Etiqueta: Cultura

  • O estado-maior

    O estado-maior


    “… Meus senhores”, anunciou o marechal Rommel ao seu Estado-maior reunido num amplo salão do segundo piso da torre YMCA, enquanto o seu ajudante, o capitão Aldinger, ajustava um mapa de Jerusalém e arredores sobre a mesa. “…Acabámos de conquistar a cidade mais volúvel do mundo e cujo nome, dizem-me, significa santa paz. Aqui vivem cristãos, judeus e muçulmanos, de várias denominações e obediências. Têm ódios que veem da noite dos tempos e dedicações que temos de compreender se os quisermos dominar. Os nossos antecessores britânicos não tiveram muita sorte nisso”.

    Pelas janelas avistava-se o parque de cedros, plátanos e ciprestes que ornamentavam os jardins da residência e, à distância, via-se a cidade velha de Jerusalém com as suas cúpulas, minaretes e torres. Naquela reunião, estavam os grandes nomes do Exército Panzer de Afrika: Gause, chefe do estado maior: Bayerlein, comandante do Afrika Korps, Westphal, chefe do estado maior; comandantes das grandes unidades como Marcks, Buelowius, von Thomas, von Sponeck. Todos sabiam o que o marechal deles esperava; uma exposição clara e franca das dificuldades e soluções. Sabiam que Rommel dividia os militares em inteligentes, tolos, preguiçosos e ambiciosos. Os tolos e ambiciosos eram perigosos e livrava-se deles. Aos tolos e preguiçosos, atribuía tarefas inócuas. Aos espertos e preguiçosos, fazia-os seus comandantes, zelando para que cumprissem ordens. Aos ambiciosos e inteligentes, colocava-os no seu estado-maior, pois queria ajuda. E eles ali estavam, com a bandeira que serviam, sem nada omitirem dos riscos e ameaças.

    A Via Juliana e a torre do YMCA (Young Man’s Christian Association) em Jerusalém.

    “… Srs. Oficiais”, continuou Rommel: “… O comandante em chefe decidirá como entender; mas tendes de lhe apresentar as possibilidades. O coronel Westphal vai expor a situação, e os desafios para mantermos Jerusalém, antes de passarmos ao nosso próximo objectivo”. 

    Um rumor aprovador percorreu a sala. O coronel Westphal de porte atlético, iniciou a exposição com a determinação do seu chefe. “… O Panzer Armee Afrika está ainda demasiado fraco para uma nova ofensiva, e os britânicos demasiado frustrados para qualquer novo ataque. Tanto podemos continuar a ofensiva para leste pela Jordânia e Iraque até aos poços de petróleo retirando aos Aliados esse nervo da guerra; como podemos seguir até junto à fronteira turca e ao Irão, envolvendo a União Soviética pelo flanco sul e assim levarmos a guerra até às paragens do Volga e apoiar o 6º exército que marcha sobre Estalinegrado…”

    Seguiu-se um debate acalorado sobre este dilema.

    “… Temos de aguardar que Berlim se pronuncie”. A linha ofensiva sobre os campos petrolíferos é insustentável, …” Os territórios do Cazaquistão estão demasiado longe.” “… Hitler prefere a guerra económica”, declarou o general von Thomas. ”… Ele quererá o petróleo”.

    O briefing prosseguiu com o general Gause. “… Até aqui, combatemos sobretudo no deserto, com populações fugidias. Agora estamos numa malha urbana onde existem organizações paramilitares, árabes e judaicas. E nada é fácil com elas, prosseguia o general Gause, o intelectual do grupo, com vastos cabedais de conhecimentos históricos. “Os muçulmanos são os antigos moradores da terra … que se tornaram cristãos com a ascensão do cristianismo e muçulmanos com a chegada do Islão” … A dispersão dos judeus para fora da Terra de Israel após a destruição do Segundo Templo pelo imperador romano Tito é um “erro histórico”. Muitos dos “trabalhadores da terra permaneceram para trás e converteram-se ao cristianismo e ao Islão. Então, interrompeu Rommel, os árabes palestinos são os irmãos de sangue dos judeus.

    A torre da YMCA em Jerusalém, concluída em 1933. Do mesmo arquitecto do Empire State Building.

    Assim é… Palestina é um nome romano que ficou da Antiguidade para indicar estes territórios em que nos encontramos a que os judeus chamam haaretz Israel e os cristãos chamam de Terra Santa E em que nos afecta isso? “…A população da Palestina não tem uma postura unânime face a nós, como não a tinha face aos britânicos,”, respondeu Gause.

    O chefe do estado-maior do AK, o general Bayerlein, um duro de roer, afirmou que muitos líderes e figuras públicas muçulmanas consideravam que a vitória do Eixo seria a forma de garantir que a Palestina jamais seria restituída aos sionistas e aos britânicos.  “… O SS-Reichsfuehrer Himmler, apóstolo das teorias raciais de Hitler, apoia o Grande Mufti de Jerusalém, Mohammad Amin al-Husseini, na luta contra a hegemonia britânica. Vamos ter os muçulmanos todos do nosso lado. E devemos explorar isso ao máximo…”

    “…Não diga disparates”, atalhou o marechal Rommel. “… Devem existir mais de 500.000 muçulmanos a lutar pelos Aliados contra nós. 300.000 marroquinos e argelinos combatiam em França. Eu mesmo lutei contra essas forças coloniais francesas na passagem do Somme em Maio de 1940. E centenas de milhares de muçulmanos lutam no Exército britânico da India. Até os soviéticos têm soldados muçulmanos. Mas já vi que tu, Bayerlein, não gostas do susto que nos deu a 4ª divisão indiana em Tobruk”. Os circunstantes entreolharam-se e riram. Bayerleien não se deu por achado. “…Até capturei o brigadeiro Clinton dessa 4ª divisão”. “… Que depois fugiu, replicaram. “… Mas foi recapturado”, retrucou… “Mas voltou a fugir em Itália...” Rommel não ligou à troca de picardias. Parecia cismar em algo de diferente.

    Gause esboçou um sorriso retorcido. Fritz (era o primeiro nome de Bayerlein) é melhor não ires por aí… Saber quem entre árabes e judeus está por nós, é quase impossível.  Até os sionistas colaboraram com o Partido em meados dos anos 1930 e Goebbels mandou cunhar uma medalha em 1935 comemorando a aliança sionista-nazista.

    Forças em parada no pátio da YMCA

    Uma jovem serviçal que entrou procurando não chamar a atenção. Os seus cabelos escuros formavam uma trança e tinha o corpo bem torneado. Não aparentava mais de vinte e cinco anos, mas nos olhos fulgia uma sabedoria ancestral. Serviu em silêncio um sorbet de limão a todos os oficiais e ia retirar-se quando subitamente Rommel lhe perguntou. “… A menina, espere um pouco”. A jovem estacou, sem ostentar preocupação. “… Qual o seu nome, por favor?” Era Ester. “… Muito bem, Ester, se eu lhe perguntar se os árabes estão por nós, alemães, que diria?” A jovem respondeu em perfeito alemão: “… Sr. Marechal: apenas sei que nesta cidade cada um está por si próprio e o resto conta pouco”. Rommel agradeceu a resposta.

    O briefing se aproximava do fim. Os sionistas, a Yishuv – continuou Gause – vive em grande preocupação desde Tobruk. Falam em duzentos dias de ansiedade. Com apoio britânico, os judeus sionistas formaram o Palmach – uma unidade de élite pertencente a Haganah – grupo paramilitar composta de tropas de reservacom o fim expresso de nos combater.

    “…São, pois o nosso principal inimigo, acentuou Bayerlein. “Mas que sabem eles fazer?”. “…. Atentados terroristas, sobretudo. Foram treinados por Orde Wingate. “…. Wingate, aquele capitão britânico que Churchill chamou para o enviar contra os japoneses em Burma?” “…. Esse mesmo legou ao Palmach as tácticas de guerrilha que vêm do tempo de Lawrence em 1916. Só que Lawrence servia-se dos muçulmanos e Wingate serve-se dos judeus. Os sionistas radicais foram empenhados pelos ingleses em atividades terroristas contra os árabes, mas tanto esfaqueiam árabes, como judeus não-sionistas, ou mesmo ingleses. E agora, temo-los à perna

    Marechal Erwin Rommel ( à esquerda) general Alfred Gause ( ao centro) e outro oficial do Eixo.

    “… Enfim, meus senhores”, concluiu Rommel. “… Como vimos, Jerusalém tem radicais. Os islâmicos de Husseini estão de um lado da barricada. Irgun, Palmach e Hagannah do outro. Esperemos o pior de todos. Teremos que os identificar e neutralizar e procurar quem no meio desta cidade quer as pazes connosco. Quanto ao mais, Berlim decidirá. “

    Houve um rumor de pastas a serem arrumadas quando o coronel Stauffenberg, conhecido como católico, arriscou: Berlim e Deus, Sr. Marechal. “… Deus? Sr. Coronel? Deus marcha com os grandes batalhões” asseverou Rommel, acrescentando com um ar maroto. “…. Mas isso não é razão para que O não visite na sua cidade preferida”.

    O marechal saiu para os seus aposentos acompanhado por Aldinger que lhe perguntou. “… Será que os ingleses nos atacarão?” O marechal tinha pouco a dizer. “… Não travarei batalha se nada ganhar com a vitória. E eu ainda não sei o que posso ganhar em Jerusalém. Agradeceu a Aldinger e, após este ter fechado a porta, sentou-se a uma secretária de mogno e iniciou a breve missiva que todos os dias enviava à sua bem-amada esposa, Lúcia, em Herrlingen. Datou a carta – 2 de Agosto de 1942 – e começou:

    Querida Lu

    Estou bem de saúde e espero que assim estejas tal como Manfred. As minhas primeiras impressões desta cidade são ainda fugidias. Não sei quanto tempo aqui ficaremos, mas tudo me impressiona. Pessoas, árvores, edifícios. Jerusalém é um mistério!

    Teu

    Erwin

    [CONTINUA]


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  • A mulher má 

    A mulher má 

    Vivia no Beco do Espinho uma mulher má. Dizia quem a conhecia que nunca tinha sido melhor:

    — Foi sempre assim. Terá de aprender com a vida. Até lá, temos de ter paciência.

    Certo dia, a mulher adoeceu. O caso era grave. Na vizinhança, todos se apiedaram dela e acorreram a ajudar a família como podiam:

    — Coitados dos pais. É gente boa. Ela é que saiu ruim. O que é que se há de fazer? — comentava-se.

    Não tardaram, porém, a perceber que abusava da generosidade de todos os que a visitavam. Os agradecimentos saíam-lhe a ferros, arrancados da boca pelo olhar severo dos pais envergonhados. Na sua boa fé, a população  acreditou ter chegado o tal ensinamento que a iria mudar:

    — Pobrezita! Ninguém merece uma coisa destas. Não era preciso tanto!

    Recuperada da doença, a mulher retomou os velhos hábitos. A maldade, entretanto mal disfarçada, tomou a sonsice por companheira e ganhou um novo fôlego. E, quando, algum tempo depois, os pais faleceram, partiram com eles os únicos limites que até então conhecia.

