Etiqueta: Cultura

  • A estrada para Jerusalém

    A estrada para Jerusalém


    Prólogo

    No ano dito da graça de 1939, a Inglaterra dominava a maior e melhor parte do Médio Oriente na sequência dos mandatos que lhe tinham sido atribuídos após a vitória sobre o império otomano na 1ª Grande Guerra.

    Com a tempestade da Segunda Guerra Mundial, surgiu nas areias do Norte da África, uma força tão imprevista como o vento do deserto que tudo varre à sua frente: o exército do marechal Rommel que, após sucessivas vitórias sobre os britânicos, chegou a 4 de Julho de 1942 a El Alamein, às portas de Alexandria.

    Quem sabe o que teria sucedido se Rommel não tivesse sido detido nesse verão em El Alamein pelas forças do 8º Exército britânico do general Auchinleck? Quem sabe se, após conquistar o Egito, não marcharia pelo Próximo Oriente adentro em direção à Palestina e, depois, quem sabe, em direção ao Iraque para capturar os poços de petróleo aos Aliados ou em direção ao Irão para atacar a União Soviética, enquanto o 6º Exército alemão se aproximava de Estalinegrado?

    Não sabemos. E porque não sabemos podemos imaginar pois é desse estofo que são feitos os mitos e, neste caso, a novela improvável que dá pelo título de Rommel em Jerusalém.


    A 1 de Agosto de 1942, à cabeça de uma longa coluna do Africa Korps, o 33º Batalhão de Reconhecimento rolava em direção a Jerusalém, culminando o formidável avanço das forças do marechal Erwin Rommel no Próximo Oriente. Deixando para trás Tobruk, conquistada no primeiro dia daquele Verão, o Afrika Korps triunfara em El Alamein contra o 8º Exército britânico. Após a queda de Alexandria em 10 de Julho, o Panzer Gruppe Afrika e os aliados italianos dirigiram-se para o canal de Suez, e cruzaram-no em Port Said, sem mais delongas nem dificuldades. Após uma paragem para reabastecer e reforçar, em que recebeu a 164ª Divisão, vinda de Creta, Rommel decidiu continuar a avançar. Conquistou El Arish no deserto do Sinai, e dirigiu-se para a Terra Prometida, via Gaza. Para trás ficava o norte de África; à sua frente estendia-se o Médio Oriente.

    Entrando na Palestina por Siquém, o Afrika Korps realizou a habitual manobra em tenaz, do Blitzkrieg. Enquanto a 15ª Divisão Panzer subiu para norte pelos montes de Hebron, a 21ª Panzer dirigiu-se para Haifa de onde depois obliquou para Jerusalém. Os generais ingleses encaixavam golpe sob golpe, preferindo retirar a serem derrotados em campo aberto. E após uma derrocada de três meses, que começara nas linhas de Gazala, na Tripolitânia, recuaram para a linha de obstáculos naturais da Cisjordânia, – formada pelo rio Jordão, o Mar Morto e o Lago Tiberíades – procurando negar o acesso dos alemães aos cada vez mais próximos campos petrolíferos do Médio Oriente. Os soldados britânicos sentiam-se bravos, mas confundidos e os generais reconheciam-se confundidos mas bravos. Jerusalém foi declarada cidade aberta e nela apenas ficaram as células do Hagannah.

    Ao longo da estrada batida pelo pó levantado pelas viaturas alemãs, os árabes saudavam o desfile com ramos de palmeira enquanto as mulheres emitiam trinados de aprovação. Sem dúvida um momento glorioso a ser proclamado pelos jornais e rádios nazis como mais uma soberba vitória do Eixo. O Terceiro Reich chegava ao Reino de Deus. Sr. Marechal os jornais vão dizer de si que é um novo Alexandre Magno ou um novo Frederico Barbaroxa gritava-lhe o tenente Berndt, dos serviços de propaganda da Wehrmacht e que gozava de confiança particular junto de Hitler. Talvez, talvez, Berndt, sorria-lhe o marechal enquanto se dessedentava bebendo água da sua caneca de zinco e acenando à multidão. Vamos escrever que o senhor traz o Ocidente às ruas de Jerusalém. Rommel gritou-lhe passados uns instantes. Escreva o que quiser, Berndt. Mas sabe bem o que faziam nos triunfos romanos. Berndt sabia.Havia sempre um escravo atrás do conquistador que repetidamente aproximava-se do ouvido do general e dizia: “Lembra-te que és mortal!”

    A coluna de veículos roncava no meio dos povoados que salpicavam as colinas dos montes de Hebron, onde piteiras e figueiras separavam as culturas em socalcos das populações da região. Enquanto se sucediam os quilómetros, os pensamentos de Rommel voavam para paragens bem longínquas. Uma vez chegado a Jerusalém teria de decidir o passo seguinte. Como um touro que investe, teria de escolher com qual dos dois cornos possantes acossaria os adversários. Poderia seguir em direção aos poços de petróleo do sul do Iraque, privando os Aliados do nervo da guerra que alimentava tudo o que se movia na terra, mar e ar; ou então poderia seguir até ao Irão e às portas do sul da Rússia, levando a guerra até perto de Estalinegrado. Qualquer dos objetivos seria um alvo grandioso a acrescentar à sua grandiosa vitória no solstício de Verão. Hitler fizera-o marechal nessa noite ainda recente. mas já tão distante de 21 de Junho. Rommel apenas comentara “Preferia que me enviasse mais uma divisão” enquanto impelia as unidades a seguir para o Egipto.

    As longas filas de veículos eram como os anéis de uma serpente a aproximar-se da vítima. Sucediam-se os blindados de reconhecimento, os transportes de rodas e lagartas cheios de infantaria, tratores de artilharia e muitos camiões capturados aos ingleses – o chique inglês do Afrika Korps – e ainda mais blindados, camiões tanque e, sobretudo, os tanques, vencedores de cem batalhas, cavalos de aço, com os seus trilhos, cascos e torres de onde emergiam as poderosas peças de 50 e 75 mm, curtas e longas, prontas a cuspir a morte. Era o Afrika Korps sempre à míngua de homens, veículos e abastecimentos, mas impelido pela vontade de aço do seu comandante. Os soldados mastigavam nacos de carne fria, extraída das latas de conserva da administração militar italiana, onde se destacavam as letras AM, que os alemães por irrisão liam como Armes Mussolini. “Pobre Mussolini”, o chacal da 2ª Guerra Mundial que vinha sempre no fim de cada batalha à procura de despojos. Mussolini até mandara bombardear Tel Aviv, Haifa e Acre no início da campanha do norte de África, em Junho de 1940, infligindo estragos e vítimas e dando origem a grande ansiedade nas povoações.

    Após ladear as colinas da Judeia pontilhadas por pequenas casas, a estrada começou a subir suavemente até Jerusalém. Oh Jerusalém! Esplendorosa, antiga, eterna, suja, ruidosa, estirada ao sol, cheia dos bons e maus cheiros de alimentos e estercos, e repleta de gentes, religiões, fés e mistérios. Por entre a massa de casa baixas, erguiam-se minaretes de mesquitas, torres de igrejas, cúpulas moles de sinagogas, a torre de David, e basílicas que subiam pelo monte das oliveiras, apontadas ao céu, como antenas dirigidas a um mistério maior do que a humanidade que cá em baixo se arrastava. A mais poderosa máquina de guerra do mundo chegava à mais santa das cidades, à cidade da paz, Oh Jerusalém devassada, que mais te aguardava? Que te iria suceder?

    O marechal Rommel, numa das suas viaturas

    À medida que entrou nas encostas urbanizadas de Jerusalém, a coluna mudou de dispositivo: para trás ficavam colonatos judaicos, aldeias de árabes cristãos e de árabes muçulmanos. Entrava-se agora nos arrabaldes e a estrada aberta cedeu lugar a ruas onde poderia espreitar o perigo. Os soldados empunhavam as espingardas nas mãos crispadas e as metralhadoras pesadas giravam nas torres dos veículos blindados. Contudo, não se via sinais de hostilidade e aqui e além, novos grupos saudavam a entrada dos conquistadores   

    As colunas aproximavam-se da cidade velha. Na esquina da estrada de Jaffa com a rua de Malka, o general Bayerlein gritou ao condutor enquanto consultava o mapa “Vire à direita e siga na direção da avenida do Rei David. Nessa esquina, onde estava a loja do fotógrafo Marar, a sapataria Jevod com a sua bela montra, e a empresa de construção Seraphim, vários soldados saltaram dos veículos e ofereceram cigarros à população. Eram a guarda avançada aos veículos que agora avançavam em marcha lenta, com os motores a roncar. A serpente de aço estava agora no coração moderno de Jerusalém com ruas arejadas e edifícios de porte.

    Nessa beira ocidental da cidade, avultava um edifício que tinha sido assinalado para estabelecer o quartel-general do Panzer Armee. No alto de uma colina rodeada de amplos jardins, erguia-se a Associação Cristã da Juventude, abandonado pelos proprietários norte americanos; era um marco orgulhoso erguido por Arthur Harmon, o mesmíssimo arquitecto do Empire State Building, contraponto do novo mundo da América à antiga torre de David que se erguia a pouco mais de um quilómetro de distância. Para ali se dirigiu a guarda avançada de Rommel.

    O esquadrão passou pelos grandiosos portões abertos e entrou no pátio rodeado de palmeiras do complexo de edifícios do YMCA, imaculadamente brancos. Ao centro, destacava-se uma torre sineira ladeada por dois corpos de quatro andares. Os veículos pararam, os soldados montaram um dispositivo de segurança. Após uma primeira inspeção ao edifício pelos pioneiros, para lá se dirigiu o alto comando alemão. Ali se instalaria o novo senhor da guerra na Terra Prometida. Quantos conquistadores por lá tinham passado… Quantos tinham ficado às portas, como Ricardo Coração de Leão. Quantos tinham ali conhecido o triunfo e a glória. Quantos tinham ali saboreado a copa da vitória…

    Militares britânicos em Jerusalém, 1940, próximos da torre de David.

