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  • O vinho e a vinha, os trabalhos, os dias, a alegria e a mania do álcool

    O vinho e a vinha, os trabalhos, os dias, a alegria e a mania do álcool


    Teria muitas maneiras possíveis para começar a falar das relações entre o vinho e a literatura, evocando a sumptuosidade do passado que me desse a razão pelo seu prestígio de todos os textos; porém, ocorre-me, com persistência irracional e, por isso, respeitável, a Odisseia, que atribuímos a um autor mais ou menos mítico: Homero.

    Não é tanto a figura mais importante da história contada que nos ocorre, no entanto. É um outro ser primevo, titânico, com o qual Ulisses (ou Odisseus) se confronta que nos parece justo evocar em primeiro lugar. Nele se resume, parece-nos, a oscilação imaginária que o vinho evoca na literatura: o movimento entre a alegria e a fatalidade.

    people tossing their clear wine glasses

    De facto, Polifemo, o ciclope, tal como nos aparece na narrativa das épicas viagens, embora não seja personagem de prolongada presença, é entidade de um percurso vastíssimo. Sendo primeiro a potestade que aprisiona os viajantes, ele transforma-se, por aceitar o delicioso néctar que Ulisses lhe oferece, naquele que exulta na alegria da embriaguez, adormece na segurança ingénua de um poder que não se reconhece em risco, e desperta na angústia de se ver ludibriado e cego.

    Terá Polifemo atingido a visão suprema, a inteligibilidade da mente em comunhão com o supremo saber, o deleite jubilatório do contacto com o divino? Nunca o viremos a saber. Contudo, parece ser esse um dos apelos fascinantes que o álcool lança: passar uma ponte, sofrer uma perda irreparável e chegar a um lado qualquer a um encontro decisivo cujo esplendor dificilmente se comunica aos outros.

    Tudo se passa como se um vislumbre de plenitude inundasse o ser embriagado, mas, em consequência, este perdesse as referências da sensibilidade visual. Resta o inefável do tacto, do odor, do paladar, como se os sentidos se dispersassem por todo o corpo, e este palpitasse na confusão de um caos vertiginoso.

    Mosaico na Villa Romana del Casale retratando Ulisses dando vinho a Polifemo.

    Omar Khayyam, poeta persa nascido há pouco menos de mil anos, escreveu numa das suas maravilhosas quadras (ou Rubayat, designação da forma estrófica que dá nome, segundo a tradição, ao livro que nos deixou):

                            Quando oiço falar em coisas ditosas

                             De que gozarão os Eleitos, respondo apenas:

                             “Creio no vinho e no dinheiro contado!

                             O som do tambor só me agrada à distância…”

    Tal posição, que nos revela quanto há de religioso, ou, pelo menos, de místico, no vinho, merece ser considerada atentamente. Ela mostra-nos não só quanto o sujeito poético acredita na perfeição do universo a que o vinho dá acesso, numa racionalidade que tem paralelo, apenas, na que evoca o dinheiro, mas também quanto na bebida alcoólica se encontra de impulso para a criação imaginária.

    Contudo, antes dele, os poetas gregos e latinos não tinham uma visão tão parcialmente favorável acerca do vinho. Se, por um lado, gabavam o néctar que provinha dos reinos de Baco, por outro reconheciam como o uso do vinho podia ser indício ou mesmo origem da destruição e da decadência. Mil anos antes de Omar Kahyyam, há pouco menos de dois mil, portanto, Juvenal cantava em pequenos poemas satíricos o triste espectáculo que os ricos davam nos jantares em que se empanturravam e embriagavam.

    Na vida dos escritores, segundo nos revelam algumas biografias, o álcool foi muitas vezes um elemento decisivo, mas ambivalente: nele procuraram inspiração e consolo autores como Faulkner, Hemingway, Sartre ou Carlos de Oliveira. Por ele quase todos se vieram a destruir. E quase todos tiveram a consciência da ambivalência que se desenvolvia na bebida.

    Ernest Hemingway

    Hemingway, por exemplo, encontra no vinho um motivo central para muitas das histórias que situa em Espanha. Contudo, sabe tirar proveito desse mesmo motivo para desenvolver o percurso passional de muitas das suas personagens através do modo como bebem, das bebidas que bebem, das quantidades que ingerem.

    Reconheçamos que, apesar de tudo o que dissemos, não é apenas como bebida que o vinho surge na literatura. Nem é desse modo, julgamos, que ele aparece como grande tema. O cultivo da vinha, a produção agrícola que está na origem da bebida, são motivos centrais na criação de universos de vivência e de conflito de algumas das mais importantes narrativas modernas, quer nos lembremos de autores portugueses quer evoquemos autores estrangeiros.

    Não nos sendo possível enumerar todas e apresentá-las num breve resumo, limitamo-nos a referir-nos a algumas que nos parecem mais importantes, não só pela grandeza dos autores evocados, como pelo facto de serem, de um modo geral, escritores que foram muito bem acolhidos pelos leitores.

    Antes de mais, parece-nos justo lembrar, pelo valor quase emblemático que teve na literatura americana, de modo a ter-se tornado uma obra de amplo acolhimento mundial, traduzida para dezenas de línguas, As vinhas da ira, de John Steinbeck. Neste romance, nunca a vinha é representada como o valor positivo, produtora do fruto que dá alimento e prazer aos homens.

    Capa da primeira edição de As vinhas da ira, de John Steinbeck, publicado originalmente em 1939.

    Ao contrário, a planta e mesmo o fruto de onde é extraído o néctar que, segundo o texto bíblico, devia significar e estimular a paz e a concórdia entre os homens, aparece como o símbolo do trabalho agrícola mecanizado, objecto para onde convergem interesses, ganância e esperanças defraudadas, acabando o território onde cresce a vinha por ser palco do explodir de todos os ódios e rancores que os intervenientes acumulam ao confrontarem-se.

    Até certo ponto, a vinha como palco da luta social, a produção agrícola que culmina no vinho como mecanismo onde se revelam os confrontos sociais, tal como é tratada por Steinbeck, deve ter sugerido a Alves Redol o motivo de base uma das mais curiosas narrativas por ele produzidas. Referimo-nos aos romances que ele escreveu sob a designação geral de Ciclo Port Wine.

    Caso único na sua obra, o autor desenvolve os trágicos confrontos sociais que marcaram as relações sociais de trabalho na época salazarista em três volumes, como uma epopeia organizada em tríptico. Por outro lado, caso raro na obra do romancista, ele sai do universo ribatejano e procura como quadro da intriga que desenvolve em três amplos painéis, a região do Douro vinícola. Os romances são, por ordem na trilogia, Horizonte cerrado (1949), Os homens e as sombras (1951) e Vindima de sangue (1953).

    Trilogia do denominado Ciclo Port Wine, de Alves Redol, publicado entre 1949 e 1953.

    É interessante registar que, quase pela mesma época, um outro grande escritor português, Miguel Torga, abordava os trágicos confrontos humanos na região duriense, no seu romance Vindima (1945). Ligado a um movimento literário anterior ao neo-realismo a que Alves Redol pertence plenamente, Torga aproxima-se, no desenvolvimento das paixões humanas que desembocam no confronto violento, de alguns princípios daquele movimento literário.

    Contudo, é interessante e de notar que não é só esse abandono da posição alheia à dimensão sociopolítica que caracterizou, em geral, a obra de Torga que aqui se faz sentir: também é relevante que seja Vindima o único romance escreveu. Numa obra tão vasta, cultivando os mais variados géneros, esta excepção merece ser cuidadosamente anotada, embora não seja este o lugar para procurar tirar todas as conclusões que daí advêm.

    Na tradição portuguesa, as duas obras que referimos anteriormente merecem um destaque especial. Se o vinho é cantado com alguma brejeirice por poetas portugueses, entre eles o próprio Torga, ou referido como bebida celebrativa ou mesmo origem de desregramento de costumes no romance, como acontece nos banquetes dos padres em O crime do padre Amaro, de Eça de Queirós, a dimensão do vinho e da vinha como símbolo da condição humana aparece pela primeira vez plenamente desenvolvida nos romances de Torga e de Alves Redol.

    Debaixo do vulcão, de Malcolm Lowry, foi originalmente publicado em 1947.

    Mereceriam ainda uma referência rápida algumas obras que, embora por razões que explicitaremos em seguida não cabem neste pequeno conjunto, se revelam importantes narrativas em que a problemática do álcool é abordada.

    Devemos registar, em primeiro lugar que a razão principal para não as termos escolhido como conjunto principal se deve ao facto de não tratarem do vinho propriamente dito, nem das tarefas relacionadas com a produção da bebida ou do cultivo do vinho.

    Mas sentimos que não poderíamos deixar de lhes fazer referência porque, pela qualidade e importância das obras, dentro da produção de autores que foram dos maiores da literatura mundial, seria um esquecimento quase imperdoável.

    O primeiro, até pela ordem cronológica, a merecer referência é A taberna (L´assomoir – o balcão, o lugar onde se bate, com os copos, com as moedas, com as mãos), de Zola. É na taberna que o grande autor francês do século passado apresenta o quadro das condições de vida das classes trabalhadoras em Paris.

    O segundo, respeitando ainda cronologia, é Terna é a noite, de F. Scott Fitzgerald, romance típico da geração perdida americana, dos anos 20 do nosso século, que narra como o álcool contribui para a desagregação de uma intensa relação amorosa.

    E o terceiro, último na referência para o destacar pela grandeza, é Debaixo do vulcão, de Malcolm Lowry, intensa narrativa em que a bebedeira do “herói” se mantém ao longo de quatrocentas páginas. Por esta história, de inesgotável simbolismo, percebemos que a condição humana que a mescalina revela é mais do que existencial ou social: aponta já para a relação directa com os deuses, com as entidades do além, com os mistérios em que se encerra a morte.

    Professor Emérito da Universidade de Évora

  • Directora artística do Teatro Nacional de São Carlos auto-selecciona-se para óperas e recebe por contratos à margem da lei

    Directora artística do Teatro Nacional de São Carlos auto-selecciona-se para óperas e recebe por contratos à margem da lei

    A conhecida soprano Elisabete Matos, eleita deputada do Partido Socialista (embora com mandato suspenso) aceitou em 2019 dirigir em exclusividade o único teatro de ópera em Portugal, mas um despacho da então ministra da Cultura abriu-lhe a porta para compor melhor o ordenado e se auto-escolher para óperas a serem pagas à parte. Porém, os estatutos da OPART, a empresa pública que gere o Teatro Nacional de São Carlos, só prevê que haja recebimentos extra se for por direitos de autor, o que não é o caso de uma soprano que “só” canta a obra de outrem; esse sim, o verdadeiro autor, com direitos.


    A soprano Elisabete Matos – que tem o mandado suspenso de deputada socialista na Assembleia da República até final de Setembro – já se auto-seleccionou para três óperas desde que assumiu o cargo de directora artística do Teatro de São Carlos em Outubro de 2019, tendo mesmo assinado três contratos de prestação de serviços com a OPART (a empresa pública que também gere o Teatro Camões), que acumulou com o salário.

    A mais recente prestação – e consequente contrato – de uma das mais conhecidas e premiadas sopranos portuguesas no seu próprio teatro foi na passada segunda-feira, interpretando Maddalena di Coigny, na ópera Andrea Chénier, de Umberto Giordano com libreto de Luigi Illica. Elisabete Matos fez apenas duas das três récitas previstas, por motivos de saúde, desconhecendo-se o montante recebido, uma vez que a OPART recusou, por duas vezes, divulgar o contrato ao PÁGINA UM, que pode ou não já ter sido assinado.

    Elisabete Matos, em 2017, na ópera Das Rheingold, de Wagner.