    Dois anos mais tarde, a morte, sempre impiedosa e, desta vez, inesperada, arrancou-lhe do colo a única filha.

    — Um golpe destes muda qualquer uma. — pensaram todos. Pensaram mal. Ficou exatamente na mesma. Má.

    Um dia, a mulher zangou-se com uma nova inquilina acabada de chegar ao seu prédio. O objeto da discórdia: vasos e plantas no vão da escada. Coisa grave! Gastou um pacote de sal com as begónias, mas os vasos continuavam no mesmo sítio. Não podia deixar passar a afronta. A sessão de gritos e injúrias que se seguiu também não deu frutos. A vizinha ouviu-a até ao fim, sem qualquer expressão no rosto.  Despediu-se, virou costas e entrou em casa. Fora de si, a mulher correu a escrever uma mensagem em letras raivosas que enfiou por debaixo da porta do 3.º esquerdo. Era, afinal de contas, uma pobre vítima incompreendida. Tinha o direito de se defender. No bilhete, expressava o desejo de que a filha da vizinha tivesse o mesmo destino da sua, só para ver se ela percebia o que custava.

    Os habitantes do Beco do Espinho resignaram-se, então. Deixaram de esperar que a vida lhe pudesse ensinar alguma coisa. Não havia dentro daquela alma o mais pequeno sinal de um ser humano por resgatar. A quem perguntava como estava a mulher depois de tantas provações, os que a conheciam respondiam agora:

    — Má, como sempre. Se mudasse de fora para dentro, era a primeira.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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  • Singapura: Escala de três dias num ‘stopover’ de luxo

    Singapura: Escala de três dias num ‘stopover’ de luxo

    Raquel Rodrigues sugere uma ‘paragem’ rápida em Singapura, numa escala em trânsito para um destino (ainda) mais longínquo.


    Na hora de viajar, vale a pena contemplar os ‘stopover‘: paragens mais demoradas aproveitando escalas em vôos para destinos longínquos. Há alguns que são mais populares entre quem viaja. Mas os viajantes não devem ficar apenas pelos ‘stopovers‘ no Dubai, Abu Dhabi, Catar e Istanbul. São todos ‘escalas’ interessantes, nem que seja para se perceber quais os destinos que não se aprecia tanto. Contudo, Kuala Lumpur e Singapura são imperdíveis.

    Singapura deveria mesmo constar da lista de todos os viajantes. Já no final dos anos 90 do século passado era considerada uma “cidade” do futuro.

    Também conhecida como a pérola da Ásia, Singapura é uma cidade-Estado. O país tem 5,6 milhões de habitantes, e é hoje um dos maiores centros financeiros do mundo. Com o maior número de milionários, é o país mais caro para se viver. De acordo com o poder de compra dos seus habitantes, é o quarto país mais rico do mundo, apenas superado pelo Luxemburgo, Catar e Macau (não sendo um país, é uma região administrativa especial da China, desde 1999).

    Recorde-se que há 50 anos, Singapura era uma ilha pobre, com poucos recursos naturais e que não prometia grande futuro. Depois de deixar de estar subjugada ao domínio britânico e conseguir a independência da Malásia em 1965, Singapura tornou-se um Estado autónomo. Estava então sob a liderança de Lee Kuan Yew, que foi primeiro-ministro durante mais de 30 anos e o “arquiteto” do chamado milagre económico e social. 

    Dependendo da época que se visitar Singapura, o clima húmido e quente poderá ser o que mais dificulta a estadia, pois só apetece estar no interior dos museus e hotéis, protegidos pelo fresco ar-condicionado.

    Fiquei três dias em Singapura e partilho aqui o meu roteiro.

    Podendo, não deixe de ficar no Marina Bay Sands. Foi o meu ‘luxo’ desta viagem. Valeu a pena, pois incluiu acesso a espetáculos e outras experiências, o que acabou por compensar.

    O hotel é maravilhoso, gigante (o que não faz muito o meu género). Mas só ficando alojada no hotel poderia ter acesso à piscina mais alta do mundo, uma piscina panorâmica com vista para toda a Singapura.

    A não perder:

    Marina Bay. É o postal de Singapura e a porta de entrada para este ‘mundo mágico’. As maravilhas arquitetónicas, os edifícios extravagantes e a vista para o complexo do hotel ou os 4 quilómetros de caminho pedonal, faz desta zona a mais bonita e preferida de viajantes. Encontra-se num só local espectáculos de luzes, museus e compras.

    Gardens by the Bay é um parque natural, composto por três jardins à beira-ma: Bay South Garden (em Marina South); Bay East Garden (em Marina East); e Bay Central Garden (em Downtown Core e Kallang). O maior destes jardins é o Bay South Garden. É aqui que se localiza a Flower Dome (maior estufa de vidro do mundo), a Cloud Forest e as maravilhosas Supertree Grove & OCBC Skyway, que oferecem imagens icónicas que têm percorrido todo o mundo.

    Dica: todos os dias, pelas 20h45, o espaço oferece um espetáculo de som e luz que tem como pano de fundo as Supertrees.

    Hotel Fullerton – Fullerton Heritage. O Fullerton Hotel Singapore é um luxuoso hotel de 5 estrelas, localizado na baixa de Singapura e em frente à Marina Bay. Mas o Fullerton é muito mais que um hotel. Originalmente, foi um edifício de escritórios e a central de Correios de Singapura. É considerado o ponto zero da cidade. Hoje em dia, o nome Fullerton significa a cultura de toda uma zona, com diversos edifícios históricos, centros comerciais, hotéis, restaurantes, passeios marítimos, que, em conjunto, compõem a Fullerton Heritage. O local é de visita gratuita e vale a pena a visita.

    Jardim Botânico de Singapura. Singapura é a ‘cidade-jardim’. O Jardim Botânico é o primeiro património da Unesco no país. Além de ser um local recreativo para fazer jogging, almoçar ou descansar, é também um centro de pesquisa botânica e agrícola. O espaço é enorme e contempla o National Orchid Garden (o maior jardim de orquídeas do mundo), alguns museus como o SBG Heritage Museum, que apresenta diversas exposições, e o Jardim Infantil Jacob Ballas, onde as crianças podem brincar e realizar atividades pedagógicas tendo por base a vida das plantas. 

    Merlion Park. O mítico Merlion (cabeça de leão e corpo de peixe) é o ícone nacional de Singapura. O corpo simboliza o início humilde de Singapura, como vila de pescadores, e a cabeça o nome original de Singapura, “Cidade do Leão” em malaio. A estátua tem quase 9 metros e pesa 70 toneladas. É um dos locais turísticos mais procurados e um marco de Singapura.

    Singapore Flyer. Localizado no coração da Marina Bay, o Singapore Flyer é a maior roda gigante de observação de toda a Ásia e a segunda maior do mundo. Do topo, consegue-se ver praticamente toda a cidade e em dias de boa visibilidade, a Malásia e partes da Indonésia. Tem 165 metros, 28 cápsulas de vidro e cada volta demora cerca de 30 minutos.

    Museu ArtScience. No coração de Marina Bay Sands, encontramos o Museu de Arte e Ciência, um testemunho da fusão de arte e tecnologia. Esta obra-prima arquitetónica, projetada pelo arquitecto Moshe Safdie, apresenta um formato impressionante inspirado na flor de lótus, que integra perfeitamente os mundos natural e artificial. No interior, os visitantes têm uma série de exposições que exploram a intersecção entre arte, ciência e tecnologia de ponta.

    Uma das exposições mais cativantes do museu é a experiência Future World, uma jornada multissensorial que mergulha os visitantes num mundo de arte digital de ponta e instalações interactivas. Disponibiliza projecções inspiradoras, permite a manipulação ambientes virtuais e até mesmo criar a sua própria arte digital, tudo isto cercado pelos sons e visuais hipnotizantes do futuro.

    Aeroporto de Changi. A porta de entrada para o ‘futuro’ é o Aeroporto Changi de Singapura que espelha o compromisso da cidade-Estado em abraçar o futuro. Além de ser um exemplo de infraestruturas de transporte aéreo de classe mundial, o Aeroporto de Changi tornou-se um destino por si só, ostentando uma infinidade de atracções e comodidades futurísticas que redefinem a experiência de viagem. Uma das características mais impressionantes do aeroporto é o Jewel, um complexo com cúpula de vidro e aço que abriga uma vasta gama de opções de compras, restaurantes e entretenimento. No centro da ‘Jóia’ fica a Rain Vortex, a queda de água interna mais alta do mundo, cercada por jardins exuberantes e exibições de luzes fascinantes. Mas a verdadeira maravilha tecnológica está no Terminal 4 do Aeroporto de Changi, concebido para pensar no futuro viajante. Aqui, encontra-se sistemas de auto-atendimento de última geração para ‘check-in’, tecnologia de reconhecimento facial e até robôs a auxiliar na gestão de bagagens e serviços de ‘concierge‘. É um vislumbre do futuro das viagens aéreas.

    Raquel Rodrigues é gestora, viajante e criadora da página R.R. Around the World no Facebook.


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  • Atração dos latinos pelos fracassados

    Atração dos latinos pelos fracassados


    A posição de relativo destaque desfrutada hoje por Fred Hart entre os escritores policiais que atuaram nos Estados Unidos na década de 40 do século passado lhe foi assegurada por um livro intitulado O Resgate da gangue de Frank Butter, de autoria do professor Joaquín Maria Moretti de Aguirre, da Universidade Autônoma de Madri.

    A ressurreição de Fred Hart (1899-1948) só se deu porque Joaquín Maria, uruguaio de Salto, escolheu a metrópole da América do Norte para ali amargar seu exílio. Os pais dele queriam que fosse para a Europa, porém mais alto falou a paixão que o rapaz nutria pela literatura policial norte-americana.

    O modestíssimo sonho de Joaquín Maria, concluído o curso universitário, era passar um ano em uma sonolenta cidadezinha na fronteira com o Brasil, onde sua mãe possuía uma casa herdada de ancestrais bascos. Pretendia ali dominar o áspero português fronteiriço ao mesmo tempo em que mergulharia no cotidiano do vilarejo. De posse desses conhecimentos, a língua de Camões em sua versão para contrabandistas e a vida insossa num cafundó, escreveria mais tarde, com proustiana dedicação, um romance histórico sobre a chegada maciça de bascos espanhóis ao Sul do Continente em meados do Século 19.

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    Esse sonhou evaporou-se em um dia ventoso e frio de julho quando Joaquín Maria subiu a um palanque no qual jovens barbudos raivosos discursavam contra o governo. Desprezando os políticos e a política, Joaquín Maria não chegou àquele púlpito para destratar autoridades ou exigir liberdade, como escreveram depois jornalistas desavisados. Na verdade, sequer subiu ao palanque. Foi colocado lá à força. Mas, aproveitando o ensejo, pronunciou então uma desconchavada e hilariante arenga que ainda naquele mesmo dia correu de boca em boca pelas gélidas ruas da capital uruguaia com a velocidade das labaredas que devoram os campos estorricados de janeiro…

    Não, não nos antecipemos.

