Diziam que o poeta vivia num mundo só dele. Não era verdade. O poeta trabalhava, tinha prazos, contas para pagar, e um cão. O poeta, despido da poesia, era apenas um homem na Terra.
Certo dia, terminou um livro. Imprimiu-o. Lembrou-se, então, de que nem sabia quando tinha comido pela última vez. Dirigiu-se ao frigorífico. Estava vazio. O estômago também. O poeta apontou numa folha: “ovos, galinha, milho e…”. Havia de lembrar-se do que faltava.
Colocou o manuscrito num envelope. Ia entregá-lo pessoalmente na editora. Já que tinha de ir ao supermercado, logo tratava dos dois assuntos.
O espelho da sala mostrou-lhe que estava de pijama e chinelos. O poeta foi ao quarto, arranjou-se e voltou. Pegou no envelope, procurou a lista das compras, mas tinha desaparecido. Nada que o espantasse. Chegou mesmo a duvidar da sua existência. Estava exausto. Já não tinha certeza de nada.
Foi até à editora e entregou o envelope. Sentiu-se aliviado, mas sem vontade de ir às compras. Decidiu, por isso, encomendar o almoço e aproveitar para deitar mãos a um novo projeto.
Algumas semanas depois, o livro foi publicado. Sentia-se ansioso. Os últimos dois não tinham sido recebidos como esperava.
Chegou o dia do lançamento. Sala cheia numa importante livraria da capital. A apresentação a cargo de um conhecido e reputado académico. Tudo corria como no seu melhor sonho. O poeta, no entanto, não percebia o que levava o professor a considerar que a sua obra remetia para temas como o princípio do mundo, o ovo cosmogónico, a dúvida relativa à primazia do ovo ou da galinha, nem porque referia a incerteza expressa pelo final deixado em aberto.
O público aplaudiu. O poeta, encolhido, com cara de ponto de interrogação, perguntou:
– Em que página está esse poema?
– Na página 23. – respondeu o professor. – A propósito, pergunto-lhe: por que não o colocou na página 1? Qual foi o critério de edição?
O poeta abriu o livro e leu:
“Ovos,
galinha,
milho
e…”.
Sem hesitar, dissertou sobre as grandes questões que pretendeu levantar com este poema. Esclareceu todas as dúvidas.
O académico ficou estarrecido com a explicação. Era brilhante. Elogiou e agradeceu a humildade e generosidade do autor.
O poeta, de livro na mão, dirigiu-se ao supermercado:
– E… arroz. – completou.
Críticos, estudiosos, jornalistas, leitores ávidos e grandes conhecedores apressaram-se a ler a obra e ajoelharam-se perante o génio do bardo.
Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve
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Num palco apertado, com uma cortina vermelha janota a servir de fundo, uma jovem rapariga de cabelos castanhos, anelados e frisados, entoava com requebros uma canção que os presentes pareciam conhecer perfeitamente: “Sh’ma Israel elohay ahshav ani levad”. Chegado o momento certo, os convivas elevavam e faziam tilintar as canecas, os copos ou as taças que empunhavam, e escutavam enquanto entoavam o refrão solicitado por Raquel – assim se chamava a cantora: “Escuta, Israel/Quando o coração chora, a alma grita!”
Para os que ali vinham pela primeira vez, a canção estranhava-se, mas logo se entranhava. A melodia insinuava-se, e toda a sua melancolia ajudava os circunstantes a esperar por dias melhores: “…Escuta, Israel, meu Deus, tu és o todo-poderoso/ Tu me deste a vida, tu me deste tudo/ Em meus olhos uma lágrima, o coração chora em silêncio/ E, quando o coração se cala, a alma grita.” Eram apenas palavras, mas todos viviam o refrão, aconchegando-se do frio que se fazia sentir, aproximando-se uns dos outros, no bar Mitzvah, no coração da cidade velha.
Numa mesa encostada a um dos recantos escuros do Mitzvah, trocava impressões um pequeno grupo mais recolhido, após se escutar o Sh’ma Israel. Foi para lá que Raquel se dirigiu após recolher uma salva de palmas e colocar as mãos em gesto de agradecimento.