    De facto, pela sua participação na ópera Il Tabarro, de Puccini, a soprano recebeu 18.000 euros por três récitas, mas entre o espectáculo e o conhecimento público do contrato mediaram oito longos meses. A ópera foi levada à cena entre 18 e 25 de Maio de 2021, mas o contrato entre a OPART e a empresa espanhola La Luna Lirica – da qual Elisabete Matos surge como representante – somente se assinou em 14 de Outubro do ano passado. No Portal Base, onde as entidades públicas inserem os contratos, apenas apareceu em 21 de Janeiro deste ano.

    Mesmo sem ter sido divulgado o montante a pagar pela OPART à Elisabete Matos pela sua prestação nas récitas do passado mês, é presumível que atinja também os 18.000 euros.

    Além destes dois contratos, para três récitas cada, Elisabete Matos realizou ainda outro contrato, em Setembro de 2020, apenas por uma récita da ópera As mulheres de Puccini. Incluindo ensaios, ganhou nessa noite tanto quanto em um mês de salário como directora artística: 5.000 euros.

    Além de óbvias questões éticas por estas auto-seleccções – até porque uma parte dos trabalhadores daquele teatro sofreram cortes salariais no decurso da pandemia devido à suspensão de espectáculos –, estes contratos têm um muito duvidoso enquadramento legal.

    Teatro Nacional de São Carlos, em Lisboa.

    Ao PÁGINA UM, a OPART garantiu que “a possibilidade de a diretora artística programar produções que contem com a sua participação encontra-se prevista no despacho de nomeação e é uma prática comum em teatros nacionais e no estrangeiro, de modo que os artistas/encenadores que se encontram no activo não tenham de suspender a sua actividade nos teatros onde se apresentavam com regularidade”.

    Mas, se é verdade que o despacho governamental de 2019 – que também fixa a remuneração com exclusividade (5.000 euros em 14 prestações por ano, a que acrescem 300 euros mensais de despesas de representação) – prevê que possam ser contratualizadas, entre Elisabete Matos e a OPART, duas produções anuais com a “participação artística”, desta soprano – ou seja, uma prestação de serviços –, na verdade os Estatutos da empresa pública que gere o TNSC não abre essa possibilidade.

    Contrato de prestação de serviços para a participação de Elisabete Matos na ópera Il Tabarro demorou oito meses a ser conhecido, desde a realização das récitas até à publicação no Portal Base.

    Com efeito, de acordo com um dos pontos do artigo 16º dos Estatutos da OPART, apenas poderiam ser “programadas anualmente” até “duas produções pelas quais sejam devidos direitos de autor ao director artístico”.

    Porém, o recebimento por direitos de autor somente se aplicariam se Elisabete Matos fosse autora de uma ópera ou de um libreto – e uma soprano, tal como outro qualquer executante, com voz ou instrumento, detém somente os denominados “direitos conexos”.

    De acordo com a lei, podendo ser confirmado por consulta à Inspecção-Geral das Actividades Culturais (IGAC), os direitos conexos são “os direitos que a lei atribui aos artistas (intérpretes e executantes) aos produtores (de um filme ou de uma música) e aos organismos de radiodifusão”.

    Aí se esclarecesse ainda que, “no que respeita à música, para além dos autores (da respetiva letra e música), há outros criadores que intervêm nas gravações musicais: os artistas, músicos e cantores, que cantam e interpretam as obras.” Portanto, por cada prestação, como soprano, Elisabete Matos tem “direitos conexos” e não “direitos de autor”.

    Aliás, se dúvidas houvesse de que cada “participação artística” de Elisabete Matos não se encaixa em direitos de autor – o que legalmente nem poderia ser, uma vez que participou apenas como cantora –, bastaria ler o contrato feito para a ópera Il Tabarro, uma vez que consta explicitamente que se trata de um “contrato de prestação de serviços”.

    O PÁGINA UM tentou obter comentários da própria Elisabete Matos, por duas vezes, mas o gabinete de comunicação do TNSC salientou não existirem mais esclarecimentos a prestar do que os entretanto enviados. Sem comentários ficou assim a pergunta do PÁGINA UM à soprano (e directora artística do TNSC) e à presidente do conselho de administração da OPART, Conceição Amaral, sobre se se sentiam “confortáveis” com a realização deste tipo de contratos.

  • Mia Couto

    Mia Couto


    O escritor Emílio Couto, sempre dito Mia – e como tal reconhecido –, nasceu na Beira, em Moçambique, em 1955. Filho de pais portugueses, próximo, desde muito jovem, das lides e práticas das letras, até pelo convívio com o seu pai, Fernando Couto, poeta e colaborador de uma das mais importantes revistas culturais moçambicanas, Paralelo 20, Mia Couto começou a publicar poesia ainda adolescente.

    Passando adiante de um sublinhar de precocidades que poderiam, até, nada significar, registemos como marco importante para o desenvolvimento da sua actividade de escritor, o primeiro livro que deu à estampa em 1983: Raiz de orvalho.

    SÃO PAULO, SP, BRASIL, 24/08/2013 – Coluna Monica Bergamo: palestra do escritor moçambicano Mia Couto para o Fronteiras do Pensamento, no teatro Geo. Na foto, Mia Couto. Foto: Greg Salibian/Folhapress – ILUSTRADA

    Conjunto de poemas onde se encontram pontas do filão inventivo, temático e verbal, que virá a desenvolver, tais textos apresentam-se segundo um processo formal discursivo que abandona logo de seguida.

    O verso e a composição ostensivamente lírica são preteridos em favor da formulação que se torna típica do seu labor: a narrativa curta a que, de um modo geral, podemos chamar conto. No entanto, tal prática não configura, dita assim, simplesmente, a realidade global que é a sua obra.

    Com efeito, se é o conto que se revela como a sua forma privilegiada de expressão, pelo modo como domina a sua representação narrativa o escrito breve, tendo evidente um acontecimento bem desenhado, envolvendo o destino ou um lance importante da vida de pelo menos uma personagem, é verdade que, noutros modos de expressão, ensaiou, e muito bem, os seus passos.

    Capa da 2ª edição de Vozes anoitecidas, primeira obra de Mia Couto publicada em Portugal, em 1986.

    Resumindo o conjunto da sua obra num panorama breve, podemos dizer que, depois da sua estreia em poesia, se afirmou com a publicação de dois livros de contos, Vozes anoitecidas (1986) e Cada homem é urna raça (1990), “o primeiro destes granjeando-lhe notoriedade não só em Moçambique como também em Portugal e noutros países, nomeadamente devido às traduções para inglês e italiano” (Laranjeira, 1995: 144).

    Contudo, ao dar à estampa um livro de crónicas, Cronicando (1988), resultado da publicação periódica na comunicação social, apresenta-nos um conjunto híbrido de pequenas narrativas “exemplares”, quase histórias para serem lidas como apólogos, e digressões reflexivas em que o rápido registo da situação serve de exemplum.  

    Se algumas peças desse conjunto, que foi publicado em Portugal em 1991, podem ser lidos como contos, pelo modo como domina uma situação fortemente marcada pela intriga, outros têm de ser encarados de modo diferente.

    Forçoso será perspectivar, a partir desses textos menos evidentemente enquadráveis num género, a forte componente discursiva que a voz da enunciação apresenta nos textos de Mia Couto. Verifica-se neles, de um modo curioso, a voz que constrói a história ou gera a situação discursiva entrar no universo representado, por vezes quadrando-se numa personagem, para, em seguida, num golpe de geometria textual, sair a comentar a História em que a estória emerge.

    A partir do seu primeiro romance, Terra sonâmbula (1992), um projecto que, desde há anos, o seduzia, pode afirmar-se que, em Portugal, se desenvolve “um verdadeiro culto por Mia Couto, expresso no fascínio que a sua figura exerce, a que não é alheia a ausência de pose intelectual, a simplicidade nos encontros com o público, durante os quais prefere contar histórias pícaras ou dramáticas do quotidiano de Moçambique, a falar da sua obra” (Laranjeira, 1995: 144).

    Cremos que, nessa figura assim constituída, do escritor que vai crescendo na sua escrita, se desenham os contornos principais daquilo que torna este autor uma entidade fascinante pela forma como deriva na senda da permanente fractura, da constante e irónica distância dicotómica: percurso que se desenvolve na unidade da obra e na duplicidade cultural, vivendo a ambiguidade que instaura a vários níveis numa espécie de paródia da especularidade, ou alegria do discurso de sentidos equívocos.   

    De facto, as narrativas de Mia Couto “colocam em situação de exposição, confronto e análise as várias culturas e crenças do homem moçambicano” como já sugeriram alguns críticos (cf. Laranjeira, 1995).

    O humor incómodo é, sem dúvida, um dos elementos a ter em consideração mas, se admitimos que essa exposição afecta o universo histórico referencial da suas histórias (romances e contos), temos de admitir que também o universo do sujeito da narração, o narrador mais ou menos autoral, ou cronista que chega a identificar-se como Mia Couto é exposto aos níveis mais profundos da sua crença: aqueles em que a palavra se motiva, a sintaxe se compõe e os alicerces da representação se fundam.

    Primeiro romance de Mia Couto, Terra sonâmbula, foi publicado originalmente em 1992.

    A sequência das suas restantes publicações vem demonstrar-nos que a vereda escolhida, para desenvolver obra em meio de culturas, em abismo de línguas, é o mecanismo fundamental da poética de Mia Couto.

    Em 1994, publica Estórias Abensonhadas, em 1996 dá à estampa o romance A Varanda de frangipani e, no ano seguinte, Contos do nascer da Terra. Cada vez mais, ao longo da sua produção, domina aquilo que poderíamos chamar a dupla ruptura: com as normas da tradição ilustre da literatura portuguesa, sua cultura de origem,  por apelo ao regime do fabuloso – como faz abertamente, por exemplo, no seu último romance, em que o narrador, Kindzu, é um morto cujo diário foi encontrado – mas sem optar, exclusivamente, pelo fabulário africano; e com as normas da língua portuguesa sem se decidir, como se patenteia, por nenhuma língua moçambicana.

    No entanto, tal posição de ruptura é sustida como ruptura, não como abandono. O que se exibe é o rasgão, ou a fractura. Mia Couto não abandona o terreno da literatura que se desenvolveu como uma das grandes forças de coesão cultural a partir da Europa. Se repararmos bem, por exemplo, o morto narrador apela imediatamente para uma das figuras tutelares da literatura em língua portuguesa (brasileira, talvez não por acaso), que é Machado de Assis, com o seu Memórias póstumas de Brás Cubas.

    Se formos atentos às rupturas que desenvolve serena e persistentemente, cada vez com mais frequência, em relação à norma da língua portuguesa (tomando como padrão uma escolaridade avançada e um acordo ortográfico a obter), verificamos que ele rompe pelo excesso de domínio da língua, buscando as rupturas nos limites do possível.

    Quanto a este último aspecto, podemos dizer que Mia Couto fractura a unidade do “padrão” pelas marcas da influência dos esquemas de colocação de afixos (sejam eles prefixos sufixos ou mesmo infixos) à maneira banta. De facto, o que ele representa, na própria aventura da escrita, é o acto vertiginoso de conduzir uma língua (que até é a sua de origem – e não dizemos materna porque ele, no seu radicalismo semântico, nos lembraria que não foi gerado por nenhuma língua) até à curva onde range, por ímpeto causado pelas estruturas e esquemas mais gerais, de línguas com as quais está em contacto de bilinguismo.

    A sua opção é a de uma sub-reptícia ousadia em língua dupla, sob a capa da plenitude de uma só língua, com a intromissão, pontual e amplamente anotada, de uma ou outra palavra de origem moçambicana. Também aqui sabemos que Mia soube guardar e salvar honrosos parentes, idos mas presentes: pensemos sobretudo em Guimarães Rosa que tanto prezava a língua alemã, inspiradora dos palavrões compridíssimos com sabor a sertanejo, a índio, a cafuzo e mesmo a piar de ave ou bicho de pantanal, pelos quais ele brindava a nossa imaginação.

