o seu novo ambiente em cima das suas novas quatro patas, uns ainda com cauda, outros já sem ela. Estes animais podem ter-se dado tão bem em terra que nunca mais voltaram à água.

    Excepto para a reprodução, porque os embriões precisam de estar suspensos à superfície de tanques e charcos, dentro das suas fiadas protectoras de geleia, para se tornarem larvas, e depois girinos, e depois sairem dali o mais depressa possível. Isto é de loucos, porque há vários anfíbios já tão afastados da água que morrem afogados quando voltam para de onde vieram para lá deixarem as suas posturas. O regresso anual à água, para eles, é o preço a pagar à evolução. Mas para os ornitorrincos, que são mamíferos e devem ter começado a explorar a Terra Firme muito depois de qualquer salamandra ou qualquer sapo, copular na água é apenas respeitar a sua lógica quotidiana. Passamos metade do dia na água, não passamos? E aqui há menos predadores, não há? Então vão dar uma curva. Nunca vos pedimos para nos entenderem.

    Talvez pudéssemos ficar por aqui.

    Mas há mais.

    E isto é mesmo caso raro e nunca visto, quase inaceitável, a bem dizer imperdoável entre os mamíferos.

    A fêmea do ornitorrinco não sabe o que é parir filhos. Muito pelo contrário. Estamos a falar de um mamífero em que a fêmeas…

    … é, as fêmeas põem ovos[8].

    E depois…

    Depois…

    “…A REALIDADE TENDE A PERDER CONSISTÊNCIA. EM TRÊS DIAS CRIA DELÍRIOS E MUSGO. AO FIM DE UM MÊS JÁ É PURA FANTASIA.[9]

    Estes ovos são nunca menos do que um e nunca mais do que três[10]. Muito haveria o Pitágoras de gostar desta sequência de números primos logo à nascença.

    Mas não, claro que não: como toda a gente sabe, não é o fenómeno anómalo de um animal muito parecido com um mamífero aquático pôr ovos que aproxima o ornitorrinco do urso polar. É verdade que o urso polar tem geralmente duas crias de três em três anos, mais raramente tem só uma, e, mais raramente ainda, tem três. E claro, é verdade que este dois-um-três em cada três anos seria também do agrado de Pitágoras, e fica misteriosamente perto da performance do ornitorrinco. Mas todas as semelhanças param aqui.

    Este parto silencioso nas neves do Ártico é muito longo, com a mãe deitada de lado na neve, cheia de paciência porque os bichos que lá vêm são enormes, pelo que demoram eternidades a sair. Depois de cá estarem fora, as crias mamam de quatro em quatro horas e a mãe senta-se de propósito para lhes facilitar a vida. Crescem depressa, mas têm muito que aprender. São chatinhas, chatinhas, chatinhas – mas a mãe, uma autêntica santa durante este período, nunca as perde de vista nem as deixa sozinhas. À excepção do número de crias, nada disto tem nada a ver com a reprodução fria e impessoal do ornitorrinco.

    Senão, vejamos.

    Para manter os seus ovos protegidos, o ornitorrinco desenvolve uma prega de pele entre os membros anteriores e a cauda, e é que aqui que os guarda, com um arzinho todo marsupial. Para melhor protecção do conjunto, a mãe abandona o menos possível o túnel com cerca de vinte metros de profundidade que escavou previamente dentro da lama das margens. As novas crias hão de vir a nascer cerca de duas semanas depois da cópula, mas são pouco maiores do que um feijão-manteiga e totalmente dependentes da guarda materna, pelo que continuam guardadas e protegidas dentro da tal prega de pele que imita mesmo muito bem a tal bolsa marsupial.

    Estes bebés demoram cerca de três a quatro meses até perderem os dentes[11], o que simboliza a sua entrada no estado juvenil de uma nova vida livre. Durante todo o período de crescimento, sabem muito bem que são mamíferos porque aquela prega de pele que parece uma bolsa marsupial a eles não os engana. Por conseguinte, atiram-se logo à tarefa de se alimentarem do leite da mãe. Mas, como se trata de um ornitorrinco e nesta criatura danada nenhuma manifestação da vida é normal, desta vez o leite não vem de nenhuns mamilos situados na extremidade de nenhumas mamas. É mais que escorre directamente da glândula mamária para os póros da pele do peito da fêmea, onde as crias o vão chupando sempre que não estão a dormir.