Via Juliana e a torre do YMCA (Young Man’s Christian Association) em Jerusalém. Anos 40
“… Raquel, vem, vem depressa!”, exclamou Ester. “… Há bolos de mel.” “… E o chá de menta está a ferver.” “Não me fales nisso, que me fazes lembrar como este inverno nevou em Jerusalém.” “… Ainda estou a ver os nossos rapazes a divertir-se, atirando bolas de neve uns aos outros.” “… É verdade. Foi em fevereiro. Os tetos ficaram de uma brancura nunca vista.” “… Os mais velhos dizem que não nevava desde 1921.” “… Em 21 ainda estávamos a nascer.” “… Olha, o frio deve ter ajudado muito”, disse um dos amigos, que usava uma pala negra sobre o olho esquerdo.
O grupo era formado por membros das organizações clandestinas nascidas para defender os colonatos judeus contra os ataques árabes. Estavam ali companheiros como Moshe Dayan e Yigal Allon. Tinham aprendido a táctica das guerrilhas com o capitão britânico Charles Orde Wingate, que organizara os Esquadrões Noturnos Especiais para combater os árabes. Durante os motins de 1936-1939, serviram no Vale do Jezreel e na Galileia e, depois, colaboraram na libertação do Líbano e da Síria das garras de Vichy. Dayan entrara para a Haganah aos 14 anos de idade e perdera o olho esquerdo em combates no Líbano. Quando os britânicos proibiram a Haganah, em 1939, ficou preso e encarcerado por dois anos. Allon, no retorno à Palestina, ajudou a fundar o Palmach.
Ester pegou no prato com azeitonas que estava sobre a mesa e, enquanto as distribuía a cada um dos presentes, disse em tom mais baixo: “… Um dos nossos foi aprisionado por patrulhas alemãs em Tiberíades e levado para o YMCA. Sabemos que é um sargento do 8.º Exército britânico, de seu nome Hans Jonas. Ora aí está alguém que jamais fará má figura, se for torturado pelos alemães.” “… Estes alemães não torturam; o Afrika Korps não é a SS”, obtemperou Ester.
Raquel mudou o rumo da conversa: “… Não me falem só de guerras. Olhem, o que eu queria agora era que me oferecessem um par de sapatos vermelhos, que os meus estão velhos. Não gostavas também de ter um par, Ester?” “Eu preferia os azuis-escuros expostos na montra da Jevod…”, respondeu esta.
Moshe Dayan (à esquerda) aos 20 anos.
Estavam nisto quando frei Werner entrou no Mitzvah. Ali vinha amiúde e imediatamente se dirigiu ao encontro da tertúlia. Nada mais o identificava como sacerdote senão uma minúscula cruz de lata, usada no casaco como flor na lapela. “… Werner!”, disseram alegremente as raparigas. “… Finalmente alguém que não pensa apenas em granadas e metralhadoras”, acrescentou Raquel.
O franciscano esboçou um sorriso cúmplice e serviu-se de uma taça de chá quente, na qual molhou delicadamente o bolo de mel. “… Esta manhã, o marechal Rommel visitou a minha basílica.”
Os olhos de todos, exceto os de Ester, abriram-se mais: “… A sério? Antes deslocou-se ao muro e depois à montanha. Anda a ver o que valem as nossas religiões.” “A nossa vale pouco mais do que o poder no cano das espingardas”, disse Ester. “… E quem fala pelos muçulmanos?”, perguntou Raquel. “… Falas tu, já que lembraste deles e gostas de ser boazinha.”
Raquel assentou uma canelada por debaixo da mesa a Moshe e acrescentou: “… Estejam mas é calados. Quero ouvir o que Werner nos tem a dizer sobre esse marechal.”
Frei Werner continuou. “… Primeiro, foi uma surpresa que ele nos visitasse a nós, em vez do Sepulcro. E eu apenas lhe disse o que vos repito todos os dias: é preciso que alguém venha fazer a paz. Agora ando a ler muito um alemão que diz a mesma coisa. Chama-se Hans Jonas. “… Quem? Como se chama?”, exclamou Ester. “… Jonas.” “… Não é possível. Ontem um alemão com esse nome deu entrada na prisão.” “… Com o mesmo nome?” “… Sim.” “… Com uns 40 anos de idade?” “… Sim.” “… Ruivo, com óculos?” “… Sim…” Dayan, que estivera muito calado até então, sussurrou. “Não sabia que o sujeito escrevia livros. Esquisito.”