    Nabucodonosor arrasou o primeiro templo e expulsou os judeus para Babilónia. Tito e Vespasiano destruíram o segundo templo após a revolta de Simão bar Kosheba. Adriano aplanou a cidade e mudou-lhe o nome para Aelia Capitolina. Heráclio perdeu-a para o califa Omar. Os muçulmanos perderam-na para os Cruzados e Godofredo e Balduíno tornaram-se reis de Jerusalém. E estes voltaram a perdê-la para Saladino. Os britânicos de Allenby conquistaram-na em 1918 aos otomanos e agora perdiam-na para os alemães. As cruzes gamadas iriam drapejar em Jerusalém, não se sabe por quanto tempo. Por certo que o mundo se preparava para algo de terrível.

    “Marechal, por quanto ficar tempo ficaremos aqui? “perguntou-lhe o tenente Berndt. Rommel deixou passar alguns momentos. “… Sabe uma coisa Berndt? Esta cidade é um mistério…”

    [CONTINUA]


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

    APOIOS PONTUAIS

    IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

    MBWAY: 961696930 ou 935600604

    FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

    BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

    Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

    Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.

  • Verde, verde… 

    Verde, verde… 

    Raimundo nasceu em berço de ouro. Na verdade, em berço dourado, mandado fazer de propósito para o único filho da família Souza. O menino medrou. Cresceu. Cresceu. Cresceu. Diziam os pais que o rebento era espigadote. Os avós, que era bom para ir ao figo. Os amigos, que devia jogar basquete. E ele, que não compreendia o que significava espigadote, nunca tinha visto uma figueira nem gostava de basquetebol, ignorava os comentários. Aliás, tudo lhe era indiferente. Sem preocupações e sem nada melhor para fazer, crescia.

    A escola era um grande aborrecimento.  Os professores chamaram a atenção dos pais. O rapaz andava desinteressado e em más companhias:

    ⎼ Já não basta ele andar de cabeça no ar. Olhem que o Carlos não é flor que se cheire. ⎼ avisaram.

    fig on brown wooden surface

    Com uma longa carreira no ensino,  o diretor afirmava que o problema do rapaz era falta de motivação. Estava enganado. Muito enganado, como se veio a provar quando o Sr. Souza adquiriu o colégio. O Raimundo passou a ser o primeiro a chegar e o último a sair. Sentia-se em casa. Tornou-se um aluno exemplar. Não falhava o quadro de excelência. Ele e o Carlitos, quem diria?

    Por esta altura, o Carlos jogava futebol e o Raimundo decidiu entrar também para a equipa. O treinador dizia que o rapaz era grande, mas não era grande coisa. A Souza & Filho Lda. não tardou em perceber as dificuldades do clube da vila. Um patrocínio generoso. O nome da empresa estampado nas camisolas dos jogadores. O estádio pintado de fresco. A bancada presidencial renovada. E, finalmente, um treinador capaz de reconhecer o verdadeiro talento. Raimundo, esse, perdeu o gosto pelo desporto. Já não lhe apetecia.

    Entediado, deambulava horas e horas pelo calçadão, junto à praia. Certo dia, perdeu-se de amores por uma ruiva que ali passava. Não a voltou a ver, mas tinha a certeza de que era o amor da sua vida.  Sentado na gelataria, lambia colheradas de gelado de baunilha e procurava-a com o olhar. Enquanto isso, crescia, crescia, crescia. Para passar estas horas lentas e acalmar o coração, começou a versejar. Rimas únicas, de uma singularidade irrefutável: amor a rimar com pavor; olhar com almoçar; correr com morder; amanhã com maçã; mulher com colher; coração com leitão. Quatro longas tardes. Dezenas de poemas. Era obra. Reuni-la em livro, inevitável. O pai, que nem era apreciador de poesia, ficou fascinado. Reservou para si 500 exemplares. Toda a tiragem. Não houve cliente, fornecedor ou funcionário da Souza & Filho que não recebesse um volume de A ruiva que me cativa. Estava ali um grande poeta, sim senhor:

    – Um Pessoa, se ele quisesse! exclamou o professor de literatura.

    Mas o Raimundo não tinha vontade de continuar a escrever. Estava visto que a ruiva não voltava e já estava tudo dito.

    person wearing brown boots

    Uma banda! Uma banda é que era! A música nunca fez mal a ninguém. Tinha tocado flauta no colégio. Um saxofone não havia de ser assim tão diferente. O Carlos era afinado. Podia ser o vocalista. Comprou mais uns instrumentos, o pai mandou preparar uma sala de ensaios na cave. Juntou uns amigos e  formou a Raimundo & Friends. Ensaiaram uns dias. Gravaram duas músicas e enviaram-nas para uma conhecida editora de Lisboa. A resposta foi estranha: queriam conhecer o Carlos. Não fosse haver engano, o motorista da empresa levou os dois amigos até à capital. Mas não havia. Queriam mesmo conversar com o Carlos. Seguiu-se um concurso de novos talentos. Depois o Festival da Canção, um CD, a rádio, concertos… O Carlos não parava. O Raimundo já mal conseguia falar com ele. Assistia ao longe, fascinado pelas ovações, pelos elogios, pelos grupos de fãs que seguiam o amigo por todo o lado.

    Enquanto isso, a Raimundo & Friends continuava a ensaiar. Tocavam nos bares e restaurantes da vila, nos bailes, nas feiras. Entristecia-os ver o público conversar enquanto atuavam. As bocas cheias de farturas, de fogaças, de sandes de porco no espeto. O Raimundo foi desanimando. E, à medida que desanimava, a sua pele ganhava um tom estranho. Esverdeado. Os médicos não conseguiam explicar. Fechava-se cada vez mais no quarto. Seguia quase ao minuto a vida do Carlos. Parou de crescer. Encolhia, ao invés. Completamente verde.

    Na vila, a mudança não passou despercebida. Tornou-se tema de conversa. Havia teorias:

    ⎼ É da comida. Só comem porcarias. ⎼ dizia a D. Amélia.

    ⎼ Eu digo que é da água. Está cheia plástico. ⎼ respondeu o Sr. Jorge.

    man holding his neck

    ⎼ Aquilo é da vacina. Eu bem avisei, mas não quiseram acreditar. ⎼  afirmava a D. Manuela, feliz por finalmente provar que tinha razão.

    Uma velha, enrolada sobre o cajado à porta do Centro de Saúde, levantou o rosto. Com ar grave e seguro, fez o diagnóstico:

    ⎼ É inveja, digo-lhe eu, que já vi tudo.

    O Raimundo, verde, verde, continuava a mirrar. Deixaram de o ver. A vila inteira foi mobilizada. Nada. Nem sinal do rapaz. Tinha encolhido tanto que tinha de se esconder não fossem pisá-lo.  Um dia, aproveitando a calma do amanhecer, trepou a uma folha de malva para apanhar os primeiros raios de sol. Estendeu-se, espreguiçou-se, bocejou. Uma toutinegra ensonada saiu de dentro de um arbusto e comeu-o.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

    APOIOS PONTUAIS

    IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

    MBWAY: 961696930 ou 935600604

    FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

    BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

    Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

    Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.

  • A primeira caricatura portuguesa sobre cerveja

    A primeira caricatura portuguesa sobre cerveja


    Introdução

    Quem, naquela 4ª feira, dia 3 de setembro de 1902 olhasse atentamente para os quiosques dos jornais poderia ver, ao lado dos respeitáveis O Século e O Diário de Notícias, uma curiosa caricatura a toda a primeira página no jornal humorístico A Paródia. A caricatura intitulava-se Os Direitos da Cerveja e era da autoria de um jovem desenhador chamado Celso Hermínio.

    E quem, naquele dia de fim de verão de 1902, comprasse esse jornal humorístico mais famoso da história do nosso jornalismo, decerto sorriria com a sátira que nesse cartoon se manifestava. Depois, talvez metesse o jornal debaixo do braço ou o fosse folheando ao caminhar para o Chiado onde iria tomar um café, uma orchata ou um capilé na Brazileira, ao mesmo tempo que olharia de soslaio para as elegantes que pululavam a rua Garrett com saquinhos de compras da loja Paris em Lisboa. Contudo, de um pormenor é que o nosso leitor não desconfiaria: é que aquele desenho era a primeira caricatura portuguesa sobre cerveja. E assim o nosso eventual leitor iria bebericando o seu cafezinho e comentando as novidades, desconhecendo que teria na sua posse um documento histórico.

    Ora é a história dessa caricatura e do seu contexto que iremos aqui esboçar…

    Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905)

    O jornal

    Comecemos por falar do jornal no qual a célebre caricatura ocupava toda a primeira página. Diga-se que não se trata de um jornal qualquer. Estamos perante o mais célebre jornal humorístico da história multissecular da imprensa portuguesa e que ainda hoje é amiúde estudado nos nossos cursos superiores de comunicação social.

    O jornal humorístico A Paródia começou a ser publicado em 1900. Era o quarto jornal satírico de grande referência publicado entre nós pelo célebre artista, escritor, jornalista e desenhador Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905), cujo retrato aqui mostramos.

    Depois de A Lanterna Mágica (1875), o António Maria (1879-1898) e Os Pontos dos is (1885-1891), A Paródia era um semanário de referência que, sob a direção de Bordalo, fazia as delícias dos burgueses e o temor dos políticos que se viam retratados nas caricaturas sem grande piedade. O periódico inspirava-se nos jornais satíricos que estavam em voga por essa Europa fora, como o inglês Punch ou o francês Charivari. Todavia, deve-se dizer que em nada ficava atrás daqueles dois famosos jornais. O nosso A Paródia era tão bom como os melhores de lá de fora… E só para se ter uma ideia da sua qualidade e atualidade basta passar os olhos pela primeira página do primeiro número (17 de janeiro de 1900), no qual a política era representada por… uma grande porca.

    O jornal A Paródia iria ser descontinuado em 1907. Contudo entrara já em lenta agonia após a morte do seu mentor e fundador, em 1905. Nos anos de 1906 e 1907 o periódico seria dirigido por Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro, filho de Rafael Bordalo Pinheiro. Deve ser referido que o jornal A Paródia está disponível online no site da hemeroteca de Lisboa que em baixo indicamos.

