Etiqueta: Cultura

  • All That Jazz, o espectáculo tem de continuar e outras coisas do tipo

    All That Jazz, o espectáculo tem de continuar e outras coisas do tipo

    Ao fazer zapping na plataforma Filmin, choquei de frente com um filme que já tinha visto há muito tempo intitulado All That Jazz. Tinha uma fugaz boa impressão, mas lembrava-me de muito poucas cenas. E, então, vi-o novamente.

    Surpreendeu-me, e, como acho que, numa certa perspectiva, tem os elementos para uma pertinente interpretação à luz dos nossos dias, fiz o trabalho de casa e decidi escrever.

    Se eu fosse dono de um cinema de reposições como ainda vai havendo, considerando também o Cinema Nimas, último bastião resiliente de cinema em salas com grandes ecrãs em Lisboa, seleccionava este filme para estar em cartaz uns tempos.

    Iria trazer certamente estilo à cidade porque antes os cinemas eram também os jardins das cidades. 

    All That Jazz é um filme de Bob Fosse que estreou em 1979 e ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cannes ex aequo com Kagemusha – A Sombra do Guerreiro, de Akira Kurosawa em 1980.

    É um filme magnífico, posso jurar pela alma do cinema.

    Bob Fosse foi dos realizadores mais singulares do sistema mainstream norte-americano, mesmo que possa não ser considerado como tal por alguns críticos mais radicais ou puristas e até ser visto como um intrometido que veio do teatro musical, constando na sua filmografia apenas quatro longas-metragens, entre as quais Cabaret, que recebeu um total de 10 indicações ao Oscar (vencendo oito delas), detendo o recorde de obra com mais prémios da Academia para um filme, que não venceu o Oscar de Melhor Filme.

    Casting 1#

    Fui ver o que alguns sites diziam do filme e aqui transcrevo o que o site agregador de avaliações Rotten Tomatoes diz: 87% das 46 avaliações dos críticos são positivas, com uma classificação média de 7,6/10.

    O consenso do site diz: O diretor Bob Fosse e a estrela Roy Scheider estão no topo neste drama de palco deslumbrante e auto consciente sobre um diretor-coreógrafo obcecado pela morte.

    Vale o que vale.

    Este é mais uma daquelas longas-metragens em que, não obstante ter 45 anos, podemos sempre encontrar traços da actualidade, sobretudo pela forma como teatro, cinema, vida, vida real, espectáculo, dança, showbiz, e autobiografia se misturam, parecendo tratar-se de um convite muito sério (mas a brincar) para se entender o espírito tempo em que foi produzido e também o que haveria de chegar, com algo de premonitório, até atendendo à esquizofrenia latente que navega por lá, que com o passar do tempo mais a continuação do Plano Marshall, no Ocidente, passando pela inevitável queda do Muro de Berlim, só teria tendência para piorar, no que à psicose diz respeito.

    O Directório de Saúde Mental com os seus excessos em conluio com a indústria farmacêutica, são disso exemplo para a construção de outros muros que, entretanto, apareceram e não são para aqui chamados.

    Se há coisa em que Bob Fosse não falhou, e talvez não fosse difícil, foi na premonição da sua própria morte por insuficiência cardíaca, que veio a acontecer algum tempo depois aos 60 anos.

    Premonição? Morte?

    Toda a arte, metaforicamente falando, que se envolve subtilmente com o tempo, terá de arriscar alguma coisa quanto à sua expansão no futuro que nunca estará privado de História e a morte é sempre o melhor dos temas, quanto a mim. Pois este filme vive da morte, como não poderia deixar de ser…  

    Mas aqui, nestes milhões de fotogramas é-nos transmitido por outro lado, que o tempo é de espectáculo permanente e que vida e morte, ficção e realidade, podem estar a querer dizer que são água da mesma fonte, integrados numa cacofonia delirante armadilhada por todo o tipo de “redes sociais” e intrigas malignas, dignas da realidade actual, que não é mais que uma continuação natural das outras redes e de outros tempos. 

    Sim, sim. O digital é o prolongamento do dedo.

    Está tudo ligado e desligado ao mesmo tempo. Neste estranho e atípico filme é nos dito que a vida é aquilo que tem de ser, e só vivendo no sonho ou na imaginação é que existem possibilidades salvíficas.

    Casting 2#

    Este filme polvilhado por anfetaminas, parece uma longa selfie feita por alguém que sabe filmar e dançar. É um filme-slalom que está constantemente a ver-se ao espelho. Ou mesmo pode tratar-se de um filme-espelho, para ser mais preciso, ainda que toda a arte deva espelhar, nem que seja espelhar-se a si mesma, como também acontece nesta película, uma vez que não deixa de ser uma obra com tiques pós-modernos, já que mantém alguma sinuosidade kitsch típica desse mundo colorido e stressado, o que até lhe fica bem e na altura recomendava-se.

    Como sintoma, este filme fechava o fim de um ciclo de musicais que alimentaram e sustentaram alguma Hollywood. Seria o último musical indicado ao Oscar de Melhor Filme até que A Bela e o Monstro da Disney fosse indicado em 1992, e foi o último musical live-action a competir na categoria, até Moulin Rouge de Baz Luhrmann em 2002.

    É contemporâneo de A Febre de Sábado à Noite que imortalizou John Travolta e se tornou filme de culto, embora nada lhe deva, sendo muito mais profundo e arty, que a sobrevalorizada fita de John Badham.

    Neste estamos sempre à espera de que o espelho parta e com ele o próprio elenco (técnicos e actores) que estão por lá reflectidos, como se isso fosse coisa pouca. No outro não há espelhos humanos, aqueles que interessam, e os que há, estão instalados nas bolas refletoras das discotecas e clubes, ou servem apenas para John Travolta se pentear enquanto se reflete neles, não trazendo nem expondo a fractalidade da qual muita arte se alimenta. Aqui, a suposta falsidade e futilidade das coreografias e canções, ajudam a decalcar o mundo profissional e os seus inerentes dissabores. Mas todas as salas de ensaio naturalmente têm um espelho. Será a vida uma longa e interminável sala de ensaio com um espelho a olhar para nós?

    The show must go on, n´est pas?

    O mundo é um espectáculo, e aqui não deixo de citar e invocar, mesmo que o realizador não o tenha lido, (não sabemos), o livro de Guy Debord intitulado A Sociedade do Espectáculo, de 1967 e que acertou em cheio no desenlace para o admirável mundo novo ao qual a sociedade se sujeitou, sem que alguém disso duvide, pode é ser bom para alguns. E mau para outros, como sempre acontece em sociedades divididas. Chamou-se a isso democracia.

    Dancing scene 1#

    Bob Fosse foi dos principais encenadores-coreógrafos da Broadway nas décadas de 50, 60 e 70, e um grande viciado em anfetaminas, sexo, cigarros e Dexedrine, já para não falar de ser um workaholic de primeira, aspectos que o filme autobiográfico realça bem, pelo menos o seu alter ego Joe Gideon está sempre em zona de perigo, ostentando permanentemente um Camel ao canto da boca como um cowboy solitário e aventureiro que tem a morte à sua espera no fim da linha e o show time na ponta da língua no inicio do dia, repetindo-o várias vezes ao longo do filme, mas sempre filmado e editado de formas diferentes ainda que sempre de frente ao espelho da casa de banho.

    O próprio filme, é um excesso, caracterizado pela montagem cheia de ritmo e cortes rápidos, trazendo daí flashbacks e flashforwards necessários para a compreensão da narrativa e para a sensação de pesadelo e desespero light que o filme parece pretender criar, percepcionando um certo cansaço, mas também um divertimento ligeiro ao mesmo tempo, acompanhado sempre de movimentos de dança e de música entretida, típica daquele género de espectáculos no qual  todas as personagens estão envolvidas.

    Era frequente naquela época abusar-se um pouco de efeitos como o de fade in/fade out, ou sobreposições e outras distorções visuais e/ou sonoras. All That Jazz peca um pouco por isso. Talvez seja também misógino já que tudo circula à volta de Scheider, e não deixa de ser verdade que as mulheres podem aparecer como objecto do seu vício, apalpando as enfermeiras na cama do hospital sem a sua permissão, por exemplo. À luz dos dias de hoje com cancelamentos e auto-censura, não sei se o filme aguentava num cinema sem umas sprayzadas de tinta nos cartazes. Quase me sinto obrigado a dizer isto, embora o filme, seja como for, o faça com arte e criatividade e não creio que veicule uma apologia de masculinidade tóxica. 

    A narrativa desloca-se pouco do mundo do espectáculo em que o jogo está mais legitimado e é sobretudo dado um mergulho profundo nesse mundo, por alguém que caiu desde cedo no caldeirão do showbiz.

    Nesse sentido, Bob Fosse torna-se único, fundindo com realismo o cinema e o espectáculo como se nos tivesse a dizer que se fosse bombeiro só faria filmes sobre incêndios, mas auto-indulgentes e negativos, ou em parte.

    Mas o argumento para dar contraste e mesmo paradoxo visual e narrativo, acaba também por magistralmente envolver o corpo clínico que mais tarde aparece como elemento salvador dos excessos de Gideon em ambiente hospitalar, e talvez seja essa a grande novidade conceptual apresentada, fazendo confluir dois universos completamente dispares, ou talvez nem tanto…

    É também um filme feito de luzes e de lantejoulas com chapéus de coco e cadeiras a voar por todo o lado, a darem-nos permanentemente a convicção de que a vida não só é um espectáculo ainda que triste, como também um cabaret.

    Bob Fosse fez apenas quatro filmes, mas umas dezenas de encenações teatrais e musicais pelas quais foi inúmeras vezes premiado. E em pelo menos três obras cinematográficas, retratam-se pessoas que existiram, não só no mundo real, como também no cosmos das Broadways norte-americanas andando em torno, como no caso de Star 80 (o seu ultimo filme), do destino trágico da modelo playmate Dorothy Stratten que estava envolvida com o realizador Peter Bogdanovich (no filme tem outro nome), sendo este e Lenny, dois biopics que expõem os perigos e as perversões do mundo do show business, que o próprio tão bem conheceu, e cujas consequências viveu na pele. 

    Dancing scene 2#

    Parece dizer-nos também sem grande lamento, que em tempos freneticamente instáveis de esquizofrenias paradoxais universalmente expandidas e fragmentadas, num mundo globalizado e americanizado, justifica-se pôr o dedo nas feridas abertas de um mundo deprimente também gerado pelo excesso e pela sua velocidade imparável, alicerçado em cidades sujas como a Nova Iorque daquele tempo pré Giuliani, que dizem tê-la “limpo” anos mais tarde, com métodos dúbios e obscuros de tolerância zero. Como se a asseptização vindoura não trouxesse ainda mais lixo, mas isso são mãos para outro piano, como dizem os eslovenos.

    A série Fame também contemporânea deste filme e que retrata o mundo das artes cénicas a partir de uma escola, mostra uma Nova Iorque que já não é a do sonho americano, parecendo mais um pesadelo, ilustrada pela crueldade, dureza e competição a que os artistas se submetem na tentativa de ganhar um lugar ao sol.

    Esses tempos cinematográficos e televisivos mostravam cada vez mais a neblina, e isso era muito patente em Hill Street Blues, uma série televisiva daquele período com grande êxito mundial, em que se acompanhava o dia a dia dos agentes numa esquadra de polícia.

    Nova Iorque era viciante e viciosa e realizadores como Jim Jarmush que lá viveu nessa altura, disse tratar-se do melhor sítio do mundo para viver, ainda que fosse das cidades mais perigosas do ocidente na década de setenta e oitenta.

    Essa Nova Iorque carismática com cheiro de vão de escada e muito frenesim impregnado de adrenalina estão muito presentes em All That Jazz, embora seja ilustrada mais pelos personagens e as suas inerentes fragilidades que pela visão da rua. Sente-se o lixo e o crime sem se ver, cheira a comida exótica fast food por todo o lado como em Blade Runner feito uns anos depois. E ambos os filmes têm semelhanças na forma como a morte e o medo aparecem e mergulham na metafísica, mas Gideon jamais poderia ser um replicant, para aproveitar o balanço da citação ao filme de Ridley Scott.

    Este All That Jazz não deixa de ter alguma violência contida, mas bem expressa por exemplo nas incapacidades técnicas e criativas dos bailarinos e na manifesta dúvida existencial permanente em Gideon, realçando assim a intransigência conhecida para se ser bem sucedido no mundo do showbiz.