    Assim que estão crescidinhos que chegue, e que as placas trituradoras nos maxilares estão formadas, deixam de ser bebés, vão à sua vida, e eram capazes de nem reconhecer a mãe se passassem por ela no dia seguinte. E ela, entretanto, assim que já não precisa de amamentar ninguém, retrai logo a prega de pele da barriga para estar livre de nadar melhor e correr melhor.

    Ah-ah.

    Apanhei-vos.

    Não não, seus exploradores dos antípodas – eu não sou nenhum marsupial.

    Posso parecer um pássaro misturado com um réptil misturado com um mamífero, mas um marsupial é que eu não sou. Não me chamem nomes. O que há mais aqui na Austrália é marsupiais, e eu, ao contrário deles, não sou nenhuma criatura banal.

    Nem quero que ninguém me entenda.

    E que diremos nós a Sua Majestade?

    O bicho bizarro podia não querer saber dos sentimentos dos sábios ingleses e dos primeiros europeus a vê-lo com vida, mas as sociedades científicas britânicas sofreram bastante sem saber o que pensar da sua alegada descoberta.

    Os ornitorrincos foram descobertos pelos europeus no Ano da Graça de 1798, quando o segundo governador de New South Wales, John Hunter, organizou a a primeira expedição inglesa que fez o levantamento da fauna australiana. Perante aquela criatura por demais inacreditável, Hunter achou por bem enviar desenhos de dois ornitorrincos feitos pelos seus melhores desenhadores, juntamente com um exemplar embalsamado e uma pele perfeita, ambos produzidos pelos seus melhores taxidermistas de novas faunas e floras, para a Royal Society of Science do seu país.

     Como já acontecera em vários outros casos anteriores[12], os cientistas ingleses mais respeitados de toda a hierarquia da Filosofia Natural[13] Britânica acharam que aqueles exploradores desatinados só podiam estar a gozar com Sua Majestade. Foi um grupo inteiro dos zoólogos com mais mérito ter com os exploradores, para observar ornitorrincos in locco e decidir se existiam mesmo ou não. E foi assim, contra ventos e marés, que nasceu o mamífero com a família Ornithorhynchidae inteira por sua conta. Hoje em dia é muito famoso[14], muito utilizado em selos e moedas australianos, muito recorrente como mascote de equipas desportivas, e muito postado na internet em video atrás de video Ornithorhynchus anatinus.

    Anatinus vem do latim para Patos.

    Um bicho tão pouco banal merecia um latim bastante melhor, não era? Ainda por cima nos tempos que correm, em que a destruição crescente do seu habitat, sobretudo por causa das tormentas que nos traz o aquecimento global, está a começar a condenar-nos cada vez mais a uma extinção de que nunca se ouve falar.

    Esta questão das espécies interessantíssimas que sobrevivem com dificuldades cada vez maiores mas de cujo perigo de extermínio nunca se fala porque os seus habitats nem sequer estão à vista constitui hoje em dia um drama tão disseminado, e desgraçadamente tão pouco ensinado, que já tem nome próprio e tudo. Foi cunhado apenas agora, atestando bem, só por si, a desgraça que se estende sobre todo o Terceiro Milénio.

    O Ornitorrinco começa a ter sérias dificuldades de sobrevivência.

    É impressão minha[15] ou é exactamente o mesmo que se passa com o Urso Polar?

    “POIS PODE PENSAR-SE QUE EXISTA ALGO DE TAL MODO QUE NÃO POSSA PENSAR-SE QUE NÃO EXISTA.[16]

    Meninos.

    Conhecem a canção do Urso Polar?

    Não?

    Mas olhem, é muito fácil. É só assim,

    Se o Urso Polar

    Quisesse pular

    Caía na neve

    De patas para o ar[17].