    Pelas páginas de A Paródia passaram vários caricaturistas portugueses. Desde logo, claro, o incontornável Rafael Bordalo Pinheiro. Depois, o seu próprio filho, o já referido Manuel Gustavo. Em seguida, uma série de caricaturistas de que não ficou grande fama. A maior parte deles cumpria a sua função com eficácia e profissionalismo, mas não tinham o talento do seu diretor, valha a verdade. Um desses caricaturistas menos conhecidos, porém, prometia muito. Era um jovem em quem se vislumbrava algum talento e que o mestre Rafael resgatou do anonimato, empregando-o no seu jornal. Chamava-se Celso Hermínio e foi ele o autor da caricatura histórica de que aqui falamos.

    O autor

    No universo dos caricaturistas nacionais do início do século XX o nome de Celso Hermínio não aparece ao lado dos mais famosos, como Rafael Bordalo Pinheiro, Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro, Stuart Carvalhais ou Leal da Câmara. Mas essa ausência não se deve a falta de talento, pois desde cedo que o rapaz mostrou ao que vinha. O problema é que Celso Hermínio faleceu ainda novo, com 33 anos, vitimado por uma pneumonia, maleita fatal ao tempo. Falemos um pouco do homem que nos deu a primeira caricatura portuguesa sobre cerveja e cujo retrato aqui reproduzimos

    Celso Hermínio (1871-1904)

    Celso Hermínio era filho de um militar, o general Gaudêncio Carneiro (também ele um homem de letras) pelo que a sua aprendizagem fez-se um pouco por todo o país, ao ritmo das colocações castrenses do seu pai. Foi em Ponta Delgada que o seu precoce talento desabrochou, fazendo as suas primeiras caricaturas num pequeno jornalito familiar chamado A Mosca. Mas como em Portugal as artes não davam (e não dão) para sustentar a vida, Celso prosseguiu as pisadas paternas e seguiu a carreira militar, ao mesmo tempo que frequentava o curso preparatório da Escola Politécnica de Lisboa.

    Mas a arte estava-lhe no sangue. Por isso começou a frequentar as tertúlias artísticas de Lisboa, dando nas vistas pela sua verve radical e panfletária a que se sucediam, segundo os testemunhos do tempo, alguns períodos de langor e de preguiça. O seu feitio, arisco e difícil, afastava-o das modas e apartava-o das multidões. Todavia, todos lhe elogiavam o traço e o humor, destacando-se os seus retratos satíricos que ao tempo se chamavam portrait-charge. Desse tempo dizia-se que o lápis do Celso não era um lápis, era uma moca

                A sua arte não passou despercebida ao olhar sábio de Bordalo Pinheiro, que o convidou para desenhador regular de A Paródia. Era um passo em frente, depois de anos a desenhar para jornais menores e pasquins de ocasião. E durante quatro anos Celso Hermínio publicou os seus desenhos naquele periódico, lado a lado com o seu amigo e diretor.

    No dia 8 de março de 1904, apenas um ano e seis meses depois de publicar a primeira caricatura nacional relativa à cerveja, Celso Hermínio pereceu, vítima de uma pneumonia dupla. Nas páginas de A Paródia escreveu-se: A morte prematura de Celso Hermínio privou a arte da Caricatura em Portugal de um dos seus cultores mais jovens, mas mais talentosos e fecundos. Graças a uma real aptidão e a um esforço incessante. Celso Hermínio, tendo feito uma carreira rápida e brilhante, alcançara já um lugar indispensável entre os humoristas do lápis, no nosso país. Era um bom caricaturista, com um grande poder crítico e uma technica absolutamente original…

    Mais comovedor foi o testemunho de um outro mestre das letras nacionais, Raul Brandão, que nas suas Memórias escreveu: O Celso morreu ha um mez n’um dia de chuva como este. Mas, quando o caixão chegou ao pé da cova, luziu o sol no alto. O ar parecia novo e no vasto campo dos túmulos agitaram-se as cabeças amarellas dos malmequeres. Os pássaros começaram a cantar. E viu-se logo o Brito Aranha, de pera branca, dar um passo em frente e fazer um discurso:—O amigo… o camarada… descança em paz.—Depois o Cunha e Costa falou na nossa decadência, e por fim o Carneiro de Moura mastigou também uma banalidade… Sentia-se que tudo aquilo era postiço. Mas os pássaros não cessavam de cantar—e a meu lado o D. João da Camara suspirou baixinho: —Quem me dera que quando eu morrer só o saibam meia dúzia de amigos!…

    Enfim, o autor da primeira caricatura portuguesa sobre cerveja não foi um qualquer. Nem sequer foi alguém que poderia ter sido, mesmo se é verdade que poderia ter sido mais conhecido e bem maior do que foi. É o destino. Mas ficou a obra. Como a caricatura de que agora iremos falar.


    A caricatura e o seu contexto

    Desaparecido o homem, temos a sua obra. Vejamos então a caricatura que saiu naquela 4ª feira, dia 3 de setembro de 1902 e que ocupou a primeira página de A Paródia:

    A caricatura intitula-se Os Direitos da Cerveja e exibe duas garrafas ricamente vestidas de damas finas. Nos rótulos as palavras Jansen e Pilsener são bem visíveis. As garrafas passeiam-se altivas e vão distribuindo dinheirinho a cinco guardas municipais (os antecessores da PSP e da GNR) e a dois cavalheiros bem vestidos. No canto inferior direito, temos a assinatura de Celso Hermínio. Em baixo, à laia de legenda, lê-se: Direitos que se entortam.

    Assim, sem mais nem menos, a caricatura pouco diz. Mas o próprio cabeçalho do desenho parece remeter para um artigo em páginas interiores. Folheemos então o jornal. Nas páginas 6 e 7 (que abaixo reproduzimos) temos então um pequeno artigo chamado A cerveja e a farinha e da autoria de Celso Hermínio. O artigo rezava assim (reproduzido segundo a grafia do tempo):

    A semana finda deu logar, depois da revelação do caso da farinha de trigo, à revelação do caso da cerveja.

    O caso da farinha de trigo era o caso da fraude contra o contribuinte.

    O caso da cerveja era a fraude contra o Fisco.

    Dizer que entre o fabricante de farinha e o fabricante de cerveja, o nosso coração hesita, é faltar impudentemente à verdade.

    Não! O nosso coração não hesita. – Elle vae todo para o fabricante de cerveja. 

    Por isso –porque não dizel-o?- as providências pomposas  adoptadas contra a fraude da cerveja chocaram o nosso animo, abalado precisamente pela ausência de providências contra a fraude da farinha, e quando se tornou publico que o dualismo Inspecção Geral dos Impostos e Juizo de Instrucção Criminal, se encontravam em conflicto, por motivo das referidas providências, nós regosijamos-nos e fizemos todos os nossos votos pela cerveja que é o Fisco, contra a Farinha, que é o contribuinte.

    Se estes votos podem implicar qualquer género de perseguições judiciaes, que ellas venham! Iremos perante a justiça do sr. Jeronymo de Vasconcellos declarar com hombridade e descaro que sim senhor, que nos são eminentemente sympathicos os fabricantes de cerveja e absolutamente odiosos os fabricantes de farinha.

    A terminar o delicioso texto de Celso Hermínio, à laia de rodapé, temos um pequenino desenho a preto e branco onde pode ver um popular a abraçar um criado que tem uma caneca de cerveja na mão, ao lado de outro popular que premeia um panificador com um redondo pontapé no traseiro.

    E logo mais abaixo, ainda nessa página 7, Celso Hermínio presenteia-nos com uma nova pequena pérola. Uma outra caricatura mais simples, intitulada Caras e Caretas, ocupa cerca de um quarto de página e exibe, a preto e branco, um homem gorducho claramente etilizado que, agarrado a um gradeamento, balbucia: É esquisito que tendo a cerveja tantos direitos, eu fique tão torto quando a bebo!

    (Nota: se bem que não venha ao caso e possa parecer espúrio, esta última caricatura lembra muito a célebre rábula de Vasco Santana embriagado a falar para um candeeiro no filme O Pátio das Cantigas, que seria realizado 40 anos mais tarde).

    Duas caricaturas e um pequeno desenho de rodapé referentes a cerveja no mesmo número de um jornal de 1902. É obra, pela raridade…

    A caricatura da capa e o pequeno artigo merecem um enquadramento histórico. O início do século XX vê acentuar-se a crise da monarquia liberal portuguesa. O rotativismo entre os dois principais partidos monárquicos (o Progressista de Luciano de Castro e o Regenerador de Hintze Ribeiro) revelava-se cada vez mais esgotado, o Partido Republicano crescia em influência e em verve, o ambiente político, social e económico deteriorava-se. A opinião pública lusa, macerada pelas crises, pelo não muito distante Ultimatum Inglês e pelo suicídio recente de um desiludido Mouzinho de Albuquerque, assistia estupefacta a vários escândalos, como as recorrentes falsificações da farinha com cal, gesso ou ferradura –facto que aliás A Paródia satirizava com frequência e a que também se refere Celso Hermínio no seu artigo-, as irregularidades financeiras, as trafulhices na banca, nas moagens ou nos tabacos, que por esses anos se desencadearam. E se decerto essas irregularidades são de todos os tempos, mais visíveis e doloridas se tornam em tempo de crise. Como naquele ano de 1902.

    Mas a que irregularidades se referirá Celso Hermínio? Segundo as notícias que até nós chegaram alguns fabricantes de cerveja teriam burlado o fisco, prejudicando assim o Estado português. Disso se faz eco Celso Hermínio, comparando jocosamente a irregularidade cervejeira com as irregularidades moageiras. Com uma diferença, todavia. As fraudes das farinhas prejudicavam sobretudo o consumidor, pois ao falsificar as farinhas para maximizar os lucros alguns moageiros e panificadores prejudicavam a saúde e a higiene públicas, ao passo que as irregularidades fiscais de algumas cervejeiras prejudicavam o Estado. Entre as duas fraudes, o coração do português não hesitava. As cervejas prejudicaram o Fisco? Abençoadas! As farinhas prejudicavam a população? Danadas!

    Um derradeiro apontamento para explicar brevemente o que era o panorama cervejeiro português no dealbar do século XX. Nessa altura existia, pujante e fornecedora da Casa Real, a Fábrica de Cervejas da Trindade, estabelecida na Rua Nova da Trindade em 1836, num antigo convento de frades trinitários (daí o nome) e que em 1935 integrou a recém-fundada Sociedade Central de Cervejas. Ainda em Lisboa existiam as cervejeiras Jansen (desde 1855) e a Leão (desde 1878). No Porto tínhamos a Companhia União Fabril Portuense, fundada em 1890 após a fusão de pequenas cervejeiras. Nas ilhas tínhamos a madeirense Empresa de Cervejas da Madeira (desde 1872) e a açoriana Melo Abreu (desde 1892), que aliás ainda existem.