Enquanto todos se admiravam daquela coincidência, o franciscano extraía um cachimbo do bolso interior do seu casaco e, com ele, batia na mesinha para retirar os restos de tabaco queimado, acabando por dizer no tom mais natural do mundo: “… Há uma coisa que se pode fazer.” “Então, Werner,” disse Raquel, enquanto lhe pisava levemente o pé por debaixo da mesa. “Queres convertê-lo à tua fé?” … Nada incomodado pela pressão, Werner olhou para dentro do cachimbo, como quem procura um objeto perdido lá dentro, e continuou sem levantar os olhos: “… Ester, podes tentar que Rommel escute um recado?” Ester nada dizia. “… Fazes isso, Ester? Fazes isso por mim?” “… Qual recado, Werner?” À sua volta todos se entreolharam, exceto Ester, sempre muito séria. “… Deveriam pedir a Jonas que ele levasse o mesmo apelo que eu lhe fiz”, exclamou Werner fitando todos, e um a um.
Todos engoliram em seco, à exceção de Yigal, que, pegando na caneca pousada na mesa, emborcou um trago para depois dizer: “… Rommel não é nazi, e também não é parvo.”
Jovem cantora judia . Anos 40
Quase saía fumo da cabeça daqueles jovens que depois se lançaram a trocar impressões sobre se valia a pena convencer o marechal a receber um prisioneiro judeu, alemão mas britânico. Era preciso um motivo à vista. Comunicar informações? Não era crível! Que queria mudar de campo? Seria um golpe baixo e correria mal. Atribuir-lhe a revelação de um plano? No fim foi Raquel quem teve a ideia mais simples, enquanto ajeitava os caracóis. “… Digam a verdade. Que esse Hans Jonas lhe quer comunicar uma verdade. Se o marechal tem fama de homem reto, vai querer ouvi-lo de certeza.” Silêncio geral. “… Esta miúda vai longe”, disse Yigal. “… Ui, tenho que voltar ao palco. Já há novos clientes.
Raquel regressou sorridente ao pequeno palco, onde também se instalaram dois velhotes, um com um violino e outro com uma trompete. “… Agora, em homenagem a um amigo meu que gosta muito da paz, vou cantar de Duke Ellington It don’t mean a thing.” A sala ajeitou-se para ouvir a novidade. O violino atacou devagarinho a melodia, e a trompete preparou os espíritos para o que ali vinha. Depois, Raquel começou a entoar a nova melodia que dera no gosto do swing: It don’t mean a thing. E, por uns momentos, em Jerusalém, pareceram bem longe as guerras enquanto se ouvia a canção de Duke: Não quer dizer nada, tudo o que há a fazer é cantar… Não faz diferença se é doce ou faz calor… Basta dar ritmo a tudo o que te ouço… Mas não quer dizer nada, se não tiver balanço.
[CONTINUA]
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Infiltrara-se em Artur Matos uma inquietação quase impercetível desde que aceitara a encomenda de Elias Mukuba. Não era apenas o peso da tarefa, ou as sugestões habilidosas do angolano que se impunham como exigências. Era algo mais profundo, uma sensação persistente, uma moinha incómoda que o observava com um olhar inquisidor e de desconfiança sempre que estava não apenas a escrever, mas também a respirar.
Embora estivesse em África há mais de dois anos, somente na primeira conversa com Mukuba, e consequente início da feitura do livro, Artur sentiu que estar numa terra outrora subjugada pelos seus antepassados era uma forma de exílio peculiar. Não era exilado de um território físico, mas de um lugar onde a sua voz pudesse ser ouvida sem suspeição.
Essa desconfiança, compreensível e desconfortável, andava agora a assombrá-lo. Reconhecia que, como português, carregava o fardo de uma História que nunca vivera, mas cuja sombra parecia inevitavelmente moldar a sua presença. Mais do que uma barreira de comunicação, era um abismo moral. Como alguém que herdou o privilégio e a memória selectiva de uma potência colonial, poderia ele contar a História de Benguela com a autenticidade que Mukuba exigia?