    De facto, quando Mia Couto nos apresenta o seu léxico português, ele não faz mais do que tentar ousadias de mistura, que resultam em novidade e produtividade de expressão. Por exemplo, nada impede “antemanualmente” de ser português, excepto o não se usar. Talvez não se tenha usado.

    Trilogia de As areias do imperador, obra do género histórico, rara na bibliografia de Mia Couto.

    No entanto, este mecanismo tão elementar da nossa língua que permite fazer advérbios de tudo (e isso, Pessoa, por exemplo, tinha-o descoberto claramente) permite a entrada de estruturas morfo-sintácticas das línguas bantas mais comuns em Moçambique na língua portuguesa.

    O filão africano desta laboração já é muito rico. Mia Couto revela conhecer-lhe muito bem as realizações – o que não é de espantar, pois um dos cultores desse modelo (embora de modo menos sistemático, em nosso entender) foi Luandino Vieira, escritor angolano com o qual o autor moçambicano mais jovem tem francos parentescos.

    Reparando bem, o que aqui acabamos por fazer é o elenco canónico de alguns pontos destacáveis de entre os grandes escritores que pelo mundo fizeram crescer o português como língua, que a consolidaram, que a mantiveram viva. Isso fica claro e ninguém melhor do que Mia Couto o sabe fazer, como tentaremos mostrar em breve encerrando a nossa apresentação deste novo grande escritor.

    É bom acrescentar, apesar de tudo, antes de passarmos à apologia de uma nova odisseia da escrita pelo próprio autor, que a aventura de Mia Couto tem, também, uma dimensão continental. Faz parte de uma importante tradição africana, recente mas profunda, buscar caminhos para a emergência ampla da sua expressão escrita. O caminho para essa abertura tem-se revelado, no entanto, bastante escabroso e, no mínimo, tem apresentado complexas dificuldades.

    Mia Couto, durante o discurso de entrega do Prémio Camões em 2013.

    Muitas das línguas africanas não são facilmente grafáveis; muitos países africanos dificilmente poderiam optar por uma língua dominante (para já não falar da complexidade dos dialectos que algumas têm); e a escolarização, a partir de todas essas dificuldades, manifesta-se como mais um escolho a obstruir o caminho. A solução prática tem sido o recurso às línguas dos colonizadores que, para fins práticos e de instrução básica, se mostra satisfatória.

    Perante esta última solução para a escolaridade, muitos escritores optaram por exprimir, numa espécie de tradução possível, o manancial cultural de que eram portadores e recriadores, em francês, inglês, português e mesmo, num ou outro caso, em alemão.

    O resultado não é nada desprezível. Só em língua portuguesa podemos citar obra acabada e plena de um grande poeta, Craveirinha, de quem os “puristas” não costumam ter nada a dizer de mal, ou de um grande romancista que nos parece difícil questionar nesse terreno, Pepetela.

    Mas, mais importante ainda, parece-nos o facto de o Nobel africano, Wole Soyinka, escrever algumas das suas magníficas peças num inglês que os entendidos reconhecem ser de um nível verdadeiramente shakespeareano. Contudo, uma outra linha africana, vinda de um controverso, mas magnífico narrador, também ele nigeriano como Soyinka, chamado Amos Tutuola, tem proposto uma aventura de deriva e transformação da língua do colonizador por força da intervenção da língua africana em que autor se exprime.

    E, isso, segundo ele, seria muito mais trabalho de uma inspiração poética, do que de um deliberado esforço de tradução. É nesta última linhagem que Mia Couto, na sequência de outros grandes autores africanos, se vem inscrever.

    Tão bem ou melhor do que qualquer dos seus mestres e émulos, o autor de que aqui falamos, multiplamente premiado, sabe defender essa posição. Fá-lo, no entanto, mais no terreno de quem conhece e defende a língua portuguesa contra imobilismos, do que de quem pretende a invasão da língua veículo.

    O livro de contos O caçador de elefantes invisíveis, publicada no ano passado, é a mais recente obra de Mia Couto.

    Não podemos entender de outro modo a dimensão irónica da sua frase: “Porque isto de falar ou escrever tem de ser dentro de margens. Como um rio manso e leve, tão educado que não levante poeiras do fundo. Um rio que passe com essa eterna transparência que, verdade autografada, só a morte possui. Seja então a pureza pela morte trazida e por ela conservada”.

    É assim, deste modo, como percurso ou mudança que a língua se lhe afigura e só no processo desse percurso a língua pode ser criadora, no sentido forte que a literatura lhe anexa. É ao agitar a língua que a vida da mesma se assegura. Tal ideia volta num outro texto, pela figura da estrada.

    Com esta, desenham-se, também, com clareza, já não tanto os limites de uma gramática normativa, como as fórmulas poéticas da criação: “Acontece que o mundo é sempre grávido de imenso. E os homens, moradores de infinitos, não têm olhos a medir. Seus sonhos vão à frente de seus passos. Os homens nasceram para desobedecer aos mapas e desinventar bússolas. Sua vocação é a de desordenar paisagens. (…) É que o pé, posto em viagem, anula a condição terrestre. Em troca, o chão se vai desnudando: na alma humana surgem as pegadas do planeta. Afinal, os carreiros, esses teimosos surgentes, não servem apenas para levar os viajantes. Eles próprios se movem junto com a travessia. Deste modo, os lugares se visitam entre si, recordando-se do tempo em que o universo estava todo no ventre de uma pequena gotinha”.

    Talvez muitos vejam, nestas últimas imagens, a visão de um biólogo que, academicamente, Mia Couto é. E nós concordamos, mas pensando que um biólogo se confundirá com o biófilo (repare-se que, biófilo, além de significar “o que ama a vida”, em biologia designa é o ser parasitário, que vive nos organismos vivos) que todo o grande poeta é, mesmo ao saudar a morte.

    Contudo, a imagem que gostaríamos de enfatizar é a dos que vêem no trabalho literário de Mia Couto uma ousadia maior: a de afirmar e defender, em situação de fractura e distância, a vitalidade de uma língua, capaz da grande transformação de travessia, dos desvios regeneradores e criativos: a desviagem.

    É essa postura que ele mantém, até aos últimos livros que publicou e que se revelam incontestáveis êxitos literários e verdadeiros best sellers. É desse modo que uma língua pode unir povos, ser uma riqueza cultural, ser una porque nos entendemos com ela, e múltipla porque ajuda a construir as diferenças que nos libertam.


    Bibliografia:

    Laranjeira, Pires, 1995, Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, Universidade Aberta, Lisboa

    Professor Emérito da Universidade de Évora

  • Hélia Correia

    Hélia Correia


    Hélia Correia é uma das mais prolíferas escritoras portuguesas contemporâneas. Isto, por si só, não seria importante, se ela não fosse, ao mesmo tempo, uma das mais criativas e originais nos vários géneros literários que cultivou.

    É de destacar, efectivamente, que, se a autora de A Casa Eterna se tem notabilizado como romancista, talvez, em grande parte, por ser este o género que mais atrai o público leitor e que por tanto, se abre a uma maior comunicabilidade, a verdade é que ela tem cultivado, com grande perfeição e rigor, os outros géneros básicos que costumamos considerar como constituindo a repartição integrante do vasto campo da literatura: o texto teatral e a poesia lírica.

    Hélia Correia. Foto: © Graça Sarsfield

    Mas não fica por aí, o talento multímodo da autora que aqui consagramos. Notáveis são, também, os textos que escreveu para a infância, os quais parecem, muitas vezes, uma inevitável extensão da sua prodigiosa capacidade de efabulação, em busca de um público mais alargado.

    Neles se desenvolve o seu imenso dom coloquial e oratório, como que em terra onde é mais propícia a fantasia desbridada e exuberante, do que naquela em que os adultos assentam os pés.

    Devemos notar ainda que a importância da  reflexão poética, sobre o trabalho literário, tem sido muito coerentemente defendida pela autora em entrevistas ou em breves excursos no interior da sua própria criação.

    Parece-nos pertinente, antes de continuarmos esta nossa breve apresentação da obra da autora, dar a conhecer o corpus publicado por ela, até à presente data:

    Os papagaios de Natal e outros contos, a estreia de Hélia Correia, em 1977, aos 28 anos, foi para o público juvenil.

    Ficção

    O separar das águas (1981)O número dos vivos  (1983); Montedemo (1983); Villa Celeste (1985); Soma (1987); A fenda erótica (1988); A casa eterna (1991); Insânia (1996); Lillias Fraser (2001); Fascinação seguido de A Dama Pé-de-Cabra de Alexandre Herculano (2004); Bastardia (2005); Desmesura: exercícios com Medeia (2006); Contos (2008); Adoecer (2010); Vinte degraus e outros contos (2014); O separar das águas e outras novelas (2015); Obras escolhidas (2015); Um bailarino na batalha, 2018.

    Poesia

    A pequena morte/Esse eterno canto [em díptico com Jaime Rocha] (1986); Apodera-te de mim (2002); A terceira miséria (2012); Acidentes (2020).

    Teatro

    Perdição: exercício sobre Antígona seguido de Florbela (1991); O rancor: exercício sobre Helena (2000); A teia (2013); As troianas (2018).

    Para a Infância

    Papagaios de Natal e outros contos (1977); A luz de Newton (1988); Sonho de uma noite de Verão (Shakespeare) – versão infantil (2003); Mopsos, o pequeno grego – O ouro de delfos (2004); Mopsos, o pequeno grego – A coroa de Olímpia  (2005); A ilha encantada – versão infantil de A tempestade de William Shakespeare (2008); A chegada de Twainy (2011).

    Prémios:

    A casa eternaPrémio Máxima de Literatura, 2000.

    Lillias FraserPrémio de Ficção PEN Clube, 2001 e Prémio D. Dinis, 2002.

    Bastardia – Prémio Máxima de Literatura, 2006.

    Adoecer– Prémio Fundação Inês de Castro, 2010 e Prémio Especial do Júri Máxima de Literatura, 2011.

    A terceira miséria – Prémio de Poesia das Correntes D’Escritas, 2013.

    Prémio Vergílio Ferreira, 2013 – pelo conjunto da sua obra literária.

    Prémio Camões, 2015 pelo conjunto da sua obra literária.

    Prémio Literário Guerra Junqueiro, 2021 pelo conjunto da sua obra literária.

    Acidentes Prémio de Poesia PEN Clube, 2021

    Lillias Fraser, o romance que consagrou Hélia Correia.

    Coloquialidade, oratória hiperbólica e desenfreada imaginação bem podem ser as insígnias desta surpreendente escritora, tal como já referimos.

    O espanto, face a essas qualidades, leva os críticos, quase sempre cheios de razão, a associar a sua produção às mais variadas tradições culturais e literárias.

    Dessas ganharão base, provavelmente,  as características  da escritora que se desenvolvem entre uma luminosidade quase apolínea da construção da frase, e uma capacidade de construção do discurso ou dos episódios narrativos pautada pelo rigor da lucidez e apelo demoníaco do absurdo e da irracionalidade.

    Alguns chamaram a esta torrente criativa  uma escrita “camiliana”, pela sua dimensão paradoxal, apaixonada,  luciferinamente luminosa e, simultaneamente, carregada de máculas da sombra e do mistério. Justifica mesmo, alguém, que “essa era uma maneira de dar nome a uma impressão de solidez”, dado que há sugestão camiliana “em qualquer escrita de desapiedada concentração conflitual”[1].