    A qualidade das cervejas portuguesas já não era má, segundo um estudo publicado em 1900: Os donos das duas maiores cervejarias de Lisboa mandaram vir do estrangeiro mestres e desde então produzem cerveja que pode competir com a importada. São de facto boas e ligeiras as cervejas hoje fabricadas sobressaindo (…) a Pilsener da cervejaria Jansen e a Bohemia da cervejaria Trindade.” (Estudo de Carvalho Talone, em 1900 – adaptado).

    Foi deste restrito universo cervejeiro que saiu a fraude fiscal registada com arte (e com mal disfarçado carinho) pelo lápis e pela pena do malogrado Celso Hermínio.

    Registe-se por fim uma curiosidade. Esta caricatura que aqui historiamos retrata uma bebida ainda relativamente pouco consumida entre nós, ao tempo. Predominante e dominador, era o vinho que imperava. Daí que se percorrermos os jornais satíricos do tempo, se vejam poucas ou nenhumas caricaturas à cerveja. Sobre o pão, a carne, o vinho, o peixe ou os doces, há-as aos montes. Já sobre cerveja… Daí a curiosidade e o interesse desta caricatura em particular. Na verdade, só bem entrados na segunda metade do século é que a cerveja ultrapassaria o consumo de cerveja em Portugal.

    Mas isso já são outros quinhentos…

    Bibliografia sumária

    José-Augusto França, Rafael Bordalo Pinheiro – O português tal e qual, Livros Horizonte

    José Manuel Tengarrinha, História da Imprensa Periódica em Portugal, Ed. Caminho

    Manuel Paquete, A cerveja no mundo e em Portugal, Colares editora

    Raul Brandão, Memórias (vol. 1)

    Jornal A Paródia (1900-1907)

    Humorgrafe: blog de informação sobre humor e cartografia

    Museus de referência

    Museu Rafael Bordalo Pinheiro (Lisboa)

    Museu Nacional da Imprensa (Porto)

    Museu da Cerveja (Lisboa)

    Sérgio Luís de Carvalho é escritor e historiador


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

    APOIOS PONTUAIS

    IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

    MBWAY: 961696930 ou 935600604

    FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

    BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

    Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

    Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.

  • Um parque humano

    Um parque humano

    Estava calmamente sentado debaixo de uma árvore, sozinho, num parque que já faz parte de mim – ao ponto de por vezes achar que é meu –, e nem mesmo os costumeiros mendigos e consumidores de droga que fazem parte do habitat por lá deambulavam.

    O termómetro não marcaria mais de 20 graus e pairavam algumas nuvens indistintas no céu.

    Junto a mim, passavam os patos e os cisnes habituais naquele parque extremamente verde e com um certo glamour ecológico, até parecendo que já me conheciam.

    Seriam os patos de Pequim assim tão simpáticos?

    Ouviam-se também pássaros a cantarolar e a assobiar. A atmosfera primaveril era perfeita para estar a escrever nas notas do meu telemóvel uma mensagem elaborada para uma amiga, quando vejo um polícia com ar cansado ao longe. Percebi de imediato que se dirigia a mim.

    Tinha uns 45 anos e estava de máscara. Fazia um esforço grande para se deslocar, uma vez que o solo estava ligeiramente inclinado não podendo, no entanto, considerar-se uma subida.

    Parecia que o agente acabara de correr a maratona de Nova Iorque. E como estava, efectivamente, a vir ter comigo, tirei a minha máscara do bolso, mas quando a ia colocar na boca, ele disse ainda ofegante:

    Faz questão de estar a pelo menos dois metros de mim?

    Respondi que sim. E ele continuou:

    Então o senhor não tem de meter a máscara. Boa tarde, era só para lhe dizer que tem de circular!

    Como?

    Sim, tem de circular. Pode estar no parque, mas tem de circular. É uma directiva do Governo.

    Sabe que estamos em confinamento e que foi declarada uma pandemia?

    Respirou fundo, parecia estar mesmo cansado.

    Quer dizer, não posso estar aqui mas posso andar por aí?

    Sim senhor!  Faça o que lhe disse e boa tarde.

    Enquanto se preparava para ir embora, ainda o inquiri:

    Gostava de fazer uma pergunta…

    Claro! Se souber responder…

    Sorriu envergonhadamente.

    Eu sou realizador de cinema e vídeo, e fotógrafo, estou aqui a trabalhar. A rua é o meu local de trabalho…

    Já somos dois!

    Interrompeu. Confirmei que estava com uma respiração anormal e sugeri que tirasse a máscara. Disse-lhe também que não era bom estar a inspirar o seu dióxido de carbono.

    Então se não se importa, acho que vou tirar a máscara por uns segundos. Estou a dois metros de si, não tenha medo.

    Claro que não tenho medo. Fui eu que sugeri.

    Respondi, chateado.

    Nitidamente o homem começou a ficar em poucos segundos com outra cara. Uma ligeira cor rosa apoderava-se paulatinamente do seu rosto bastante comum. Era um homem encorpado mas nitidamente parecia andar em baixo, senti também que gostava de ser polícia.

    Pode fazer então a pergunta.

    Lembrou-me.

    Como dizia, sou artista, pronto… e uso o meu telemóvel para trabalhar… então se quiser filmar ou fotografar aquela árvore por exemplo, ou aquele cisne, posso parar para o fazer? A fotografia, caso contrário corre o risco de ficar desfocada ou tremida…

    Mas é profissional?

    Sim.

    Nesse caso, sim.

    Notei que estávamos parados há pelo menos dois minutos.  

    Já agora, qual é esse critério que vocês usam? Os vírus apanham-se menos a andar?

    Pigarreou nervosamente.

    …Sim!

    Por exemplo, vão ali cinco rapazes juntos, mas em andamento…

    Apontei.

    Estou a ver…

    E é pior eu estar aqui sentado sozinho?

    Parece que sim.

    Pigarreou novamente sem convicção.  

    Ai é?

    Reforcei.

    Diz que sim…

    Mas diz que sim… Quem?

    Você não vê os telejornais?

    Mudou até de tom, tornando-se ligeiramente mais agressivo.

    Vejo. Mas eu não quero que você use a lei dos telejornais. Sentia-me mais seguro se vocês tivessem recomendações próprias… de epidemiologistas por exemplo. Estava mais seguro se o Ministério da Administração Interna contactasse directamente com a DGS, por exemplo. Não me parece que seja o caso. Até parece que quem manda são as televisões através dos telejornais.

    Não queria mais nada. Isto é uma excepção, uma emergência. Pensa que está na Noruega?

    Se é para estarem a seguir o que os telejornais dizem, não era preciso a polícia.

    Atirei só para chatear.

    Não bata mais no ceguinho. Calma!  Também não fique assim. Só mandei circular. Já não se pode dizer nada que ficam logo nervosos os artistas. Ai coitadinho!.. É muito sensível.

    Até achei piada à rápida mudança. E respondi com uma pergunta:

    Então, mas nós estamos aqui parados a falar ao tempo e agora? 

    Tem razão sim senhor.

    Mudou de atitude.

    Se calhar ficámos infectados…

    Arrisquei. O homem pôs automaticamente a máscara e disse:

    Tem razão. Vamos circular.

    Fez uma pausa e quando ía para despedir-me e agradecer-lhe pelo facto de me deixar estar parado a fotografar, o polícia ainda com cara de chateado, perguntou intrigado:

    Que género de filmes faz?

    Policiais.

    Menti.

    Policiais?  Percebe a situação?

    Deu uma gargalhada.

    Está a falar com um polícia e tem uma câmara na mão, um telemóvel, vá. Tem piada. Também gosto muito de policiais. Gosto muito do Millers Crossing.

    Esse não é policial. É de gansters.

    É a mesma coisa. Então e nos seus filmes somos bons ou maus?

    Faço policiais mas com detectives com carros descapotáveis, não é com polícias normais como o senhor agente.

    Menti novamente, lembrei-me do Miami Vice old school que via quando era puto.

    Então e os seus policias também têm crocodilos de estimação a viver em barcos?…

    Deu uma gargalhada forte novamente e tirou automaticamente a máscara como acto reflexo. Entretanto falávamos enquanto andávamos, mas íamos parando quando surgia uma palavra ou uma ideia mais interessante, hábito muito português do pára-arranca. Percebi que o bófia que já tinha uma tonalidade que se visse na cara, também tinha visto a série dos anos oitenta, em que até os mendigos vestiam blazers com chumaços.

    Não. Não faço remakes do Miami Vice.

    Disse a certa altura quando a série veio à baila novamente, fingindo estar chateado, ou estava mesmo, já não sei bem. Não era a primeira vez que PSPs me abordavam na rua nessa altura de confinamento, ou porque não tinha máscara, ou porque não eram horas para estar na rua, ou mesmo só para chatearem.

    Oh amigo, não leve a mal, mas eu gostava muito dessa série. Até chorei no dia em que o Tubbs levou um tiro. Se calhar até foi isso que me fez vir para a polícia. Para vingar o Tubbs. Às vezes penso que, se não fosse polícia tinha-me metido nisso dos filmes. Nós aqui não ganhamos nada. Você deve ser milionário não?

    Não. Mas em que realidade é que você vive? Perdemos dinheiro até.  

    Olhe mas temos outra coisa em comum. Ambos temos de comprar as armas.

    E deu outra gargalhada bem sonora. Até eu me ri desta vez.

    Bem, quem o viu há uns minutos e quem o vê agora…

    Disse eu, notando a transformação evidente.

    Sabe, é que conversar faz bem.

    Naquele momento já estávamos junto da minha mota fora do parque. Ele olhou para ela.

    Não quero acreditar. É sua? Sabe que uma das minhas outras paixões são Vespas. É uma PK 50?

    Não. É 125.

    É linda. Tenho duas Sprint dos anos 70. Tem de lá ir ver à minha garagem em Sesimbra. Se ficarmos amigos… Uma delas é amarela também.

    Não lhe consegui dizer que estas já não eram da Piaggio mas da LML, uma marca indiana que comprou a italiana. Dizem que em caso de avaria da cambota não terá arranjo e irá para o galheiro.