A questão não era apenas intelectual; era visceral, uma colisão entre a vontade de narrar e a impossibilidade de o fazer sem ser julgado. Artur tentava racionalizar o paradoxo. Afinal, as palavras eram livres, não eram? A linguagem, pensava ele, constituía, assim com esse tom formal, a ferramenta universal para superar as barreiras da História e das identidades. Porém, esta certeza tremia, ou soçobrava mesmo, quando confrontada com a verdade de que as palavras que escolhia carregavam o peso das escolhas que outros fizeram antes dele.
Por exemplo, como explicar, sem paternalismo, sem nostalgia ou heroísmo, o avanço dos portugueses pela costa africana? Como descrever sem cair no erro de romantizar o roubo ou de demonizar a sobrevivência? Cada linha que escrevia parecia uma ponte frágil sobre águas tumultuosas.
E havia ainda a questão da vontade própria. Mukuba, com a sua presença imponente e as críticas afiadas, tinha um poder que não era apenas editorial. Ele era o filtro entre Artur e o público. Seria possível encontrar a verdade na História de Benguela sem essa verdade relatada por um escritor alóctone passar pelo crivo de um editor autóctone? Artur já se conformara que, ali, não se livraria de responder, ou corresponder, a vontades alheias, tanto as de Mukuba quanto as da História maior que pairava sobre ambos.
E foi nesse estado de espírito que Artur escreveu, reescreveu, reformulou, poliu e refinou o segundo capítulo da História de Benguela, embora ciente de que qualquer palavra arriscaria ser palco de uma batalha entre o que queria dizer e o que seria aceite.
“Os portugueses foram, de facto, os primeiros a olhar para a costa africana com os olhos gulosos de quem procura tesouros onde antes havia apenas lendas”. Esta frase inicial, tão cuidadosamente pensada, permanecia no texto, mas já lhe parecia carregar uma intenção com diversas leituras. Artur sabia que as palavras não podiam apenas relatar os factos; precisavam de reconhecer as nuances, os desalinhamentos de poder e as perspetivas que eram frequentemente varridas para debaixo do tapete.
Portanto, na reunião semanal, foi ali logo que Mukuba encalhou.
– “Tesouros onde antes havia apenas lendas”? – começou, pousando o manuscrito com uma leveza que desmentia o peso das suas palavras. – Parece-me, Matos, que continua a escrever com os olhos cobiçosos dos seus antepassados, de quem chegou para explorar, e não de quem sofreu a exploração.
Artur, já habituado às críticas, manteve a compostura. Sabia que responder impulsivamente seria um erro.
– É uma forma de enquadrar a perspectiva europeia sem a endossar – argumentou, controlando a voz. – Não digo que havia apenas lendas, mas que era assim que os navegadores viam a costa. Para eles, era um mapa em branco, mesmo que não fosse. Acreditavam que a seguir ao Bojador, o abismo os engoliria…
Mukuba inclinou-se para a frente, os olhos semicerrados como se tentasse avaliar até onde Artur acreditava naquilo que dizia.
– Muito bem, mas pergunto: e para os que viviam aqui? Acha que o “mapa em branco” não tinha já marcas de sangue, comércio e pertença? É isso que tem de mostrar, Matos. Senão, o seu texto será só mais um a perpetuar a história de uns indignos vencedores.
Artur não tinha resposta imediata, mas percebias as razões de Mukuba. A dificuldade estava, porém, em encontrar a forma de equilibrar a narrativa, que mostrasse, sem ofender mais, que existiam diferenças de tecnologia, de avanço entre europeus e africanos naquelas épocas. Manteve-se calado, a escutar enquanto o editor dissertava.
– Matos – continuou Mukuba, já num tom de quem conversa com um adolescente preguiçoso –, “tesouro” não é apenas ouro, prata e pedras preciosas. Para os povos que aqui viviam já, o tesouro era a terra. Ou acha que as conchas, o peixe, os zimbos, e até o sal não tinham valor? Tem de abandonar a lente do navegador europeu.
Artur respirou fundo. De todas as frases que ouvira até então, esta era a que mais o enervava. “A lente do navegador europeu” era quase um insulto, e Mukuba detinha um talento especial para atingir nervos expostos. Artur viu-se a reagir.