    O jovem Joaquín Maria pretendia também, depois de lançar o romance que lhe faria luzir o nome no vasto mundo literário hispânico, escrever soturnos contos campeiros, como o faziam muitos escritores de sua pequena, porém orgulhosa, nação. O núcleo verdadeiro de sua obra seria formado por curtas histórias trágicas protagonizadas por peões taciturnos.

    Mas, por azar, na época de sua desgraça, andava alinhavando – apenas para treinar os dedos, como dizia – um folhetim de casos burlescos protagonizados por um fabuloso coronel, Buenaventura Pasión, veterano de muitas refregas eleitorais e guerreiras, um anti-herói irônico, desbocado, parlapatão e pantagruélico.

    No dia fatídico, Joaquín Maria carregava no bolso de sua jaqueta de couro o original desse folhetim.

    Bem, já que estamos falando de alguém que se tornou renomado professor de literatura, é importante consignar que Joaquín Maria havia publicado, um ano antes, no El Nacional, um ensaio, intitulado “Neblina e escárnio”, com o qual pretendia demonstrar que a Grã-Bretanha e a Irlanda só eram o berço de magníficos escritores satíricos por sofrerem com um dos piores climas do mundo. Por outro lado, defendia que, embora nascidos em terras ensolaradas, portugueses, espanhóis e italianos eram os autores dos livros mais lúgubres da literatura mundial.

    Leitor onívoro, Joaquín Maria entremeava a leitura de romances clássicos (dominava também o inglês, o francês e o português) com coletâneas de contos argentinos, brasileiros e uruguaios. Como muitos rapazes daquelas terras austrais, sentia-se literariamente mais atraído pelo rude cotidiano dos gaúchos do que pelo vazio espiritual das cidades. Para espairecer o espírito, no intervalo entre a leitura de duas obras densas, devorava romances policiais norte-americanos.

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    Como foi Joaquín Maria parar em cima do tal fatídico palanque?

    Foi assim.

    Naquele dia ele havia almoçado num restaurante do Mercado del Puerto em companhia de dois colegas e de quatro garrafas de vinho. A primeira botelha, esvaída antes que fizessem o pedido, já os deixou alegres. A segunda acompanhou o despacho das carnes e a terceira e a quarta foram consumidas, entre gargalhadas, durante a leitura que Joaquín Maria fez dos capítulos iniciais de As mais tristes desventuras do valoroso coronel Buenaventura Pasión.

    Risonhos ainda, bochechas vermelhas e pernas incertas, os três jovens ganharam a rua ventosa. De repente, ao quebrarem uma esquina, viram-se diante de um ajuntamento em uma praça. Enfiaram-se pelo meio da ululante multidão até que se detiveram ao pé dos oradores.

    Livres pensadores, praticamente anarquistas, indiferentes à política, perceberam ali uma excelente oportunidade de diversão. Estavam em um posto privilegiado para a fruição das frases feitas e dos chavões dos furibundos discursadores, muitos dos quais eles conheciam de vista da universidade.

    Resolveram desempenhar o sempre divertido papel de bêbados de comício. Passaram a aplaudir com grande entusiasmo toda e qualquer tirada dos oradores, especialmente as mais idiotas. De vez em quando soltavam em voz alta uma piada.

    Como confessaria trinta anos depois, já então proprietário de veneranda barba grisalha e rotundo e dilatado ventre, Joaquín Maria estava ali também para, se possível, bolinar alguma donzela.

    À época ele era acossado por um recorrente sonho erótico no qual fazia amor com uma guerrilheira tupamara, vestida de Branca de Neve, que o fustigava com um chicotinho, chamando-o de “sórdido porco capitalista”.

    Tudo correu bem no início. Às vezes uma das piadas dos mancebos que recendiam a vinho obtinha o reconhecimento do público. De vez em quando, Joaquín Maria conseguia se roçar em uma garota.

    group of people illustration

    Ocorre, porém, que, no intervalo entre as falas de dois oradores, alguns marmanjos grandalhões – cansados das piadinhas infames e das esfregas – resolveram colocar Joaquín Maria, o menor dos três amigos, em cima do palanque. Pegaram-no pelos braços e pernas e erguendo-o por cima de incontáveis jovens cabeças excitadas lançaram-no deitado sobre o tablado.

    Ao se levantar, Joaquín Maria surpreendeu-se com a visão de uma massa humana que ria às bandeiras despregadas. Não demorou um segundo para descobrir o que tinha de fazer. Retirou do bolso da jaqueta o manuscrito amarfanhado que pouco antes lera para os colegas. E, com voz pastosa e queixo duro, começou a narrar As mais tristes desventuras do valoroso coronel Buenaventura Pasión.

    As gargalhadas e os cacarejos se sucediam num rugido crescente como ondas de um mar furioso.

    Os organizadores do comício demoraram preciosos minutos até perceber que o baixote magricelo tinha de ser arrancado dali imediatamente. Debochava dos militares, sim, mas avacalhava também o protesto. Vacilaram um pouco a retirá-lo dali porque sabiam que não se deve contrariar uma aglomeração que ri.

    Em que consistia a novela de Joaquín Maria? Era um livrinho tosco, porém movimentado e divertido, no qual o autor enfileirava piadas – contadas pelo coronel – sobre a estultícia e a avareza dos poderosos, rurais ou urbanos.

    Como Joaquín Maria construiu sua noveleta?

    Pela junção de inúmeras piadas. Ele simplesmente agarrava o esqueleto de uma história engraçada e decorava-o com roupas e adereços. E depois dava um jeito de uni-la a outra piada também estilizada. Um cáustico militar, o coronel Buenaventura Pasión, era o protagonista/narrador do rosário de chistes e palhaçadas.

    Se fosse atento às coisas da política naquela época, Joaquín Maria certamente não teria concedido uma patente militar a seu pícaro herói.

    Amolecido pelo vinho e pela vertigem de ver-se acolhido por uma cumplicidade multitudinária, Joaquín Maria fez a leitura dos dois primeiros e breves capítulos do seu para sempre inédito folhetim até que, sob palmas e assovios, mais de apoio que de repúdio, foi sacado do palco.

    black and gray condenser microphone

    Horas mais tarde, sóbrio à custa de três xícaras de café amargo, atravessou em alta velocidade, num carro de amigos de sua família, o cenário – pequenas cidades indolentes – que elegera como palco para as patifarias do coronel Buenaventura.

    Ao raiar o sol, no dia seguinte ao de seu efêmero triunfo oratório, cruzou uma rua e adentrou um exótico país chamado Brasil, que também vivia, à época, dias impróprios para piadistas.

    Três semanas mais tarde chegava a Caracas, de onde voou para os Estados Unidos. Lá, já estudante da Universidade de Nova Iorque, recebeu a incumbência de resenhar um livro policial escrito nos anos 40. Deram-lhe a oportunidade de optar entre os consagrados Dashiel Hammet ou Raymond Chandler. Ocorre, porém, que Joaquín Maria Moretti de Aguirre tinha verdadeira obsessão por escritores menores. Achava que a paixão pelos fracassados era um traço distintivo dos latinos, dos católicos, que jamais seria compreendido por mestres norte-americanos, protestantes. Por isso, para desafiar seu professor e afrontar a mentalidade anglo-saxônica, escolheu escrever sobre A gangue de Frank Butter, de Fred Hart, escritor de segunda ou terceira linha.

    Foi assim que saíram do anonimato e do esquecimento um hoje famoso ensaísta latino-americano (que não escreveu um romance histórico e nem mesmo um só conto duro) e o divertidíssimo Fred Butter, protagonista da obra mais representativa do que hoje se conhece como romance policial-pastelão.

    Lourenço Cazarré é escritor

    Texto originalmente integrado no livro Kzar Alexander, o louco de Pelotas


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  • Virada do avesso 

    Virada do avesso 

    Quando nasceu Odete, a mãe colocou-a numa cesta junto à máquina de costura.  Embalada pelo som ritmado do pedal, a menina cresceu sem conhecer outra realidade. Da cesta passou para uma cadeira de criança trazida de um passeio a Reguengos.  Foi nela que aprendeu a dar os primeiros pontos. Dali observava a mãe a tirar as medidas das clientes, a talhar e alinhavar os modelos, a experimentar e fazer os últimos ajustes.  A mãe dizia que gostava que a menina tivesse outra vida. Que não ficasse ali presa na casa de fora, a ver o mundo passar na rua. Mas Odete cedo revelou ter mãos de fada. A chegada da segunda máquina, comprada a prestações na Singer, foi uma espécie de diploma. Primeiro em dupla, depois sozinha, Odete trabalhou grande parte da sua vida como modista.

    person holding white and red plastic toy

    Mas chegou o pronto-a-vestir. Abriram lojas modernas um pouco por toda a cidade. Os vestidos da moda estavam agora à mão de semear. Odete já pouco podia mostrar da sua arte. Vivia de fazer pequenos arranjos. Ganhava bem. Mas o trabalho não brilhava. Os clientes eram desconhecidos com os quais poucas palavras trocava. Dias, meses, anos, sentada a uma máquina que agora era elétrica.  Um rádio. Um pequeno cão peludo, sonolento, enrolado sobre a velha cadeira alentejana. O sol a bater-lhe no focinho tranquilo. Entre bainhas, botões e fechos, Odete encontrava tempo para fazer peças que mostravam a sua destreza e talento. Pendurava-as na porta de reixa, viradas para rua. Entre elas, um talego de cores vibrantes saltava à vista. As pessoas passavam, paravam, perguntavam o preço:

    – Esse não está à venda. – respondia Odete.

    – Que pena! Tão bonito. – comentavam.

    Odete sabia disso. Era justamente essa a razão pela qual não o vendia. Para que admirassem a sua habilidade. Depois, regressava o silêncio.

    Certo dia, uma turista curiosa parou a admirar o talego. Quis saber o que era, para que servia. Odete, entusiasmada com a conversa, respondeu-lhe elevando cada vez mais a voz:

    –  TA-LE-GO! É PA-RA PÔR O PÃ-O! TA-LE-GO!

    A turista enfiou a mão no saco e repetiu sorridente:

    –  TA-LE-GO! PÃ-O!

    Mas no fundo do talego, não foi pão que encontrou. Foi um brinco de ouro. Espantada, entregou-o a Odete que o rejeitou. Não era dela. A turista voltou a meter a mão no talego e encontrou o par do brinco.

    Passados dias, uma outra mulher que parou para ver o talego retirou de lá de dentro um cordão de ouro de duas voltas.  Odete insistiu que ficasse com ele. Não lhe pertencia.

    Cedo correu a notícia pela cidade.   As pessoas começaram a passar com mais frequência àquela porta. Primeiro vinham a medo, disfarçadamente. Como quem  não quer a coisa. O talego nunca desiludia. Não havia por esses dias quem não se lembrasse de vir cumprimentar diariamente a Odete. Passado algum tempo, tinha tantos amigos que a fila se formava durante a madrugada. Quando abria a porta para pendurar o objeto, todos se apressavam a tentar a sua sorte e  já nem se davam ao trabalho de lhe dar os bons-dias. Pelo contrário. Reclamavam. Insurgiam-se:

    – O que custava ao raio da velha deixar aqui o saco durante a noite?