    Sei muito bem quais são.

    Mudei de cara. Também adoro Vespas e gosto sempre de conhecer pessoas que pertençam ao mesmo clube. O polícia, naquele momento, era mesmo outro. Ia dando umas biqueiradas no pneu da frente como os portugueses de uma certa geração fazem, nunca se percebendo bem porquê, enquanto enaltecia aspectos da mota. Uma vez também dei uns pontapés na furgoneta de um vizinho só por dar enquanto falava do tempo, só porque via os outros fazerem. Depois arrependi-me.

    Isto pega sempre não é?

    Mentira! Se havia coisa que as Vespas tinham, era não pegar muitas vezes pelo menos à primeira. Mas respondi que sim, sabendo que ele sabia que não.

    Curioso como ainda há vinte minutos éramos dois desconhecidos mediados por uma autoridade meio ficcional e agora éramos como irmãos. Estranho como a paixão por motas e cinema pode mudar circunstâncias, ainda que sem qualquer espécie de profundidade. Somos latinos, não há nada a fazer. Ele olhou para mim muito amigavelmente e disse:

    Olhe, estou agora a acabar o meu turno. Não quer ir ali beber um café ou qualquer coisa? Eu ofereço com todo o prazer.

    Mas está tudo fechado.

    Fiz notar. Naquela época as cidades pareciam aldeias.

    Sim, mas para nós eles vendem, não se preocupe. Vamos ali ao Morais. Ele até nos deixa entrar lá para dentro para a cave. Acha o quê? Que eu ia agora para casa deprimir-me e ver comédias do canal Hollywood? Ainda dava um tiro na cabeça… Ou na televisão!

    Rimos os dois.

    Está bem.

    Assim vai poder falar dos seus filmes. A vida é fantástica quando somos reconhecidos e temos afinidades. Não acha?

    E deu-me uma palmada amigável nas costas.

    Sim, acho!

    Realmente o mundo anda estúpido.

    Concluiu o agente ainda parado e em silêncio enquanto fitava a minha mota que muitas alegrias me deu enquanto andou.

    Ao fundo ouvia-se ainda o belo canto dos pássaros que vinha do jardim onde nos conhecemos e ainda que indistintamente e de forma abstracta, os pássaros pareciam confirmar a conclusão do polícia.

    Pelo menos para mim e para a minha Vespa, isso era óbvio.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações de Ruy Otero


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

    APOIOS PONTUAIS

    IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

    MBWAY: 961696930 ou 935600604

    FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

    BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

    Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

    Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.

  • A estrelícia 

    A estrelícia 

    É quase primavera. Ajoelhado, arranca pacientemente as azedas que teimam em invadir os canteiros. Um carreiro de formigas entra pela terra seca. Puxam, empurram, arrastam como podem pedaços de granulado. O cão olha espantado a comida que sai da tigela e segue jardim adentro até desaparecer. O trajeto repete-se uma e outra vez. Vaivém implacável que aprisiona os insetos à rotina.  Retomam-na a cada dia.

    Salvador detém-se a observar as minúsculas Sísifos. Talvez devesse tapar a tigela.  Mas dá-lhe pena.  Pergunta-se se as formigas terão memória do dia anterior. Ou será que, como ele, acordam e percebem que o sono foi apenas o alívio permitido entre os dias?

    Pergunta-se se estará sozinho ou se haverá outra criatura no mundo que, a cada amanhecer, seja esmagada pela realidade. Que receba, a cada despertar, a notícia da morte do amor da sua vida. Se haverá, para além dela, mais alguém que faleça um dia e outro e outro. Se mais alguém desperta pronto a viver e é confrontado com o espaço vazio ao seu lado. O silêncio na casa. A solidão. E depois levantar-se. Preparar-se como se estivesse vivo. E ao longo do dia ir rolando a rocha que vai ganhando volume à medida que as memórias a vão adensando: a doença, o medo, a degradação do corpo, a depressão, as dores, as últimas palavras, o último suspiro. O saber que um segundo antes ela ainda o ouvia. O medo de não ter dito tudo. Nunca se diz tudo. A escolha da roupa, do caixão. O retorno a quatro paredes que já não são casa. As roupas nos armários. O anel de noivado e a aliança de casamento que ficaram no móvel da entrada quando saiu pela última vez. Ainda ali estão. Não lhes toca. E se ela voltar?

    Todos os dias são o mesmo dia. Todos os amanheceres o reviver. Pergunta-se quais terão sido os seus crimes? Que outro homem cumpre em simultâneo os destinos de Sísifo e Prometeu? As entranhas renovam-se apesar da sua vontade. Leu recentemente um livro no qual o protagonista perdia a memória e repetia a cada dia o dia anterior. Não é esse o seu caso, pensa. Antes fosse. Lembra-se bem de cada detalhe. De cada sensação. Ainda sente as mechas de cabelo dela a escorrer-lhe entre os dedos. Ainda as vê caídas no chão. Não, não perdeu a memória. Apenas é incapaz de a tornar permanente.

    A memória ressurge incompleta a cada despertar. As lacunas preenchem-se ao longo do dia. Uma escova. Uma fotografia. O sofá. Ao anoitecer está completa. Esmaga-o. E ainda assim, espera a noite. Anseia por ela. Abraça-a. O sono chegará em breve. E depois o sonho. E finalmente o reencontro. Olham-se e sorriem. Há muito que as palavras são desnecessárias entre eles. Passeiam, tomam café no alpendre, brincam com o cão. Às vezes viajam até destinos longínquos. Mergulham felizes em águas tíbias. Conversam muito, ainda que não digam uma palavra. A luz do amanhecer afasta-os lentamente. Já não a consegue tocar. Procura-a e não a encontra. Telefona-lhe, mas ela não atende. Desperta angustiado. Alivia-o perceber que foi um sonho. Afinal ela não partiu. Procura-a com a mão. Vira-se. O travesseiro intocado diz-lhe que o sonho foi doce. E anseia já por mais uma noite, ainda que o preço sejam as entranhas em sangue a empurrar a rocha montanha acima. Quatro mil manhãs.

    ⎼ Morreste quatro mil vezes.  ⎼ ­ sussurra enquanto continua a limpar o canteiro.

    Só ele sabe disso: um segredo bem guardado. Não interessa o que pensam os outros, a religião, a ciência… no traço descontínuo do sonho, são felizes.

    ⎼ Esta noite trago-te cá.  A tua estrelícia floriu. Tens de ver.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

    APOIOS PONTUAIS

    IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

    MBWAY: 961696930 ou 935600604

    FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

    BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

    Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

    Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.

  • Não importa, sempre acaba mal

    Não importa, sempre acaba mal


    – Não tenho biografia.

    – Fique tranquilo. Aqui são comuns declarações como esta. Com o choque, os pacientes se perdem de si mesmos.

    A doutora Adriana Kreuzfeuer era a bem-aventurada possuidora de um belíssimo rosto – delicadas sobrancelhas assimétricas, olhos azuis, narizinho empinado e boca esfaimada – coroado por uma encaracolada cabeleira loira herdada de avós imigrantes, a saber: o falecido Helmuth Schatsschneider Kreuzfeuer, construtor de chaminés de tijolos vermelhos para fábricas, e a nonagenária Ângela, em solteira Backheuser Stumpfsinn.

    – Por que o senhor não me conta um pouco da sua vida?

    – Porque o meu corpo foi tomado por alguém. E esse alguém não tem memória da minha vida anterior. Ou seja, esse alguém não pode – e eu também não posso – falar sobre o que aconteceu há, digamos, dois dias.

    – Sei. É como se a mente do senhor tivesse sido tomada por um alienígena.

    – Não. O caso não é tão moderno. Fui ocupado por um espírito, um velho espírito.

    A doutora anotava no computador, batucando com dedos espertos, tudo o que o homem lhe dizia.

    – Compreendo. O senhor é espírita?

    – Agora, sou agnóstico. Antes, não sei. Mas certamente não tinha uma fé muito profunda. Talvez por isso o tal espírito apoderou-se tão facilmente do meu eu anterior. Minha alma estava disponível.

    A bela Adriana Kreuzfeuer esboçou um rápido riso, divertido e intrigado, riso de psiquiatra que se descobre, por fim, diante de um lunático engraçado.

    – O que sabe o senhor sobre o, vá lá, espírito que está de posse de sua alma?

    O homem alto e magro movimentou-se inquieto na cadeira. Defensivamente, cruzou diante do peito os longos braços guarnecidos por mãos ossudas. Seu rosto comprido, atapetado por uma barba mais branca que cinzenta, aparada recentemente por máquina ajustada para dentes de número três, era o de alguém verdadeiramente angustiado.

    A psiquiatra refez a pergunta:

    – O senhor conhece a identidade desse espírito que se apossou da sua alma?

    – Sim. Conheço-lhe o nome, as datas de nascimento e morte. E, por alto, alguns fatos importantes de sua vida na terra.

    – Oh, isso é maravilhoso!

    A expressão do rosto da médica não acompanhou o entusiasmo exclamativo da frase. Era uma médica, uma cientista, e não estava ali para maravilhar-se. O que se podia dizer dela, sem conotação positiva ou negativa, é que era uma mulher nervosa, agitada, apressada, consciente de que, ao longo daquele dia, teria de enfrentar ainda muitos outros contadores de histórias desencontradas.

    – Me passe as datas de nascimento e morte do falecido?

    – 1860 e 1902.

    – Profissão?

    – Médico.

    Por baixo das sobrancelhas bem-cuidadas, um rápido e penetrante olhar azul-piscina partiu em direção ao homem alto e magro. Com os dedos levitando sobre o teclado, a médica parecia questionar-se. Debochando da minha cara?

    Pousou as mãos ao lado do teclado e suspirou. Não, não, aquele era apenas um mais pobre homem desnorteado, acachapado por uma tragédia pessoal que não conseguia compreender, aceitar e superar.

    – Especialidade do seu médico?

    – Clínico geral. Ele não defendeu sua tese de mestrado. Eu, aliás, ele, nós chegamos a fazer uma viagem à ilha de Sacalina…

    – Ele morreu bastante jovem. De quê?

    – Tuberculose.

    – Qual era o seu nome, o nome dele, do médico?

    – Anton.