    Sempre que vou a uma escola e começo a contar a parte do mamífero marinho aos meninos, e eles abrem-me uns olhos tão redondos que parecem mesmo os olhos de uma foca debaixo de água. E, ao princípio, nem sequer acreditam em mim.

    polar bear on snow covered ground during daytime

    O Urso Polar está perfeitamente adaptado ao seu ambiente do Ártico. Vive das focas que caça em cima dos blocos de gelo, num salto todo feito de borracha que parece impossível num gigante com três metros de corpanzil musculado. Como esta proeza espatifa bastante gelo, depois tem que nadar para outro bloco, maior e mais resistente por forma a suportar-lhe bem o peso, para poder comer calmamente a presa, descansar, e a seguir ir caçar outra foca. E pronto, quem dá o que tem a mais não é obrigado. O Urso Polar é carnívoro, enorme, solitário, e voraz, claro que é um bicho que ninguém quer ver levantar-se de repente à sua frentre no meio de toda aquela neve que esteve até então a camuflá-lo, mas, e para todos os efeitos, trata-se de facto de um urso[18]. Em consequência, não deixa de ser também um animal pacato, com aquela rotina descontraída própria dos ursos. Portanto caça e descansa, passa a vida nisto, e está-se bem.

    Onde podemos medir bem o espectáculo da adaptação do Urso Polar à sua vida calma no Ártico é exactamente no detalhe onde os meninos quase que ficam assustados. Já se percebeu que, entre caçar focas em cima de blocos de gelo e descansar em cima de outros blocos de gelo ainda maiores, o Urso Polar pode de facto sair-nos ao caminho depois de nunca o termos visto no meio da neve. Mas, feitas bem as contas, acaba por passar mais tempo no mar do que em terra. E o conjunto das adaptações que foi desenvolvendo para melhorar a qualidade desta sua vida semi-aquática já é impressionante.

    “COM CERTEZA QUE O MESTRE QUER ENSINAR ALGO À MINHA ALMA, POIS É A ELA QUE SE DIRIGE A PALAVRA SEM VOZ.[19]

    Quantas vezes é que já se disse aqui que o Urso Polar está em vias de se tornar um mamífero marinho? Hm? E como é que pode alguém, por sábio e galardoado que seja, considerar-se no direito de enunciar profecias destas? Hm-hm. Calma na grande área. O regresso ao mar dos ursos polares não é, propriamente, uma profecia. É um fenómeno bem estudado, cheio de sinais que indicam isso mesmo e de preliminares que indicam que esta tendência existe. Vale a pena fazermos todo este caminho a andar. Não há muitos que sejam assim tão comoventes e bonitos.

    Toda a gente sabe como é que esta história começa.

    Um dia, os peixes, atrevidos, iniciaram a exploração da margem, deram origem aos anfíbios, e, depois deles, veio a vaga de fundo de colonização da terra firme pelos milhares de faces dos vertebrados[20]. Do mar saiu tudo o que existiu a seguir, e que se expandiu nuns leques enormes à procura dos mais acrobáticos de todos os recursos, até chegar a grande loucura do sangue quente, capaz de rir na cara dos humores do clima, e mais tarde até da geração interna, capaz de urdir filhos complexos ao abrigo das maldades do mundo. Quando os mamíferos inventaram a barriga da mãe, inventaram a glória de um triunfo indisputável.

    Isto foi há 150 milhões de anos, e tudo parecia correr pelo melhor.

    Mas qualquer saudade ficara no fundo de algumas memórias, o apelo de um útero muito mais primevo, o útero antes do útero, doce mar, és tu que nos chamas: há cinquenta milhões de anos, um grupo de mamíferos semelhantes a cavalos enormes mergulhou nas ondas e nunca mais de lá voltou. Os seus descendentes deram origem às baleias e aos cachalotes, aos golfinhos e aos rorquais, as manadas oceânicas que ainda hoje galopam como nos prados, batendo a cauda para cima e para baixo, em vez de a agitarem para a esquerda e para a direita, como fazem os peixes. E vejam o esqueleto que está dentro desta barbatana: raquíticos, patéticos, lá estão ainda os dedos vestigiais de um pé atrofiado, a guardar a memória de um tempo vivido a céu aberto, entre pastagens e florestas.

    landscape photo of statue infront of brown building

    A viagem de regresso tinha começado.