    Outros apontam uma opção pelos processos caros ao surrealismo, ou ao visionarismo da alquimia, ou ao esoterismo gnóstico, como o que Maria Gabriela Llansol representa, sem que, contudo reconheçam, nesses traços, uma filiação definitiva  da autora de A casa eterna.

    O que fica quase sempre patente, na sua criação, seja ela ficcional, para adultos e para crianças, seja dramática ou lírica, é a capacidade de fazer emergir uma atmosfera etérea em que todos os acontecimentos narrados, ou todos os objectos e espaços descritos nos aparecem de uma forma que exalta a estranheza e insólito da sua própria ocorrência ou da sua simples presença.

    Outros, ainda, vêem na notável versatilidade do seu imaginário uma marca dos grandes cultores do realismo fantástico. Ocorre compararem-na aos grandes mestres latino-americanos do género, quando acontece unir, à notação da ocorrência mais banal,  a desenfreada representação das virtualidades fantásticas dos seus seres, ora angélicos, ora satânicos, ora ainda entes lançados em obscuros e labirínticos roteiros. Vem mesmo a propósito, para alguns críticos, a evocação de Gabriel García Márquez, para caracterizarem determinados processos narrativos da autora.

    Tal evocação parece muito pertinente, pois uma das marcas mais fascinantes da escrita de Hélia é domínio e versatilidade com ela faz fluir, em contrapontos ou encadeamentos, os mecanismos da enunciação narrativa.

    Grande parte da ambiência fantástica, da introdução insidiosa do terror, da atmosfera da perfídia ou do medo, é criada pela ausência de uma consciência autoral credível, ou de uma personagem estruturadora dos princípios do real, ou verosimilmente defensora dos valores de verdade. O seu discurso narrativo, como o de alguns dos grandes mestres do realismo fantástico, é sempre percebido como o discurso de “outra pessoa”,  institucionalmente não-credível: os grupos femininos, o colectivo aldeão, o saber gnómico atribuído a entidades enigmáticas.    

    A terceira miséria, obra de poesia galardoada com o Prémio Correntes d’Escritas em 2013.

    Este último traço remete-nos, por outro lado,  quase sem surpresa, para uma tradição gerada pelo confluir das várias correntes do fantástico europeu, que tem o seu culminar em Kafka. Por muitos traços, sobretudo os que sustentam a sugestividade da sua ficção, a obra de Hélia Correia poderia ser comparada à do escritor checo de marcada origem judaica.

    Em todas as suas histórias surge a acentuada intromissão do improvável, do surpreendente e do fantástico, sustidos pela perspectiva de uma personagem, ou de um narrador exterior à intriga mas que só raramente se apresenta como inteiramente credível.

    É como se fossem abertas, mais estrondosa e incontrolavelmente do que é comum entre os ficcionistas, mesmo os que perlaboram em torno do surpreendente, as portas à aceitação das regras da efabulação, pela suspensão das regras da credibilidade.

    O cenário privilegiado pela autora é, quase sempre, o do campo, com a sua variante do pequeno povoado rústico. É através desses microcosmos que o estado da civilização de uma região ou de um país, ou universo das grandes urbes, são avaliados.

    Mesmo as histórias localizadas aparentemente na cidade, como é o caso de Soma, acabam por ter alguns dos seus momentos cimeiros nas zonas rústicas ou campestres. Esta tópica preferencial, alerta-nos para uma dimensão importante na obra de Hélia Correia que, por vezes, é esquecida, pelo facto de as dimensões de inquietação mística ou gnóstica, ou mesmo as da transfiguração fantástica se evidenciarem: a sua preocupação político-social.

    De certa forma, num nível muito lato e demarcado de sectarismos (que, por vezes, comenta com ironia, distância, condescendência ou simpatia), a obra da autora de Lillias Frazer efabula, a partir de postulados ora alegóricos ora satíricos, visões do mundo que se colocam veementemente como críticas aceradas aos absurdos e contradições dos nossos modernos estados democráticos. E, nessa dimensão do libelo crítico, podem ser entendidas muitas das suas incursões no plano histórico, que ora colocam sob observação as condições sociais da mulher, ora evidenciam os confrontos de classe.   

    Estas tomadas de posição têm merecido algumas considerações entusiásticas, sobretudo da parte da crítica que se inscreve nos horizontes ideológicos e epistemológicos de feminismo. Pela posição que ocupam nas sociedades tradicionais, que são os espaços sociais preferidos pela autora, a ênfase da leitura “feminista” pode justificar-se. Mas, por outro lado, são muito pertinentes as observações que tendem a valorizar outras representações dos dinamismos sociais.

    Efectivamente, por exemplo, os confrontos geracionais emergem em muitas das suas narrativas, quer pela constituição das imagens de fascínio, de recusa  ou de receio que os indivíduos duma geração criam, em relação aos de outra, quer pela desmontagem dos laços familiares e de domínio que se prendem, igualmente, a essa dicotomia.

    Acidentes, a mais recente obra de Hélia Correia.

    Os microcosmos que constituem, habitualmente, os cenários onde se desenvolvem as suas intrigas, remetem para a figuração, por vezes em moldes insólitos, dos mecanismos sociais, económicos e políticos.

    Frequentemente, as dinâmicas de relacionamento são activadas pelo confronto de classes percebido pelos seus traços mais evidentes: o trabalho manual versus trabalho intelectual, reformados versus trabalhadores, patrões versos empregados ou empregadas, classe senhorial versus serviçais. Apresentando-se, quase sempre, em cenários sociais restritos e pouco desenvolvidos tecnologicamente, esses confrontos ganham, frequentemente, um traço insólito, ou mesmo uma luz de inquietante estranheza.

    A última página do seu último livro, constituído por poemas e intitulado A terceira miséria,  imediatamente antes do índice, apresenta uma lista de nomes de autores e de títulos. 

    Exprimindo, aí, uma  dívida confessada, que vai de Ésquilo a Maria Gabriela Llansol, passando por Nietzsche ou Holderlin, a autora remete-nos para um último grande tópico que pretendíamos aqui enfatizar: a memória dos clássicos. É isso que explica o título deste longo poema dividido em 32 secções: «A terceira miséria é esta, a de hoje. / A de quem já não ouve nem pergunta. / A de quem não recorda».

    O passado, para Hélia Correia é um retorno às fontes da poesia, sobretudo pela expressão lírica e pela escrita para teatro. Nesses géneros, tem privilegiado o diálogo com os clássicos gregos, um diálogo que também está presente nas histórias que escreveu para leitores mais novos e que têm como protagonista Mopsos, o pequeno grego.

    Essa paixão pela Grécia, desde há muito presente na obra desta autora, desagua agora neste livro de poesia, onde a Grécia clássica surge como farol e como impossibilidade, paradoxo que faz parte da nossa cultura mas também do nosso posicionamento político: «Para onde olharemos? Para quem? / Certo é que Atenas se mantém oculta / E de algum modo intacta, por debaixo / Do alcatrão, do ferro retorcido. / Certo é que nunca ressuscitará / Visto que nada ressuscita».


    [1] Cf. Fernando Venâncio, Colóquio Letras 123/124 p.385

    Professor Emérito da Universidade de Évora

  • Banco de Portugal ‘estoira’ 130 mil euros em festa (atrasada) de aniversário

    Banco de Portugal ‘estoira’ 130 mil euros em festa (atrasada) de aniversário

    Seis meses depois de fazer 175 anos, o Banco de Portugal “lembrou-se” de dar ao povo um concerto do músico João Gil acompanhado pela Orquestra Metropolitana de Lisboa. O concerto foi no sábado passado, pela tarde, mas a “borla” atraiu pouca gente. E no Terreiro do Paço, além de se ouvir música, viu-se como se pode gastar facilmente 130.995 euros.


    “O Banco de Portugal foi criado por decreto régio em 19 de Novembro de 1846, com função de banco comercial e de banco emissor” – assim reza a História, e também o site desta instituição liderado agora por Mário Centeno, ex-ministro das Finanças do anterior Governo de António Costa.

    Entre esse longínquo dia 19 de Novembro de 1846 e o dia 21 de Maio de 2022 – isto é, o sábado passado – passaram 175 anos, seis meses e dois dias.

    Porém, os aniversários, como o Natal, são quando um homem (ou mulher) quer – e, assim sendo, o Banco de Portugal decidiu comemorar com o povo o seu 175º aniversário, mas seis meses e dois dias depois. E fez isso com um concerto do músico João Gil acompanhado pela Orquestra Metropolitana de Lisboa.

    Ao ar livre, numa tarde primaveril, em frente ao Tejo – mais precisamente, no majestático Terreiro do Paço, símbolo histórico do comércio e do poder.

    Majestático, contudo, só o custo do concerto, porque, entre fãs de João Gil e mirones, o evento comemorativo não atraiu mais de meio milhar de pessoas – contadas com bonomia.

    Pela produção, incluindo montagem e desmontagem do palco, a Sons em Trânsito – uma empresa de Aveiro de agenciamento e produção de espectáculos – levou dos cofres do Banco de Portugal 86.500 euros em dois contratos: um de 74.000 euros para a organização do evento e outro de 12.500 euros para pagamento do músico João Gil. Contabilizando o IVA, o total da factura chegou aos 106.395 euros.

    Por sua vez, a Orquestra Metropolitana de Lisboa, através da associação O Sentido dos Sons, teve direito a um contrato de 20.000 euros, que se fixou nos 24.600 euros com IVA.

    Pelo concerto de cerca de duas horas, o Banco de Portugal despendeu, desse modo, um total de 130.995 euros – um montante quase duas vezes e meia da receita máxima de um concerto de João Gil agendado para o Coliseu dos Recreios, no próximo mês de Setembro. Mas aí quem quiser ir ver terá de pagar entre 20 e 40 euros, enquanto que no Terreiro do Paço foi tudo supostamente de borla, embora custando ao erário público mais de 250 euros por espectador que por ali passou, mirones de passagem incluídos.

    O PÁGINA UM contactou o director de comunicação do Banco de Portugal, Bruno Proença, para saber quais os critérios que presidiram à escolha deste formato (apenas um pequeno concerto numa praça de grandes dimensões) e do músico em causa (João Gil) e aos gastos feitos, procurando também obter resposta sobre se a instituição considerava que os objectivos previstos para este evento tinham sido alcançados. Não houve resposta.

    Fotografias de Maria Afonso Peixoto

  • Uma democracia de quase meio século e a sua (até agora) única mulher primeira-ministra

    Uma democracia de quase meio século e a sua (até agora) única mulher primeira-ministra

    Mais de um terço da actual população portuguesa ainda não era nascida quando a primeira mulher, assumiu a chefia de um Governo democrático. Foi apenas por 100 dias, num Executivo de iniciativa presidencial, mas constitui ainda hoje um marco indelével na História de Portugal, talvez a merecer sucessoras. O Museu da Presidência da República mostra, até finais de Agosto, “retratos” da vida singular de Maria de Lourdes Pintasilgo, numa exposição evocativa que deve ser visitada não apenas por quem a quiser ver, mas sobretudo para todos aqueles que a devem ver: todos os portugueses.


    “Não foi Presidente da República, mas é quase como se tivesse sido”. Exageros à parte, embora pudesse mesmo ter sido, foi com estas as palavras, em “testemunho suspeito”, como confessou, que Marcelo Rebelo de Sousa inaugurou na sexta-feira passada uma exposição no Museu da Presidência da República dedicada à única mulher portuguesa que ocupou a função de primeira-ministra: Maria de Lourdes Pintasilgo (1930-2004).

    Foi no dia 1 de Agosto de 1979 que Maria de Lourdes Pintasilgo fez História ao tomar posse como a primeira mulher a ocupar o máximo cargo governativo, mas essa foi, na verdade, uma marca indelével da sua vida. “Em que é que não foi a primeira?”, indagou Maria Antónia Pinto Matos, directora do Museu da Presidência, no discurso de inauguração.