    A dúvida e a sua inerente violência psicológica são um elemento que acompanha o filme pouco contido, algo lacónico, cáustico, penetrante, confrontante, e até imperativo.

    Esta longa metragem atípica confere visibilidade ao invisível através das percepções e interpretações sensoriais, emocionais e até intelectuais dos actores, resvalando um pouco em Cassavetes, já que era um dos realizadores mais interessantes e experimentais do cinema norte-americano e que ainda influenciava parte do cinema, sobretudo o europeu, germinando nas personagens processos mentais imaginativos, cognitivos, e até reflexivos, constituindo-se como veículo de auto-representação de um mundo desconhecido para a maioria, tendo conhecimento apenas como espectadores mas sem acesso ao seu background que não era tão feliz como os media faziam crer nas revistas.

    Dancing scene 3#

    All That Jazz funciona como um canal de expressão, comunicação e conhecimento, e responde de lâmina afiada cortante com solidez, objectividade e contundência a um mundo que mergulha por vezes na crueldade e é cada vez mais escravo e servil do gosto dos espectadores e produtores. Gideon sabe disso.

    Fosse sabe disso. Até eu disso sei.

    É, pois, um meta-filme, ou um meta-espectáculo dentro do filme que acaba ele mesmo por instalar-se definitivamente num hospital, fazendo confluir o mundo clínico e frio com o mundo espectacular das cores e das coreografias.

    Essa acidez com vontade de se alcalinizar, é sem duvida um dos pontos centrais do filme, trazendo singularidade ao mundo asséptico da bata branca, fazendo lembrar algum Fellini, (Oito e Meio de certeza, ou mesmo Ammarcord, arrisco eu), obras nas quais o tempo parece ter compactuado com o os 24 fotogramas por segundo, andando para trás e para a frente sem tropeçar, de forma a mostrar-nos a cabeça e os pensamentos por vezes fragmentados, por vezes claros, dos protagonistas, dizendo que aquilo que estamos a assistir vive ao mesmo tempo dentro das suas mentes.

    Em Fellini e Fosse há sempre uma vontade intrínseca de ser cinema próximo da vida, sem o realismo muitas vezes associado, ou então traduzindo uma realidade delirante, e aí sim realista, porque a própria vida também ela pode ser excessiva, e sendo assim, mais uma vez podemos viajar no tempo, e parar no presente, num contexto em que as ciências médicas têm tido um protagonismo pouco científico e a esquizofrenia generalizou-se com o fim anunciado do jornalismo e sabemos lá se do cinema.

    All That Jazz não deixa de ser um filme íntimo e perturbador, é a cabeça de Roy Sheider que transporta toda a emoção ou a carpição sofrida e introspectiva da aridez de solidões, desamores, frustrações, e até incompreensões, fazendo com que cada um de nós se identifique mais ou menos com a confissão vulnerável do autor que vai dialogando ao longo do filme com uma espécie de imagem feminina interpretada por Jessica Lange, pueril, bela e branca, fazendo acreditar por vezes ser a morte disfarçada de anjo, ao contrário da morte representada em Sétimo Selo de Bergman, por um cavaleiro vestido de negro e com uma máscara branca. Um anjo exterminador.

    Rehearsal

    Sem dúvida que All That Jazz está também imbuído de fé e crença, mesmo que alimentadas pela falsidade do mundo do espectáculo, que precisa de acreditar no teatro da vida para ser eficaz nas suas deambulações tanto intelectuais como emocionais, estando sempre à frente do olhar e da acutilância dos produtores para ganhar dinheiro, tentando passar por cima das fraquezas humanas, e das pequenas falhas de carácter, marca estúpida dos humanos.

    Esta película está sempre a ver se a luva serve na mão, usando palavras despidas, perspicazes e fortes de nos arrepiar a pele pela crueza e até pelo humor cáustico vindo da boca do actor que interpreta o stand-up comedian e que aparece quase sempre dentro de um monitor da sala de visualização enquanto parte integrante de um filme que Gideon anda a acabar, autocitando-se uma vez que já realizara anos atrás, Lenny, uma longa metragem a preto e branco que retratava a vida do cómico e trágico Lenny Bruce com Dustin Hofmann.

    All That Jazz é uma esponja auto-biográfica do autor. Absorve, processa e escorre, dá ideia que o copo foi enchendo com o passar dos tempos que imaginamos muito preenchidos enquanto observador de uma realidade mais abrangente que a da sua vida no trabalho, na família e nas mulheres, carregada de todo o tipo de excessos. É uma obra com sangue, suor e lágrimas onde o fantasma do Vietnam e dos filmes de guerra dessa época excessiva paira, mas talvez mais pelos fantasmas cinematográficos do que pela realidade do filme que andava preocupada com outros negócios. 

    É o filme que Kubrick disse ser o melhor filme que já tinha visto, pelo menos até à época, o que é uma excelente carta de apresentação e já agora o realizador de Shinning é citado numa das cenas a propósito… De filmes.

    Arrisco mais uma vez fazer uma analogia com o nosso presente pela necessidade de encontrar uma válvula de escape que ali é representada pela imagem da mulher e hoje é trazida pela cultura new age mais uma vez com Yogas e Krav Magás, passando pelos spas que jorram pelos ginásios, onde o suor é outro e as lágrimas vão secando ao ritmo de outra musica, iludido que está o publico de apaziguamento, tanto pelo controlo da ansiedade, como pelo controlo da violência intrínseca, com a tentativa de dar murros na mesa às incongruências do presente e incertezas do futuro que lhe (nos) entram pelos olhos dentro no quotidiano, e não podem, e não devem ser passivamente ignoradas.

    Uma palavra também de apreço a Roy Scheider que até aí era mais conhecido por filmes onde fazia de duro como French Connection, ou pelo grande sucesso comercial Jaws, realizado uns anos antes por Spielberg. Mas o seu desempenho mostra capacidades ecléticas bastante assinaláveis dando sempre uma energia, um entusiasmo e paradoxalmente um desgaste credível à personagem. Supostamente Gideon está sempre sobre o efeito de drogas e Scheider nunca cai no overacting em que muitos caíram em filmes limite do género, embora o argumento peça que estejam na fronteira subtil, tanto o actor, como o realizador e a personagem, ao mesmo tempo, e aí Roy Scheider é exímio fazendo de todos e talvez até de si mesmo, como é comum nos bons actores que têm coisas a dizer não se ficando pelo exibicionismo da técnica. 

    Queria terminar com uma cena do filme:

    Gideon está na maca dirigindo-se para a sala de operações. Acompanham-no de um lado a ex.  mulher e mãe da filha, e do outro a actual namorada. Olha para a primeira e convicto de que pode sucumbir na perigosa operação ao coração, diz: Se morrer peço já desculpa por todo o mal que te fiz!

    Ela chora. Depois Gideon olha para a namorada e diz: Se continuar a viver, peço já desculpa por todo o mal que te vou fazer!

    Ela ri

    Esperemos é que o cinema não sucumba na mesa de operações, por onde tem sido visto ultimamente, estando a precisar de uma válvula cardíaca nova para contrariar a sua morte anunciada.

    Mas pronto… All That Jazz continua a respirar sem a ajuda da máquina.   

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações de Manuel Silva


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

    APOIOS PONTUAIS

    IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

    MBWAY: 961696930 ou 935600604

    FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

    BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

    Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

    Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.

  • É música o dia inteiro

    É música o dia inteiro


    Era muito cedo, estava frio e o guri cabeceava de sono.

    – O teu corpo pede cama – disse o avô. – Aí, tu falas para ele: moleza, não; calorzinho, não!

    Quando saíram para o pátio, a frialdade e a escuridão fizeram com que o menino estacasse. No fundo do pátio, além da cerca de arame, ele viu um traço vermelho na base do céu.

    – Vamos para o meio do pomar – disse o velho.

    A tree filled with lots of oranges under a blue sky

    Lá, entre as goiabeiras e laranjeiras, a escuridão era mais fechada. O neto sentiu um pouco de medo, teve até vontade de chorar, mas engoliu em seco e concentrou-se na figura do avô: uma mancha mais escura no meio daquele negrume.

    – Presta atenção!

    Viu que o velho se curvava e espalmava as mãos no chão gelado e que, a seguir, com um movimento ágil, jogava as pernas para trás.

    – O nome disso é apoio de solo.

    Interessado no que fazia o avô, o menino agachou-se. Percebeu então que o corpo dele, reto como uma tábua, subia e descia, movido apenas pela força dos braços.

    – Faço vinte, no mínimo. Mas, quando me irrito com os meus braços, quando eles fraquejam, dou uma ordem: mais dez!

    O piá esfregou os braços enregelados. Seus olhos correram pelo negror que o circundava. Teria algum bicho pendurado naqueles galhos molhados? Tremia de frio, seus dentes chacoalhavam.

    As juntas dos braços do velho crepitavam.

    elderly, hands, ring

    O vovô vai se desconjuntar, pensou.

    – Agora é a tua vez – disse o avô, ofegante, depois de pôr-se em pé.

    – O quê?

    O velho soprou forte para colocar a respiração em ordem.

    – Faz como eu: mão na frente do peito, corpo espichado.

    Com movimentos delicados, o avô ajudou o neto a espichar-se por cima do chão úmido.

    – Tu não precisas atingir a perfeição no primeiro dia. Tu até podes te retorcer como minhoca em areia quente que, depois, aos poucos, tu pegas a feição.

    O garoto fez dois movimentos incertos, sinuosos.

    – Faz mais um! – ordenou o avô.

    – Não aguento mais.

    – É por isso mesmo. Teu corpo tem que aprender. Quem manda é a força de vontade. O corpo só tem que obedecer.

    O menino moveu de leve o corpo.

    – Por hoje, está bom! Te levanta!

    Um galo cantou ao longe.

    – Agora, vou te mostrar o inferno – disse o velho e se dirigiu à portinhola que ficava debaixo da escada que descia da cozinha.

    Assustado, o guri parou no centro do pátio. O avô voltou-se para ele, risonho:

    – Estou só brincando, seu pateta! Temos três peças boas aqui no porão. Vem!

    Vagarosamente, o menino dirigiu-se à porta que se abriu com um rangido de filme de terror.

    – Aqui, nesta primeira peça, fica a minha oficina.

    Cauteloso, o pequeno passou pela porta aberta. Ao sentir o ranço forte de umidade e mofo, tossiu. Uma lâmpada fraca mostrava uma peça pequena, que tinha uma bancada de carpinteiro. Não teve tempo de examiná-la porque o avô já o chamava da peça seguinte.

    – Aqui dormem os passarinhos.

    O pequeno ficou encantado com o grande número de gaiolas que havia por ali. Em cada uma delas havia um bichinho sonolento.

    – Daqui a pouco vou te apresentar a eles. Todos têm nome de gente. Vem.

    Passaram à última peça.

    – E aqui, vô, o que é aqui?

    – É o depósito, onde a gente guarda coisas velhas. Te senta.

    grayscale photo of boy having haircut

    O piá ajeitou-se na cadeira que o avô lhe indicara, diante de uma penteadeira. O espelho estava rachado ao meio. No teto baixo, por cima da cabeça dele, pairava outra daquelas lâmpadas amareladas. O chão era de cimento áspero.

    Enquanto o velho furungava nas gavetas da penteadeira, os olhos do seu neto percorriam os cantos mais afastados da peça.

    É certo que aqui tem rato, pensou. Ratos e outros bichos nojentos. Cobras e escorpiões. Talvez até aqueles morcegos que chupam sangue.

    Mergulhado nessa preocupação, não percebeu que o avô estava de pé por trás dele, empunhando alguma coisa. Sentiu então o primeiro beliscão da máquina, na base do crânio.

    – Vou arranjar um corte de homem para ti – disse o velho. – Mulher é que gosta de cabelo comprido.

    A máquina mordia e remordia.

    – Tu sabes o que é vaidade?

    – O quê, vô?

    – Vaidade? Vaidade é se considerar bonito. Um homem pode ser feio. As mulheres, não. Elas são vaidosas.

    Os beliscões da máquina doíam uma barbaridade. Discretamente, o menino limpou umas lágrimas.

    – Cabelo é vaidade. Então, a gente raspa. Além do mais, a cabeça fica livre dos piolhos.

    O guri fechou os olhos com força para evitar a saída de novas lágrimas.