    Tiravam o que queriam e iam embora. Até que um dia, ao chegarem à porta, encontraram o talego virado do avesso. Metiam as mãos e nada. De um lado. Do outro. Nada. Não podiam acreditar. Bateram tão violentamente à porta que a arrombaram.  Invadiram a casa para exigir explicações. Mas não  encontraram a costureira. Estava tudo nos sítios do costume, menos ela e o cão.  Nunca souberam que numa tarde de inverno, cansada das dores do reumático que há muito lhe davam que fazer, Odete resolveu meter a mão dentro do talego na esperança de encontrar uma pomada que a aliviasse. Mas o que de lá saiu foi um cartão dourado. Odete Mendonça diziam as letras em relevo. Não havia dúvidas de que era para ela.

    Há quem diga que a viu deitada numa espreguiçadeira, com o seu Pompom ao lado, a beber água de coco, em Copacabana.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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  • A fonte

    A fonte

    Aquele número que ali estava diante de si, no seu smartphone, era inteiramente novo para a Cátia que odiava ter de atender números desconhecidos que não lhe diziam nada. Tinha medo.

    Mas o aparelho até parecia que estava mais nervoso que o habitual e mesmo o som aparentava estar mais estridente e intenso.

    E a proveniência podia muito bem vir do seu ex-namorado, o que seria um problema, pensou ela. Já em tempos o fizera, ligando de uma velha cabine perdida no tempo, achava ela.

    Não queria falar com ele por nada deste mundo, e suspeitava que o rapaz pudesse estar muito bem a ligar de outro telemóvel, embora ele soubesse de antemão, que Cátia raramente atendia quando os números eram de origem desconhecida.

    Desligou o som.

    Para ela, ele era um stalker, mas, para ele, ela também era uma stalker.

    Mas isso é outra história.

    Ficou a olhar para o telemóvel a vibrar enquanto se decidia.

    Já tinha tido problemas por não atender chamadas, sobretudo quando se tratava do campo laboral, tinha noção disso, e pagou um preço bem caro da ultima vez por ter investido nessa opção arriscada do não atendimento, mas era a pior coisa que lhe podiam fazer, e jamais queria ter de voltar a ouvir a voz do Marco, o seu stalker, isso é que não. A acontecer só no tribunal caso chegassem a esse ponto. 

    Tinham namorado dois anos e a relação acabara em violência doméstica segundo os dois e teriam mesmo acabado em tribunal, não fosse o aparecimento da pandemia mediática. Mas hoje ela pondera fazer queixa  novamente. E ele também. São, até prova do contrário, ambos vitimas de “stalkerismo ”.

    Estranho mundo o nosso.

    Na altura ele fez queixa dela, alegando que levara um tareão à antiga, invocando que ela era cinturão castanho em Full Contact e até era mais alta que ele.

    Mas ela sempre o negou. Ele era apenas cinturão verde em Judo.

    Naquela altura atípica e singular da pandemia e de confinamentos loucos e radicais, cujas regras mudavam dia sim dia não, os advogados chegaram a acordo para não levarem o caso a tribunal. Nenhum dos quatro se via de máscara nas audiências. Áí estavam todos de acordo.

    Mas isso é também outra história.

    E agora que tudo aparentemente passou, o Direito e a verdade eram de novo uma hipótese de voltar à carga para ambos.

    Mas talvez seja tarde. Os tempos mudaram.

    Cátia era uma reincidente em não atender números anónimos, mas com algum desconforto, e depois de pensar bem, atendeu a chamada.

    Era da Agência Funerária que estava a tratar da lápide do pai que já morrera há um ano, e só agora a família tinha decidido fazer uma, com uma inscrição a recordar o bom homem que o Sr. Américo Santos tinha sido, uma enorme mentira, uma vez que nenhum dos quatro filhos tivera entretanto qualquer tipo de saudades do pai, nem mesmo a mulher, que rejuvesnecera dez anos após a morte do marido.

     O Sr. Américo tinha sido uma má pessoa e até um pai ausente, fazia tudo à sua maneira, não ouvia ninguém, era malcriado, gordo, corrupto e mil coisas mais bastante negativas por sinal, no entanto tinha sido em vida católico e a família estava a ser forçada pela outra parte da família para que essa lápide ganhasse vida.

    No que resta do mundo católico, é assim.

    Cátia ficou aliviada quando percebeu a origem da chamada.

    O processo já tinha avançado, já estava até a maquete feita, e era por isso mesmo que esta ligação se estava a efectuar.

    A senhora da Agência disse:

    – Estou a falar com o Sr. Timóteo?

    – Não! Sou a Cátia. O Timóteo é o meu irmão.

    – Olá, eu sou a Dulce da funerária Anjos. Pode ser consigo também. Já trocámos uns e-mails.

    A Cátia estava descansada naquele momento, não era nenhum desconhecido, nenhum stalker, nenhum ET, nenhum vampiro. E de forma calma respondeu:

    – Sim, sim.

    – Olhe, é porque a fonte de letra que me está a pedir nós efectivamente não temos.

    – Não tem a Helvética?

    – Não. Sabe, essa não tem muita saída. Nós trabalhamos com a Comic Sans. Normalmente os clientes ficam satisfeitos com essa. Não leve a mal, mas para mim também é a mais gira de todas. Eu uso-a para quase tudo… E aconselho.

    – Sim. Mas eu trabalho na área do Design.

    Interrompeu a Cátia, irritada.

    – E não quero essa letra. Não tem nenhuma Garamond?

    – Gara… quê?

    – …Mond. Garamond. É um tipo de letra. Não conhece?

    – Pois. É o que lhe digo. Nós aqui não trabalhamos com a Garamond. Pois… Se a senhora trabalha nessa área, deve ser mais exigente. É como eu com a Fórmula 1. Vej…

    – Então trabalham com quais?

    Interrompeu.

    – Não lhe sei assim dizer. É que é a primeira vez que alguém se queixa da fonte.

    – Sim, mas eu queria saber com que fontes trabalham, se não se importa. Até porque essa aí não tem nada a ver com a situação. Estamos a falar de uma pessoa morta não é!

    – Pois. Estou a perceber. Queria assim uma coisa… Como dizer?.. Mais, vá… Pesada!.. Vá!

    – Não é pesada. É ajustada.

    – Pois. A Comic é assim mais leve e simpática. Mas percebo. Quer assim uma coisa…

    – Mas diga-me, com quem é que posso falar aí da Agência que saiba do assunto?

    Interrompeu a Cátia novamente, ainda mais irritada.

    – Com o Sr. Alves mas está com covid em casa. Pelo menos ele acha que é. Está sem olfato e está muito irritado. Está isolado, sabe!.. Eu já lhe disse que não era preciso o isolamento mas é teimoso o raio do homem. E não quer falar com ninguém. Ainda há pouco tentei comunicar com ele e quase me ofendeu. Tente mandar um e-mail para o Sr.Alves.

    – Dê-me o e-mail então.

    Simultaneamente a Cátia recebe entretanto uma chamada na outra linha e o número é outra vez desconhecido, até diz sem ID, o que faz com que fique ainda mais nervosa.

    – Espere, estou aqui à procura. Mas olhe, entretanto vi aqui qualquer coisa no nosso catálogo sobre isso das letras, quer que lhe diga?

    – Sim.

     Entretanto a chamada anónima caiu.

    – Arial. Gosta?

    – Não.

    – Verdana?

    – Também não. É horrível.

    – Também acho.

    – Bold.

    – Isso não é fonte. Isso é quando se quer a letra mais marcada. Mais escura.

    – Ai sim? Que engraçado. Mas fica muito gira, assim mais escurinha.

    – Diga mais.

    – Vicking.

    – Não acredito que têm essa. Para que é que a usam?

    – Pois, não sei. Tem de perguntar ao Sr. Alves. Deve ser para cartões. Aqui em Arouca usa-se muito. É assim… Dinâmica!

    – Isso é absurdo.

    – Só temos aqui mais uma, que é… Deixe ver… Ah!.. Times New Roman.

    – Tem essa?

    – Aqui diz que sim. Não é do meu departamento, repito. Isto é mais com o Sr. Alves. Mas pelo menos é o que diz aqui. Mas eu se quer que lhe diga, gosto muito da outra dos Comic Sans. É muito gira, mesmo para lápides. Torna assim a coisa mais leve sabe?.. Quando eu morrer q…

    – Mas isto não é para ser giro.

    Interrompeu a miúda novamente, e desta vez ainda de forma mais abrupta. Continuou:

    – O meu pai está morto. Estamos a falar de uma lápide.

    Aparece novamente a inscrição sem ID no telemóvel. A rapariga começa a ficar muito ansiosa.

    – Olhe eu vou pensar melhor e mando um e-mail para vocês a dizer a nossa opção. Vou reunir com os meus irmãos e com a minha mãe. Mas por favor reencaminhe para o Sr. Alves a nossa opção.

    – Já agora. Podia avaliar a minha prestação?

    Sugeriu a empregada.

    – Como?

    – A seguir vai receber um inquerit…

    – Agora não. Obrigada.

    – É o meu irmão que vai ligar. É uma voz verdadeira. Nã…

    Desligou e ficou a olhar para o telemóvel que entretanto já estava com o som do toque activo, cada vez mais estridente. Cada vez mais agudo. Até lhe pareceu que era a primeira vez que ouvia aquele toque.

    E num ápice atendeu.

    – Sim. Com quem falo?

    Perguntou.

    E o telefone ao fim de uns segundos desligou-se mas ainda se ouviu uma voz ao longe, meio cavernosa e imperceptível, embora com um tom bem marcado mas dúbio.

    Estranho.

    A Cátia ficou branca. Não queria acreditar no que achava que acabava de ouvir.

    Foi à cozinha beber um copo de água. Sentiu um ligeiro frio interior que normalmente anunciava quebra de tensão e sentou-se numa cadeira da cozinha.

    Ía jurar que era a voz do pai a pedir a Comic Sans.

    Ruy Otero é artista media

    Ilustrações de Ruy Otero


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.


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  • História Global da Literatura Portuguesa

    História Global da Literatura Portuguesa


    A obra ‘História Global da Literatura Portuguesa‘, com direcção de Annabela Rita, Isabel Ponce de Leão, José Eduardo Franco e Miguel Real, constitui uma releitura da Literatura Portuguesa em contexto internacional: 100 autores oferecem 100 focais de diálogos que atravessam as habituais fronteiras do espaço e do tempo, da periodologia e da genologia, das letras, das artes e das ciências. O PÁGINA UM apresenta os textos das intervenções de Annabela Rita (moderadora) e Alberto Manguel (conferencista) no Seminário Internacional de Estudos Globais (Universidade Aberta, Salão Nobre do Palácio Ceia), no passado dia 11 de Novembro, em uma das apresentações que se estão a suceder pelo país.