    – Devo concluir que não era brasileiro.

    – Não. Era russo.

    – Russo?

    Bruscamente, a médica afastou o teclado com os polegares e ergueu os olhos diretamente para a lâmpada que estava sobre sua cabeça. E, congelada nessa incômoda postura, suspirou profundamente. Parecia descontente com a quantidade de luz emitida pela lâmpada. Talvez pensasse em processar o fabricante. Ao cabo de um demorado minuto, ela voltou os olhos celestiais para o paciente.

    – O senhor fala russo? Poderia me dizer umas três ou quatro palavras nessa língua?

    – Não. Claro que não. Sou um homem traduzido.

    Aquela última frase foi demasiada para a doutora Adriana. Ela imobilizou-se com os dedos abertos, a cabeça baixa, os olhos aparentemente procurando uma letra que não havia sido posta no teclado. Racionava. Seu pensamento talvez possa ser sintetizado por uma frase indelicada: esse maluco é de tirar qualquer um do sério.

    – Me dê mais informações sobre o médico russo.

    – Nasceu em uma cidade balneária, no mar Negro, a mil quilômetros de Moscou.

    A médica reproduziu num batuque ligeiro o que ele havia dito e quis mais:

    – Fale da família dele?

    – Éramos seis irmãos. Eu, Anton, tinha o dom de imitar. Todos riam das imitações que eu, ele, fazia dos mujiques, dos cocheiros, dos professores e dos funcionários públicos. O pai deles, o nosso pai, comerciante, adorava música. Treinava-nos para que cantássemos no coral da igreja. Depois de falir, papai, quero dizer, esse chefe de família foi para Moscou. Após concluir o ensino médio, eu segui também para lá. Ingressei na faculdade de Medicina. Como tinha grande habilidade com as palavras, como sabia tecer histórias, comecei então a escrever contos humorísticos para jornais e revistas populares. Logo ele, eu, estava sustentando a família com o que recebia pelos textos.

    – Bela história. Edificante. Mas, voltando ao nosso caso concreto, o senhor sente que é, verdadeiramente, esse escritor russo de contos de humor ou o senhor sabe que é apenas o corpo de um cidadão brasileiro dominado pela mente de um contista estrangeiro?

    O homem descarnado demorou a responder.

    – Sinceramente, eu não saberia lhe responder. As duas situações são igualmente plausíveis. Talvez até mesmo possam ocorrer simultaneamente. Neste exato momento, porém, sinto mais forte a impressão de que sou um pobre corpo ocupado. Mas, é claro, sei também que sou escritor e que escrevo em russo. Tentarei me explicar: o corpo é meu e meus movimentos são orquestrados pelo meu cérebro, no entanto, no fundo, sinto que as minhas palavras não são propriamente minhas. Elas pertencem a Anton. Por isso, se, por acaso, lhe disser algo que possa parecer zombeteiro, não se irrite, fique certa de que essas palavras me foram sopradas por ele.

    Os dedos da mulher corriam céleres, entusiasmados, por cima das teclas, perseguindo as palavras que o homem barbado pronunciava.

    – Nunca vi alguém descrever com tal riqueza de detalhes a sua…

    – Loucura, doutora?

    – Talvez. Mas, se for, será passageira. O senhor sairá dessa logo, eu lhe garanto. O senhor vai se livrar de Anton. Mas, agora, me explique uma coisinha. Como o senhor sente a presença dele, do russo?

    – É como ele fosse uma segunda pele, uma pele que está por baixo da minha pele, da verdadeira. O corpo físico de Anton se resume a essa pele. Ele não tem ossos ou carne. Porém meu cérebro pertence a ele, inteiramente.

    – Tenho uma curiosidade. O senhor me disse que ele, o russo, escrevia historinhas engraçadas. Quando ele pensa em algo divertido, o senhor dá uma gargalhada?

    – Não. No máximo, eu sorrio.

    – Quantos anos ele tem hoje?

    – Quarenta. Devo morrer em breve.

    Nessa passagem, pela primeira vez, o homem ergueu os olhos e os fixou na médica. Encarando-a, parecia esperar um desmentido porque era claro, pelos cabelos, barba e bigode quase totalmente brancos, que ele era já um sexagenário.

    – O que eu quero é que me explique como ele, sendo russo, um russo que certamente não conhece o português, consegue se expressar através do senhor.

    – Ele manipula minhas cordas vocais. É com surpresa e estupefação que percebo as frases que me escapam por entre os lábios. As palavras, obviamente, saem em russo do cérebro dele, mas ao chegarem às minhas cordas vocais automaticamente transformam-se em vocábulos portugueses. Há um programa de tradução instantânea no meu aparelho fonador.

    Depois de anotar aquela resposta, a psiquiatra voltou seus inquisidores olhos azuis para os negros olhos sonhadores do homem.

    – Como ele, o russo, consegue entender as minhas perguntas?

    – Há um segundo aparelhinho de tradução simultânea, instalado nos meus ouvidos. É semelhante ao que se encontra nas minhas cordas vocais, mas de funcionamento inverso.

    – Ótimo, ótimo, o senhor até aqui respondeu bem às minhas perguntas, mas agora eu preciso me aproximar da raiz mais profunda da questão… Então, indago: o senhor Anton se metia com política?

    – De jeito nenhum. Sou apartidário, apolítico. Digamos que sou alguém que só defende um valor: a liberdade. Libertários conscientes como eu não podem pertencer a igrejas, partidos ou qualquer outra agremiação.

    – E com mulheres?

    É importante, nesse ponto, termos em mente que o sobrenome da médica, em alemão, significa cruz de fogo.

    O homem abriu lentamente os braços, como que para ser crucificado. Suas orelhas de abano e bochechas chupadas foram tomadas por uma constrangedora vermelhidão. Era como se ele tivesse recebido um sopro de fornalha na face. Fechou os braços, brusco. Anton quis responder rapidamente, para livrar-se daquela pergunta indecente, mas não conseguiu articular uma só palavra.

    – Esse é o ponto central – prosseguiu a médica, e o homem imaginou ver grossos fiapos de uma gosma esverdeada de concupiscência escorrendo pela comissura dos lábios dela. – É sempre ele, sexo. O nosso obscuro lado animal. O acasalamento. Reprodução ou prazer? Não importa, sempre acaba mal… Enfim, em português, me responda: o doutor Anton comparecia?

    O homem enterrou-se na cadeira. Que grosseria! Comparecia? Era termo aceitável em uma consulta médica?

    Anton quis falar, demonstrar sua muita indignação. Comparecia? Era totalmente inadequado utilizar uma expressão tão rasteira em uma conversação com um escritor russo. Por que a doutora não usava a delicada expressão bíblica: conhecer?

    – O ponto nevrálgico é sempre o aparelho genital, a genitália – silvou a psiquiatra. – Mais adiante nos concentraremos nele.

    Adriana Kreuzfeuer encerrou a consulta fechando os olhos e trançando os dedos das mãos sobre o teclado, sinalizando claramente ao paciente que sequer lhe daria um rápido aperto de mão.

    O homem alto e magro de tristonhos olhos negros concluiu que a doutora Adriana talvez estivesse muito cansada. Ou com vontade de fazer algo muito excitante. Retirar o esmalte lascado das unhas, por exemplo.

    Ainda de olhos cerrados, a psiquiatra soltou um jato de ar fazendo biquinho com os grossos lábios sensuais e lascou na linguagem dos homens das cavernas:

    See you later.

    Quando levou o tronco à frente, no movimento de quem vai se erguer da cadeira, ou pular sobre a médica, o homem sentiu o pouso em seu ombro da mão pesada do enfermeiro, que havia permanecido de pé, imóvel e silencioso, atrás dele, atrás de Anton, ao longo da entrevista, mão que se fechou triturando ossos de omoplata e que chegou acompanhada por um vozeirão cavernoso:

    – Bora nessa, chefe, deu por hoje!

    Lourenço Cazarré é escritor

    Texto originalmente integrado no livro Kzar Alexander, o louco de Pelotas


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

    APOIOS PONTUAIS

    IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

    MBWAY: 961696930 ou 935600604

    FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

    BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

    Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

    Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.

  • A arte excêntrica dos goleiros

    A arte excêntrica dos goleiros


    «O diretor, que entendia pouco de esportes embora aprovasse com entusiasmo suas virtudes associativas, ficava ressabiado com a escolha que me levava a sempre jogar de goleiro no futebol, “em vez de correr junto com os outros rapazes”.

    A Pessoa em questão, Vladimir Nabokov.


    Alto, de largos ombros, o homem enchia a saleta do casebre deixando pouco espaço para a jovem jornalista que, diante dele, parecia ainda menor e mais gorducha.

    Entusiasmada, ela falava da sua fascinação pelas grossas camisetas coloridas, as luvas imensas, a solidão, a altivez dos goleiros.

    O homem sorria timidamente ao mesmo tempo em que recuava diante da metralhadora verbal.

    – Sente-se, milha filha – disse, e deixou-se cair numa poltrona.

    A mocinha explicou que estava ali com a missão de entrevistá-lo, para uma edição especial do jornal sobre os grandes craques do passado. Ele, como o maior goleiro da cidade, o maior de todos os tempos, tinha que ser ouvido, de qualquer jeito.

    – O cafezinho já vem.

    a soccer goalie's glove laying on a soccer field

    Por um instante ela se calou, o tempo necessário para localizar o sofá. Sentou-se, já falando:

    – Não vamos fazer apenas mais uma daquelas reportagens babacas, saudosistas, melosas. Isso nunca! É um trabalho sério, para incentivar o surgimento de novos talentos.

    Os olhos dela correram pela pequena peça talvez em busca de algo com que colorir depois sua narrativa, mas não havia um só quadrinho ou um calendário nas paredes nuas.

    – Quero saber como tudo começou para o senhor, isto é, a sua paixão pelo futebol, o jogar de goleiro. Em suma, qual é a sua lembrança mais remota?

    O homem suspirou fundo. As grandes mãos calosas, de juntas grossas, dedos tortos, espalmaram-se sobre as coxas. Os pés dele afastaram-se um pouco.

    Tem gestos mansos de gato, anotou a moça no caderninho.

    O longo silêncio pareceu desconcertar a jornalista, que tentou acomodar-se melhor no sofá de molas duras.