    – Está pronto – disse o velho, passando a mão áspera pelo pescoço do neto. – Agora, só vamos aparar, todo sábado.

    a group of birds on a wire

    Saindo dali, entraram na peça em que se encontravam os passarinhos.

    – Eles atravessam o dia todo cantando. Se prestares atenção, vais ver que sempre tem um deles piando. Um canta melhor do que o outro.

    O pequeno se aproximou de uma gaiola. Dentro dela, viu um passarinho amarelo todo encolhido. Devia estar morrendo de frio. Tentou enfiar o dedo entre as grades para acariciá-lo, mas o bichinho recuou.

    – O canto deles vai emendando um no outro. Um para e o outro começa. É música o dia inteiro.

    A atenção do guri foi atraída pela gaiola onde havia um bichinho diferente, mais bonito.

    – Qual é o nome deste aqui, o da cabecinha vermelha?

    – O nome dele é Pablo.

     – Não! Eu quero saber é a raça dele!

    – Ah, é um cardeal – respondeu o avô. – Também chamam de galinho-da-campina, mas eu prefiro cardeal.

    O passarinho não parava de mudar a cabeça de posição, sempre observando avô e o neto, muito atento.

    – É um cardeal muito sabido. Canta uma monstruosidade! Não, na verdade, não canta. Ele assobia. Queres ver?

    O velho soprou um trechinho de música e o bichinho respondeu a ele.

    red and black bird on brown wooden surface

    O garoto sorriu. Era engraçado aquilo. Então, ele próprio tentou assobiar, mas saiu-lhe um sopro meio falhado. Mesmo assim, o cardeal respondeu a ele.

    – Pablo sabe de tudo – disse o avô.

    Os outros passarinhos começaram a cantar.

    – Que maravilha! Eles não pagam imposto para cantar. Cantam e pronto. 

    Ficaram parados ali, por um bom tempo, escutando a cantoria.

    Por fim, o avô disse:

    – Vamos subir para o café. Garanto que a velha bruxa já está nos esperando com uma xícara fumegante de veneno.

    A avó, gorducha e baixinha, acintosamente cravou as mãos na cintura.

    – O que tu fizeste com o cabelo do guri, Leovegildo? O coitadinho ficou parecendo um enjeitado, um louquinho de hospício.

    – Não te mete, Edméa! Isso é coisa de homem.

    – Coisa de homem! Isso é coisa de doido! Onde já se viu raspar um coco desse jeito? Isso aqui não é quartel.

    O avô pegou uma fatia de pão e, falando alto, saiu para o pátio.

    – Vou é cuidar dos meus passarinhos que eu ganho mais.

    A velha passou a mão pela cabeça do neto.

    – Não te assusta com o teu avô. Ele é meio maluco, sim, mas tem um coração do tamanho de um bonde. Um homem que passa os dias cuidando de passarinhos não pode ser mau. Tu não achas?

    O menino concordou com um gesto de cabeça. Não respondeu porque estava mastigando um baita naco de pão com manteiga.

    – Esse velho passa o dia em função dos bichinhos – prosseguiu a vó. – Agora, vai gastar uma hora limpando as gaiolas e botando água e alpiste para eles. Depois vai espalhar as gaiolas pelo pátio. Tu vais ver. Mais tarde, ele fica trocando as gaiolas de lugar. Primeiro, bota os passarinhos no sol. Quando esquenta, leva eles para a sombra. O dia inteiro é essa dança.

    O menino coçou o pescoço. Estava com uma comichão irritante atrás da gola do pijama.

    – Onde já se viu? Zerar o cabelo do neto com uma máquina velha. Um cacheado tão lindo! Só mesmo um velho maluco! Cada vez ele está mais maniático. Por acaso ele te ensinou a fazer ginástica?

    O menino sacudiu afirmativamente a cabeça, e pegou uma nova fatia de pão.

    – É um exagero. Garanto que faz mal para a saúde dele. Está ficando gagá. É só para se mostrar para ti. Se tu morasses aqui na nossa cidade, se não viesses para cá só nas férias de julho, ele não se exibia tanto para ti. Como é que ele não tem vergonha? Só os passarinhos mesmo para aguentar esse velho rabugento.

    Lourenço Cazarré é escritor


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

    APOIOS PONTUAIS

    IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

    MBWAY: 961696930 ou 935600604

    FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

    BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

    Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

    Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.

  • Vem aí trovoada!

    Vem aí trovoada!

    A manhã acontece com a tranquilidade própria dos primeiros dias de setembro. Uma pausa entre o corrupio das férias e o do trabalho. O caminho quase deserto. A brisa fresca convida à preguiça no terraço. Um fundo azul-céu. O sol a derramar dourado sobre a paisagem. A luz a tocar ao de leve as copas verdes dos pinheiros mansos. Luminosas por fora. Sombrias por dentro. O vaivém dos pássaros a traçar linhas entre as árvores do mato e as do quintal. Os hibiscos floridos. Grandes. Alegres. Nas paredes, osgas gordas, moles, a aproveitar o que resta do verão. Um dia perfeito. Um velho passa e dá de vaia. Daí a uns minutos, outro. Aposentados. Indiferentes ao calendário. Os dias são apenas dias. O percurso diário, circular como o tempo: exercício, terapia, passeio, lugar de encontro.

    O senhor da bicicleta passa para cima e para baixo, para baixo e para cima. Dá as voltas que a idade lhe permite e que o médico recomendou. Não perde a oportunidade para lembrar às duas amigas que passam que: – Já não era para estar aqui hoje! Uma pessoa tem de se mexer.  Elas confirmam, acrescentando a importância de espairecer.  E lá vão. Elas para baixo, ele para cima. Poucos minutos depois, novamente a bicicleta. Cruza-se, desta feita, com uma senhora roliça, peito de pomba, passada lesta e ar de quem sabe coisas:

    ⎼ Vem aí trovoada!  ⎼   exclama.

    ⎼  Pois vem! ⎼   confirma ele, continuando a pedalar.

    a pink flower with green leaves

    Olho para o céu e não vejo os sinais. Também não questiono. A moleza tomou conta de mim. Continuo refastelada a observar.  Reparo como se cruzam, mas não param.  Por hoje, estão conversados. Conhecem-se bem. Sabem das vidas, das famílias, das maleitas uns dos outros. Além disso, um pouco mais adiante, um vizinho instalou um cadeirão debaixo de uma árvore e passa ali boa parte do seu tempo, garantindo que todos ficam ao corrente das novidades.

    Ocorre-me, entretanto, que há vários dias que não vejo uma  das senhoras que por aqui costuma passar. Aguardo alguém que me possa dar notícias. Mais uma vez, a bicicleta. Aceno e pergunto se sabe o que é feito  da vizinha. Conta-me que cegou. Que já não sai:

    ⎼ Não vê nadinha! ⎼ reforça.

    Está morta, penso. Tão triste!

    Um pé atrás do outro, uma pedalada depois da outra, um cumprimento, a frase que se atira sem esperar resposta: Está fresquinho!; É preciso é ir andando!; Ah, valente!; É p’rá medalha!  Provas de vida. Garantias renovadas de que ainda se está aqui. De que se é. O que importa saber se vem trovoada? Por aqui, confirma-se que se está vivo, que se vê e se é visto, que se ouve e se é ouvido. Exercita-se a certeza que se desmancha cada dia.

    a bicycle parked in front of a house

    A senhora que sabe coisas volta a passar.

    ⎼ Vem aí trovoada!  ⎼ grito-lhe.

    ⎼  Pois vem! Ê lhe disse, J’quim? ⎼ responde, olhando para o meu interlocutor.

    ⎼ Tá visto que sim.  ⎼ diz ele com um sorriso.

    Um para cima, outro para baixo.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

    APOIOS PONTUAIS

    IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

    MBWAY: 961696930 ou 935600604

    FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

    BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

    Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

    Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.

  • Babel, ou os equívocos de um acordo ortográfico

    Babel, ou os equívocos de um acordo ortográfico

    Emigrando do Oriente, os descendentes de Noé inundaram a planície de Chinear. Foi a conta-gotas. Primeiro chegou Cuche e seu filho Nimerod, um valente caçador diante do Senhor; depois o primo, a seguir o sobrinho do cunhado, mais tarde o sogro do tio, pouco depois o genro do neto, e as respectivas mulheres, e tantos e tantos outros que, em pouco tempo, era tamanha a batelada de parentescos cruzados que já ninguém entendia ou percebia quem era quem em relação a Noé. Pouco importava: constituíam um povo uno e navegavam pelo quotidiano ao sabor de uma única língua.

    Havia um clima aprazível, sem alterações, a paisagem se mostrava venusta, da terra manavam gados e verduras, os homens entretendo-se em labores e muito ócio, as mulheres em desvelos pelos filhos e comidas, e os velhos gozando resplandescentes tardes de cavilhadas num chão sempre húmido de refrescantes e curtas chuvas. Harmonia, paz e sossego reinavam naquelas paragens. O paraíso terreno pós-Éden. Andavam assim todos satisfeitos em suas vidinhas, sem malquerenças nem segregamentos.

    tower, factory, headframe

    Enfim, por tudo isto, vivalma queria arredar pé daquela planície, que de arraial passara a lugarejo, de lugarejo evoluíra para póvoa, de póvoa transmutara-se em aldeota, de aldeota crescera para vilarejo. E chegando-se a vila, quis-se mais. «Faça-se uma cidade», disse Nimerod. E a cidade fez-se. Muralhas, fortalezas, casas sólidas, poisos de descanso e de ócio. E o povo viu que era coisa boa, feita apenas pela mão do homem, sem qualquer ajuda nem orientação divina. E ambicionaram mais. «Uma torre, cujo cimo atinja os céus», decretou Nimerod, aplaudido por conselheiros.

    Para isso, aditou alguém, havia de se encontrar alternativa às pedras. Nomeou-se portanto comissão adequada, task force como sói dizer-se agora, escolhendo para a liderar ancião hirsuto nos modos, mas de alva e imaculada barba, que, à quarta semana de investigações e experiências, inventou os tijolos, cozidos em fogo, e ainda um betume de asfaltos vindos mar e das fontes de água da terra de Sinar. «Assim, havemos de tornar-nos famosos para evitar que nos dispersemos por toda a superfície da Terra», declarou logo Nimerod.

    Um arquitecto foi então nomeado para orientar uma grandiosa e não pouco majestática torre. Andando a obra em bom ritmo, os tijolos tão sólidos, que nem ferro precisavam, e já se alcançara os quatrocentos e sessenta e três cúbitos de altura, foi Deus servido descer à terra e, vendo aquela empreitada, vociferou: «Não gosto disto». «Mas quando os acabamentos se fizerem, vai ficar uma beleza», argumentou o arquitecto. «Não é uma questão de estética. Se principiarem desta maneira, coisa nenhuma vos impedirá, de futuro, de realizaram todos os vossos projectos», atirou o Senhor. «E qual é o problema? Se somos semelhantes a Vós, também podemos construir nesta terra sob os céus algo idêntico ao que presumimos exista nos próprios céus. Estou mesmo a conceber uma broca para, quando nos abeirarmos da porta, a furarmos para saber se é feita de barro, de latão ou de ferro», ainda replicou o arquitecto. «Pode ser útil para subirmos mais», acrescentou.

    Deus saiu do sério: «Mas que estupidez é essa?! Era o que faltava quererem-me igualar. Os humanos vão para o céu quando eu os arrebato da Terra. E ponto final nesta conversa e nesta obra. E é para já».

    ai generated, tower of babel, scattered tribes

    Temeroso destas divinas ameaças – até porque, após o Senhor se ter eclipsado, trovejou rijamente, e um relâmpago estilhaçou um parapeito e deslocou um andaime –, o arquitecto remeteu um relatório circunstanciado às autoridades, solicitando que, com urgência e de forma clara, lhe indicassem se o seu projecto deveria ser reequacionado.

    Horas depois, uma lacónica missiva de Nimerod chegou às mãos do arquitecto. «Em reunião de emergência, malgrado o que está em causa, e considerando as palavras do Senhor, informo que, sobre a questão em apreço, a nossa decisão é peremptória: NÃO, PARA JÁ». Portanto, assim sendo, lido o escrito, e sobretudo as maiúsculas, o arquitecto continuou obedientemente a obra, e sacou então de uma broca para furar os céus, convencido estava de o amanuense ter usado uma preposição.

    Mas não: o amanuense apenas cumprira a norma de um novo acordo ortográfico que estabelecera a supressão do acento agudo na forma verbal do presente do indicativo do verbo parar.