    NOTA DE ABERTURA – ANNABELA RITA

    Saudações ao Professor Alberto Manguel, ao Professor José Eduardo Franco, Director do CEG da UAb, à Dra. Guilhermina Gomes, representante da Editora Temas & Debates, a todos os presentes, dirigentes institucionais, Colegas, Alunos, Amigos, e, enfim, aos que tornaram possível a HGLP.

    Agradeço ao Professor José Eduardo Franco o honroso convite para moderar esta sessão.

    A minha tarefa começa com um gesto desnecessário e algo irreverente: apresentar Alberto Manguel, grande personalidade das Letras mundiais.

    Vou evitar a dupla impertinência desse gesto, optando por homenageá-lo com algumas evocações expressivas do pensamento que nos motivou a convidá-lo para apresentar a nossa História Global da Literatura Portuguesa, que agradecemos aos seus Directores, Coordenadores, Colaboradores e Conselheiros, para já não mencionar as instituições que a patrocinaram, apoiaram e editaram.

    Em 2014, na conferência que proferiu no ciclo Fronteiras do Pensamento (Brasil), Alberto Manguel

    “Contou que uma vez, ao conversar com um taxista na Espanha, se viu inquirido a confirmar se havia mesmo lido Dom Quixote. “Todo mundo fala que leu, mas ninguém chegou ao final deste livro, pois ele é composto de muitos volumes”, disse o incrédulo e mal informado motorista. Partindo desta anedota, Manguel afirmou ser esta a metáfora que exemplifica nossa biblioteca imaginária: ela é formada por “entesouramentos” de tudo o que ouvimos, conversamos, lemos, lembramos e imaginamos. “Usamos a palavra imaginário como algo inexistente e que por si só parece não possuir materialidade. Mas o que pertence à imaginação tem raízes muito profundas na realidade, pois é assim que a conhecemos. Nós imaginamos as experiências, e quando as colocamos no papel contribuímos para esta biblioteca imaginária universal”, explicou Manguel.[1] E continua: “”A biblioteca de cada um de nós está na identidade individual, criada pelo que pensamos que somos e por nosso palimpsesto de recordações – episódios, personagens, frases, palavras.” [2]

    Annabela Rita, Alberto Manguel e José Eduardo Franco.

    Alberto Manguel é mestre já de gerações académicas, autor de Uma história da leitura, A biblioteca à noite, Dicionário de lugares imaginários, No bosque do espelho – Ensaios sobre as palavras e o mundo, A cidade das palavras – As histórias que contamos para saber quem somos, etc., Oficial da Ordem das Artes e das Letras do Ministério da Cultura da França, e Prémio Grinzane Cavour e Roger Caillois, e, hoje, Conselheiro Científico da e-Letras com Vida — Revista de Estudos Globais: Humanidades, Ciências e Artes [e-LCV]. Fundou, recentemente, “Espaço Atlântida – Para os Leitores do Mundo”, que dirige e onde se propõe partilhar

    “uma biblioteca (40 000 títulos) de descobertas fortuitas das expressões dos escritores de diferentes línguas, culturas e contextos, que encoraj[a] o diálogo e question[a] a mente” [3]

    Ora, este mestre da palavra, Alberto Manguel, confessou que o que mais admira na biblioteca imaginária: o bibliotecário invisível que percebeu habitar o seu cérebro, e que “sempre tem palavras à disposição, algumas, inclusive, que eu não sabia que dariam voz aos meus desejos mais antigos, às minhas lembranças mais inefáveis.” [4], pois

    “A história da literatura, tal como consagrada nos manuais escolares e nas bibliotecas oficiais, parecia-me não passar da história de certas leituras — /…/ dependentes do acaso e das circunstâncias.” (HL, p. 24)

    Na sua História da Leitura[5], conta uma experiência infantil fundadora:

    “Então, um dia, da janela de um carro (o destino daquela viagem está agora esquecido), vi um cartaz na beira da estrada. A visão não pode ter durado muito; /…/ o suficiente para que eu lesse, grandes, gigantescas, certas formas semelhantes às do meu livro, mas formas que eu nunca vira antes. E, contudo, de repente eu sabia o que eram elas; escutei-as em minha cabeça, elas se metamorfosearam, passando de linhas pretas e espaços brancos a uma realidade sólida, sonora, significante. Eu tinha feito tudo aquilo sozinho. Ninguém realizara a mágica para mim. Eu e as formas estávamos sozinhos juntos, revelando-nos em um diálogo silenciosamente respeitoso. Como conseguia transformar meras linhas em realidade viva, eu era todo-poderoso. Eu podia ler.” (HL, p. 9)

    E avança na reflexão, afirmando:

    “em cada caso é o leitor que confere a um objeto, lugar ou acontecimento uma certa legibilidade possível, ou que a reconhece neles; é o leitor que deve atribuir significado a um sistema de signos e depois decifra-o. Todos lemos a nós e ao mundo à nossa volta para vislumbrar o que somos e onde estamos. Lemos para compreender, ou para começar a compreender. Não podemos deixar de ler. Ler, quase como respirar, é nossa função essencial.” (HL, p. 10)

    Assim, na história da leitura de um texto ao longo da vida de cada um de nós, projecta-se a nossa própria autobiografia ou fragmentos de um diário descontínuo ou, ainda, um palimpsesto de auto-representações (a dos autores lidos e as do leitor que as lê).

    A obra de Alberto Manguel é uma notável demonstração disso: toda a reflexão é embebida por projecções suas, revisitações mnésicas.

    Neste caso, fragmentos dos autorretratos temporalmente datados dos leitores que convergiram nesta História Global da Literatura Portuguesa.

    “Lemos e escrevemos para entender a experiência antes de tê-la e para ativar a nossa própria experiência, para dizer que essa é a forma como sentimos e entendemos, para que as gerações futuras possam sabê-lo.”

    Por isso, talvez, os leitores são sempre subversivos (HL, p. 25), como afirma nessa sua/nossa Bíblia da Leitura.

    Um dia, perguntou a Jorge Luís Borges: “Por que está sozinho?”. E Borges respondeu: “Eu nunca estou sozinho, tenho minha biblioteca.”

    Pois é, Professor Alberto Manguel, também nós (cada um a seu modo) sentimos a mágica da metamorfose estimulada pela imagem do verbo, sentimos que não estamos sós pela mesma companhia, fomos subversivos neste projecto e representámo-nos nesta História Global da Literatura Portuguesa. E, nessa cumplicidade, entregámo-la à sua leitura. Bem haja! A palavra é sua e a expectativa é nossa.


    APRESENTAÇÃO – ALBERTO MANGUEL

    Introdução à História Global da Literatura Portuguesa

    Possuo todas as qualificações para não fazer esta apresentação, que tão confiante e generosamente me convidaram a fazer. Possuo apenas um limitado conhecimento da língua portuguesa. Só um superficial conhecimento da vasta literatura escrita em português. Apenas um vislumbre da complexa história de Portugal e da sua aventurosa exploração do mundo. Vivo em Lisboa desde Setembro de 2020, o que é dificilmente tempo suficiente para perceber a sua secreta cultura. Tendo feito esta óbvia confissão, devo depender do que vim a conhecer como a sempre presente cortesia portuguesa, e responder ao vosso convite da melhor maneira que consigo.

             Confesso que o vosso projeto me atraiu imediatamente pela palavra ‘global’ no título. As histórias de literatura nacionais tendem a soar, se não estridentemente gabadas, pelo menos crédulas na sua convicção de que (como comentava Plutarco ironicamente) “a lua de Atenas é melhor do que a lua de Esparta”. Porque se há algo que define a literatura, é a falta de fronteiras, políticas e geográficas. Gil Vicente é considerado pelos espanhóis um escritor espanhol e Dante é um dos poetas nacionais da Albânia. Quando Saul Bellow, numa tentativa de menosprezar as literaturas do continente africano, perguntou “Quem é o Tolstoi dos Zulus?”, Wole Soyinka respondeu: “O Tolstoi dos Zulus é Tolstoi”. Felizmente, os escritores não têm de mostrar os passaportes cada vez que se sentam à secretária.

             A minha atração pela palavra “global” é parcialmente explicada pela minha convicção de que nenhum escritor é singular. Os escritores são como árvores cujas raízes se estendem pela sua inteira biblioteca e cujos ramos carregam novas vozes alimentadas pelas suas palavras. Jovens escritores aqui presentes, que, com bastante razão, desprezam o abuso de metáforas, irão sem dúvida tratar a minha com desdém, mas não deixa de ser verdade que a floresta da literatura é mais bem compreendida como uma selva de vozes individuais em que nenhuma árvore, nenhuma voz, é absolutamente única. Felizmente, penso eu, a língua portuguesa tem pouca paciência para a originalidade só pela originalidade. Não tem a obsessão francesa de tentar a todo o custo ser original, como se comprova pelo vocabulário de um Lacan ou Badiou.

             A questão da identidade de uma língua é, acredito, importantíssima. Assumo que a palavra “portuguesa” no vosso título não se refira à casualidade de um certificado de nascimento, mas sim à idiossincrasia essencial dada por uma língua nativa. Como todos sabemos, a língua que usamos, não importa quão imperfeitamente, molda os nossos pensamentos e, por isso, molda não só como dizemos algo mas determina também o que esse algo será. A língua é um prisma pelo qual vemos o mundo de uma determinada maneira, uma visão que é diferente se falarmos árabe ou swahili, tão diferente como a visão concedida ao olho humano ou ao olho de uma vespa. Por exemplo, ‘Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades’ não pode ser dito em inglês porque em português o verbo reflexivo desdobra o Tempo e a Vontade sobre si mesmos, tomando um papel ao mesmo tempo passivo e activo. Em inglês, talvez porque a Reforma decretou a brevidade e a precisão as mais importantes virtudes linguísticas, um conceito similar pudesse talvez ser pensado como “Times change, desires change” — perdendo no processo o entrelaçamento dos significados ‘arbítrio’ e ‘desejo’, implícitos em vontades, empobrecendo assim aquele profundo pensamento existencialista dos humanistas da Renascença. Shakespeare, em Inglaterra, foi levado a conceber algo parecido quando escreveu da sua Cleópatra: “Time has not withered nor custom stale/ her infinite variety”, versos que têm um tipo de riqueza muito diferente. Talvez seja por essa razão que Camões possa ser considerado um poeta português e Shakespeare um inglês. A sua língua, não a sua corda umbilical ou a época do seu nascimento, é o fator que os define.

             Datas são úteis, mas incertas convenções. A maioria dos historiadores da linguagem concordam que a consolidação daquilo a que chamamos a língua portuguesa pode ser datada a 1536, quando Fernão de Oliveira publicou a sua Gramática da Linguagem Portuguesa. O português, em comparação com o chinês ou o hindu é uma língua jovem, mas (graças à História Global da Literatura Portuguesa, por exemplo) podemos ver que as qualidades definidoras da língua portuguesa começam a aparecer e a enraizar-se muito mais cedo. Seria um exercício interessante tentar determinar algumas destas características primordiais da língua portuguesa presentes em épocas recentes, para descobrir as suas primeiras aparições na literatura. Pessoa, por exemplo, notou o desconforto da língua portuguesa com a ironia. Antero de Quental lamentou a sua relutância em quebrar com convenções passadas. Ana Hatherly mencionou a sua timidez para com o barroco. Eduardo Lourenço comentou o seu persistente e melancólico olhar interior. Eu não tenho nem o conhecimento nem o talento para empreender tamanha investigação, mas pode ser que seja útil, de forma a dar aos escritores portugueses um reflexo mais verdadeiro das suas identidades.