    Então, a mulher dele chegou com as xícaras de café na bandeja. Era uma mulata alta de meia idade, ainda bastante bonita, tristonha.

    goalie about to catch the ball

    – Esta moça é uma jornalista – disse ele.

    A garota fez menção de levantar-se, mas a mulher já deixava a sala, escorregadia.

    A jornalista sabia – disso tinha sido informada pelos colegas – que a mulata era lavadeira. Sabia que era ela quem ganhava o dinheiro para a cerveja que ele, religiosamente, ia tomar todas as tardes no centro da cidade. Era ela quem mantinha impecavelmente limpas as roupas puídas que ele vestia.

    Em silêncio, beberam o café.

    – Eu já era um rapazinho de doze anos quando assisti pela primeira vez a uma partida de futebol. Veja só, que coisa! Foi uma partida de veteranos e num campo de várzea!

    O rosto da jornalista se iluminou e ela ligou rapidamente o gravador.

    – Eu tinha chegado pouco antes, vindo do campo, para estudar interno no colégio dos padres. Meus pais queriam que eu entrasse para o seminário, depois. Era um bom jeito de enganar a miséria. Bem, num fim de semana, pedi licença ao diretor para visitar um tio meu, solteirão, eletricista, que morava aqui na cidade.

    O goleiro explicou então que admirava muito aquele tio que havia tido a coragem de abandonar as terras do avô e as rotinas massacrantes da agricultura para tentar a vida na cidade.

    Na época, ele achava que nada podia ser mais interessante do que o trabalho do seu tio que, todo dia, percorria a cidade, montado em uma bicicleta, oferecendo seus conhecimentos de eletricista, adquiridos num curso por correspondência.

    people gathering at soccer field

    – Para um moleque criado na roça, entre porcos e espigas de milho, como eu, ser eletricista era uma profissão fantástica!

    Mas, naquela tarde remota, ele descobriria que o irmão de seu pai podia fazer com as mãos algo ainda mais impressionante do que consertar aparelhos desarranjados.

    – Na garupa da sua bicicleta, o tio me levou a um desses campos de vila, com traves meio tortas, linhas laterais apagadas e grandes falhas no gramado. Mais do que falhas, buracos mesmo, onde a água empoçava nas chuvas. Nas duas áreas pequenas, nem um fiapo de capim, só a terra cinzenta e dura. Um dia o meu tio me disse: a seara dos goleiros só produz barro.

    O velho goleiro se demorava nos detalhes daquele primeiro jogo: era uma tarde comum de inverno, de sol fraco e nuvens baixas, e o vento cortante que vinha do rio assobiava furioso pelo meio dos renques de eucaliptos plantados por trás das goleiras.

    – Sentados debaixo do arvoredo, os veteranos começaram a se fardar. Todos usavam caneleiras, joelheiras, tornozeleiras e coxeiras porque eram velhos arrebentados. Pareciam gladiadores de cinema.

    Furiosamente, a jornalista tomava notas. Era uma garota muito imaginativa. Conseguia vislumbrar os jogadores sob os farfalhantes eucaliptos: gladiadores que só protegiam as pernas, as canelas marcadas pelos golpes das travas, os joelhos artrosados, os tornozelos azulados de antigas lesões. Sob os eucaliptos, ali onde o vento silvava mais forte, pensou ela, devia reinar uma excitação de vestiário de quartel – piadas sujas e gargalhadas. Atletas de cabelos brancos, calvas luzentes, rabiscou na caderneta.

    – O mais novo deles beirava os cinquenta anos e o mais velho tinha sessenta e lá vai pedra!

    Depois ele contou a ela que aquele campo pertencia a um clube de bairro, cujos dirigentes guardavam as manhãs de domingo para os times de guris e as tardes para os jogos de campeonato. Aos velhos, cediam as tardes de sábados.

    – Meu tio era goleiro.

    closeup photography of goalpost during daytime

    A repórter voltou-se interessada para o entrevistado. Tentava imaginar como seria o menino loiro que havia se transformado naquele homem de rosto inexpressivo, o garoto que com muita atenção observava os movimentos do tio: ajeitando as joelheiras esfiapadas, vestindo as meias com cuidado para evitar bolhas, apertando os cadarços da chuteira e ajustando as negras luvas de couro.

    – Estávamos os dois um pouco apartados dos outros. Então, de repente, de graça, o meu tio soltou uma frase que eu nunca vou esquecer, mesmo que viva mil anos. Ele me disse assim: um goleiro não se mistura.

    O homem contou à jornalista que, depois, enquanto esperavam que os outros acabassem de se arrumar, o tio lhe falou dos jogadores. Um por um. Eram como personagens de um livro ou de um filme. Havia um que chamavam de Doutor. Estava bem de vida, era dono de automóvel. Mas fora menino pobre e só cursara Medicina graças ao futebol. O mais gordo de todos, aquele que amarrava as chuteiras, curvado sobre a barriga, jogara na capital por quatro ou cinco meses. Não suportando a saudade da terra, voltara, deixando atrás uma possível carreira de sucesso.

    – Aí o tio me disse: Estás vendo aquele negro ali? É, o careca grisalho. Ele mesmo. Aquilo é mais traiçoeiro que gato de rua. Ele nunca chuta onde a gente está esperando.

    Por muitos e muitos anos, o menino tornaria a ver aquele homem quando fosse ao centro da cidade, porque ele estava sempre por trás do balcão, na sala escura do cartório, com os óculos acavalados no nariz, escrevendo naqueles livrões que tomavam toda a mesa.

    – Todo veterano é barulhento, gozador, matreiro, piadista e falastrão. Mas o meu tio, não. Era calado.

    A jornalista estava agora de braços cruzados, escutando, rosto sereno. Toda a ansiedade havia se afastado dela. Pensava no menino de olhos claros sentado sob os eucaliptos, fiel depositário dos gestos e das palavras de homens reunidos ao acaso, num sábado esquecido, num campo perto de um rio, numa cidade incógnita.

    – Então começou o jogo.

    soccer field

    A bola rolou e os homens se moveram também porque ela era como um imã e eles como pequenos bonecos de ferro que se voltavam invariavelmente para onde ela rolava. Eram veteranos, demasiado velhos para correr, gordos na maioria, deselegantes, lerdos e sarcásticos. Cuspiam palavrões pesados se os passes saíam errados, se o lançamento era longo ou curto demais, se a bola vinha com muito efeito. Bola que teimava em bater nas canelas, nos joelhos, coisa viva que não aceitava ser dominada. E penosamente se levantavam para enfiar o dedo na cara dos outros e para gritar palavrões ao juiz e à senhora sua mãe. Xingavam-se. Rindo, recriminavam-se por beber muito e comer demais.

    – Quando o juiz apitou o final do primeiro tempo, eles voltaram para o meio dos eucaliptos. No início, beberam só a água que tinham trazido num garrafão. Mas, depois, um deles destampou uma garrafa de canha. Davam talagaços. Uns faziam caretas, outros se arrepiavam. Eu achei muito engraçado. Mas o meu tio não bebia.

    Uma sombra correu pelo pálido rosto da repórter. As lembranças do homem alto, de certo modo, eram também dela. Então, naquele momento, ela começou a escrever, mentalmente, a sua reportagem. Começaria pelo intervalo do jogo de veteranos. Chegou a ver a garrafa de aguardente passando de mão em mão, e dois ou três deles, já com o fôlego recuperado, acendendo cigarros. As palavras acavalavam-se dentro dela: homens arfantes, deitados na relva, a fitar fixamente as nuvens de chumbo que, desgraciosas, se arrastavam pelo céu gris, talvez até dormitassem, exaustos, ninados pelo vento que rugia por entre os eucaliptos, velhos homens jogados sobre a relva, inertes.

    – O segundo tempo foi pior.

    Os jogadores sufocavam depois de arrancadas de vinte metros, chutavam a grama em vez da bola, puxavam da camiseta do adversário, passavam rasteiras por detrás, davam cotoveladas, empurrões. E quando a bola vinha pelo alto reclamavam também porque não conseguiam saltar para a cabeçada.

    – Quando o juiz apitou o final da partida, já era quase noitinha. Não se sabia mais quem era quem. O barro escuro tinha igualado os uniformes.

    A jornalista podia vê-los: exaustos, silenciosos, acabrunhados trocando a umidade do campo pelo frio dos eucaliptos; imaginou raios desenhando animais agonizantes no céu escuro. Viu depois como todos eles se foram levando vivas na mente as cenas daquele jogo, cenas que logo se misturariam e se confundiriam com outras, mais antigas, de gols perdidos, de passes errados e de lançamentos imperfeitos.

    – Nem me lembro quem venceu, se foi o time do meu tio ou o outro. Goleiros nunca se interessam pelo resultado. Goleiros gostam é de jogar.

    People Playing Soccer on Grass Field during Day

    Por um bom tempo permaneceram em silêncio. O homem de ombros largos e a jovenzinha rechonchuda compartilhavam a mesma imagem evanescente: um homem esgrouviado debaixo das traves, afastado dos outros todos como se fosse o habitante de um mundo diverso, consciente de que viriam atacá-lo, mas não se importando com isso.

    – Meu tio era um pouco encurvado, como todos os homens muito altos, mas, mesmo assim, tinha o porte mais garboso de todos eles.

     – Disso sabemos todos: o goleiro é sempre aristocrático – disse a jornalista e se pôs de pé.

    Seus movimentos eram nervosos, porque tinha pressa em chegar à redação. Queria escrever logo as palavras que se atropelavam no seu coração: um homem alto, solitário sob a goleira, à espera, olhos fuzilando, o corpo como que retesado, os músculos querendo explodir, movendo-se sem cessar sobre o maldito semicírculo de lama negra como animal aprisionado em jaula invisível.

    – Pois é – resmungou o homem. – Um goleiro não se mistura.

    Lourenço Cazarré é escritor


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

    APOIOS PONTUAIS

    IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

    MBWAY: 961696930 ou 935600604

    FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

    BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

    Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

    Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.