    Equívoco grave, como sabeis: com o barulho da broca entrando pelos céus, Deus irritou-se e tratou de confundir a língua deste povo. Os erros de construção sucederam-se, a torre colapsou, as gentes desentenderam-se e todos os descendentes de Noé acabaram se dispersando em caótica algaraviada pelos quatro cantos do Mundo, incluindo para o pequeno pedaço da Europa onde hoje ainda se fala português, e se escreve em acordo ou em desacordo com o tal acordo ortográfico…


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

    APOIOS PONTUAIS

    IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

    MBWAY: 961696930 ou 935600604

    FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

    BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

    Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

    Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.

  • É a Oceania, estúpido!

    É a Oceania, estúpido!


    Logo após as Olímpiadas de Tóquio, em 2021, escrevi um artigo – intitulado “É a Oceania, estúpido!” – no qual afirmava uma obviedade pouco divulgada: o Continente vencedor da maior competição esportiva do Planeta era aquele formado por dois países de rarefeita população (Austrália e Nova Zelândia) e mais doze pequenas nações espalhadas por incontáveis ilhas. Agora, após os Jogos Olímpicos de Paris, vejo aquela afirmação assegurada por números ainda mais expressivos.

    Mas vamos por partes, como dizem os legistas!

    Critério burro

    O quadro de medalhas aponta as nações que capturam o maior número de galardões, estabelecendo-se a colocação delas de acordo com os ouros conquistados, depois as pratas e, por fim, os bronzes. É um critério burro, acho.

    Disse-me um amigo, José Cruz, reconhecido jornalista desportivo, que esse quadro não foi invenção do Comitê Olímpico, mas sim da imprensa. Nasceu, consolidou-se e, aparentemente, nunca ninguém se revoltou contra o fato de ser injusto.

    Pesos diferentes

    Penso que teríamos uma avaliação mais sensata, se déssemos um peso diferente a cada tipo de medalha. Exemplo: cada primeiro lugar valeria três pontos; uma segunda colocação representaria dois pontos; e uma terceira renderia apenas um ponto.

    Já existe

    Quando apresentei essa minha tese a outro jornalista, Mário Medaglia, ele me informou que, nos jogos Abertos de Santa Catarina (uma das mais fortes disputas desportivas do Brasil) a premiação vai do primeiro colocado (13 pontos) até o sexto lugar (1 ponto).

    O Brasil avança

    O Brasil, que foi o vigésimo classificado em Paris, com um total de 20 troféus, sucede a Irlanda, a décima-nona, que obteve somente. Por quê? Porque a terra de James Joyce ganhou quatro medalhas douradas enquanto Pindorama obteve só 3.

    Aplicando-se a fórmula (de pesos diferentes) que propus acima, o Brasil (com 3 ouros, 7 pratas e 10 bronzes) somaria 33 pontos. Já a Irlanda (4 ouros, nenhuma prata e três bronzes) ficaria com exatos 11 pontinhos.

    Um só ponto

    Vamos a outro critério possível: cada medalha (indiferentemente da matéria em que foi forjada) valeria um ponto.

    Assim, o Brasil (com 20 medalhas) saltaria para a décima-terceira posição, logo atrás do Canadá (27), e ultrapassando Uzbequistão (13), Hungria (19), Espanha (18), Suécia (11), Quênia (11), Noruega (8) e Irlanda.

    População

    Deixando de lado essas especulações, passemos a uma avaliação que me parece, realmente, a mais representativa do verdadeiro papel que o esporte representa na vida de cada país. Ou na vida dos cidadãos de um determinado país.

    Trata-se do critério relação medalha/população.

    EUA e China, os vencedores que não ganharam

    Os Estados Unidos, vencedores desta Olimpíada, amealharam um total de 126 prêmios. Dividindo-se esses galardões pelo número de habitantes (333 milhões) do País do Mickey Mouse, constatamos que cada medalha saiu do suor de um grupo de 2,6 milhões de cidadãos.

    Seguindo na mesma toada, a segunda colocada, a China, com suas apenas 91 medalhas, divididas pela sua incalculável população (1,4 bilhão), conseguiu um prêmio para cada 15,3 milhões de cidadãos.

    Japão

    Continuemos na mesma linha. A terceira nação mais premiada, o Japão, que tem uma população (120 milhões) entre dez e onze vezes menor que a chinesa, obteve quase que a exata metade (45) de prêmios arrematados por aquele seu (incômodo, garantem os maldizentes) vizinho.

    Explicando melhor aos ruins de Matemática: o Japão deu uma medalha a cada 2,7 milhões de seus moradores. Índice quase idêntico ao dos Estados Unidos.

    Em outras palavras, proporcionalmente, o país de Kurosawa ganhou cinco vezes mais troféus que a terra daquele gorducho, anteriormente chamado Mao Tsé Tung, que recentemente ganhou um nome horrível.

    Oceania

    Sigamos. A pequena Nova Zelândia (5 milhões de habitantes) conquistou dez medalhas. Ou seja, uma medalhinha para cada 500 mil habitantes. O mesmo ocorreu com sua vizinha, a Austrália, que (com suas 53 medalhas) deu uma premiação a cada meio milhão de seus cidadãos.

    Ou seja, proporcionalmente, australianos e neozelandeses ganharam 30 vezes mais prêmios do que seus vizinhos não tão distantes assim, os cidadãos do Império do Meio.

    No tapa

    Já nós, tupinambás, teremos que dividir, aos tapas ou aos golpes de tacape, uma medalha entre cada dez milhões de habitantes. Não chega a ser um número ruim, se observamos a China. Mas é péssimo, quando nós nos voltamos para a Oceania.

    Temperaturas decentes

    Aliás, dizem alguns que Austrália e Nova Zelândia são países favorecidos – na prática desportiva – pelo seu clima, marcado por temperaturas decentes.

    Como se sabe a vocação desportiva dos anglo-saxões é irrefutável. Inventaram quase todos os esportes, com exceção do frescobol, do futevôlei e do vôlei de praia, criados por uma “gente bronzeada” que sabe “mostrar seu valor” (como apregoa a cantiga dos Novos Baianos).

    Mas os moradores do Reino Unido não foram privilegiados no quesito clima. Isso, não. Padecem muita chuva e muito frio.

    Assim, quando me refiro a “temperaturas decentes”, estou levando em conta que há muitos países do Norte da Europa que contam com invernos que duram nove meses. E a prática desportiva por lá só pode ser desenvolvido em ginásios. Nada muito problemático para aquelas nações, em geral muito ricas, mas ao ar livre seria mais divertido e confortável.

    O detalhe do solzinho

    Para alguém nascido nas vizinhanças da linha do Equador passar nove meses por ano sem um solzinho no lombo seria uma tortura insuportável.

    Continentes

    Dos vinte países que encabeçam a lista dos mais premiados em Paris, dez são europeus (França, Holanda, Grã-Bretanha, Itália Alemanha, Hungria, Espanha, Suécia, Noruega e Irlanda), quatro são asiáticos (China, Japão, Coreia e Uzbequistão), dois são da América do Norte (EUA e Canada), dois da Oceania (Austrália e Nova Zelândia), um da América do Sul (Brasil) e um da África (Quênia).

    Quase todos são países de renda média elevada, com exceção do pobre Quênia e do desconhecido Uzbequistão (república integrante daquilo que anteriormente era conhecido como Sovietistão).

    E do Brasil, claro, que embora tenha o quinto território mais extenso, a sétima maior população e o sétimo Produto Interno Bruto, consegue manter boa parcela da sua população circulando em volta da chamada linha da pobreza.

    Lembranças

    Para comparar, vejamos os dados da Olimpíada de 2021. Nela, a Nova Zelândia, que ocupou o décimo-terceiro posto – logo atrás do Brasil – ganhou 20 medalhas. A Austrália subiu 46 vezes ao pódio.

    Cadê Cuba?

    Vale mais uma lembrança, a de uma nação americana que antigamente se destacava na competição. Há três anos, Cuba obteve 15 medalhas e acabou em décimo-quarto lugar da classificação geral. Agora, caiu para o trigésimo-segundo lugar, com apenas 9 medalhas.

    Teve, claro, melhores desempenhos nos anos em que recebia ajuda econômica da defunta União Soviética.

    a man with a flag on his back walking down the street

    O mistério

    Mas o grande mistério olímpico continua sendo o Quênia (66º lugar em PIB), dos grandes corredores de longas distâncias.

    Explicando o título

    Muitas vezes precisamos reforçar aquilo que nos parece óbvio. O óbvio ululante, como diria o nosso maior teatrólogo.  

    No caso deste artigo, recorri a uma frase – “The economy, stupid” (É a economia, idiota) – que teria sido forjada em 1992 por James Carville, na época o estrategista da campanha presidencial de Bill Clinton contra George H. W. Bush para reforçar a ideia de que a economia – isso é claríssimo, patente, manifesto – tem um papel determinante em uma eleição presidencial.

    Lourenço Cazarré é escritor


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

    APOIOS PONTUAIS

    IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

    MBWAY: 961696930 ou 935600604

    FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

    BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

    Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

    Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.

  • Vir de vez

    Vir de vez

                  Tinha saudades de casa. Fecho os olhos. A luz intensa atravessa-me as pálpebras. Mergulho numa paz absoluta. A monotonia por que ansiava há tanto. O som das cigarras, ondas que se desfazem num murmúrio ao encontrar a areia. Um contínuo. Som que é silêncio.  Apenas o canto das rolas marca o compasso e nega a suspensão do tempo.   A sombra imperfeita das videiras. A aragem a brincar com a minha pele, a soprar-me os pelos das pernas e dos braços: fresca, quente, quente, fresca, quente…

                  O telemóvel vibra junta da minha perna. Não queria atender, mas nunca se sabe:

    ⎼ Tou? Toninho, já cá tás, filhe? ⎼ perguntam do outro lado.

    ⎼ Estou, sim, tia. Cheguei de madrugada.  ⎼ respondo.

    ⎼ Ai, graças a Deus, filhe. Tava aqui em pulgas. Ainda deves tar cansade. Mas quande quiseres passa por’qui. Vem almoçar ca gente. Tenhe cá uma coisa p’a t’amostrar.

    the sun is setting over a grassy field

     

    A tia tem razão. Ainda estou muito cansado. Vim de carro. Já me tinha desabituado. Mas vim de vez. Parece mentira. De vez… Combinamos um almoço para sábado.

    Os tios esmeram-se.

    ⎼ Isto aqui não é à grande e à francesa, mas é à grande e à algarvia! Vá lá, toca a comer que isto quem na presta pra comer na presta pra trabalhar. ⎼ brinca o primo Ernesto, enquanto põe em cima da mesa uma travessa de sardinhas assadas.

    ⎼ Carcanholas da ria, berbigão, xarém com conquilhas, saladinha montanheira, sardinhas, panito pra pôr por baixo… Sirvam-se que disto não apanham vocês lá na França. ⎼ acrescenta.

    ⎼ Ah, pois não, mas agora já sabes que estou logo aqui ao lado. É só convidares-me mais vezes.  ⎼ respondo.

    As longas sardinhadas no alpendre dos tios. Os risos, as conversas que se misturam com os sabores, os odores, as cores, as memórias. Ouço-os, como às cigarras: doce banda sonora de verões passados.

    O Ernesto, de pano de cozinha na mão, vai enxugando uma enorme melancia encharcada.

    ⎼  O frigorífico é para melancias enfezadinhas. explica  – Esta esteve dentro do tanque desde de manhã para ficar fresquinha. A melancia quer-se grande, para dar umas boas talhadas.

    white and brown wooden house on green grass field near body of water during daytime

    Seguem-se um café e um medronho para ajudar a digestão. A tia Alice surge de dentro de casa com uma tesoura de jardinagem numa mão e uma fotografia na mão.

    ⎼ Vê lá se conheces aí alguém. ⎼ desafia-me, colocando a fotografia em cima da mesa.

    – Deixe lá ver. Tenho de pôr os óculos. – respondo.

    ⎼ Ai, filho, se já nem tu vês bem… na hei de eu tar velha… ⎼ desabafa a tia entre o lamento e a brincadeira. E eu percebo que nunca vai entender como é possível o filho da irmã já estar aposentado. Na verdade, espanta-a sempre que já esteja maior que ela.