– Elias, desculpe dizer-lhe, mas se a tarefa é contar a História de Benguela, tem de se começar com os navegadores. Foram eles os primeiros a registar, em escrita, o que encontraram.
Mukuba apoiou-se na cadeira, os dedos entrelaçados em frente ao rosto, os olhos semicerrados como se fosse um professor cansado das desculpas de um aluno.
– E os que já estavam lá, Matos? Não percebe que a História já estava escrita, mesmo que não com a sua preciosa tinta europeia? – Mukuba inclinou-se ligeiramente, os dedos a tamborilar na mesa. – Cada sulco no chão, cada canção que ecoava nas libatas, era já uma linha dessa história. Vocês, europeus, só chegaram e rasgaram as páginas.
Artur abriu a boca para ripostar, mas Mukuba levantou a mão num gesto que dizia, sem palavras, que ele ainda não tinha acabado.
– E já agora, se vai usar o termo “temeridade”, explica-me isto: o que é mais temerário, Matos? Navegar mares desconhecidos ou sobreviver ao saque e à pilhagem de invasores que chegam com armamento que nunca viram na vida?
Caiu um silêncio na sala. Elias gostava de pausas dramáticas, mas Artur não lhe queria dar o prazer de o sentir intimidado. Ajustou os papéis que tinha à frente como quem afirma que ainda detém o controlo.
– Concordo que sobreviver é bastante temerário nessas circunstâncias – concedeu Artur, sabendo que, em situações como aquela, a diplomacia era uma excelente maneira de salvar o pouco de auto-estima que ainda tinha, sentindo que os dólares lhe faziam falta se não os tivesse. – Mas isso não anula o feito de desafiar o Cabo Bojador. A História tem de reconhecer que havia coragem e ousadia no gesto dos portugueses.
Elias soltou uma gargalhada seca.
– Claro. Coragem e ousadia. Foi isso que motivou Gil Eanes e os seus patrícios – ironizou Mukuba, com um riso seco. – Coragem e ousadia. Não foi a vontade de agradar ao rei nem a ganância de ser o primeiro a trazer boas novas. Não, foi coragem pura, e a límpida ousados, virtudes desinteressadas, quase angelicais.
Artur não respondeu, desviou o olhar, ajustando os papéis à sua frente. Começara a habituar-se àironia afiada de Elias. Em vez de contra-argumentar, quis que ele avançasse para os parágrafos seguintes, onde nenhum tom apologético sobressaía. Artur mergulhara em relatos precisos sobre as primeiras viagens de Diogo Cão, que em 1483 avistara a foz do rio Congo. Era impossível, julgava, não se fascinar com os detalhes: os padrões erguidos nas praias, as trocas hesitantes entre marinheiros e nativos, e até a audácia de levar reféns para Portugal, como se fossem amostras de uma terra distante. Era História pura, com todas as suas contradições.
Mas, claro, Mukuba tinha as suas opiniões.
– A sua narração parece um diário de aventura, Matos. – Ele apontava com o lápis para o parágrafo onde Artur descrevia os “encontros cautelosos” de Diogo Cão com os nativos. – “Cautelosos” é uma palavra gentil, não acha? Especialmente quando sabemos que esses encontros acabavam com reféns e pilhagens.
– Elias, tentei equilibrar o tom. Se for demasiado crítico ou cáustico, ninguém vai ler isto sem pensar que é propaganda.
– Propaganda, Matos? Chamar as coisas pelo nome é propaganda? Se os portugueses capturaram pessoas, então escreva: capturaram. Não diga “acolheram” ou “receberam”. Escreva: roubaram.
Artur saiu da reunião com mais um maço de dólares, e enfiou-se em casa. E assim os padrões deixaram de ser símbolos de progresso para maculados marcos de uma posse ilegítima. E as viagens, que antes soavam como jornadas heróicas, tornaram-se episódios de exploração mascarados de descoberta.
Dias depois, enviada a versão revistas, Mukuba ligou-lhe.
– Vê, Matos? Nem eles encontraram o ouro que procuravam até Angola, e isso porque estavam cegos pela ganância. A verdadeira riqueza de África sempre esteve nas pessoas, na terra, na cultura. Mas isso nunca foi suficiente, pois não?