             A biblioteca que doei à Cidade de Lisboa e que agora constitui o centro do futuro Espaço Atlântida, inclui uma razoável quantidade de livros em Português. Comecei a ler literatura de língua portuguesa (em tradução, claro) muito antes de ter noção de uma literatura portuguesa. A criança que fui está para sempre grata a Monteiro Lobato e Sophia de Mello Breyner Andersen pelas suas mágicas histórias de aventuras. O leitor adolescente a Eurico Verissimo pelo seu Olhai os lírios do campo e a Eça de Queiroz por O Mandarim. Mais tarde vieram João Guimarães Rosa, Machado de Assis, José Eduardo Agualusa, Mia Couto, Lobo Antunes, Agustina Bessa Luís, José Saramago, Moacyr Scliar e muitos outros memoráveis. Não descobri Pessoa (mea culpa, mea maxima culpa) até ao fim dos anos oitenta quando o romancista Canadiano Graeme Gibson me recomendou o Livro do Desassossego. E depois vim para Portugal. Iniciação na literatura portuguesa, de António José Saraiva e recomendado pela minha amiga Joana Meirim, foi um guia esclarecedor.

    book lot on black wooden shelf

             O que me impressionou quando comecei a descobrir outros escritores aqui em Portugal foi a relutância que os Portugueses têm em se exibir. Com o Português do Brasil é ligeiramente menos restringido, mas, no geral, como leitor senti-me (e ainda me sinto) que conseguir que uma pessoa portuguesa elogie ou insulte um escritor português é quase tão mau como pedir-lhe que seja insultuoso para com um familiar ou convidado. Gide, quando lhe foi perguntado qual o melhor escritor francês, respondeu: “Hugo, hélas”. Nenhum português se atreveria a responder: “Pessoa, infelizmente”.

             A História Global da Literatura Portuguesa é também uma espécie de Gradus ad Parnassum para a Biblioteca Universal, iniciando um caminho que apenas alguns, poucos, escolhidos poderão tomar. Pedindo já perdão por recorrer agora à alegoria, sugiro que concebamos a Biblioteca Universal como um lugar visitado por dois, muito diferentes, leitores: a Justiça que, como nos ensinaram os clássicos, é cega, e a Sorte que, como declararam outros clássicos, é caprichosa e imprevisível. Na secção Portuguesa da Biblioteca Universal, a Justiça não vê o suficiente para selecionar sempre os autores certos, os que mais merecem reconhecimento e fama. A Sorte, no entanto, anda sem rumo entre as pilhas de livros, apanhando este ou aquele livro, guiada por uma capa peculiar, um título surpreendente, uma disposição particular. Na História global da literatura portuguesa encontramos, claro, a maior parte dos nomes esperados, assim como muitos outros que eu, na minha ignorância, não sabia existirem, mas há também alguns autores que se destacam saudosamente pela sua ausência. Nenhuma visão do mundo, nem uma verdadeiramente ‘global’ como esta de mais de 700 páginas, pode aspirar à omnisciência divina, e qualquer história da literatura, tal como qualquer biblioteca, está sempre acompanhada pela sombra daquilo que não inclui. A totalidade catequista, no mundo da literatura, é uma invenção imaginária e não permite aos leitores olhar entre as linhas e adicionar as suas próprias escolhas.

             Quero terminar esta introdução com uma palavra de agradecimento. A vossa História Global da Literatura Portuguesa é um trabalho colossal e magistral. Especialistas cuja profissão é implicar, sem dúvida encontrarão pequenos detalhes com os quais reclamar, mas, enquanto leitor comum, posso apenas expressar gratidão por ter nas mãos um guia tão essencial para o vasto, variado, introvertido e fundamental cosmos da literatura Portuguesa.

    Alberto Manguel, 11 novembro 2024

    (tradução de Flor Filgueiras)


    NOTA FINAL – ANNABELA RITA

    Professor Alberto Manguel, muito obrigada por esta magistral leitura de bibliotecário (in)visível da biblioteca imaginária colectiva que perscrutámos na HGLP!

    Afirmou no início da sua HL:

    “Dizem que nós, leitores de hoje, estamos ameaçados de extinção, mas ainda temos de aprender o que é a leitura. Nosso futuro — o futuro da história de nossa leitura — foi explorado por santo Agostinho, que tentou distinguir entre o texto visto na mente e o texto falado em voz alta; por Dante, que questionou os limites do poder de interpretação do leitor; pela senhora Murasaki, que defendeu a especificidade de certas leituras; por Plínio, que analisou o desempenho da leitura e a relação entre o escritor que lê e o leitor que escreve; pelos escribas sumérios, que impregnaram o ato de ler com poder político; pelos primeiros fabricantes de livros, que achavam os métodos de leitura de rolos (como os métodos que usamos agora para ler em nossos computadores) limitadores e complicados demais, oferecendo-nos a possibilidade de folhear as páginas e escrevinhar nas margens. O passado dessa história está adiante de nós, na última página daquele futuro admonitório descrito por Ray Bradbury em Fahrenheit 451, no qual os livros não estão no papel, mas na mente.” (HL, p. 27)

    Afinal, “/…/ ler é cumulativo e avança em progressão geométrica: cada leitura nova se baseia no que o leitor leu antes.” (HL, p. 23)

    Mais: essa progressão geométrica da escrita e da leitura combina-se intimamente com uma dinâmica estocástica, marcada pelo princípio da incerteza e da indeterminação, pelo movimento browniano, exponencialmente enriquecedor e redimensionador.

    Da esquerda para a direita.: Annabela Rita (uma das direcoras da HGLP), Alberto Manguel (apresentador), Carlos Carreto (um coordenador da HGLP), Guilhermina Gomes (editora da Temas e Debates) e José Eduardo Franco (um doos directores da HGLP)

    Lewis Thomas, na sua estimulante reflexão “Sobre o Pensamento” (A Medusa e o Caracol, 1979),descreve o seu processamento recorrendo à analogia da microbiologia, assinalando o modo como as ideias se vão conformando a partir de imprevisíveis movimentos de atracção que resolvem a dispersão inicial.

    Seria essa, também, uma excelente descrição do modo como esta HGLP se for construindo: perscrutando uma outra paisagem, implicada na que as anteriores Histórias da Literatura representa(ra)m, mas constituída por redes relacionais a partir de núcleos pregnantes, nós de ancoragem de movimentos exploratórios e relacionais de múltipla direccionalidade que se estendem para além dos horizontes. Sob a paisagem habitual que temos da Literatura Portuguesa, outra mais subtil, intrincada e “tabular” (J. Kristeva) foi surgindo, como num palimpsesto que vamos descobrindo com o deslumbramento dos investigadores que recorrem à IA para decifrarem papiros carbonizados (v. desafio conhecido como “Vesuvius Challenge”) ou para a arqueologia. A diferença é que a paisagem oferecida pela HGLP não pretende ser um mapeamento definido, nem definitivo, nem exclusivo, nem exaustivo: deseja-se signo-sinal estimulado pelo actual contexto do pensamento complexo (Edgar Morin) e da globalização anunciando a continuidade da aventura… a Odisseia continua…

    Agora, a História Global da Literatura Portuguesa, uma (re)leitura de (re)leituras feita, tem nesta sua apresentação, Professor Alberto Manguel, um belíssimo posfácio! E este é, no fundo, o meu encantado comentário de moderadora. Bem haja!


    [1] Cit de: conferências 2014 do Fronteiras do Pensamento em Porto Alegre [https://www.fronteiras.com/noticias/a-biblioteca-imaginaria-segundo-alberto-manguel].

    [2] Idem.

    [3] Cit. de: https://www.espacoatlantida.pt/sobre-nos/.

    [4] Cit. de: conferências 2014 do Fronteiras do Pensamento em Porto Alegre https://www.fronteiras.com/noticias/a-biblioteca-imaginaria-segundo-alberto-manguel

    [5] Alberto Manguel. Uma História da Leitura [HL], S. Paulo e R.J., Companhia das Letras, 2004 (ebook). Para maior comodidade do leitor, todas as citações desta obra serão feitas a partir desta edição.


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  • Tanatoceno: parte I

    Tanatoceno: parte I

    O mundo vivo está sob ameaça grave. Este texto dedica-se a escrutiná-la. Identificamos as principais ameaças que lhe são dirigidas, a nível macroestrutural, em questões de biopolítica global, tanto quanto em aspetos micro estruturais da distinção entre vida orgânica natural e vida ou inteligência artificiais. A distopia generalizada que estamos a viver ocupa-nos num primeiro momento deste texto. Completa-o, num segundo momento, a abordagem de questões científicas que especificam e ilustram essa circunstância civilizacional, com referência a diversos fatores gravosos de intoxicação ambiental.

    [Esta segunda parte será publicada na próxima edição]

    Passaram cinquenta anos sobre a revolução do 25 de Abril e quase um século sobre a instauração do regime fascista em Portugal, que desvitalizou e empobreceu física, cultural e animicamente o seu povo, durante meio século. Hoje os modelos totalitários não têm fronteiras: são globais e globalizados e tanto mais ameaçadores quanto mais dissimulados em formas ocas de democracia. Os países estão a perder a soberania em praticamente tudo, e os indivíduos, a liberdade. Vejamos como e porquê.


    I

    A MATRIZ DISTÓPICA

    A natureza do crime

    O contexto ideológico que conduziu o mundo à Segunda Grande Guerra revelou-se tão profundamente hediondo que nenhum discurso a seu favor voltou a parecer declaradamente possível a não ser em grupos de extrema-direita emergentes na última década, apesar de tudo minoritários à escala planetária.

    A partir dos anos de 1950 foi necessário deslocar as palavras, os conceitos e as ideias dessa matriz para zonas subterrâneas e escondidas onde continuassem o seu labor constante e de onde ressurgissem sob a máscara de novas palavras, métodos, propaganda e renovada abrangência. Muitos médicos e cientistas alemães do regime emigraram após a guerra e a sua experimentação radicalmente perversa sobre humanos, a par da sua imaginação eugenista delirante prolongaram raízes noutros países[1].

    A natureza do crime contra a humanidade que a matriz consubstancia, aquilo que veio a ser designado por “mal radical”, era e é duma espessura, duma densidade e duma latência tão ancoradas e esmagadoras que a imaginação da distopia claudica perante ela, no comum dos mortais ­– não há energia vital para ela, não há oxigénio, não há reservas de lucidez. O conceito precisou de uma economia, duma política, duma medicina e duma filosofia que lhe dessem expressão à escala global. Paciente e paulatinamente reuniu armas e esforços nos seguidores de Milton Friedman, no lobby farmacêutico, agroquímico e alimentar, na indústria e na pesquisa científica da guerra, nas sociedades secretas e nos clubes de países ricos, tanto quanto nos modelos totalitaristas[2], nos media, na ciência com resultados encomendados e em Sillicon Valley.