    ⎼ Não diga isso, que a tia está mais nova do que eu. ⎼ respondo, enquanto ela, ligeira, sobe à cisterna, que já só serve como poiso para as centenas de vasos que são o seu orgulho:

    ⎼ Vou-te mandar aqui umas podas. Tens de dar um jête àquele quintal. Pôr lá umas florinhas, que morreu tudo à sede e a tu mãe tinha sempre tude chê’delas. ⎼ diz.

    Examino a fotografia. Um primeiro olhar e viro-a. Na parte de trás, esborratada e já quase ilegível, a inscrição “Ludo, 1954”. Oito mulheres e cinco crianças. Estão em pé, alinhadas. Sorriem para a câmara. Trabalhadoras das salinas. As roupas, pouco mais que farrapos. Vestidos andrajosos. Camisas que não fecham. Saias presas à cintura por cintos velhos ou baraços.  As vestes das meninas destoam das das mães. Limpas. Engomadas. Chapeuzinhos de palha. Aperaltadas para a fotografia, com certeza. Na imagem, um único rapaz. Ao contrário das meninas, está coberto de pobreza. Tem um ar sujo. Sobre o corpo, uma camisa curta. Apenas isso.

    As mulheres usam lenços por debaixo dos chapéus. Por cima, as rodilhas ajudam a equilibrar as canastras. Pés de lama. Nus. Negros até aos tornozelos.

    a chair and a table in a dark room

    ⎼ Então? Não conheces ninguém? ⎼ pergunta o tio António, enquanto arrasta a cadeira para junto de mim.

    ⎼ Reconheço a tia. Toda nova e jeitosa. Olhe para isto. Parece uma garça, aqui com uma pernoca alta e toda desempenada. – provoco-a sorridente. Ela ri-se e diz qualquer coisa que não percebo.

    ⎼ Olha, a prima Amélia. Estás aqui prima, à frente das nossas vizinhas: a Idalina, a Estrudinhas, a Marcelina.  Aqui ao lado, a mãe da Natércia e da Noélia. Elas à frente. As feições não mudaram nada.  E, se não me engano, esta é avó delas. Não me lembro do nome. ⎼ digo enquanto passo o indicador uma a uma.

    ⎼ Vangelina. ⎼ lembra a tia. ⎼ E a do lado. Sabes quem é? ⎼ pergunta.

     ⎼ A minha mãe, claro. Que saudades! ⎼ os olhos enchem-se-me de lágrimas, a garganta prende-se um pouco. Tusso e ajeito-me na cadeira.  É dia de festa.

     ⎼ Grandes senhoras! – exclamo, sabendo que o repetirão em coro.

    Lembro-me bem destas mulheres e destas crianças. Sei de cor as suas histórias. Apesar de a vida nos ter levado por caminhos diferentes, agosto foi sempre o mês do reencontro. De pôr a conversa em dia, mas também de lembrar. Repetiam todos os anos as suas histórias, como se essa partilha garantisse que o seu passado tinha realmente acontecido: a gripe espanhola que levou o pai e a mãe da Estrudinhas quando ela tinha dois anos; a guerra do Ultramar que matou o noivo da Noélia;  o marido da Ti Vangelina, que emigrou para a Venezuela e nunca mais deu notícias; o sangue vendido para pôr um teto sobre a cabeça dos filhos;  o aborto causado pelo peso do sal; a exploração; as jornas de trabalho de sol a sol; a fome que se enganava com figos secos; a penúria que obrigou os meus pais a emigrar. Também eu preciso que confirmem. Que à mesa me digam que estou certo. Que foi assim que aconteceu.

    ⎼ Oh, tia, eu sei que a miséria era muita. Mas não me diga que não dava ao menos para me taparem as miudezas para a fotografia? ⎼ pergunto.  

    ⎼ Tu até tinhas uns calçanites que te fez a avó Julinha, que Deus tem. Mas eras muito pequeno e a tua mãe não tinha tempo para te andar a limpar o rabo. Nem havia cá fraldas, o que é que pensas?  Vocês eram mecinhes, andavam per‘li uns c’os outres. Não havia cá onde os deixar. – explicou a tia. – Pareciam pilritesós saltinhes dum lado pró outre.

    ⎼ Era duro, hã…? – pergunto.

    ⎼ Era, mas a gente também se ria muito. Contávamos muita anedota. Cantávamos. Dizíamos umas asneiras p’rá gente se ir entretende. Éramos moças…Ele em havende pás sopas e pa vocês se irem criande… mas trabalhava-se muite.

    grayscale photo of Eiffel tower on top of white envelope

    Exatamente o que vejo nesta fotografia, nestes sorrisos: um misto beleza, sofrimento, força e doçura. Sorrisos abertos, francos. Sorrisos de gente feliz. Impossíveis de compreender sem conhecer estas mulheres. Não me lembro daqueles tempos em que era tão pequeno que ainda não tinha direito a calções. Para mim, elas só entraram na minha vida anos mais tarde. Mas reconheço os sorrisos. São os mesmos. Sorrisos felizes, mesmo quando as histórias dos tempos difíceis lhes colocavam um véu de tristeza no olhar. O segredo por detrás deste sorriso aberto? Acredito o sal que lhes curtiu a pele lhes temperou a alma.  Eram divertidas, bem-dispostas, naturalmente felizes ou, pelo menos, decididas a sê-lo.   

    Ao almoço pega-se o lanche. Os tios insistem que fique para jantar. Já me tinha esquecido do que significa “passa cá por casa”.  O estômago diz-me que não aguento. Que não posso ficar sentado. Decido fazer uma caminhada no Ludo. Está um final de tarde lindo. Vou até às salinas. As águas turvas dos tejos coloridas pelos azuis, rosas e dourado do céu. Manchas do branco das nuvens. Aproximo-me na esperança de ver ali resquícios do passado, mas a água já não espelha a imagem das marnotas: um bando de flamingos cruza-se com um avião que levanta voo. Os que chegam e os que partem. Pergunto-me quantos lá irão na esperança de um dia virem de vez.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

    APOIOS PONTUAIS

    IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

    MBWAY: 961696930 ou 935600604

    FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

    BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

    Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

    Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.

  • Aquele (meu) querido mês de Agosto

    Aquele (meu) querido mês de Agosto

    Num destes sábados de Agosto, a RTP 2 emitiu um memorável filme de Miguel Gomes – Aquele querido mês de Agosto, de 2008, e revi-o.

    Com o passar dos anos, este filme ainda parece que ficou melhor, como se surgisse de uma boa casta cinematográfica, que com o tempo vai ganhando mais corpo e elegância (fazendo uma analogia com o vinho, e com os seus eternos segredos).

    Sem dúvida, que o tempo é amigo da boa arte.

    Ajusta-se e consagra-se nela e pode, no caso de ser compreendido, tornar-se no melhor ansiolítico para os artistas.

    De uma forma geral, os filmes de Miguel Gomes têm qualidade e são extremamente bem pensados por alguém que passou pela crítica de cinema e que se habituou a ver filmes para escrever sobre eles.

    Indubitavelmente, o cinema também é escrito, é palavra, e aqui temos um exemplo disso, fazendo, de uma forma muito sóbria, tudo encaixar em tudo, até Portugal lá está metido ao barulho, a fazer de Portugal. É um filme sobre o tempo, em que a espera e a falta de dinheiro verdadeiro ou não, contribuem e supostamente mudam a acção. Um filme que tem a urgência de ser cinema, mais do que a de agradar aos produtores. Isto podia ser a sinopse, ou mesmo a falsa sinopse, já que a longa-metragem vive dessa dicotomia entre realidade e ficção, elevando a arte a um ponto-chave, assinalado vezes sem conta por Jean-Luc Godard com as suas célebres afirmações acerca do documentário e da ficção, sendo que o ideal para o suíço é um integrar-se no outro.

    Lembro-me de outro singular filme de Joaquim Pinto Uma Pedra no Bolso –, cuja acção também se desenrola durante o Verão num Portugal específico, em Porto-de-Barcas, vila piscatória que conheço bem e onde também em tempos já pesquei imagens. Um filme talvez esquecido, que teve presença na RTP2 em Agosto, há um par de anos, mas que imaginamos o tempo a fazer o seu trabalho, para que estes fantasmas melancólicos ganhem corpo, já que alma têm de sobra, sendo mesmo essa alma a marca de uma boa parte do cinema português de autor.

    Vem-me à memória ainda Os Contos de Verão do super-francês Éric Rohmer, passado nas mágicas praias da Bretanha, em que a nostalgia e a palavra são iguarias do cardápio burguês e culto, tipicamente gaulês, como é hábito em Rohmer. Claro, há muitos outros filmes cujo calor contagia e derrete o ecrã. O Pecado Mora ao Lado de Billy Wilder é um deles e “queima” definitivamente o televisor sempre que aparece por aí, mas deste já se disse tudo e a Marylin Monroe tem direito ao seu descanso, uma vez que em vida não o conseguiu sem a ajuda de benzodiazepinas, imortalizando-se qualquer dia mais por elas do que pela sua presença nos fotogramas.

    Pessoalmente, adoro ver um bom filme de verão… No Verão. Mesmo se o céu não anda tão azul, chegando mesmo a não sair durante dias a fio dos tons cinzentos característicos desta época… Gris.

    Outra era virá, se o cinema, ao contrário de Deus, assim o quiser. A Cinemateca Portuguesa está lá para nos sussurrar ao ouvido, a doce melancolia da morte anunciada do cinema, que nunca mais chega.

    Em qualquer um destes quatro filmes que enumerei, é o amor que anda no ar, ao invés de drones. O filme de Miguel Gomes, como entidade própria que já é, percebeu que o cinema e a vida mais os sons que só existem na cabeça das pessoas sensíveis, têm mistério suficiente para não mais nos abandonarem os pensamentos. O cinema é um espírito com o qual os cinéfilos fazem telepatia. Porque o cinema também é memória, sobretudo memória futura para que a poética (seja ela qual for) nunca desapareça no meio da convulsão geral em que mergulhámos definitivamente, com guerras e ódio por todo o lado, tendo sido esta a marca destes últimos tempos bestiais.

    Aquele Querido Mês de Agosto vale e até “informa” mais do que um ano de telejornais e tem uma acção realisticamente climática sobre o espectador, coisa que a realidade vai paulatinamente abandonando, porque se transforma ela mesmo numa imitação de uma rede social.

    Neste filme ambicioso disfarçado de filme humilde, que tem a acção em terras da Beira Alta, durante o Verão, quando os emigrantes voltam para as férias e é tempo de bailaricos, procissões e incêndios, o povo não é só vítima ou testemunha, como habitualmente é tratado pelos media em geral. Aqui a realidade grita pela existência e saboreamos um documentário a fazer de ficção, senão mesmo de uma ficção a fazer de documentário, para citar o crítico Luís Miguel Oliveira a citar Godard.

    Aqui, o povo tem voz e canta a sua angústia através da lente justa e sonora do realizador e da sua equipa. Mesmo tratando-se da cruel realidade a que ninguém escapa, no qual se exalta o realismo mágico, mesmo que a ideia de terror sobrenatural parta mais de um trecho de um filme, que aparece dentro do filme, que da própria encenação de Miguel Gomes, trazendo para a sala uma preocupação estilística, participe de uma visão estética da vida que não exclui de todo a experiência do real.

    E alicerçado nesses degraus de continuidade, o fantástico filme vai cavalgando e surpreendendo por entre rituais em que até os próprios incêndios igualmente o são, como se vê nas cenas da torre de detecção e no plano dos botões luminosos no centro de controlo.

    Importante para a compreensão conceptual do filme, são travellings, como aquele em que a câmara acompanha de frente a carrinha de bombeiros com a música de Toni Carreira Sonho de Menino – a instalar-se paulatinamente na acção.

    Em poucos filmes, o som e o tratamento acústico estão tão singularmente presentes para habitar o campo narrativo, em que se ouve, mas pode não se ver, e escuta-se de “olhos bem fechados” (para citar Kubrick), devido às cinzas orgânicas que parecem sair do ecrã ou da tela. Esta é a poética do filme que arde, mas não se vê.

    A banda sonora assinalável é fundamental para o desenvolvimento das histórias fragmentadas, sobretudo da história central em que um pai, uma filha e o seu namorado-primo se relacionam, trazendo sempre novidades narrativas, até porque os próprios protagonistas fazem parte de uma banda musical que deambula pelas aldeias da zona, cantando-se e interpretando-se a si mesmos aludindo aos musicais clássicos.