Artur não respondeu logo. No outro lado da linha, fechou os olhos por um momento, tentando não explodir.
– Elias, este livro tem de ser um diálogo entre o que sabemos hoje e o que foi feito na altura – retorquiu Artur, controlando a voz –. Não posso mudar o passado. Só posso contar a História.
– Mas a História tem sempre duas faces: uma História certa e a uma História errada, Matos. E a História certa não é só a dos conquistadores; é a de quem resistiu.
—
No final, mais uns dias transcorridos, o segundo capítulo tornou-se uma narrativa de desencontros. Relendo o texto antes de o enviar a Mukuba, Artur sentia um desconforto crescente, como se cada frase cedida fosse também uma concessão da sua integridade enquanto escritor. Era verdade que o texto estava mais equilibrado, mais sensível às vozes e sensibilidades de quem resistira, mas a sensação de perda da sua autonomia permanecia.
Ele questionava-se: onde terminava a honestidade histórica e começava a imposição de uma narrativa alheia? Seria ele um escritor genuíno ou apenas um escriba a soldo, como constava terem sido os cronistas de antanho, moldando as palavras para agradar à crítica do poder e às expectativas de uma leitura contemporânea? Cada linha parecia agora carregada de um peso que não lhe pertencia inteiramente, como se a sua voz fosse agora somente um fino eco moldado pelas vontades alheias.
Ao ceder à inclusão do diálogo ficcional entre Diogo Cão e o soba, Artur sentiu-se especialmente vulnerável. Não que o diálogo fosse desonesto ou inverosímil – pelo contrário, ele sabia que trazia vida à narrativa –, mas a sensação de ter sido forçado a imaginar aquelas palavras fazia-o questionar a fronteira entre História e ficção.
No entanto, outra parte de si sentia-se estranhamente orgulhosa. A versão final, por mais distante que estivesse da sua visão inicial, parecia mais completa, mais fiel à complexidade dos eventos que narrava. Era como se o conflito com Mukuba fosse uma espécie de cadinho literário, onde a sua escrita era testada, desafiada e, no fim, refinada. A questão primordial se mantinha, porém: até que ponto essa, diga-se assim, maturidade não era, na verdade, uma capitulação? Enquanto imprimia o manuscrito, Artur sentiu-se dividido entre a sensação de ter criado algo de valor e o receio de que, ao fazê-lo, tivesse traído algo de essencial em si mesmo. “Talvez escrever História não seja diferente de navegá-la”, pensou, um sorriso cansado surgindo no canto dos lábios. “Ambos exigem que nos adaptemos às marés, mesmo quando elas nos afastam da rota que julgávamos certa.”
Artur terminara o capítulo com a chegada dos portugueses à região de Benguela, ainda esperançosos de ambição, mas prenunciando hostilidades e desilusões. Tudo isto se tornara um compromisso desconfortável, mas necessário. E quando recebeu nova chamadade, Artur não conseguiu evitar perguntar, ao telefone, quando o editor lhe anunciou a aprovação:
– Está feliz agora?
Mukuba respondeu-lhe apenas:
– Não, Matos… Mas está melhor.
[continua…]
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De onde me encontro, olho para a vida como se olha para a casa da infância. Descubro que o edifício outrora enorme é, afinal, diminuto. Os corredores são estreitos, os tetos baixos; as janelas dão para um quintal exíguo. Busco o prado imenso num canteiro relvado.
Vista daqui, a minha existência é como essa casa: ínfima. A passagem, que parecia não ter fim, revela-se feita de breves instantes. Os planos para o futuro, tantas vezes adiados por não haver pressa, serão para sempre planos. Intenções.
O tempo — longo, lento — foi um inimigo a vencer. Falta muito para acabar o curso. Falta muito para acabar de pagar a casa. Falta muito para os filhos serem adultos. Falta muito para chegar à aposentação.
A dor, a tristeza, a raiva… tudo passa:
—Tens de dar tempo ao tempo.
Os minutos tornam-se horas; as horas, uma eternidade. O tempo a arrastar-se. Lento. Lento. Lento. E eu, com pressa de chegar. A dar ao tempo, o tempo que nem desconfio não ter.