    Milhões de anos mais tarde, outro grupo de mamíferos, talvez aparentado com as lontras, ou com os ursos, ousou por seu turno o mergulho profundo. Dele vieram a nascer as morsas, as focas, e as otárias, que ainda não chegaram ao grau de adaptação à vida submersa dos seus parentes pioneiros: todos os anos, se não for noutras alturas, têm que voltar a terra para se reproduzirem. As baleias até o parto já consumam debaixo de água. Os novatos, pelo contrário, ainda mantêm os membros posteriores. As otárias, que chegaram por último à grande aventura marinha, até mantêm ainda uns pavilhões auriculares muito redondinhos, que já foram apagados pelo tempo e pelo sal da cabeça lisa e luzidia das focas.

    A viagem de regresso começou, continuou, e ainda está em curso. O Urso Polar apresenta todos os sinais de ser o próximo mamífero marinho na calha. Já retira toda a sua subsistência da água, pelo que mantém com ela uma relação cada vez mais fiel. Muitos deles já nem chegam a pisar a terra firme, numa vida toda ela passada entre o mar e os blocos de gelo. A camada de gordura que tem por baixo da pelagem comprida e oleosa protege-o dos excessos árticos. As garras em forma de gancho ajudam-no a não escorregar. A sua capacidade de mergulho já se estende até aos dois minutos de imersão sem qualquer esforço. Uma membrana liga-lhes entre si os dedos dos pés, impulsionando o corpo na caçada e prenunciando a barbatana. Os olhos mantêm-se abertos debaixo de água com a maior naturalidade, protegidos por uma grande pálpebra membranosa. E as narinas já se fecham automaticamente no mergulho. A viagem de regresso está obviamente em curso.

    Isto dizíamos nós, numa grande comoção – antes de, no início dos anos 90, começarmos a dizer que ou se reduziam as emissões de Carbono ou viria aí um flagelo terrível chamado aquecimento global[21].

    Bem, seus meninos, mas vamos lá com calma. Antes de mais nada, vocês já sabem muito bem que estes bichos todos existem mesmo, não sabem?

    Por exemplo, sabem o que é uma fofoca?

    É muito fácil, então.

    Uma fo-foca é

    um mamífero ma-marinho.

    Adoro meninos.

    Mas que porcaria de mundo é que eles vão deixar àqueles meninos[22]?

    Não é um déja-vu. Não é um lugar-comum. É uma pista importantíssima no meio de um labirinto enorme. Se quiserem, é uma forma muito retorcida de avisar toda a gente[23]. O drama que vem a seguir já começou, e nunca se fala nele. E é precisamente esse drama que forma o grande elo de ligação entre o Urso Polar e o Ornitorrinco[24].

    O Ornitorrinco já é um mamífero aquático.

    O Urso Polar tem a fasquia ainda mais alta na escala dos prodígios.

    closeup photo of green dragonfly

    A transformação de um mamífero terrestre em mamífero marinho, como a que já está em curso com o Urso Polar, é como a dos outros mamíferos marinhos todos, das baleias às otárias. São fenómenos absolutamente espantosos, mas que só podem medir-se em centenas de milhares de anos. Decorrem de forma muito lenta,  muito gradual, sujeita a toda a espécie de acasos, e de outros tantos becos sem saída.

    Será que o Urso Polar vai conseguir transformar-se a tempo?

    Ultimamente os blocos de gelo estão a ficar cada vez mais finos por causa do aquecimento global, pelo que há cada vez menos focas disponíveis, e o Urso Polar anda pior alimentado. Ainda por cima, tem mais dificuldade em encontrar blocos de gelo  suficientemente espessos para suportarem o peso esgotante do maior urso de todos os ursos, de onde decorre que, embora seja um animal extremamente bem adaptado à vida na água, começa a ser algo frequente aparecer um urso afogado aqui e outro ali[25]. Acresce que, se a água do mar começar a ficar demasiado quente, e ainda por cima demasiado doce e alcalina por causa do derretimento do gelo, o urso dificilmente conseguirá viver dentro dela[26].