    De facto, mesmo tendo sido primeira-ministra num Governo de iniciativa presidencial durante cerca de uma centena de dias – ou seja, Ramalho Eanes, então presidente da República, nomeou-a por sua iniciativa, após a demissão de Mário Soares, até às eleições legislativas de 2 de Dezembro de 1979, que viriam a ser ganhas por Sá Carneiro –, Maria de Lourdes Pintasilgo esteve sempre um passo à frente do seu tempo.

    Embora liderando um Governo de gestão, durante o seu mandato ainda se criou o Número de Contribuinte Fiscal, se reforçou a criação de diversas Instituições de Solidariedade Social, se implementou o Serviço Nacional de Saúde e ainda se estabeleceu a escolaridade obrigatória.

    Licenciada em Engenharia Químico-Industrial aos 23 anos, pelo Instituto Superior Técnico – num tempo em que mulheres eram uma raridade em curso de Engenharia –, trabalhou como investigadora na Junta de Energia Nuclear e, mais tarde na CUF.

    Mas foi como “católica progressista”, com a sua “intervenção social em causas sociais, ambientais e das mulheres, [que] continuam actuais”, conforme salientou a directora do Museu da Presidência, que Maria de Lourdes Pintasilgo mais se destacou.

    Durante o Estado Novo, ainda recusou ser deputada na Assembleia Nacional – de partido único –, mas aceitou ser procuradora da Câmara Corporativa, uma espécie de órgão consultivo, mas sem pendor político.

    Com boas relações pessoais com Marcelo Caetano – antes da queda do regime com o 25 de Abril – nos primeiros anos da década de 70 ainda foi consultora na Secretaria de Estado do Trabalho e Previdência e presidiu ao Grupo de Trabalho para a Participação da Mulher na Vida Económica e Social.

    Chegou a integrar a delegação portuguesa à Assembleia Geral das Nações Unidas, proferindo, entre 1971 e 1972, diversas intervenções, entre as quais sobre o direito dos povos à auto-determinação, a condição feminina e a liberdade religiosa.

    Com a democracia, surgiu a sua experiência governamental. Antes das primeiras eleições legislativas da III República, esteve nos diversos Governos Provisórios. No primeiro assumiu o cargo de secretária de Estado da Segurança Social. No segundo e terceiro foi ministra dos Assuntos Sociais.

    Em 1975, já com Portugal a ser governado por um Governo Constitucional, Maria de Lourdes Pintasilgo foi membro do Conselho de Imprensa, e também passou a ocupar a presidência da Comissão da Condição Feminina.

    Mas outros voos se seguiram. Em Agosto de 1975 foi nomeada embaixadora junto da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), onde permaneceu até ser chamada por Ramalho Eanes para chefiar o executivo em 1979. Foi, aliás, também a primeira portuguesa a ocupar essas funções.

    Ainda na década de 80 tentou mesmo chegar à Presidência da República, concorrendo às eleições de 1986, as mais concorridas de sempre e ganhas apenas à segunda volta por Mário Soares. Sem máquinas partidárias de apoio, recolheu na primeira volta apenas 7,36% dos votos, ficando atrás de Mário Soares, Freitas do Amaral e Salgado Zenha.

    Embora tenha apoiado a criação do Partido Renovador Democrático (PRD), uma força partidária apadrinhada por Ramalho Eanes – que chegou a 45 deputados nas eleições de 1985 –, aproximar-se-ia posteriormente ao Partido Socialista, chegando a ser eleita eurodeputada independente nas eleições para o Parlamento Europeu em 1987 e 1989.  

    E é para todos estes e muitos outros tempos da antiga primeira-ministra que a exposição “Maria de Lourdes Pintasilgo – Mulher de um Tempo Novo” transporta os visitantes. Nos expositores, há um pouco de tudo: artefactos, objectos, livros, fotografias e documentos, que se unem para (re)contar a sua história.

    Dividida em dois pólos, no primeiro estão também incluídas as “memórias” das eleições presidenciais que viria a disputar em 1986. Aí estão expostos, por exemplo, além de material da campanha, parte dos seus apontamentos, escritos à mão.

    O segundo pólo, por outro lado, é mais pessoal e intimista. Ali vislumbra-se a sua infância nos brinquedos com que cresceu, nas fotografias de família, na sua colecção de Santas Anas. Descobre-se aí a mulher, a militante feminista, a cristã que trouxe o Graal – um movimento internacional de mulheres cristãs que começou na Alemanha – para Portugal, e a sua obra.

    Nesta exposição, as várias dimensões de Maria de Lourdes Pintasilgo não cabem em rótulos simplistas. Pelo contrário, desafiam-nos, o que é evidente, desde logo, na aparente contradição entre a sua vincada fé católica e o feminismo que defendia, ou a sua tendência política à esquerda.

    Mas há muitos aspectos que a exposição não mostra, mas que apenas se pode intuir, ou saber, por aquilo que contam os que a conheceram. Durante a cerimónia de abertura, Marcelo Rebelo de Sousa frisou a ausência de “tiques populistas” em Maria de Lourdes Pintasilgo, acrescentando que “não era plástica”.

    Admitindo ter “saudades das conversas intermináveis” que mantiveram, o presidente da República defendeu ser “um grande dever cívico recordar Maria de Lourdes Pintasilgo”, que “vivia a vida com uma intensidade ilimitada”.

    Para conhecer a vida e obra de Maria de Lourdes Pintasilgo, o PÁGINA UM recomenda o documentário de Graça Castanheira, que pode ser visualizado na RTP Arquivos.

    Fotos: Pedro Matias / Museu da Presidência


    Maria de Lourdes Pintasilgo. Mulher de um Tempo Novo

    EXPOSIÇÃO | 14 mai. – 31 ago. ’22 | Viveiros do Jardim da Cascata do Palácio de Belém | Exposição permanente do Museu da Presidência da República | Horário: 10h-13h | 14h-17h, todos os dias, com exceção de segunda-feira e da manhã do terceiro domingo de cada mês | Entrada livre

  • Poeta angolano Abreu Paxe em encontro sobre escrita literária

    Poeta angolano Abreu Paxe em encontro sobre escrita literária


    Realiza-se esta tarde, pelas 17:00 horas (de Lisboa), mais uma sessãodo seminário DA ESCRITA LITERÁRIA 2022, um conjunto de debates com escritores (em especial, de língua portuguesa), uma organização com a chancela de diversas instituições académicas e culturais nacionais e estrangeira, e que conta com o apoio do PÁGINA UM.

    A sessão de hoje conta com a participação especial do poeta angolano Abreu Paxe, nascido em 1969 no vale do Loge, município do Bembe, tendo-se licenciado no Instituto Superior de Ciências da Educação (ISCED), em Luanda, na especialidade de Língua Portuguesa, onde é agora docente de Literatura Angolana.

    Abreu Paxe

    A sessão pode ser acompanhada via ZOOM.

    Em parceria como o Centro de Formação de Escolas António Sérgio, este Seminário encontra-se certificado como Ação de Formação de Curta Duração (ACD), ao abrigo do Despacho 5741/2015 de 29 de maio, para efeitos de progressão da carreira docente, designadamente de educadores de infância, docentes dos ensinos básico e secundário e de educação especial. A inscrição deve ser feita aqui.

    Caso um assistente queira um certificado de participação para fora de Portugal (onde esta certificação não tem efeitos na carreira docente), bastará que o indique na inscrição.

    O PÁGINA UM associou-se ao seminário DA ESCRITA LITERÁRIA 2022, um conjunto de debates com escritores (em especial, de língua portuguesa), uma organização com a chancela de diversas instituições académicas e culturais nacionais e estrangeiras, a saber: Universidade Católica, Universidade Aberta, Faculdades de Letras e de Ciências da Universidade de Lisboa, Faculdade de Artes e Letras da Universidade da Beira Interior, Universidade Complutense de Madrid, Universidade do Minho, UNINT-Università degli Studi Internazionali di Roma, Universidade Fernando Pessoa, Universidade Lusófona, Univeridade da Madeira, Universidad Libre de Infantes, Universidade de Santiago de Compostela, Associação Portuguesa de Escritores, Centro Cultural Eça de Queirós, Centro de Estudos Ferreira de castro, Centro de Estudos Regianos, Centro de Estudos Graal (USC), CISESG, CISLE, IECC – Instituto Europeu de Ciências da Cultura – Padre Manuel Antunes, Academia Lusófona Luís de Camões (SHIP), Instituto Fernando Pessoa (SHIP), Letras Com(n)Vida (plataforma inter-institucional), Observatório da Língua Portuguesa e portal TRIPLOV.

    O PÁGINA UM também irá disponibilizar, durante as próximas semanas, as gravações de uma selecção criteriosa de eventos já realizados, integrados em ciclos de literatura, promovidos em conjunto pela Universidade de Lisboa e a Universidade Fernando Pessoa (Porto).

  • PÁGINA UM associa-se a ciclos literários

    PÁGINA UM associa-se a ciclos literários


    O PÁGINA UM associa-se ao seminário DA ESCRITA LITERÁRIA 2022, um conjunto de debates com escritores (em especial, de língua portuguesa), uma organização com a chancela de diversas instituições académicas e culturais nacionais e estrangeiras, a saber: Universidade Católica, Universidade Aberta, Faculdades de Letras e de Ciências da Universidade de Lisboa, Faculdade de Artes e Letras da Universidade da Beira Interior, Universidade Complutense de Madrid, Universidade do Minho, UNINT-Università degli Studi Internazionali di Roma, Universidade Fernando Pessoa, Universidade Lusófona, Univeridade da Madeira, Universidad Libre de Infantes, Universidade de Santiago de Compostela, Associação Portuguesa de Escritores, Centro Cultural Eça de Queirós, Centro de Estudos Ferreira de castro, Centro de Estudos Regianos, Centro de Estudos Graal (USC), CISESG, CISLE, IECC – Instituto Europeu de Ciências da Cultura – Padre Manuel Antunes, Academia Lusófona Luís de Camões (SHIP), Instituto Fernando Pessoa (SHIP), Letras Com(n)Vida (plataforma inter-institucional), Observatório da Língua Portuguesa e portal TRIPLOV.

    Sob a coordenação geral das professoras Annabela Rita (Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa) e Isabel Ponce de Leão (Universidade Fernando Pessoa – Porto), e a do Zoom e do streaming assegurada pelo professor José Brissos-Lino (Universidade Lusófona – Lisboa), estes eventos têm um Conselho Científico internacional e encontram-se certificados como Ação de Formação de Curta Duração (ACD) para efeitos de progressão da carreira docente (Educadores de Infância, docentes dos ensinos básico e secundário e de educação especial) pelo Centro de Formação de Escolas António Sérgio.

    O Seminário iniciou-se em 2021 e desenvolve-se através de ciclos promovidos por esta estrutura e cuja organização vai sendo sucessivamente assegurada por docentes e investigadores de diferentes instituições, visando um diálogo mais alargado e um itinerário internacional (Portugal, Itália, Espanha, Brasil, etc.). O horário e o calendário vão sendo definidos em função dos núcleos que os organizam, em articulação com a coordenação geral.

    O primeiro ciclo, do 1º semestre de 2021, contou com a participação dos escritores Alexandre Honrado, Filomena Oliveira, Sérgio de Carvalho e Miguel Real. Foi organizado pelo grupo de coordenadores gerais (Annabela Rita e Isabel Ponce de Leão), e realizado entre Lisboa e o Porto.

    O segundo ciclo foi realizado entre Lisboa, Porto e Braga, tendo participado os escritores Carlos Mota Cardoso, José Régio (evocação) e João Rasteiro. Foi também organizado pelas duas coordenadoras gerais e ainda por Maria do Carmo Mendes (Universidade do Minho).