    A banda sonora tem títulos como: ‘Escravo do teu encanto’, ‘Som de cristal’, ou ‘Passear contigo’, todas elas bastante reconhecíveis pelo público em geral.

    O verdadeiro e real(?) Vasco Pimentel que faz dele próprio a fazer dele próprio, dá-nos uma lição no fim da película acerca da eternidade e dos fantasmas que habitam os filmes, numa dimensão em que a imagem se apaga no som. A tecnologia desaparece perante tamanha grandeza e apenas prevalece aquilo que queremos acreditar ser a vida. A vida para lá de todas as vidas, a vida em que, como dentro dos filmes nunca nada morre. É sempre tudo a fingir. 

    Esta película não parou no tempo. Esta e outras obras cinematográficas feitas com arte, fazem, sim, parar o tempo. E como o Verão me torna melancólico, vou parecê-lo e dizer que o cinema também é amor e com ele mantenho uma relação de fidelidade amorosa ao longo dos anos, sabendo e aceitando a indústria e a sua artificialidade, e até reconhecendo a abundância de criminosos nefastos como o Harvey Weinstein que produziu filmes que hoje são autênticas elegias ao amor, como Shakespeare in Love, ainda que não seja grande filme.

    O cinema perdoa, daí a sua possibilidade de catarse. Se a vida fosse um filme, salvava-se, mesmo sabendo que o cinema foi o principal agente manipulador e transmissor de mensagens subliminares para o século XX e veículo de persuasão com sede em Hollywood. Mas a contradição é a flor e a pistola dos artistas e a realidade ganha sempre depois de vermos um bom filme.

    Ainda assim, sabemos que o cinema traz valor acrescentado e é muito mais do que isso, e esse cinema-muito-mais-do-que-isso é onde este filme se inscreve, e não será vítima do novo tecno-mundo, cujos realizadores são anónimos e não precisam de actores, podendo mesmo fabricá-los a partir da A.I. Isso não é Ser Cinema.

    Aqui o conteúdo de elementos mágicos ou fantásticos percebidos como parte da “normalidade” pelas personagens não é claro, mas existe, sim, a presença de elementos mágicos algumas vezes intuitivos, mas nunca explicados, ou mesmo a presença do sensorial como parte da percepção da realidade, trazendo uma singular distorção do tempo para que o presente se repita ou se pareça com o passado, baralhando-se cronologicamente. Como exemplo disso temos o “milagre” operado na personagem do pai do Fábio, quando fala na transformação que se deu no seu cativeiro impregnado de dor, ao cruzar-se com a Rainha Santa, feita de cerâmica, durante a procissão quando experimentava o auge da agonia, até ao triunfal cruzamento onde a dor desaparece definitivamente. Não conseguimos saber se aconteceu mesmo ou é produto do argumento ficcionado.

    Talvez pertença aos dois, e é isso que as novas tecnologias digitais inteligentes não percebem.

    Uma personagem inesquecível é o Paulo Moleiro, que não faz nada, segundo um amigo, mas todos os anos em fevereiro dá um salto da ponte para mostrar que está vivo.

    Aquele Querido Mês de Agosto é esse salto que nunca se vê.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações de Manuel Silva


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

    APOIOS PONTUAIS

    IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

    MBWAY: 961696930 ou 935600604

    FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

    BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

    Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

    Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.

  • O magnífico Bernina Express

    O magnífico Bernina Express

    Raquel Rodrigues regressa ao PÁGINA UM com uma proposta de viagem de Inverno: Itália e Suíça através do Bernina Express, uma rota classificada como Património da Humanidade.


    Foi em Novembro de 2022 que li um post de um amigo, que como eu adora viajar e é um apaixonado por Itália. Na mesma hora, liguei-lhe a dizer que ia marcar a viagem e seria maravilhoso se as agendas coincidissem e viajássemos juntos.

    Marquei os voos de Lisboa para Bergamo, e comecei logo a preparação da viagem. Como já conhecia a imponente Bergamo, La Città Alta, cidade muralhada, com um centro histórico muito bem preservado, segui a recomendação do meu amigo e começámos o roteiro por Brescia, onde chegámos a tempo de um almoço rápido, ainda com tempo para explorar a cidade.

    Estacionámos o carro alugado no parque de estacionamento da “Piazza della Vittoria”, e daí seguimos a pé. Nesta praça nota-se o estilo racionalismo italiano, de 1926-1943, onde se localiza o Palazzo de la Poste; o Il Torrione, o primeiro arranha-céus italiano e, primeiro da Europa, construído em cimento armado. Seguimos a pé para a Piazza della Loggia, construída na época em que Brescia fazia parte da República de Veneza. Aqui encontramos o magnífico Palazzo della Loggia e a bonita Torre do Relógio. Depois, seguimos a pé pelos corredores de lojas até à Piazza del Duomo onde a Duomo Nuevo e a Duomo Vecchio se encontram e juntos fazem o postal da cidade. É obvio que a Duomo Vecchio é muito mais fascinante, em primeiro lugar por ser um edifício redondo, e depois pela histórica que carrega, com ruínas de mosaicos paleocristãos.

    Mas a história de Bréscia não termina aqui, pois remonta ao período pré-românico, com as ruínas de Brixia, o nome romano da cidade. Esta área arqueológica, a mais bem preservada do norte de Itália, reúne na Piazza del Foro e Capitolino, as estátuas de Juno, Júpiter e Minerva, um teatro romano e um santuário de século I com frescos e pavimentos do século II antes de Cristo, muito bem preservados. A joia da coroa é o Castelo Alto de onde conseguimos ter uma perspectiva fantástica da cidade.

    Final da tarde. Seguimos para Iseo, a 45 minutos de Bréscia, a cidade que dá o nome ao lago e onde jantamos, em cima do lago, numa pizzaria que muito recomendo, Leon D´Oro. Terminando o jantar ,seguimos para Pisogne, a 30 minutos de Iseo, onde dormimos as duas noites e ficávamos a meio caminho de Tirano, o ponto de partida do fantástico “Trenino Rosso”.

    Chegamos a Pisogne tarde, mas a simpatia de Bárbara e sua família fez-nos sentir que tínhamos feito a escolha certa para esta estadia no Lago Iseo.

    O B&B Alveare Sul Lago é um pequeno paraíso para “gourmands” que apreciem o conforto da cozinha e gastronomia italiana, um lugar onde nos sentimos em casa. Uma localização privilegiada com uma fantástica vista para o lago.

    No dia seguinte, tomámos o pequeno-almoço às 7 horas, e ainda não passara uma hora e seguimos viagem para Tirano. A paisagem é muito bonita, passando pelas aldeias alpinas italianas, e em hora e meia chegámos a Tirano. O estacionamento no parque é gratuito, e atravessando o túnel da primeira estação regional, encontramos a estação internacional do Bernina Express.

    Viajar de comboio é algo que se entranha, são viagens que não esquecemos, que prolongam as memórias, e esta, em particular, é quase mágica. Passámos por aldeias alpinas pintadas de branco, que contrastavam com um intenso azul do céu e as escuras colinas mais escarpadas. Garantidamente, uma das viagens de comboio mais deslumbrantes que se podem fazer.

    Sempre a subir. Partindo de Tirano, a 429 metros de altitude, passamos por Bernina a 2.253 metros de altitude. Cumes impressionantes. A carruagem panorâmica tem um fee de pagamento, mas isso vale cada cêntimo. É uma viagem incrível no primeiro comboio de cremalheira electrificado.

    Depois de duas horas e meia de cenários de cortar a respiração chegamos à sofisticadíssima Saint Moritz. Saindo da estação seguimos a pé até ao teleférico, que nos levou ao pico da montanha mais alta, almoçámos literalmente entre as nuvens.

    Descendo do teleférico, pode-se passear pelo centro da cidade no meio de um deslumbre luxuoso. As pessoas parecem, e são, simpáticas e bem-educadas. As lojas são de sonho, embora não para qualquer carteira. A estância de ski é uma das mais fantásticas do Mundo e Saint Moritz tem ainda o Badrutt´s Palace Hotel onde, mesmo que seja impossível pernoitar, vale pela experiência do Chá das Cinco. Regressando de volta à estação, viajámos de regresso a Tirano, no lado contrário da viagem de ida, mostrando outra perspectiva, embora por pouco tempo, pois a noite, nesta altura do ano, chega cedo.

    Chegados a Tirano, regressámos a Pisogne onde o Chef Cláudio Faustini nos aguardava com uma magnífica pasta fresca com trufa, pães e foccacia feita em casa e ainda um “Vino Rosso”. Podia ser melhor? Não podemos crer.

    No dia seguinte, acordámos com paz de espírito, tomámos um pequeno-almoço tardio, com produtos caseiros e frescos, e seguimos então para a nossa aventura pelo Lago.

    A primeira paragem foi Lovere, considerada uma das cidades mais bonitas de Itália, mesmo junto ao lago. Paragem obrigatórias para quem quer desejar boas memórias dos lagos italianos.

    De Lovere passámos de carro pelos túneis de Castro. Sentimo-nos um pouco como James Bond nos filmes gravados nestes cenários italianos. Continuámos viagem até Sulzano, e aí se pode apanhar um barco para Monte Isola.

    Chegando ao porto de Sulzano, apanhámos então o barco, que faz a viagem de 20 em 20 minutos. Monte Isola tem sido considerada uma das belas cidades europeia. Ainda que seja pequena, é a maior ilha lacustre da Europa, a pérola do lago Iseo. Aqui não existem automóveis para alugar, pelo que a melhor opção passa por alugar uma bicicleta ou seguir a pé. Em todo o caso, o santuário no topo da ilha só faz sentido se se visitar de autocarro.

    Em 2016, durante duas semanas o Monte Isola esteve em destaque, com a Floating Piers, uma instalação artística do artista búlgaro Christo e da sua companheira Jeanne-Claude, que pela primeira vez uniram a aldeia de Sulzanno a Monte Isola e a Isola de San Paolo, um pequeno pedaço de terra nunca alcançado sem esta plataforma flutuante. Contabilizaram-se então mais de 1,2 milhões de visitantes. Hoje, ainda podemos ver um memorial celebrando o momento.

    Passear pela ilha é bastante relaxante, mas há locais que não se devem perder: Borgo di Siviano,Borgo di Novale, Borgo di Peschiera Maraglio, Museo della Rete, Rocca Martinengo e Santuário della Madonna della Ceríola, no topo do monte.

    Depois de umas horas em Monte Isola, tivemos de regressar no barco que nos devolveu a Sulzano, e daí fomos obrigados a apanhar um carro e seguir para o aeroporto, de regresso a casa.

    Foram, passe o lugar comum, apenas três dias de viagem, mas que souberam a sete num deslumbrante cenário alpino entre Itália e Suíça.

    Para quem começar o ano com uma viagem desta qualidade, em pleno Inverno, já só desejará uma próxima. Prepare-se.

    Dicas da viagem para uma viagem no Inverno:

    Em Novembro, comprar voos Ryanair: Lisboa – Bergamo – Lisboa

    Estadia: Hotel B&B Alveare Sul Lago (2 noites)

    Alugar carro: Rentalcars (procurar com aluguer rodas de neve gratuito ou incluído)

    Bernina Express: Viagem de Ida e Volta a 65 euros por pessoa

    Mochila: dois pares de calças; roupa interior e extra de neve (camisola, calças e meias); cachecol, gorro e luvas; camisolas.

    Raquel Rodrigues é gestora, viajante e criadora da página R.R. Around the World no Facebook.


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

    APOIOS PONTUAIS

    IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

    MBWAY: 961696930 ou 935600604

    FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

    BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

    Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

    Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.

  • A mansa loucura do professor de teatro e cinema

    A mansa loucura do professor de teatro e cinema


    O que se encontra no coração dos homens permanece um mistério para mim. Desdeaquela época, tenho observado vários tipos de pessoas – escroques, falsários,
    gente que matou ou morreu por dinheiro – e todos eles parecem pessoas normais;
    fico confuso.

    Relato autobiográfico, Akira Kurosawa


    Dias atrás, de manhã, fui até essa porta, mas não consegui ultrapassá-la. Não que houvesse problema com a fechadura. Girei a chave e, depois, simplesmente, meu braço se recusou a movimentar a maçaneta.