    E as fêmes grávidas, que precisam de acumular um excesso de duzentos quilos de gordura para sustentar o embrião? E quando a fêmea quase a dar à luz decide construir o seu ninho na camada de gelo que cobre o mar? O gelo costumava sustentar tudo isto sem qualquer problema. Agora o instinto subsiste, mas todo este sustento é cada vez mais problemático.

    Por tudo isto, e por favor, tomem boa nota de um pormenor muito importante:

    É verdade que, perante a situação actual dos Ornitorrincos e dos Ursos Polares, estamos a olhar para dois bichos muito diferentes, que exploram habitats igualmente diferentes, mas que têm como traço de união estarem ambos já declaradamente em  processos de extinção. Ambos esses processos são derivados de mudanças cada vez mais acentuadas nos ecossistemas onde tanto um animal como o outro estavam habituados a viver.

    Como a de muitos outros animais que podem no entanto considerar-se absolutamente icónicos da criatividade do Planeta, quase nunca se fala da extinção de nenhum destes dois monumentos naturais. Regra geral, é um processo de extinção tão lento, a decorrer em animais tão especialmente difíceis de estudar em condições naturais, que é pouco falado e dá pouco nas vistas.

    Chama-se a isto uma extinção silenciosa.

    a close up of an animal skull on a black background

    E a verdade é que, além de sabermos isto, não sabemos muito mais. Mesmo com todos os dados que possuímos, não há ninguém que possa prever hoje, e de ciência segura, qual será o verdadeiro destino dos Ornitorrincos e dos Ursos Polares.

    E quando é que eles se encontrarão com esse destino, se ainda alguém estiver vivo para fazer o registo.

    A história das extinções remete-nos com grande frequência para a nossa devida insignificância.

    A verdade é que a gente ainda nem sequer sabe por que é que, ainda antes dos dinossauros, aquela espécie cde caranguejos grandes e elegantes que deixaram fósseis em grande abundância nas rochas marinhas, e a quem os zoopaleontólogos deram o nome genérico de trilobites, sobreviveram sem uma beliscadura a um grande número de extinções em massa, e depois se extinguiram todas de uma vez, em todas as partes do mundo, sem deixar o mínimo rasto.

    Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


    [1] A reprodução é sempre um dos fenómenos mais marcantes que resultam da selecção natural. Deos Sive Natura, como diria o outro*, não deixa uma única experiência por fazer. Experimenta-se tudo e mais alguma coisa, na corrida sem fim à sobrevivência de cada espécie.

    *A Autora refere-se aqui ao filósofo seiscentista Baruch Spinoza, um dos primeiros grandes deistas da nossa civilização: a sua fórmula DEUS OU A NATUREZA lançou a ideia de que não era necessário dar um nome e um culto específicos à divindade, uma vez que a sua existência ficava claramente demonstrada nos trabalhos da Natureza. A mesma fórmula acabou por levar à expulsão de Spinoza da comunidade judaica de Amsterdão e à sua posterior errância apátrida pelo mundo.

    [2] Género espécie: no nosso caso, somos o Homo sapiens. Foi o naturalista sueco Carl Lineu que dedicou toda a sua longa vida, durante o século XVIII, a criar este sistema de classificar o mundo vivo conforme as suas características mais raras, e (no caso do último factor de definição, a espécie) a sua incapacidade de terem filhos se tentarem cruzar-se com outra espécie, ou, pelo menos, de terem filhos férteis (do cruzamento entre o burro e o cavalo nasce a mula; mas a mula é estéril). Depois de muito debate, estudo, experimentação, e reflexão, Lineu conseguiu por fim criar a chamada NOMENCLATURA BINÁRIA, que ainda utilizamos hoje. No entanto, muitos animais e plantas que, como o Ornitorrinco, desafiam completamente a simplicidade linear do conhecimento conforme Lineu o criou, só foram descobertos bastante mais tarde e precisaram de ser imensamente discutidos até fazerem sentido em termos de nomenclatura binária. Imagine-se Lineu a braços com o Ornitorrinco. Este grande cientista era também um grande vaidoso. Só isso nos salvaria de o ouvirmos deitar por terra o seu próprio sistema de organização do mundo vivo.