    O terceiro ciclo, sob o tema “Literatura e tempos de crise, para quê?”, foi organizado pelas professoras Maria Aparecida Fontes e Barbara Gori, do Departimento de Estudos Linguísticos e Literários da Universidade de Pádua, com a mesma coordenação geral. E contou com a presença das escritoras Valéria Rezende (Brasil), Vera Lúcia de Oliveira (Itália), Vera Duarte (Cabo Verde) e Tatiana Salem Levy (Brasil/Portugal).

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    Está a decorrer o quarto ciclo, organizado no âmbito da Universidade Complutense de Madrid, pelas professoras María Colon Jiménez e Sandra Teixeira de Faria, com escritores de Portugal, Brasil e Angola.

    A primeira sessão realizou-se esta tarde, dia 11 de Março, pelas 17 horas, e foi uma tertúlia dedicada à Poesia, com intervenções de Espanha, Brasil e Portugal.

    A segunda sessão realizar-se-á no próximo dia 21 de Março, pelas 16:00 horas (hora de Lisboa) e contará com a conferência do poeta João de Mancelos, também professor da Universidade de Aveiro.

    Seguir-se-á, no 1 dia de Abril, às 17h (hora de Portugal), a conferência do poeta angolano Abreu Paxe, da União dos Escritores Angolanos.

    A quarta conferência, encerrando este ciclo, está marcada para o dia 29 de Abril, pelas 18:00 horas (hora de Lisboa) com a participação do poeta e crítico literário Osvaldo Cupertino Duarte, também professor da Universidade Federal de Rondônia (Brasil).

    Nos próximos eventos, o PÁGINA UM disponibilizará e divulgará, com a devida antecedência, as ligações para se assistir em directo através da plataforma de comunicação integrada Zoom.

    O PÁGINA UM também irá disponibilizar, durante as próximas semanas, as gravações de uma selecção criteriosa de eventos já realizados, integrados em ciclos de literatura, promovidos em conjunto pela Universidade de Lisboa e a Universidade Fernando Pessoa (Porto).

  • A censura depois da escrita, séculos antes do Estado Novo e de Zuckerberg

    A censura depois da escrita, séculos antes do Estado Novo e de Zuckerberg

    Sempre cheia de boas intenções, como o inferno, a Censura é uma das armas do poder para controlar e dissuadir o livre pensamento, e para orientar as sociedades. Cada vez mais actual nos dias de hoje, com a censura de órgãos de comunicação social e nas redes sociais, na verdade a Censura sempre existiu. A Biblioteca Nacional mostra, em exposição, como se fazia entre os séculos XV e XIX.


    Censura, nos dias de hoje, remete de imediato para o bloqueio de informação no conflito russo-ucraniano. O Governo de Putin já censurou a actividade de órgãos de comunicação social independentes da Rússia e do estrangeiro; por sua vez, no Ocidente fez-se o mesmo sobre alguma imprensa russa.

    Censura também foi aquilo que se aplicou, nos últimos anos, a tudo aquilo que se considerou desinformação, ou fake news, tanto na imprensa como sobretudo nas redes sociais, com fact-checkers a determinarem os textos que deveriam ser suprimidos dos olhares mais “sensíveis”. No Facebook, por exemplo, algumas palavras ou imagens davam origem a “castigos” aplicados por algoritmos ou por operadores humanos inalcançáveis e sem paradeiro conhecido.

    A palavra Censura tem também sobretudo em Portugal uma conotação política, que nos transporta para o período anterior à democracia instaurada: o Estado Novo. Não é estranho que assim seja, uma vez que muitos portugueses se lembram ainda de sentirem na pele a repressão daquele período.

    Se se fizer uma análise cronológica, a Censura não foi inventada nem agora nem por Zuckerberg nem por Salazar. As suas origens remontam vários séculos atrás, obrigando a uma grande viagem no tempo. E é isso mesmo que nos quer fazer a Biblioteca Nacional na exposição “Bibliotecas Limpas”, patente até 23 de Abril próximo, e que percorre os ínvios caminhos da censura literária sobretudo entre os séculos XV e XIX.

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    Que a Censura ainda é mais antiga do que os livros impressos, isso bem se sabe. No século XIII já o poder, sobretudo associado à religião, controlava o acesso à informação, e mesmo sabendo-se que poucas pessoas sabiam ler, já existiam listas de livros proibidos.

    Em todo o caso, foi com a instituição do Tribunal do Santo Ofício (ou da Inquisição), chegado a Portugal na primeira metade do século XVI, durante o reinado de D. João III, que a Censura se “profissionalizou”. Vigorou durante quase três séculos, até ser extinto em 1821.

    A Inquisição, instaurada essencialmente para evitar a disseminação de ideologias contrárias ao catolicismo – como o judaísmo e, mais tarde, os movimentos protestantes – foi uma das estruturas eclesiásticas mais opressoras da História da Europa. Apesar de ser um órgão religioso, era dotada de poder jurídico, tendo legitimidade para condenar hereges a penas de prisão ou mesmo à morte por estrangulamento e/ou pelo fogo.

    Mas além desta tenebrosa função, a Inquisição era um dos braços da censura dos livros; na verdade, constituída por três até aos tempos do Marquês de Pombal que, em 1768, instituiu a centralizadora e mais politizada Real Mesa Censória.

    Além dos inquisidores do Santo Ofício, que passaram a exercer o exame de livros a partir de 1536, uma outra instância, o denominado Ordinário (ligado à Igreja), já o fazia desde 1517. Uma tríade de “vigilantes da pureza” foi completada em 1576 com os revisores do Desembargo do Paço, uma mão mais política.

    Qualquer obra tinha uma revisão prévia, antes de ser impressa, e depois, para ser comercializada, passava de novo pelos revisores para apurar se cumprira todas as eventuais alterações. Os textos das censuras nos livros aprovados eram quase sempre publicados, integrados nas obras, sendo que, em muitos casos, serviam também como elogios aos autores.

    Compilação das obras de Gil Vicente, editadas em 1586, tiveram partes expurgadas por indicação da Censura em 1624.

    A Censura nem sempre era total, ou seja, não se aplicava pela simples proibição integral da obra, denominada macrocensura.

    Também havia, porém, a microcensura, que eliminava e impunha correcções apenas em partes, na maioria dos casos após a impressão das obras, realizada à mão (riscando palavras, frases ou imagens) por iniciativa sobretudo de religiosos. É nesta segunda linha que a exposição Bibliotecas Limpas se debruça.

    Hervé Baudry, curador desta exposição e investigador na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa diz haver “uma ironia latente nesta denominação, pois as bibliotecas estavam sujas”, explicando que “por um lado, sujas pela tinta com que os censores tingiam as palavras, frases ou páginas consideradas heréticas, mas metaforicamente esta sujidade a ser limpa representa a repressão e a punição, perpetradas em nome da moralidade e da ortodoxia católica.”

    Este tipo de limpeza dos censores consistia, assim, em expurgar passagens ou palavras para que os livros pudessem ser lidos sem afectar o seu autor. Assim, “a correção não era das almas e dos corpos, como nos processos da Inquisição sobre pessoas, mas sim das palavras”, como se adianta no catálogo da exposição.

    Neste processo, os censores substituíam ou acrescentavam palavras, como se mostra nos exemplares expostos na exposição. Noutras situações, como numa edição de 1524 em latim de Ovídio, obviamente para leitura de religiosos, era dada a orientação expressa de “não se poder ler sem a permissão dos superiores” se a obra não estivesse expurgada de partes consideradas sensíveis.

    Os nomes de Erasmo de Roterdão e Thomas More foram suprimidos em obras.

    Existem até casos muito curiosos de censura nem sempre se discernindo a causa. Por exemplo, numa edição de Heródoto de 1592 surge o nome do impressor ilegível, descaracterizando cada letra. Noutros casos são feitas colagens com papel sobre passagens de textos ou mesmo o nome de autores, como acontece numa edição de 1535 de uma obra do filósofo grego Luciano de Samósata com comentários de Erasmo de Roterdão e Thomas More.

    No entanto, o mais comum era o expurgo através de tinta ou a simples retirada de páginas, através de rasgos, como se pode observar na meia centena de obras expostas, que incluem livros de Horácio, Santo Agostinho, Copérnico, Erasmo de Roterdão e Voltaire, bem como dos portugueses Gil Vicente, Amato Lusitano, Garcia de Orta, Garcia de Rezende, Sá de Miranda e Luís de Camões. Note-se que estes livros tinham tido a sua impressão autorizada, mas, por razões várias, e por vezes décadas mais tarde, acabavam por ser erróneos ou possuindo conteúdos inaceitáveis.

    Por exemplo, o Cancioneiro Geral, de Garcia de Rezende, publicado originalmente em 1516, teve expurgos décadas depois. É um dos exemplos onde se verifica diferenças nos critérios da Inquisição na Península Ibérica, uma vez que a vizinha Espanha não o suprimiu. A explicação? Os espanhóis estariam mais interessados na censura política do que na literária.

    Saliente-se também que a posse de livros proibidos – mesmo que tivessem tido circulação autorizada anteriormente – foi, durante a primazia da Inquisição, um crime considerado de extrema gravidade. Por exemplo, Cristóvão Francisco, um lisboeta de 25 anos, foi executado em finais do século XVI por deter um livro reprovado pelo Catálogo do Concílio Tridentino por conter superstições e blasfémias, segundo consta nos arquivos da Direcção-Geral do Livro.

    Mesmo livros médicos acabaram por ter as “partes íntimas” manchadas.

    Os livros proibidos eram listados e compilados, com indicações por vezes muito precisas sobre as partes a retirar, como sucedeu em 1624 com o Index auctorum damnatae memoriae, onde também se incluíam instruções para corrigir centenas de obras. Feitos os ajustes necessários, os títulos poderiam então voltar a circular com a seguinte inscrição: tutto lege.

    Os cidadãos comuns não eram os únicos a serem perseguidos. Alguns dos maiores nomes da História nacional viram as suas obras censuradas pela máquina burocrática inquisitória. Foram os casos de Luís de Camões e Bocage. A expressão “cagando ao vento”, de um poema de Bocage, foi reprovada pelos censores. Já Os Lusíadas, considerada a obra-prima da literatura portuguesa, terá tido algumas correcções na edição original, e uma edição espanhola de 1639 chegou a ser proibida pela Inquisição de Coimbra por “conter muitas coisas escandalosas e ofensivas para a Religião Católica”.

    Muitas vezes, a Censura pretendia um efeito dissuasor. Acontecia nos casos em que, embora os textos tivessem passagens rasuradas, a tinta não impossibilitava que se percebesse o que estava escrito. Nessas situações, Baudry explica que, ao verem que aquele conteúdo estava proscrito, as pessoas não liam. Recorde-se que ler ou ter um denominado “livro defeso” era suficiente para se ser condenado. Na Torre do Tombo encontram-se vários processos inquisitoriais desta natureza. O último caso conhecido foi o do frade Francisco de Santa Ana, em 1817, por ler Voltaire.

    Se as palavras podiam representar um perigo para a moral e os bons costumes, as imagens também. A nudez, especificamente, não tinha espaço nos conteúdos permitidos, fossem de natureza científica ou artística. Numa obra de Ambroise Paré, um cirurgião francês, que ilustra a extracção de cálculos na bexiga, a genitália do paciente aparece tapada por uma mancha branca.

    O Cancioneiro Geral, de Garcia de Rezende, chegou a ter mais de 90% do seu conteúdo rasurado.

    Embora a Inquisição tenha sido abolida no início do século XIX, a Censura nunca foi, e tem-se transmitido por várias formas, em função do regime político de cada país, ou mesmo por via da auto-censura, por vezes seguindo o politicamente correcto, mesmo quando se trata de Literatura, baseada na liberdade de pensamento e criação.