    Não, não ria. Embora também ache que a situação é ridícula, eu lhe peço que não se entregue à zombaria antes de ouvir o que tenho a dizer. Também nunca levei a sério essas histórias de sujeitos que se veem, repentinamente, impossibilitados – por uma espécie particular de loucura – de realizar atos insignificantes do cotidiano.

    Porém, foi exatamente isso que se deu comigo.

    *

    Na primeira semana, ninguém reclamou da ausência do velho.

    É possível que alguém tenha estranhado a falta dele, sim, mas o certo é que o tal aluno não se perdeu em considerações sobre o assunto porque aqui, mais que em qualquer outro campus, uma folga inesperada é sempre bem recebida.

    A vantagem de uma universidade nos trópicos é que a coisa toda é levada na maciota, por alunos e professores. Vejamos pelo nosso lado. Em geral, não ganhamos bem, mas, em compensação, quase não trabalhamos. Resumindo: professores fingem que lecionam; estudantes fingem aprender. O mundo nem para nem gira mais depressa por causa desse nosso jeitinho inzoneiro.

    rectangular brown wooden framed window at daytime

    Em outras palavras: uma gazeta professoral, mesmo que larga, não espanta ninguém por aqui. Professores estão sempre viajando para conferências, seminários, mesas-redondas ou outras tapeações. Nos nossos banheiros faltam torneiras e papel higiênico, mas há bastante dinheiro para passagens aéreas.

    Vocês podem achar que falo assim por despeito. É verdade, sou ressentido porque não fui esperto o suficiente para descolar um doutorado no exterior. E falo maldosamente sempre que posso porque sou do signo de escorpião.

    Fui menos amargo quando jovem, mas a vida me triturou tanto que acabou por me transformar nessa poção venenosa. Namoros ridículos, um casamento fracassado e uma vida profissional medíocre fizeram de mim uma víbora peçonhenta.

    O certo, repito, é que na primeira semana nem deram pelo sumiço do velhote. Acontece que os alunos dos primeiros semestres, que são justamente os que ele leciona, gostam muito de ficar a maior parte do tempo no pátio, namorando, dizendo bobagens e rindo como idiotas. Já os mais espertos preferem as áreas arborizadas, onde podem, incógnitos, queimar a sua maconhazinha cotidiana.

    Nem tão incógnitos, é verdade, porque o cheiro nos invade as salas e sempre tem alguém pedindo para ir ao banheiro. Aí, eu digo:

    – Vá, mas vá correndo, porque já devem estar na bagana.

     

    *

    Eu sentia que não devia sair do apartamento. Em silêncio, eu me dizia: Caetano Antunes, pare, não abra a maldita porta!

    Assim, deixei a chave na fechadura, ali, onde ela se encontra até agora, como você pode ver, e voltei ao meu quarto. Deitado, eu pensava no cômico da situação, e ria. Mas também chorava. Eu já sabia que jamais poderia sair daqui.

    Agora, passados tantos dias, sei o motivo pelo qual estou confinado neste apartamento. Se você tiver tempo e paciência, eu poderei lhe falar sobre…

    *

    Não, o velho nunca foi considerado maluco. Neurastênico, impaciente, áspero e sarcástico, isso sim. Mas doido, não.

    Embora sua ironia seja invariavelmente ranzinza e raivosa, em toda turma que leciona ele sempre consegue capturar a cumplicidade de dois ou três gozadores que se divertem com suas tiradas ferinas.

    *

    Percebo que agora, enquanto me observa, entre condoído e assustado, você se pergunta se não estou louco. Reconheço que tem todos os motivos para pensar assim, mas acontece que jamais estive tão lúcido.

    No fundo, o que você mais teme é que eu lhe tome demasiado tempo com o relato dessa história.

    *

    No final da segunda semana, a coisa veio à tona.

    O alarme foi dado por uma aluna. Estava eu na secretaria da faculdade, passando a limpo as notas de uma das minhas turmas, quando a garota se apresentou no guichê, afoita, querendo saber o que estava ocorrendo com “o bode velho”.

    – Será que ele agora está fazendo uma greve particular, uma continuação da paralisação de quarenta dias que os vagabundos dos nossos professores fizeram no início do semestre? Ou será que se acostumou a ficar em casa, de papo para o ar, coçando o saco murcho?

    A tal mocinha é um caso raro de muito estudo mesclado a vocabulário de quartel.

    Permaneci com a fuça enfiada nos papéis temendo que sobrassem xingamentos para mim. Como a maioria dos professores, adotei a tática da invisibilidade.

    empty chairs in theater

    A funcionária que a atendia – uma das pessoas mais preguiçosas e cínicas da face da terra – perguntou:

    – Você está falando de quem, afinal, minha filha?

    – Não sou sua filha e, obviamente, estou falando do professor Caetano. Quem mais se parece com um bode velho do que ele?

    – É verdade – disse a funcionária. – Você tem razão, faz dias que ele não aparece por aqui. Vou informar esse fato ao chefe do Departamento.

    – Fale agora mesmo! – retrucou a garota. – Se ele não voltar logo às aulas, entro com uma representação contra ele no Conselho Universitário.

    *

    Como você sabe, sou homem de poucas palavras. Sempre fui obrigado por esta nossa exigente profissão a papagaiar bastante nas salas de aula. Por isso, sou lacônico fora delas.

    Nunca ninguém me viu – em mais de trinta anos em que leciono aqui – fazendo em sala confissões constrangedoras, que são os sinais mais fortes da vulgaridade.

    Tenho um pudor quase invencível no meu relacionamento com outras pessoas. Como sempre me considerei o maior dos maçadores, preferi viver fechado em mim mesmo. Se me abro hoje, com você, é porque este é o momento de falar para, em seguida, calar-me para sempre.

    Só lhe peço que me escute com a atenção que, em tese, é devida a um homem de setenta anos.

    *

    No final daquela manhã, fui chamado ao gabinete do chefe do nosso Departamento, o Mascarenhas.

    Sabendo que eu era vizinho do professor Caetano, ele me pedia para dar uma passada pelo apartamento do velho a fim de verificar o que estava acontecendo com ele.

    – Sujeito idoso e meio pirado. Sempre lendo, dia e noite. Os miolos vão se gastando, como o resto. Um dia, a casa cai. Fora uma ida às livrarias, nas manhãs de sábado, nunca deixa o apartamento. A velhice, a solidão.

    Mascarenhas, que sempre fala como se estivesse tratando com alunos imbecis, riu amarelo e arrematou:

    – Faça-me esse favor. Veja se o bruxo não está morto debaixo de uma pilha de livros.

    Era uma sexta-feira chuvosa.

    a wet window with a traffic light on it

    *

    Há cerca de vinte anos, comecei a lecionar sobre teatro e cinema. Antes devo frisar que, na época, não me interessava nem um pouco por essas duas artes. Sempre fui um homem de letras. Letras impressas. Um homem totalmente de papel. Nunca havia me interessado por outra realidade além daquela – aparentemente falsa – que encontramos nas obras de ficção.

    Certo início de ano, Margarida, a então diretora, pediu-me que ministrasse umas aulas de Dramaturgia. O titular da disciplina pedira demissão. Não me recusei. Naquele tempo, éramos poucos professores. A partir dali, passei a ler loucamente sobre teatro.

    Dois anos depois, inventaram uma cadeira chamada Linguagem Cinematográfica, que também acabou caindo sobre os meus ombros.

    Aos poucos, com a contratação de novos professores, fui repassando minhas disciplinas originais.

    Por fim, há cinco anos, acabei ficando só com essas duas: Dramaturgia e Linguagem Cinematográfica.

    Que ironia!

    Veja: eu, amante da Literatura, acabei afastado da palavra escrita. Empurraram-me para a escuridão dos teatros e dos cinemas. Mas os homens se acostumam a tudo, e eu não sou diferente.

    Agora, ao cabo de tantos anos, creio que posso dizer que adoro essas disciplinas que estudei com afinco de jovem mesmo sendo já um sujeito maduro.

    Sempre tive consciência do valor de meu papel como professor. Digo, agora que estou velho, que sou um homem feliz, pois sempre trabalhei naquilo que mais gosto. Nasci para estar em uma sala de aula, de pé, falando e gesticulando, a cabeça enfiada num redemoinho em busca das palavras mais exatas, dos exemplos mais significativos, das histórias mais engraçadas, de tudo, enfim, que consiga prender a peregrina atenção dos estudantes.

    Todo professor é um homem do mundo livresco. O nosso parco saber nos vem dos livros. Há quem saiba ler no chamado livro da vida, mas eu não consegui jamais decifrá-lo. Aliás, parece-me bastante mal escrito.

    O ensino da Dramaturgia levou-me a perceber, com nitidez, as pequenas trapaças que eu próprio vinha encenando há tanto tempo. Tive consciência então dos truques, tiques, escamoteações e trejeitos dos quais me utilizava ao longo de tantos anos nas salas de aula.

    Todo professor é um ator, só que extremamente privilegiado: tem público cativo, casa sempre cheia e seu espetáculo fica um ano inteiro em cartaz. Uma aula, como uma peça, tem de comover e fazer rir, alternadamente, num ritmo meticulosamente ajustado.

    Ao entrar em sala eu me sentia como se estivesse ingressando num túnel, do qual sairia um outro homem. Ao fim da aula, eu tinha que respirar fundo para voltar a ser o que era antes.

    Assim ocorre com os atores, creio, que costumam deixar abertas as portas de suas almas para o vaivém dos personagens.

    silhouette of three performers on stage

    Confesso que me sentia eletrizado – quase levitando – ao fim das aulas de Dramaturgia. Mas essa agradável impressão durava pouco porque o impacto de um bom espetáculo de teatro, como o de um belo poema, só permanece em nós por instantes fugazes. Em seguida, o mundo nos avassala com suas solicitações e estrangula nossos sonhos de beleza.

    Num certo momento, notei que não mais estava preparando aulas; o que eu fazia era imaginar monólogos. Pela reação previsível dos alunos, bocejos ou risadas, eu retocava esses monólogos. De um ano para outro, aprimorava-os. Por fim, cheguei à sofisticação de engendrar diálogos. Sim, eu estabelecia perguntas e imaginava as respostas mais prováveis dos alunos e, para todas elas, preparava réplicas jocosas. E, assim, fui tomado por um homem espirituoso quando, na verdade, meu pensamento é extremamente moroso. Jamais tive uma resposta pronta na ponta da língua.

    Estudei cuidadosamente a marcação. Depois de algum tempo, eu sabia o exato momento de me levantar da cadeira para ir à janela. Havia momentos de fitar sonhadoramente o céu. Ou de encarar silenciosamente os alunos. Há frases para serem ditas andando. Há palavras que só podem ser pronunciadas por um homem que, sentado, taciturno, observa o entardecer.

    Poderia falar muito mais, baseado na minha experiência, sobre a colocação da voz, os movimentos das mãos e o uso desta máscara de infinitas possibilidades que é o nosso rosto. Mas chega!

    Preciso lhe dizer também algumas palavras sobre Cinema.

    *

    Peguei o carro e fui direto ao decrépito edifício cujos apartamentos a universidade nos aluga a precinhos camaradas. No elevador, por força do hábito, apertei o botão do quinto andar. Morava ali há três anos. Estava já desembarcando quando me lembrei que precisava subir até o sexto, onde residia o professor Caetano. Tornei a pressionar o botão.

    O corredor do sexto andar é idêntico ao do quinto andar: cerâmicas frouxas, pintura descascada e iluminação deficiente. Quando ia premir a campainha, tive um instante de vacilação. Por que aceitei o pedido do idiota do Mascarenhas?

    Parei o gesto no meio, braço no ar, indicador esticado. Não seria melhor descer ao meu apartamento sem falar com o velho? Na segunda-feira, inventaria qualquer mentira para engambelar o Mascarenhas.

    Mas acabei apertando o botão. Afinal, não é todo dia que um pacato professor de Literatura Brasileira tem a oportunidade de bancar o detetive.

    *

    Quando não consegui abrir a porta, considerei num primeiro momento que estava apenas com medo de sair à rua. Nada mais natural do que ter medo de deixar nossa casa hoje em dia. Nas ruas, há sempre carros dispostos a atropelar um pedestre desatento como eu. Nos becos, há sempre assaltantes à espera de um velhote que não possa reagir.

    Mas não, não era esse tipo de medo que me retinha.