  • Uma vida a servir a causa pública 

    Uma vida a servir a causa pública 

    Pousa o copo e a garrafa. Abre a janela e debruça-se sobre o parapeito. A brisa fresca no rosto sossega-o. Outubro. O fim do calor insuportável do verão do sul. A chegada discreta do outono. Olha para baixo e, por entre as copas das árvores que se começam agora a desnudar, vislumbra a avenida alumiada pelo branco quente dos candeeiros. Está bonita, a cidade. Romântica. Orgulhoso da sua obra, leva o copo à boca.  Pega na garrafa e lê o rótulo. Tem bom gosto o senhor vereador, pensa. O brandy reconforta-lhe a garganta. A vista da penthouse é encantadora. Chamar-lhe penthouse pode ser exagerado. Mas soa bem melhor do que “último andar”. Vendeu-lha um rapaz muito correto. Até lhe fez uma atençãozinha. O pai é construtor. Pessoa honesta e trabalhadora. Mas não há seriedade que resista à maldade e à má-língua dos invejosos. É a pequenez da província. Não se pode contar nada a ninguém.

    Copo numa mão, garrafa na outra, dirige-se ao terraço. Daqui a vista expande-se até ao centro da cidade. Ao fundo da avenida, os holofotes iluminam um conjunto de edifícios em remodelação. Luxuosos, charmosos, exclusivos. Isto sim, é uma boa aplicação dos fundos europeus. Devolver a cidade aos munícipes. Promover a habitação na Baixa. Em redor, um belo jardim que veio substituir o inestético parque de estacionamento. Houve quem criticasse a decisão. Mas basta olhar para perceber como valoriza o espaço. Além disso, é inegável que a cidade precisa de mais espaços verdes. Uma questão de saúde pública, até.

    Photo of Alcoholic Beverage on Top of Counter Top

    O Presidente já consegue imaginar-se no novo terraço. Jacuzzi. Vista mar. Não tinha pensado mudar-se, mas o construtor fez-lhe uma proposta irrecusável. E logo agora que estava a terminar o mandato para não dar azo a falatórios.  Vendeu-lho a preço de custo. Uma joia de homem. Sabe bem o que o dinheiro custa a ganhar.

    Olha para o telemóvel. Está na hora. Termina o brandy e encaminha-se para o escritório. Sente-se exausto. Os dias têm sido longos e difíceis.  Abre a agenda. Olha para a lista de telefonemas a fazer e parece-lhe não ter fim, mas há que garantir o apoio à candidatura:

    –  Pois é, Meritíssimo. Pois é. O meu mal é não saber dizer que não. Uma vida a servir a causa pública… Conto então com o apoio do meu amigo, certo?

    Deputado da nação. Quem diria!

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

    APOIOS PONTUAIS

    IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

    MBWAY: 961696930 ou 935600604

    FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

    BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

    Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

    Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.

  • As três regras de vida do Donald

    As três regras de vida do Donald

    O filme ‘The Apprentice – A História de Trump’, é uma ficção sobre os primeiros anos da vida daquele que foi o 45º Presidente dos Estados Unidos da América (EUA) e pretende ser o 47º, caso vença as eleições na primeira terça-feira de Novembro, dia 5. Poderá um filme mudar o sentido de voto do eleitor indeciso?

    Após o visualizar, numa ante-estreia dedicada apenas a jornalistas, vemos que não há propriamente uma novidade face a tudo o que já foi escrito e mostrado em documentários sobre aquele que foi eleito Presidente dos Estados Unidos em 2016, perdeu a reeleição em 2020 e tenta agora a segunda chance.

    Isso, no entanto, não tira o interesse ao filme. A obra tem o condão de nos levar ao ambiente da Nova Iorque dos anos 70 e 80 – é esse o limite temporal representado, sem qualquer referência aos anos mais recentes -, de modo a percebermos a construção e a aprendizagem do homem que quer voltar a sentar-se na Casa Branca. Tem representações notáveis de Sebastian Stan como Trump e, especialmente, de Jeremy Strong, no papel de Ron Cohn, o advogado sem escrúpulos que “constrói” o “aprendiz”. 

    Ali Abbasi, o realizador iraniano nascido em 1981 a viver em Copenhaga, contou com Gabriel Sherman como argumentista e, este, é um jornalista que exibe no seu curriculum a biografia de Roger Ailes, presidente da Fox News, o canal de televisão dito pró-Trump. O livro, publicado em 2014, tem o título “The Loudest Voice in the Room: How the Brilliant, Bombastic Roger Ailes Built Fox News – and Divided a Country”, que se pode traduzir para algo como: “A Voz Mais Alta na Sala: Como o Brilhante e Bombástico Roger Ailes Construiu a Fox News – e Dividiu um País”.  A eleição de Donald Trump, dois anos depois, sabe-se, dividiu ainda mais o País.

    Esperava-se então, dado o material original, que este fosse um filme que contribuísse ainda mais para a destruição da imagem de Trump. Uma produção prejudicial à sua reeleição, sobretudo dada a oportunidade da estreia – menos de um mês antes da ida dos americanos às urnas. Só que o filme é um filme. É uma obra de arte ficcional inspirada em factos verdadeiros e, mesmo com a cena onde Trump viola Ivana – coisa que o verdadeiro sempre negou -, o sentimento que fica é o de um retrato humano.

    O filme é neutro e sujeito a várias interpretações. E isso, com certeza, vai representar um desafio a quem o for assistir. Se com Trump sempre se tratou do “ama ou odeia”, será interessante saber se, quem o odeia, não irá relativizar a sua opinião (se quiser ser honesto consigo próprio), enquanto quem gosta, provavelmente irá ficar a gostar ainda mais – existe sempre uma certa dose de exagero em quem ama. Agora, caso haja na América dividida quem ainda esteja, nesta fase da campanha, a ponderar o seu voto, quiçás esta produção, apesar de ficção e com as devidas cautelas factuais, possa leva a uma decisão em relação às qualidades do homem da “Arte do Negócio”.

    man in black suit standing beside woman in black dress

    A cena inicial do trabalho de Abbasi e Sherman é o célebre discurso de Richard Nixon, a 17 de Novembro de 1973, onde o então presidente norte-americano, no auge do escândalo do Watergate, garantia aos seus cidadãos que não era um vigarista – “I’m not a crook”. A seguir, vemos uma Nova Iorque falida e violenta, onde um jovem Trump tem terreno fértil para cumprir com as suas ambições pessoais.

    E, para o seu sucesso, vai encontrar em Ron Cohn o homem que lhe ensinará três regras de vida:

    1 – Atacar, atacar, atacar;

    2 – Admitir nada, negar tudo;

    3 – Independentemente do que acontecer, reclamar a vitória e nunca admitir a derrota.

    Trump é o político que sabemos que vai cumprir com as regras. Já o demonstrou durante os primeiros quatro anos em que exerceu o poder e, ao contrário de muitos políticos antes de si, nunca enganou ninguém.


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

    APOIOS PONTUAIS

    IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

    MBWAY: 961696930 ou 935600604

    FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

    BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

    Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

    Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.

  • Indonésia: um paraíso a descobrir

    Indonésia: um paraíso a descobrir

    Raquel Rodrigues regressa ao PÁGINA UM. Nesta edição, partilha mais uma viagem de sonho, num formato de fotorreportagem. Destino: Indonésia.


    É talvez o destino mais sonhado por viajantes. No meu caso, já viajei muito e contabilizo muitos destinos já ‘carimbados no passaporte’. Mas este é um destino verdadeiramente único e há muito sonhado por mim.

    Conto pelos dedos de uma mão os países longínquos que gostaria de voltar a visitar. A Indonésia é, sem dúvida, um deles. Assim que cheguei ao aeroporto de Bali, senti o calor e o aroma que me deixaram aquela sensação que adoro, de pertença aos lugares.

    Bali

    A mais famosa ilha na Indonésia é também chamada Ilha dos Deuses. A conjugação entre o animismo e o hinduísmo antigos de Bali cria uma cultura distinta que permeia todos os aspectos da vida na ilha.

    Senti que estava definitivamente pronta (a ansiar, mesmo) para ver e experienciar tudo o que a ilha tinha para me oferecer.

    A paisagem única da ilha está replecta de cascatas imponentes, vegetação que nos assombra e uma espiritualidade que é palpável e que nos acolhe. São milhares de templos, majestosos terraços de arroz, património histórico e cultural riquíssimo e praias paradisíacas de águas quentes. A gastronomia é maravilhosa e o povo é muito simpático.

    Percebi o porquê de os deuses escolherem Bali para viver.

    Depois de Bali, e para quem quer sair do caos de Ubud e Bali e procura os postais paradisíacos, não se pode perder as ilhas Gilli, o snorkling com tartarugas, mantas e estátuas.

    Sem carros, nem trânsito. Tudo é bom. Os finais de tarde, os amanheceres, o peixe e marisco e as pizzas da mãe Mamma Pizza Gilli Air.

    Aqui, o tempo pára.

     Ilha Gilli Meno

    Imperdível é também a ilha de Java, com os seus vulcões e a paisagem que nos esmaga.

    A ‘cereja no topo do bolo’ da viagem foi o templo Candi Borobudur, o maior e mais complexo templo budista. Situado na ilha de Java, o templo é considerado a maior atracção para visitantes em toda a Indonésia.

    Obrigada por tudo e por tanto, Indonésia.

    Estamos de coração cheio.

    Voltaremos! Uma viagem com esta qualidade, em pleno Inverno… Já só sonhará com uma próxima. Deixo o aviso.

    Sugestão de roteiro:

    • 6 dias em Bali (Ubud, Templos Unesco, Rota do Chá e do café, Uluwato, Baía de Jimbaran)
    • 4 dias nas ilhas: Gilli Air e Gilli Meno
    • 2 dias em Lombok
    • 3 dias em Java

    Dicas de viagem:

    • Quando ir: entre Junho e Outubro
    • Convém comprar a viagem de avião em Janeiro
    • A três meses da viagem, deve comprar bilhetes de avião entre ilhas: Bali – Java – Bali
    • A um mês da viagem, deve comprar bilhetes para o ‘fast ferry’: Bali – Gilli Air
    • Para fazer ’tours’, sugiro que alugue um carro com motorista: 50 euros/por dia (inclui carro, motorista, combustível e portagens)
    • Para se deslocar do hotel para o centro ou para as praias, aconselho ir de Uber

    Raquel Rodrigues é gestora, viajante e criadora da página R.R. Around the World no Facebook.


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


    PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

    Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

    APOIOS PONTUAIS

    IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

    MBWAY: 961696930 ou 935600604

    FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

    BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

    Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

    Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.