    As décadas de 1960 a 1990 foram tendencialmente hedonistas nas sociedades ocidentais ditas “civilizadas” e apesar das muitas revoluções e descolonizações e da alegria efémera da aparente liberdade, os seres humanos foram progressivamente orientados no sentido do consumo, do deslumbramento, do progresso tecnológico e da atomização crescente do conhecimento. Inebriado com a sua performance intelectual e artística, com o conforto e com a comunicação globalizada, o ocidental foi perdendo, sem dar por isso, o sentimento mais profundo de si, da sua razão de ser e de estar vivo. Perdeu raízes na terra (outra matriz) e no céu (outra semente). Insistiu no patriarcado, apesar das vozes femininas que se levantaram.

    No caminho em que se foram apagando muitas das suas estrelas, foi encontrando lampadários de néon e tungsténio que o confundiram e aceitou, sem resistência e com preguiça, todas as inevitabilidades artificiais propostas ao seu território anímico desertificado.

    Colapso iminente?

    No início dos anos de 2000, o coletivo de vários países estava disposto a acolher os grandes empreendimentos sustentados desde os anos de 1950 pelo paradigma distópico, só aparentemente adormecido, que estamos a referir: a aceleração da desigualdade (1% da população mais rica que os outros 99%, aquela que está destinada a fundir-se com as máquinas, desprezando a “fraqueza” duma maioria a subalternizar ou eliminar), a corrida a todas as formas de armamento convencionais e não convencionais (químicas, biológicas, psicotrónicas, eletromagnéticas, nucleares, agroquímicas, aditivas, genéticas), a criação artificial de problemas para imposição de soluções sociais pretendidas (a estratégia do choque[3] várias vezes utilizada em países ditos menos desenvolvidos), a criação especulativa de valor monetário sem qualquer correspondência com riqueza real (o sistema bancário, as Bolsas, a moeda digital), a fragilização das classes médias, a livre expressão de hierarquias religiosas no exercício da manipulação, do poder, da guerrilha e da falsa espiritualidade e a concomitante perseguição de todas as minorias e formas alternativas da sua procura, a imposição biopolítica de modelos médicos exclusivamente baseados na indústria química de moléculas artificiais que escamoteiam causas profundas das doenças, eliminando sintomas sem procurar causas profundas e, sobretudo, criando efeitos colaterais na necessária manutenção da doença, o segundo maior negócio do mundo.

    A toxicidade dos modelos ambientais, alimentares, terapêuticos[4], bélicos e acima de tudo discursivos (hegemonia mediática, egrégoras do medo e da insegurança, financiamento ideologicamente direcionado da investigação e divulgação científicas e estatísticas) encontrou dois fortes aliados nos modelos falsamente democráticos e na sujeição tecnológica que fomos aprendendo a ver como um privilégio. Por um lado, participamos em eleições livres e temos a ilusão da autodeterminação. Por outro lado, tudo se organiza para que a nossa pegada digital nos inscreva cada vez mais nos centros de controlo que há muito preparam a nossa entrega voluntária e incondicional à hipervigilância[5].

    A revolução que trouxe a democracia a Portugal em 1974 expõe-se agora a uma reversibilidade histórica trágica, a da perda da liberdade.

    Nos últimos anos, os colapsonautas têm escrito acerca do colapso iminente do nosso modelo civilizacional[6]: porque o planeta atingiu o seu limite, porque a falsidade e os verdadeiros interesses nunca foram tão descaradamente exibidos, porque o caos nunca foi tão gritante a todos os níveis.

    Os níveis de consciência da grande maioria são terrivelmente baixos. Assim foram mantidos, é certo, com particular eficácia, nas últimas décadas. Mesmo assim, os lançadores de alerta proliferam assim como os esforços de corajosas minorias na tessitura de outros modelos e na denúncia daquilo que nos destrói.

    Silicolonização do Mundo

    Transhumanismo é o nome assumido pela matriz distópica que temos vindo a apontar, no tempo presente, uma vez que persegue, no âmago do seu propósito, um ideal eugenista de eliminação dos mais fracos e manipulação genética dos restantes, para “melhoria da espécie”, procurando uma condição pós-humana[7]. A “silicolonização” do Mundo está a ser realizada há muito[8], dando agora passos de gigante em direção à meta final pretendida: as cidades inteligentes, a internet das coisas, dos corpos e das mentes, o domínio das tecnologias NBIC[9], a fusão do Homem com a máquina na construção do Homem 2, do cyborg, do transhumano, que supostamente vence a morte celular e desprograma doenças, se desliga do género e da sexualidade, esfria a sua recetividade emocional e se sujeita à obediência inescapável, já sem alma, sem liberdade, sem responsabilidade e tendo entregado de bandeja toda a sua energia vital e criativa.

    É este projeto que precisa da elevada performance das redes de telecomunicações, da nanotecnologia, das pandemias experimentais e da justificação do controlo. Que precisa da fragilização imunitária, desaconselhando os suplementos vitamínicos e desacreditando as terapias naturais; que espalha alumínio e outros metais pesados na atmosfera (geo-engenharia), na água canalizada e nas vacinas; que precisa de patentear sementes (OGM e transgénicos) e de destruir a agricultura tradicional e local; de envenenar alimentos com perturbadores endócrinos (caso do célebre glifosato); de extrair lítio para fabricar carros elétricos cujas baterias serão tão poluentes em fim de linha como lixo nuclear; que realiza o fracking em gigantescos crimes ambientais; que a pretexto da energia “limpa” promove o recurso à biomassa, conduzindo à destruição de gigantescas florestas[10]; que utiliza populações de regiões ou países inteiros como cobaias de experimentos médicos e tecnológicos[11]. “O Antropoceno é também o Tanatoceno”, escreve Edgar Morin[12].

    Frédéric Groz[13] propõe-nos pensar até que ponto desobedecer pode ser uma vitória contra a inércia do mundo e a sua profunda injustiça. A educação prepara à resignação política, mas desobedecer pode ser uma declaração de humanidade. Antígona escolhe desobedecer em nome duma obediência superior. Em Nuremberga, pela primeira vez, alguns homens foram punidos por ter obedecido. Que mérito existe em obedecer a leis monstruosas? O obediente por excelência é o escravo. Como tão bem explica La Boétie[14], a servidão torna-se uma segunda natureza do homem, com a força do hábito e do conformismo.

    Antonio Kehl ilustra ‘O Privilégio da Servidão’ de Ricardo Antunes. © Boitempo, 2018, 2020

    Num mundo tecno-burocrático, cada um concentra-se na sua parcela de atividade e especialização e a monstruosidade do conjunto deixa de ser visível. A origem duma lei ou diretiva (a tradição, o governo eleito, o senso comum, as determinações da OMS, os vizinhos, a família, a televisão…) justifica toda e qualquer barbárie? Hannah Arendt explica que a banalidade do mal é essa capacidade de se tornar a si mesmo um corpo desligado da alma, empenhado em não saber[15]. Preferimos a segurança à justiça e o consentimento sela a obediência, num contexto em que a justiça dos homens tem sido quase sempre a mesma farsa: o interesse do mais forte disfarçado de bem comum.

    Na sua conferência publicada Pourquoi Obéir?, Didi-Huberman afirma: “Quando me interroguei sobre as emoções fascistas, interroguei-me sobre a sua origem e percebi que a obediência estava no cerne da questão”[16].

    Objecção de consciência

    When injustice becomes law, resistance becomes duty[17]

    Thomas Jefferson

    Ousar saber reclama audácia; querer fazer bem significa pensar no futuro da espécie; a resistência e a desobediência civil podem manifestar uma democracia transcendental e o sentido nobre da política. A desobediência pode ser um dever de integridade espiritual, porque há um EU indenegável. “Se eu não for Eu quem o será por mim?” pergunta David Thoreau[18].

    Vivemos o tempo estreito em que podemos e devemos desobedecer em espírito (expressão de ideias, manifesta tomada de consciência) antes que seja necessário desobedecer em ato. A estratégia do choque, o molde infalível do medo, a manipulação fácil da informação e do seu efeito nocebo (inverso de placebo), as brechas da desorientação política, o trabalho voluntário e já antigo de fragilização da imunidade das pessoas, reforçado, durante a pandemia que atravessámos, com a subtracção ao sol, à natureza e ao efeito curativo dos laços afetivos e da alegria, têm trabalhado incansavelmente de mãos dadas com o vírus mais famoso dos três últimos anos, também ele, ao que tudo indica, fabricado[19]. Chegam agora ao palco de muitos países, os arautos da “necessária” revisão constitucional, favorável à perseguição individual, ao internamento compulsivo[20], à destruição do direito à privacidade e à sujeição totalitária, propostas como “protetoras”. A OMS, uma organização não eleita e financiada por interesses privados, sobrepõe-se à soberania de cada país, nas decisões sobre saúde pública[21]. Não aprendemos nada com a História, pelos vistos tão inútil, e esquecemos as frases preferidas de qualquer ditador: ” eu é que sei o que é melhor para ti” e “o interesse coletivo está acima do interesse individual”.

    É nesta faixa estreita de tempo em que agora vivemos, entre uma sensação porventura provisória de desconfinamento e a ameaça de novas recidivas pandémicas, que temos de realizar grandes tomadas de consciência. A denúncia e a objecção de consciência serão passos importantes para a dissolução da distopia que se estendeu no planeta sob a face progressista do transhumanismo e dos seus múltiplos consortes: o jornalismo enfeudado, os governos e parlamentos obedientes a grandes agendas, as multinacionais da perversidade eco e homicida, os bancos centrais e os psicopatas, tanto quanto os ingénuos, que protagonizam a aplicação do programa.

    As forças que verdadeiramente governam o mundo financiam e promovem publicamente a visão inflexivelmente materialista da realidade, da ciência e da medicina (aquela que desliga as massas da memória e da evidência de outra realidade, que não é material), mas recorrem da forma mais invertida e criminosa aos adquiridos das ciências ocultas, dos saberes tradicionais, da ufologia, da parapsicologia e da realidade quântica para o fabrico de armas invisíveis, da sujeição coletiva e do envenenamento dos seres vivos. Huxley e Orwell sabiam o que estava a ser preparado quando escreveram “ficção”.

    A revolução necessária é esta e é individual: querer, ousar, saber, informar, educar, intervir. Faça você mesmo. Por si e pelos outros, por todos os que estão a chegar e merecem outra vida, outro planeta e outra humanidade. A isto também se chama, vulgarmente, amar.

    Leonor Nazaré é curadora de arte contemporânea.

    NOTA: Este texto tem continuidade numa segunda parte a publicar na próxima edição.


    [1] Annie Jacobson ; Operation Paperclip. The Secret Intelligence Program that brought nazi scientists to America, Ed. Litle, Brown Book Group, 2015; (PDF) “The American Breed”: Nazi eugenics and the origins of the Pioneer Fund (researchgate.net), 2002; The Eugenics Crusade at 1080p (rumble.com), 2017

    [2] Cf. Arianne Bhileran, Psycho-pathologie du totalitarisme, Guy Trédaniel, 2023.