    Eu não saí de casa porque, se passasse da porta, se cruzasse o umbral, o mundo desapareceria todo comigo. O mundo seria sugado.

    a pen sitting on top of a piece of paper

    Vejo que mais um sorriso quer tomar conta de seus lábios e percebo também que você luta para escondê-lo. Não se contenha, ria. Porque o que eu estou lhe contando parece mesmo sem pé ou cabeça.

    Porém, devo ser honesto com você, ainda que parecendo bizarro.

    Confesso que antevi o que aconteceria se eu chegasse ao corredor: o mundo se desintegraria por trás de mim, cidades, campos, árvores e fábricas, homens e animais, tudo sumiria às minhas costas, todas as coisas seriam sugadas e tragadas por um abismo negro, tudo o que foi construído, plantado ou sonhado seria diluído na escuridão. O mundo desapareceria, em meio a uma nuvem de poeira e a um rascar estridente, exatamente como some a lição escrita no quadro-negro, ao fim da aula, quando movimentamos o apagador. Ou melhor, o mundo sumiria como um pedaço de celuloide consumido pelo fogo.

    Se fosse um sujeito vulgar, você venceria o espanto e o desconforto que o tolhem neste momento e me perguntaria: onde foi que o senhor arranjou esta maluqueira, professor Caetano?

    Mas como você é comedido, e não me fará essa pergunta, eu tomarei para mim a tarefa de lhe explicar esse tipo particular de doidice.

    *

    A campainha soou forte.

    Prolongavam-se os segundos e eu não escutava nada. Passos, ruído de chaves, pigarro ou tosse. Nada.

    Será que o velho morreu?

    Um calor nervoso me subiu ao rosto. Esfreguei as mãos úmidas.

    Eu vacilava, sem saber se apertava de novo na campainha ou se me ia embora, quando a porta foi aberta.

    De repente, sem um ruído, escancarou-se.

    – Que surpresa! – disse o velho.

    O professor Caetano Antunes era um homem de estatura média, mais para o gorducho, com uma barbicha branca pendente da ponta do queixo. Encimando a boca chupada, um imenso nariz. A mão que estendeu para mim era grande e seu aperto vigoroso e visguento.

    Uns olhos castanhos, escondidos por trás de lentes garrafais, me fitavam com intensidade.

    – O que o traz ao meu modesto apartamento?

    Ao fim de uma caótica introdução, recheada de perdões e escusas, expliquei a ele que ali me encontrava, a pedido do chefe do Departamento, para ver como ele estava passando.

    – O Mascarenhas está preocupado com a sua ausência. Intelectuais, em geral, não cuidam da própria saúde ou são orgulhosos demais para admitir que estão doentes. Por isso, ele me mandou até aqui. Para ajudar, se preciso.

    – Diga ao Mascarenhas que ele deve preparar o edital para a contratação de meus sucessores nas duas disciplinas.

    black round metal on brown brick wall

    Depois dessas palavras, o professor Caetano explodiu numa formidável gargalhada, daquelas que trazem junto seu próprio eco.

    Enquanto ele gargalhava, troquei o pé de apoio três vezes.

    – Mas entre um instantinho!

    Embora intimidado por aquele riso histérico, avancei. A visão das paredes da sala, inteiramente cobertas de livros, do chão ao teto, me puxou para dentro do apartamento.

    Havia livros por todos os lados: na mesa, nas cadeiras, nos sofás, nos aparadores. Por toda a sala, como soldados de um batalhão em debandada, erguiam-se pilhas vacilantes de livros que exalavam o aroma da poeira longamente acumulada.

    O professor Caetano retirou braçadas de livros de duas cadeiras.

    – Sente-se! Há muitos anos não recebo a visita de ninguém. Estou contente em vê-lo, professor. Quero aproveitar sua presença aqui para dar início ao meu processo de desligamento da universidade.

    *

    Apaixonei-me também pelo Cinema. Acho que não há arte que exija mais talento que essa. É preciso ser um gênio para falar através de imagens em movimento. De início, o meu amor era platônico, quase frio, o único tipo de amor que nós, intelectuais, sabemos viver. Passei depois a adorar as imagens tanto pelo que estampavam quanto pelo que escondiam. Admirava Fellini, Buñuel e Kurosawa, os três gênios. Mas um amor só se transforma em paixão quando é amplo e generoso. Passei, então, a apreciar também as comédias, os musicais, os faroestes, as aventuras para crianças e os filmes policiais.

    Vejo que neste momento, discretamente, você tenta ler o mostrador do relógio. Está com pressa. Ou com fome. Ou cansado. Deve estar doido para chegar em casa e tomar uma cervejinha. É sexta-feira. Compreendo. Não se preocupe. Vou concluir rapidamente.

    Diga ao Mascarenhas que me mande até aqui alguém com a relação dos documentos que devo apresentar para requerer minha aposentadoria. Acrescente, porém, que jamais porei um pé para fora deste apartamento. Diga-lhe que aqui estou e que aqui ficarei até o fim dos meus dias, que não deve tardar.

    a black and white photo of an empty auditorium

    Diga a ele que estou me lixando para tudo, diga que tenho setenta anos e que agora quero descansar. Diga a ele também que pretendo assistir a todos os filmes que foram feitos no mundo e que para isso basta que eu levante o telefone e ligue para a loja que aluga fitas de vídeo que logo chega o rapaz da motocicleta com belos filmes suecos, japoneses, italianos, franceses, espanhóis e alemães. Existem milhares de filmes e não me resta vida para assistir a todos eles, como antes não pude ler todos os livros, mas…

    Diga ao Mascarenhas que não abri minha porta porque finalmente compreendi que este mundo faz parte de uma única peça escrita e dirigida por um só diretor, um sujeito cuja face ninguém conhece, que eu chamo O Sem Rosto; e que, por fim, eu percebi que esta fabulosa peça teatral vem sendo filmada o tempo inteiro por um diretor, que ninguém jamais conheceu, e que eu chamo O Sem Olhos, que pretende um dia montar um filme que seja a síntese perfeita da história da humanidade, e quem não é tolo sabe que o sol não passa de um canhão de luz, que nós nada mais somos que figurantes, e que os olhos d’O Sem Olhos são câmeras, e que um dia, se eu sair por essa porta, Ele vai gritar: Corta!

    Lourenço Cazarré é escritor


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

    APOIOS PONTUAIS

    IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

    MBWAY: 961696930 ou 935600604

    FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

    BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

    Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

    Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.

  • Evidências e enigmas do Dilúvio

    Evidências e enigmas do Dilúvio

    No ano mil seiscentos e cinquenta e seis do Anno Mundi 1656, ao décimo sétimo dia do Marcheshvan, rompendo todas as fontes do grande abismo e abrindo-se as cataratas do céu durante quarenta dias e quarenta noites, Deus salvou Noé pela segunda vez. A primeira foi quando Deus incumpriu a sua sentença, decretada ainda antes do cataclismo, em encurtar os dias dos homens para centos e vinte anos. É que Noé já contava seiscentos anos quando entrou na arca.

    *

    Noé, sua mulher, seus três filhos e noras não eram uma família justa ou perfeita; na verdade, eram uma família misantrópica. Só assim se compreende que Deus os tenha escolhido; só assim se compreende que Noé, avisado por Deus do extermínio sobre a Terra – uma violência divina contra a violência humana –, não tenha tentado auxiliar os seus patrícios mais próximos. Nem sequer os compadres.

    closeup photography of water drops on body of water

    *

    Enquanto serrava as madeiras resinosas e comprava betume, enquanto construía a arca de trezentos côvados de comprimento, cinquenta côvados de largura e trinta côvados de altura distribuídos por três pisos, enquanto carpintejava tudo isto e calafetava tudo aquilo, enquanto reunia os animais para o acompanharem, que desculpas ou justificações deu Noé a quem lhe perguntava o que estava fazendo?

    *

    Se de antemão Noé sabia que apenas ele e a sua família mais próxima entrariam na arca, que apenas ele e a sua família mais próxima se salvariam do dilúvio, terá comprado a madeira e o betume a pronto ou a crédito?   

    *

    Os oceanos, mares e baías possuem 1,386 mil milhões de quilómetros cúbicos de água, os lagos salgados e doces cerca de 176.400 quilómetros cúbicos, os rios somente 2.120 quilómetros cúbicos e os pântanos 11.470 quilómetros cúbicos. Deus tinha assim disponível para inundar a Terra apenas cerca de 47,8 milhões de quilómetros cúbicos, contabilizando as águas das calotes polares, dos glaciares, das neves permanentes, do pergelissolo, do gelo subterrâneo e dos aquíferos doces e salgados, bem como o vapor de água e a água existente no solo e nos seres vivos animais e vegetais, embora neste último os matasse logo a todos se a utilizasse.

    Ora, sabendo-se que a superfície terrestre total é de 509,6 milhões de quilómetros quadrados; sabendo-se ainda que, para uma inundação uniforme, teria de se fazer chover nos oceanos, nos mares, nas baías, nos rios, nos lagos, e nos pântanos similar volume ao que se precipitasse em terra; então concluiu-se que um dilúvio global apenas atingiria 93,79 metros acima do actual nível médio das águas do mar. Como se diz ter Deus coberto os altos montes existentes debaixo do céu, ultrapassando em quinze côvados (cerca de 9,9 metros) o cimo de todas as montanhas, incluindo portanto os montes de Ararat, onde haveria de pousar a arca, que se situa a 5.137 metros acima do nível do mar, e sobretudo o monte Evereste, na cordilheira dos Himalaias, que se encontra 8.848,43 metros, uma questão se coloca: onde foi Deus desencantar tanta água? E para onde foi depois do Dilúvio?

    body of water surrounded by fog

    *

    Antes de aplacar o Dilúvio, solicitou Deus a Noé que recolhesse tudo quanto houvesse de comestíveis e os armazenasse na arca, a fim de servirem de alimento à sua família e aos animais. Ora, se muitos desses animais eram carnívoros, quantas espécies se terão extinguido em plena arca durante os cinto e cinquenta dias que durou a inundação, sem contabilizar também os animais que padeceram de doenças, de má nutrição ou de desadequadas condições higieno-sanitárias?

    *

    Deus decretou que Noé recolhesse sete pares de cada espécie de animais puros e apenas um par de cada espécie de animais impuros, porque o primeiro grupo podia ser comido e servia também para sacrifícios em holocausto durante o período de inundação. Quantas espécies se extinguiram às mãos de Noé enquanto todos estavam na arca?  

    *

    Se na Criação fez Deus todos os seres vivos – aves, monstros marinhos, peixes, animais domésticos, répteis e animais ferozes – em apenas um dia e meio, qual a razão para depois, aquando do Dilúvio, ter sobrelotado a arca com sete pares de todos os animais puros, mais um par de todos os animais impuros, e sete pares de todas as aves? Não terá sido mais fácil recriar todos os animais de novo, tornando assim mais cómoda, para Noé e sua família, a estadia na barcaça?

    a book open with a drawing on it

    *

    No decurso do Dilúvio, as chuvas caíram durante quarenta dias e quarenta noites. Por mais cento e cinquenta dias esteve o mundo coberto pelas águas. Depois, «Deus recordou-se de Noé e de todos os animais, tanto domésticos como selvagens, que estavam com ele na arca», mandando «encerrar as fontes do abismo e as cataratas dos céus», ao mesmo tempo que «mandou um vento sobre a terra e as águas começaram a descer». No dia dezassete do sétimo mês do ano de mil seiscentos e cinquenta e seis após a Criação, «a arca poisou sobre os montes de Ararat. As águas foram diminuindo até ao décimo mês. No primeiro dia do décimo mês, emergiram os cumes das montanhas». Somente ao fim de quarenta dias Noé abriu a janela da arca e soltou um corvo, que «saiu repetidas vezes, enquanto iam secando as águas sobre a terra». Mais tarde, largou uma pomba que, «não tendo encontrado sítio para poisar», regressou à arca. Somente sete dias depois foi feita nova largada da pomba que, desta vez, regressou com uma folha verde de oliveira no bico. Noé aguardou mais sete dias e tornou a soltar a pomba «mas, desta vez, ela não regressou mais para junto dele». Desconhece-se as razões, mas a hipótese de esta pomba ter morrido está fora de hipótese, pois o seu par, o pombo, tê-la-á encontrado mais tarde, de contrário a espécie extinguia-se. Porém, subsiste um enigma: como sobreviveu a viçosa e verdejante oliveira durante todo o tempo do Dilúvio?


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

    APOIOS PONTUAIS

    IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

    MBWAY: 961696930 ou 935600604

    FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

    BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

    Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

    Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.