    [4] Esta da regeneração das partes cobertas, descoberta pelo suíço André Trembley em plena Revolução Científica do século XVII, dá uma história tão boa como a do voto no castor para Rei dos Animais. Se algum dia lá chegarmos, eu conto.

    [5] Ou seja: como havemos de ver mais à frente, vai acontecer ao URSO POLAR muito antes de chegar ao ORNITORRINCO.

    [6] ATENÇÃO. URSO POLAR, outra vez. Será esta a última referência?

    [7] Parafraseando o cartoonista francês Sempé: “Nada é simples e tudo se complica.”

    [8] Característica geral dos Monotrématos.

    [9] José Eduardo Agualusa. in A EDUCAÇÃO SENTIMENTAL DOS PÁSSAROS.

    [10] Não é erro, não.

    [11] É, é. Isto aqui vale tudo. Mesmo.

    [12] O Dodó da Ilha Maurícia, descoberto no século XV por uma expedição portuguesa e depois desenhado e descrito à saciedade por marinheiros e especialistas holandesas, é um bom exemplo de criaturas inacreditáveis destas. Para uma descrição detalhada do seu destino, e do que se passou com vários outros animais exóticos quando observados pela primeira vez pelos europeus, consultar DODOLOGIA: UM VOO PLANADO SOBRE A MODERNIDADE, de Clara Pinto-Correia.

    Tem uma grande admiração por si própria, esta gaja.

    Também tem uma colecção impressionante de péssimos subtítulos nos seus livros de investigação. Isso é indiscutível.

    [13] Durante milénios foi este o nome oficial da Biologia, uma disciplina que só aparece no século XX tal  como a conhecemos agora.

    [14] Passe a redundância, claro. É por demais evidente que outra coisa não seria de esperar.

    [15] O pronome possessivo refere-se, aqui, à autora destas charadas, e não propriamente ao ornitorrinco, que CPC fez a gracinha de pôr a falar na primeira pessoa durante toda a parte anterior do texto.

    [16] Venerável Beda, PROSLOGION, Século VIII.

    [17] Quadrinha de Mádrio Castrim, memorizada a partir de um dos meus livros infantis preferidos. Eu própria criei a música, para poder cantá-la com os meus filhos durante as viagens de carro.

                    PS – Viagens de carro, estão a ver? As Mães cantam com os filhos, felizes da vida. E os pais deles vão sempre de trombas. Voz doce, feminina: “Ó amor, mas que cara é essa?” – Voz furibunda, masculina: “É A MINHA!

    [18] Claro que eu não digo isto aos meninos. Digo aos meus alunos universitários, quando introduzo o Urso Polar nas minhas analogias para a insustentabilidade da chamada SOBREVIVÊNCIA DO MAIS APTO como força motriz da selecção natural.

    [19] Jorge Luis Borges, in HISTÓRIA UNIVERSAL DA INFÂMIA

    [20] Simplificação grosseira. Houve inúmeras tentativas de colonização da terra firme muito anteriores à existência dos Vertebrados. Devido à ausência de componentes duras, estas espécies são extremamente difíceis de estudar. Sabemos, no entanto, que existiram sucessivas vagas de invasão da terra firme, mais ou menos demoradas, mas nunca bem-sucedidas a termo.

    [21] E qual é o urso polar que sobrevive a um ártico morno, com um oceano cheio de água doce dos glaciares derretidos, sem blocos de gelo para caçar e digerir as suas focas, e tudo o mais que consta do seu estado pré-marinho?

    [22] Nada como um bom lugar-comum para acalmar o alvoroço das escolas e das universidades. Esta é legitimamente minha.

    [23] Se não fosse para ser retorcida, também não era para ser em forma de charada.

    [24] Além de todos os elos de ligação menos assombrosos, de que fomos falando aos longo desta charada.

    [25] Não são tão poucos como isso, e cada ano são mais.


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