    [3] Cf. conferência de Naomi Klein em 2009 sobre esta estratégia, frequentemente utilizada ao longo do século XX.

    [4] Ver nota 36

    [5] Mathieu Terence, Le Transhumanisme est un Intégrisme, Paris, Les Editions du Cerf, 2016 ; Allain Gallerand, Qu’est-ce que le transhumanisme, Paris : Editions Vrin, 2021.

    Para um ponto de vista otimista fundamentado ver o trabalho do cientista Philippe Guillemant, em particular Le Grand Virage de l’Humanité. De la déroute du tanshumanisme à l’éveil de la Conscience, Paris: Ed. Guy Trénadiel, 2021.

    [6] Ver a título de exemplo, Yves Cocher, Devant l’Effondrement, Essai de Collapsologie, Paris: Éditions Les liens qui libèrent, 2019 ou Pablo Servigne, Paris: Une Autre fin du monde est possible, Éditions du Seuil, 2018.

    [7] Cf. Daniel Robin, Le Règne de l’intelligence artificielle. La fin de l’Anthropocène et l’avènement des posthumains, Grenoble : Le Mercure Dauphinois, 2022. Mathieu Terence opus cit. ; Allain Gallerand, opus cit., 2021.

    [8] Éric Sadin, La Silicolonisation du monde. L’irrésistible expansion du libéralisme numérique. Paris: Éditions L’Échapée, 2016.

    [9] Nano e biotecnologias, informática e ciências cognitivas.

    [10] Cf. o documentário de Michael Moore, Planet of the Humans, 2020.

    [11] James Corbet, The Corbet Report, 2020.

    [12] « L’Anthropocène est aussi le Thanatocène » : Edgard Morin, em Réveillons-nous ! Paris : Éditions Denöel, 2022, p. 39

    [13] Fréderic Gros, Désobéir, Paris, Albin Michel, 2017

    [14] Étienne de La Boétie, Discours de la servitude volontaire, 1574-1576.

    [15] No livro Eichmann em Jerusalém, 1960. Ver também o seu livro Desobediência Civil, 1972.

    [16] « Au moment où je me suis posé la question des émotions fascistes je me suis demandé d’où elles venaient, et j’ai compris que l’obéissance était au cœur de tout ça », em Georges Didi-Huberman, Pour quoi obéir?, Paris : Ed. Bayard, 2022. 

    [17] Atribuído a Thomas Jefferson, Papers of Thomas Jefferson, digital edition.

    [18] Inspirado em Fréderic Gros quando cita Thoreau, opus cit., ps. 111, 127, 143, 155, 160 e 173.

    [19] Ver, por exemplo, Patrick Jaulent, Jacky Cassou, Faux Virus. Fausse Pandemie. Vrais Coupables, Paris : Ed. Patrick Jaulent, 2021. Ver também o documentário Planet Lockdown, de James Patrick, 2022.

    [20] No contexto das propostas de revisão constitucional apresentadas em Portugal, está a ser ponderada a criação de uma alínea suplementar ao nº 3 do artigo 27 da Constituição, relativo ao direito à liberdade e à segurança, na qual se preveja o internamento compulsivo de pessoas consideradas em situação de infecção contagiosa. Recorde-se que a atual legislação, refletindo o Estatuto de Roma ratificado por Portugal em 1998, prevê pena de prisão para a imposição de um ato médico não consentido.

    [21] A proposta de um Tratado Pandémico que retira esta soberania aos países vai ser votada em maio deste ano.


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  • Um quarto de hora antes da partida

    Um quarto de hora antes da partida


    (haikus)

    Levanto as mãos

    para um céu de chumbo –

    nada se mexe.

    Mochila pesada

    nos ombros doridos –

    faltam-me as rodas.

    Durante o dia

    não conheço o tédio –

    mesmo deitado.

    Para onde vou,

    que ninguém me siga –

    para não sofrer.

    Olho a noite,

    olha para mim o escuro –

    encontro feliz.

    Acelera o trem

    sobre os carris direitos –

    a vida torta.

    “Leone ruggente”
    Estação central de Milão (foto do autor)

    Un quarto d’ora alla partenza

    Alzo le mani
    verso un cielo di piombo –
    nulla si muove.

    Zaino pesante
    dolore sulla spalla –
    mi mancan le ruote.

    Durante il giorno
    non conosco la noia –
    neppure steso.

    Dove vado io
    non mi segua nessuno
    per non penare.

    Guardo la notte,
    pure il buio mi osserva –
    felice incontro.

    Il treno sfreccia
    sui binari diritti –
    vita storta.

    “Pilastro ieratico”
    Estação central de Milão (foto do autor)

    Antonio Delfino é Professor da Universidade de Pavia (em Cremona)

    (Tradução de José Melo Alexandrino)


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  • Dunas que falam com o céu

    Dunas que falam com o céu


    Telefonei para um grande amigo a incitá-lo:

    — Viste a notícia?

    — Que cena marada!

    — Vamos lá amanhã?

    No dia seguinte, à hora marcada, mais minuto menos minuto, seguimos rente à vertigem.

    Animava-nos uma irrequietude de ver o invisível. Desejávamos a devastação que irrompe do insondável. Intuíamos que quem se compraz a invocar prodígios terá visões que se derramarão sobre toda a carne e todo o espírito.

    Estava um tempo esplêndido. O carro seguia ligeiro raspando as estradas do litoral alentejano. Conversávamos com bonomia, brio e provocações brejeiras. O som saía das colunas e obrigava-nos ao trauteio, ao vociferar, ao canto.

    Com entusiasmo, parávamos em tascas e cafés, perguntando por aquilo.

    — Não, não ouvi falar de nada disso.

    — Como é que soube? Eu cá não sei…

    — É melhor perguntarem mais à frente.

    Aparentemente, a informação pretendida não queria chegar-se à rede, mas acossá-la-íamos até cair nos nossos braços. Um velho com vontade de ajudar falou que a coisa estava na praia das Areias Brancas.

    Ainda mais seduzidos pelo nosso desígnio, quase tremíamos, cheios dessa bravia inclinação de quem não quer esquivar-se a nada.

    Uma seta com o nome do lugar deu-nos rumo: via sem asfalto onde as pedras estalavam contra o carro, e a poeira entrava sem vagar pelo habitáculo. Margens feitas de pinheiros mansos estreitavam o percurso.

    Um aroma de resina enleada em sal entrava pelas narinas.

    — Estamos lá quase, puto.

    — Já cheira!

    O céu parecia querer casar-se mais e mais com o mar. O horizonte abria-se com doçura, cedendo à violenta pulsão que nos guiava.

    Eis-nos chegados onde tudo parece estar em ordem. O barulho das ondas é como sino que reverbera interminável ladainha — cada dia sem exaltar Deus é uma afronta.

    O manto dourado e branco das areias vem das dunas altas e termina chão deste oceano. Viramos para o lado direito e marchamos com avidez. O calor varre as frontes e deixa-nos sedentos de água e acontecimentos. Não tarda.

    Os pés ardem nos quilómetros. Chego-me ao mar para poder molhar-me.

    Sabe bem a humidade atlântica.

    Ao longe, ao longo duma duna recortada contra definido azul, vai-se definindo uma matriz cujo sentido ainda nos escapa.

    O espanto renova-se a cada passo. À medida que nos aproximamos a admiração toma-nos mais e mais e mais. Letras enormes, do tamanho dum homem alto, formam, ao longo de dezenas de metros, abreviaturas que levam a versículos da Bíblia. Isaías, Coríntios, Actos, Romanos, Hebreus, Génesis, Jó, Provérbios, Salmos — excertos escolhidos dos Testamentos.

    Tudo feito com plantas daquelas que aguentam o calor, o fraco solo, o sal.

    Verde linguagem virada para o céu como solene exposição de perturbadoras jóias.

    Aquilo esmagou-nos. Estava ali trabalho de meses, pesado amor. Nada ali poderia ser corrigido. Que desmesura. Salmos 91:15 Ele me invocará, e eu Lhe responderei; estarei com Ele na angústia; dela O retirarei, e O glorificarei.

    Jó 17:11 Os meus dias passaram, e malograram-se os meus propósitos, as aspirações do meu coração.

    Só não choro porque estou acompanhado, mesmo que de um grandioso amigo. Humanidade rima com orfandade. Ninguém é livre. Ninguém se livra.

    2 Coríntios 4:18 Assim, fixamos os olhos, não naquilo que se vê, mas no que não se vê, pois o que se vê é transitório, mas o que não se vê é eterno.

    Actos 2:17 E nos últimos dias acontecerá, diz Deus, que do Meu Espírito derramarei sobre toda a carne; e os vossos filhos e as vossas filhas profetizarão, os vossos jovens terão visões, e os vossos velhos sonharão sonhos.

    Actos 22: (fragmentos seleccionados e livremente sequenciados) E persegui este caminho até à morte, de repente rodeou-me uma grande luz do céu. E caí por terra, e ouvi uma voz que me dizia: porque me persegues? E, como eu não via, por causa do esplendor daquela luz, fui levado pela mão dos que estavam comigo. E aconteceu que, voltando eu para Jerusalém, quando orava no templo, fui arrebatado para fora de mim.

    Tirámos várias fotografias, de perto e ao longe, atentas a pormenores ou de vistas mais largas. Por mim, mais do que poder contar toda a história com recurso a imagens, queria era compreender o fito de tudo aquilo. Depois de trocar aqueles símbolos e citações por frases e parágrafos, revelar-se-iam apenas esparsos aforismos, ou à luz viria um arrebatamento, um milagre?

    Possuídos por aquela ignição, regressámos às nossas casas. Nem me lembro de nada desse caminho de volta. Cada um na órbitra do seu Sol, a congeminar o soberbo.

    No dia seguinte, claro, um telefonema de troca de perplexidades e tecer de hipóteses poéticas. Mas, e depois? O que fazer de tudo aquilo?

    — Nada, olha que merda. Fascista do caralho, deixa que se renove o Mistério!

    Mas eu ardia do querer-saber. Assim que pude, fui ao laboratório buscar as revelações das fotografias. Continham tudo, mas não Tudo. E foi essa a ponte que quis atravessar. Através duma Bíblia, fiz corresponder boa parte daquelas abreviaturas a texto.

    Apareceram-me trechos como se fossem o silêncio que antecede o trovão, palavras como arados que rasgam raízes, desagregam terra e abrem sulcos.

    Quanto a agarrar o porquê de alguém querer falar com o Céu através destes índices plantados nas dunas — nada. O sangue que alimentou aquele projecto permaneceria passível de ser usado para transfusões mil, cama para todas as especulações.

    Havia de lá voltar, anos mais tarde. Poucos vestígios restavam. Um sentimento igual a pernoitar num local sacro. Mas o aroma mais claro e intenso vinha dum cheiro a aventura só possível na irmandade que se borda nas grandes amizades — sem compromisso senão o de um gosto pelo que é vasto. Imponentes nos braços da fortuna, fervilhávamos nos meandros do combate contra a indiferença das estrelas

    Paulo Vero é homem dos sete ofícios


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