    Um dos casos mais evidentes em Portugal ocorreu em 2019 quando a Porto Editora decidiu rasurar três versos da Ode Triunfal de Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa, na edição de um livro escolar do 12º ano, por conter linguagem explícita e elogiosa à pedofilia.


    Bibliotecas Limpas – Censura dos livros impressos nos séculos XV a XIX

    EXPOSIÇÃO | 25 fev. – 23 abr. ’22 | Sala de Exposições da Biblioteca Nacional (Lisboa) – Piso 3 | Entrada livre

  • Para derrotar Putin temos de ostracizar a cultura russa? Ouvimos 29 escritores, representantes da Cultura em português

    Para derrotar Putin temos de ostracizar a cultura russa? Ouvimos 29 escritores, representantes da Cultura em português

    Demissões, boicotes e suspensão de cursos. A invasão de Putin à Ucrânia está a desencadear uma série de medidas contra a cultura de uma região que nos ofereceu escritores como Fiódor Dostoiévski, Lev Tolstói, Anton Tchékhov, Nikolai Gógol ou Vladimir Nabokov, cineastas como Serguei Eisenstein, Vladímir Menchov e Nikita Mikhalkóv, compositores como Piotr Ilitch Tchaikovski, Sergei Prokofiev e Igor Stravinsky, e tantos outros vultos da Arte. E mesmo outros de menor relevo. Mortos e vivos. Enfim, será legítimo culpabilizar todos os russos pela acção do Governo de um país onde nem sequer impera a democracia? Para derrotar Putin temos mesmo de ostracizar também a cultura russa? O PÁGINA UM foi recolher depoimentos de escritores de língua portuguesa.


    .Não é a cultura russa que se deve boicotar, mas o poder russo que em formato extremista e assassino quer acabar com a cultura que lhe é alheia. A censura é o oposto da cultura. A censura é contra-natura e contra-cultura. Não há culturas perfeitas – como não há culturas imperfeitas. Nem podemos equilibrar em dois pratos de balança uma cultura má comparando-a ao peso de uma cultura boa. Em cultura nada é assim tão bipolar ou dual. Não é expectável que uma cultura difira das outras, ou que possa simplesmente banir-se da pluralidade das culturas, porque essencialmente ela é a tendência para o ilimitado de quem a produz, sentindo-a, agindo-a, pensando-a no germe criativo que a originou. Do uno se faz duo e do duo um grupo, um coletivo, um universo cultural. Assim, a cultura não se promove como identidade, mas estimula afinidades. Assim se retrai como coisa local e coagulada, para correr livremente por cimas das fronteiras. Paul Hazard afirmou que a palavra nem tinha estatuto até ao final do século XVIII quando os alemães, em 1793, lhe dão honras de dicionário. Taylor terá sido o primeiro a empregar o termo, em 1871 quando publicou Primitive culture, onde confundia o termo com um outro que ainda hoje nos ocupa e preocupa: civilização. Confesso não saber o que definem os mestres da Universidade Estatal de Pyatigorsk ou do Instituto Pushkin, estudiosos de cultura. Sei que “actores, dramaturgos e directores de teatros estatais como o Bolshoi apelam ao fim da guerra e outros agentes culturais continuam a protestar internamente contra a invasão, cancelando exposições ou fechando museus”. Também sei que a cultura não é coisa que se uniformize, arme e treine para a morte, como não é feita para confinamentos, grades, prisões de consciência, corredores de morte. Sou contra a censura e ao boicote à cultura russa – porque uma cultura não se boicota e resiste, sobrevive sempre no seu âmago, na sua essência. Sou mais firmemente ainda contra a guerra, essa fórmula cobarde de querer vencer pela morte tudo o que é vida, a começar pela cultura.

    Alexandre Honrado, escritor e professor universitário


    (…) Tratando a cultura como um activo bancário, neste mundo ocidental apela-se ao boicote à cultura russa, como se a música, a literatura ou a arte não pertencessem àquela outra dimensão de património da humanidade. Foi suspenso um curso de Dostoiévski na Universidade de Milão; excluem-se cineastas russos da participação em festivais; maestros são impedidos de dirigir orquestras; pianistas substituídos.
    A cultura não se proíbe. Não se cala. Não se reprime (…). [Ler o depoimento completo AQUI]

    Alice Brito, escritora e advogada


    Quantos ucranianos seriam salvos se o descabelado boicote a Dostoiévski não tivesse sido parado? E quantos ucranianos serão salvos por se calarem as vozes e suspenderem as batutas? Nenhum. Era só.

    Ana Cristina Pereira Leonardo, escritora e cronista


    Aquilo que posso dizer é que vamos estrear De Luto pela Vida, a partir de A Gaivota, de Anton Tchekhov, com encenação de Hugo Tourita, dia 31 de Março, no Teatro do Bairro. Ninguém cancela Tchekhov.

    André Gago, actor e escritor


    A minha posição sobre esta guerra – invasão da Ucrânia pelo exército russo – segue a declaração da War Resister’s International feita a 24 de Fevereiro de 2022. É uma posição pacifista, que exige cessar-fogo e negociações imediatas. Caso a agressão dos militares e do governo russo continue, defendo, sempre seguindo a declaração daquela organização, uma proposta de defesa popular não-violenta, recorrendo aos métodos de desobediência civil, que tão bons resultados deram na luta contra o colonialismo inglês na Índia e na luta pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos. Para mim não há guerras justas e qualquer guerra é um crime contra a humanidade. Não creio que a cultura russa nas suas manifestações artísticas, poéticas, éticas e filosóficas, onde há seres humanos tão exemplares, com uma ética tão elevada e tão humana, como Tolstoi ou Kropotkine, deva ser equiparada a Putin e aos militares russos. Ao invés, promover hoje os aspectos mais nobres dessa cultura é contribuir para uma consciência e uma cultura de paz.

    António Cândido Franco, escritor e professor universitário


    A sensação é a de que se tenta evitar a desgraça criando-se bodes expiatórios. Tempo estranho, esse que nos deram para viver – ou sobreviver. É muita insensatez em meio a uma realidade de violência, ameaçada pelo caos, a dar total atualidade ao Poema pouco original do medo, do meu saudoso amigo Alexandre O’Neill.

    Antônio Torres, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras (cadeira nº 23)


    Dado que a minha opinião seria sempre sintética e portanto não poderia naturalmente corresponder ao sentimento profundo, ontológico e filosófico – às vezes até impossível de exprimir – relativamente a esse tipo de questões, prefiro que o meu silêncio público seja a minha forma de expressão. Tal não significa que eu não condene, liminarmente e sem qualquer dúvida este tipo de atitudes ou retóricas ostracizantes de natureza cultural.

    Cristina Carvalho, escritora


    Sou a favor da divulgação da cultura, mas abomino Putin, a queima dos livros e o silêncio imposto por ditadores. Neste momento de desespero, ostracizar uma das maiores expressões russas pode levar o povo russo a revoltar-se contra Putin.

    Cristina Norton, escritora


    (…) Todos os dias surge uma nova forma de boicote. É deprimente, mas não será por aí que Putin verga. O grande mistério radica na razão que terá levado Putin a desencadear uma guerra que terá consequências no quotidiano da população da Rússia, hoje completamente ocidentalizada, dependente do vasto arsenal de bens de consumo que moldam o dia-a-dia da geração pós-Perestroika (…). [Ler o depoimento completo AQUI]

    Eduardo Pitta, escritor


    (…) Dessa vertigem faz parte um desejo de castigar a Rússia com toda a estirpe de sanções. Ora, quanto a esse ponto, sendo a favor de sanções económicas, parecem-me todavia eticamente questionáveis as medidas de isolamento da Rússia em campos como a Cultura, o Desporto ou os meios de comunicação em geral (…). [Ler o depoimento completo AQUI]

    Fernando Pinto do Amaral, escritor e professor universitário


    Que génios russos como Tchaikovsky ou Dostoievski estejam a ser, no Ocidente, banidos da oferta cultural é ‒ sejamos sucintos ‒ uma mostra de reles exibicionismo. Eu explico.
    Os actuais “cancelamentos” em matéria de cultura nascem desta conjugação fatal: a da vaidade doentiamente exibicionista e do sentimento de inferioridade que entra pela cobardia. Esse transtorno mental conduz a leituras oportunistas do passado, satisfazendo alucinadas moralidades, acríticas até ao desumano.
    Importa rirmo-nos, olhos nos olhos, desses vaidosos. Fazer-lhes ver que mentes retorcidas não nos impressionam. Que a Arte não tem país, não tem fronteiras. nem sequer povo. Que os seus sorrisos contentinhos de nos terem sonegado o que nos faria, a todos, felizes, esses sorrisos são um esgar parado, fútil, inexpressivo. Que, ao contrário dos génios, deles, deles, nada ficará. Sim, a História é terrível. Porque sabe vingar-se.

    Fernando Venâncio, linguista e tradutor


    Putin é um louco e com loucos não se negoceia. Não é possível. A forma que o mundo encontrou para isolar Putin – a das sanções – vai ser eficaz. Já está a ser eficaz, pois já está a criar descontentamento junto dos oligarcas russos. Levar essas sanções ao mundo da cultura e do desporto faz parte da mesma lógica de criar um descontentamento interno e generalizado. Ontem vi um atleta russo, muito jovem, subir ao pódio, com a insígnia da Ucrânia, desafiando claramente Putin. É importante, sim, não confundir o povo russo com Putin. A cultura e as grandes manifestações desportivas sobrevivem a todas as sanções e castigos. É histórico!

    Helena Trindade Lopes, escritora e professora universitária


    A Rússia não é Putin. Putin é, em parte, um produto do Ocidente. Não se emendam mais de duas décadas em duas semanas. E não se emendam com ignorância (esquecer a biografia de Dostoièvski, por exemplo), hipocrisia (procurar petróleo na Venezuela) e cancelamentos moralistas e muito cómodos. A cultura russa pode salvar-nos dos autoritarismos. Basta não ostracizar o que não conhecemos bem.

    Jerónimo Pizarro, editor, crítico literário e professor


    (…) Os fins justificam tragicamente os meios e, por muito doloroso que seja para criadores, artistas e desportistas russos, o isolamento deve ser ostensivo. Público e notório. Doloroso. Sem tréguas olímpicas. O país agressor deve ser tratado como um pária, até porque outras camadas pós-Ucrânia se seguirão. De outras geografias vizinhas falo (..). [Ler o depoimento completo AQUI]

    João Lopes Marques, escritor e jornalista


    Muitas vezes sinto que a sociedade se divide entre os pensadores e os “salivadores”. Os que pensam defendem coisas boas e coisas más. Ainda assim, pensam. Em cada caso, lá terão as suas razões e os seus argumentos. Agora, os que apenas salivam – do ponto de vista Pavloviano – não pensam, são fruto de reflexos condicionados. Apenas reagem. Até podem reagir bem, ainda assim, não pensam.
    Perdoem-me se cito Ivan Pavlov, um médico russo do início do século XX. É que agora, os “salivadores” estão condicionados para atacar tudo o que é russo. E porque vão todos em turbas de um lado para o outro, na sua cegueira, por vezes atropelam o que é mais elementar. Quando se cancelam espectáculos do Ballet Bolshoi de Moscovo, se proíbe o hino russo a atletas que subam ao pódio, se proíbe a participação de artistas plásticos russos em mostras de arte, se boicotam filmes russos em competições… então estamos a confundir a árvore (Putin) com a floresta (o povo russo), e estes agentes culturais estão perante uma discriminação por motivos étnicos e políticos. Acaso, não é isso que condenamos? Alguém acredita que vai derrotar Putin, acabando com o curso de Dostoievski na Universidade de Milão? Ridículo.
    Há coisas mais importantes a fazer, do que ostracizar a cultura e ressuscitar o Santo Ofício. Era bom pensar mais e “salivar” menos.

    João Morgado, escritor


    A arte é, por definição, um grito de liberdade. Boicotar a literatura, a música, o cinema ou os próprios artistas russos equivale a boicotar a resistência ao totalitarismo, por oposição ao totalitarismo. Eu diria que é como atirar fora o bebé com a água do banho, se não corrêssemos o risco de o velho Fiódor ser o primeiro a apaixonar-se pela imagem.

    Joel Neto, escritor


    Esta guerra é um horror, e Putin o responsável por ela. Qualquer boicote à cultura russa é disparatado e contraproducente.

    Julieta Monginho, escritora


    Em plena Guerra Colonial, Amílcar Cabral, o mais notável dos líderes independentistas, várias vezes sublinhou que a guerra se travava contra o regime vigente em Portugal e não contra o povo português. Nessa mesma linha, condenar (como eu condeno) a invasão da Ucrânia é condenar um regime e o seu líder, Putin. Não pode ser condenar o povo russo e a sua cultura.

    Manuel Alberto Valente, poeta e editor


    Não me parece que ostracizar a cultura russa seja a melhor forma – e a mais sensata – de criticarmos e de manifestarmos a nossa oposição a um conflito bárbaro. Criticar convictamente a invasão da Ucrânia é imperioso e fundamental, mas essa crítica não pode, do meu ponto de vista, levar ao restabelecimento de um novo Index Librorum Prohibitorum. Retirar da estante e atirar pela janela como forma de protesto os clássicos russos que sempre apreciámos seria, quanto a mim, um sinal de retrocesso civilizacional.
    A cultura russa não tem culpa do que fazem os dirigentes políticos russos. Vamos rasgar os bilhetes do concerto da Galina Gorshakova a que assistimos com enorme prazer? A Anna Netrebko (nem sei se ainda é russa…) deixará de passar na Antena 2? Sejamos sensatos… Não foi por razões similares que criticámos a destruição de Budas pelos talibãs? Por isso, o russo Gogol, que nasceu em actual território ucraniano e é um dos meus escritores favoritos, vai continuar a ser lido e relido – independentemente de as suas histórias se passarem em S. Petersburgo ou não –, tal como Tchékhov – russo, que passava férias na agora sacrificada Crimeia e onde escreveu algumas das suas histórias. Como não deixarei de considerar A fome, do Knut Hamsun, um dos mais maravilhosos livros que já li, independentemente de ele ter oferecido ao sanguinário Goebbels a medalha do Nobel que recebera.
    Durante o dia, enquanto trabalho, tenho o hábito de ouvir música, e Mussorgsky e Glinka são companhias frequentes. Penso continuar a ouvi-los, sem que tal diminua o que penso desta invasão: um acto bárbaro e cruel.

    Marcelo Teixeira, editor e escritor


    Estou completamente contra a censura das obras russas e o boicote dos maestros e profissionais oriundos da Rússia. Deve-se distinguir o que é a guerra (que é da autoria do governo de Putin) do ataque generalizado às obras russas, que nada têm a ver com os ataques de Putin. Sou apologista das sanções económicas à Rússia por uma questão de estratégia política, mas absolutamente contra a censura.

    Maria João Cantinho, escritora e professora


    Há tão pouco que possamos fazer contra a monstruosidade do regime de Putin que nos precipitámos a castigar, a cancelar ou proibir tudo o que venha da Rússia. É importante diferenciar o regime que oprime do povo que é oprimido, muitos russos opõem-se a Putin, muitos foram presos e muitos vivem com medo. As sanções às representações oficiais russas são uma forma de pressão que, embora comportando alguma injustiça, pode atingir o regime e fazer pressão sobre ele. A russofobia e o boicote à arte russa (seja ela do passado ou do presente) é contraproducente e é um ataque à liberdade que deveríamos defender.

    Nuno Camarneiro, escritor e professor universitário


    De todas as medidas que se podem tomar contra a Rússia (ou deveríamos escrever “contra Putin?”), o chamado cancelamento cultural será a pior delas. Muitas vezes, a resistência intelectual foi a única a fazer frente às ditaduras, aos autoritarismos, e os escritores, os cineastas, os criadores em geral, estão talhados para esse papel. Veja-se (leia-se) a forma como Gogol punha a nu o absurdo dos poderes. E mesmo que não haja uma resistência explícita, engajada, digamos, é sempre errado parar a fruição cultural em nome de algo. Lá diz o chavão, nos lugares onde se queimam livros, acaba-se a queimar pessoas. Mesmo que simbolicamente.

    Pedro Vieira, escritor e apresentador


    O monstro da guerra entrou pelas portas da Ucrânia adentro. É um facto. Putin e a sua entourage prepararam esta festa de sangue, firmemente decididos em que nenhum regime democrático nasça à sua volta. Cortar-lhe todas as fontes de lucro é a maneira mais rápida de, por um lado, secar os apoios ao regime e, por outro, agitar a massa entorpecida de russos, habituados ao silêncio. Não me parece necessário isolar também a cultura ou o desporto russos. É provavelmente entre os primeiros que estará a maior fonte de contestação. Como em todo o lado, é no meio de escritores e outros artistas que se vislumbrará as decisões de Putin com mais clareza. Sou contra, portanto. Mas, confesso que no meio do som das bombas a cair sobre a população ucraniana tenho alguma dificuldade em me centrar no drama de exposições canceladas e concertos adiados, temporariamente. A cultura russa sobreviverá, porque é antiga e forte. Quem não se levantará com vida serão os homens, mulheres e crianças caídas na fuga.

    Possidónio Cachapa, escritor


    A invasão de um país soberano como a Ucrânia é lamentável a todos os níveis.
    Mas é notória a falta de racionalidade e bom senso na resposta dada pelos actores mais importantes. A primeira resposta é a opinião pública, de novo condicionada ao exagero para haver só uma solução, só um mau-da-fita, só uma vítima e um agressor.
    Não estamos perante um jogo de Benfica e Sporting, há nuances, cinzentos que a comunicação social não só não discute, como faz questão em ignorar. Nessa onda de bandeiras e “vamos em força para a 3ª Guerra Mundial”, é importante ficar à tona e continuar a nadar na PAZ, é o único objectivo que interessa, apesar da indústria do armamento já se estar a babar com os lucros e os seus lacaios com as sobras.
    Não existem bons e maus nesta história, só maus. E os povos, sobretudo o povo ucraniano mas por arrasto todos nós com estas sanções que não nos atingem como bombas, ainda, mas como a continuação de extremas dificuldades que temos vivido, são os sacrificados. Os líderes, esses riem-se com o jogo de xadrez da hipocrisia.
    Quanto às sanções culturais. Que dizer?… Onde está o respeito pelos russos, as maiores e mais corajosas vítimas de Putin?

    Raquel Ochoa, escritora


    Sim. Afinal, para que serve a cultura senão como arma de guerra? Eu já queimei os meus livros de Tolstoi e Dostoièvski. E também os do Isaac Asimov. Ia queimar o Bulgakov, mas a minha mulher lembrou a tempo que, embora escrevesse em russo, nasceu na Ucrânia. E estou muito arrependido de ter visto os filmes do Tarkovski. Em minha defesa, adormeci sempre.

    Rui Zink, escritor e professor universitário


    Se sou o que sou devo-o em parte à cultura russa. Não seria o mesmo hoje caso não tivesse lido Dostoievski, Tolstoi, Tchékhov; sem ter ouvido Rachmaninoff, Stravinski; sem ter visto os filmes de Tarkovski, as pinturas de Rublev. E por aí adiante. Condenar veementemente esta invasão e guerra, estar contra um louco facínora como Putin, mas ao mesmo tempo estar de acordo com o amordaçar da cultura russa, tornando-a num lobo mau, parece-me um gesto absurdo, estúpido. Uma aproximação perigosa ao fascismo e a um regime ditatorial contra o qual devemos supostamente lutar.

    Sandro William Junqueira, escritor


    Em vez de silenciar a voz pujante da soprano Anna Netrebko, quero ir a um concerto de Anna Netrebko e, nos encores, gritar palavras de ordem contra Putin. Em vez de cancelar o Bolshoi, quero ver uma das melhores companhias de bailado em palco e, no fim, levantar-me com cartazes proclamando “Glória à Ucrânia”. Não é a riquíssima cultura russa que quero silenciar, é o ditador Putin. Eu não seria quem sou sem as minhas referências culturais russas, sem Dostoievski, Anna Karénina, Tchékhov. Eu não seria quem sou sem as minhas paixões russas, sem Rudolf Nureyev, Mikhail Baryshnikov, Maia Plisetskaia, Maxim Vengerov, Grigory Sokolov, sem o concerto para violino de Tchaikovsky, sem o concerto para piano nº 3 de Rachmaninov. O povo russo não é Putin. Combatamos Putin e os oligarcas, deixemos a cultura em paz. Porque a cultura é um dos caminhos para a paz. E, assim como uma invasão é uma invasão, censura é censura.

    Tânia Ganho, escritora e tradutora


    Dostoievski costumava dizer que os russos eram metade homens, metade ursos. A metade ursa (Misha) tende a prevalecer quando toca a lideranças. Putin é uma variante de czar torcionário, mais do que um revivalismo estalinista, cujo mando de um circo de feras já estava em curso, bem antes de dirigir as garras contra o quintal da Ucrânia. As sanções, externas e internas, políticas, económicas ou culturais, só tenderão a atiçar os costumes bravios. Nunca, porém, um criador russo opositor do regime deixou de levar avante a sua luta individual. Soljenitsine ou Chalamov são exemplos felizes de resistência do fado totalitário eslavo. Do outro lado da barricada, os herdeiros de Nestor Maknó sobreviverão, pois debaixo das terras do valioso quintal está uma índole de teutões indomáveis.

    Tiago Salazar, escritor


    O desafio aqui é encontrar uma resposta para o pouco que podemos fazer em relação à agressão russa sem desencadear uma resposta que precipite uma guerra para a qual ninguém está preparado. Os poucos meios de que dispomos são de carácter não bélico e de eficácia por ora impossível de determinar. Podemos – e devemos – aplicar sanções, que são uma forma de condicionar o povo russo a colocar-se do lado oposto ao governo de Putin. Sendo que a Rússia não é de todo uma democracia e não dispõe de liberdade de imprensa, não sabemos como estas medidas serão interpretadas pela população e não estamos em condições de antecipar a sua eficácia. Já vimos também que os muitos russos que se vêm manifestando pela paz acabam por pagar muito caro o seu apoio ao povo ucraniano. É um xadrez muitíssimo complicado e temos a sensação de que qualquer passo em falso pode, no mínimo, encobrir o futuro da europa e, num caso limite que ninguém quer conceber, o futuro do mundo e de toda a vida na terra.
    Quanto à censura concertada relativamente à cultura ou à arte russa, é preciso separar aquilo que é a Rússia promovendo-se a si mesma por interposta pessoa dos seus artistas ou dos seus atletas e, nesse caso, ser absolutamente intransigente na recusa em receber delegações russas e os artistas ou atletas russos cuja único «pecado» é terem nacionalidade russa; a esses naturalmente, nada lhes deve ser barrado. Quanto aos livros de Dostoievski ou à música de Tchaikovsky, aparentemente alvo de censura aqui e ali por parte de alguns invertebrados permanentemente com medo de não estarem do lado certo da ética sem saberem, no entanto, soletrar a própria palavra, é dar-lhes a mesma importância que aos censores moralistas de qualquer religião ou as muito contemporâneas vagas de escândalo em que as pessoas se entretêm a doutrinar-nos sobre o que devemos ler e como o devemos fazer. No fundo, é passar por eles e mandá-los à merda.

    Valério Romão, escritor