Sentamo-nos, tu e eu, num banco junto ao mar. Deixamos o olhar navegá-lo, baloiçando tranquilamente sobre o ondular leve das águas. Deito a cabeça no ombro de um casamento de 50 anos.
A lua, os barcos, a palmeira, o homem que passa com uma canastra na mão, este banco — tudo é enorme. Tudo será para sempre enorme. Não para nós.
Afagas-me as costas. Brincam os dedos das nossas mãos entrelaçadas. Percorre-me um misto de tristeza, melancolia e felicidade contida, de quem sabe que este movimento não é eterno, mas encerra a doçura de uma vida plena e extraordinária na sua normalidade.
Inspiro o cheiro a mar presente. As pálpebras descem lentamente. Um a um, invadem-me os aromas do passado: a pele dos filhos pequenos, as flores do bouquê de noiva, o perfume que usavas quando nos conhecemos, as frésias do quintal, o bolo mármore dos lanches na Alameda, o colo da minha mãe.
Cheguei!
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Quando Deus fez o mundo e nele jogou o primeiro homem, a primeira pedra e a primeira palavra tudo – ou seja, todo o nada – estava coberto pela umidade. Deus, bom e justo que é, achou bonitas aquelas inofensivas gotinhas de água. Por isso, recolheu-se feliz e satisfeito às sombras do seu reino de justiça e liberdade.
As gotículas de umidade, porém, quando se viram sem governo, resolveram que apenas cobrir o nada era pouco. E decidiram então possuí-lo em todas as suas dimensões e extensões.
Foi por isso que se infiltraram pelas paredes das casas de todos nós, casas erguidas mais como chacota do que como abrigos nas ruas desertas desta cidade fantasmal, que se chama Tapera, assim nomeada porque, na língua dos primeiros homens que habitaram as margens desta Lagoa assombrada, Tapera quer dizer aldeia abandonada contra a mancha negra da noite. Depois elas penetraram até as fibras mais recônditas das tábuas dessas pontes vacilantes. E, também, encharcaram as roupas dos homens para que eles se tornassem fracos e doentes e servis e cabisbaixos. E, ainda, se apossaram da areia para que nela os meninos e as meninas não pudessem brincar e se transformassem nos pálidos fantasmas que vemos por trás das vidraças de todas estas janelas fechadas.
Quando o mundo começou a respirar no primeiro pulmão a umidade já cobria e possuía tudo. É por isso que nossas sempre atormentadas mães varejam os quartinhos de despejo em busca de velhos jornais amarelados para com eles cobrirem as tijoletas gotejantes de suas cozinhas. E depois, quando partimos sobraçando a pasta repleta de lápis de cor do nosso jardim de infância, elas trocam as folhas empapadas por outras, secas.
O mais certo de tudo, dizia-nos a tia-avó, dando golpes no ar com suas agulhas de crochê, é que não se pode aprisionar nem o mar, nem o vento, nem o frio, nem o calor e muito menos esta maldita umidade.
Da umidade virão o mofo e o musgo, cinza e verde. Nascerão em todas as coisas, especialmente sobre as pedras polidas do calçamento destas ruas abertas sobre a pestilência de antigos mangues. O verde veludo é o musgo. O traço cinzento é o mofo. O musgo costura estas ruas, umas nas outras, para que não se dissolvam sob os passos de todos esses enfeitiçados. O musgo veda as rachaduras das paredes descascadas para que espíritos sem paz não adentrem a sonolência dos nossos lares.
O mofo é mais forte porque é cinzento, da cor dos nossos pesadelos. O mofo gris recobre nossos corações e faz com que amemos esta terra inóspita e sombria, até mesmo nos seus piores dias, que começam quando o vento se apresenta na sua carruagem, terrível e barulhenta, na boca daquela rua que acaba dentro das águas barrentas do rio.
O mofo toma conta de todas as coisas que estão perdidas nos porões da memória (relógios de parede, lanças de ébano e escarradeiras de bronze) até que a mão ensanguentada do Negrinho do Pastoreio as venha resgatar.
O musgo cobre até mesmo as alças destes caixões que mãos azuladas e trêmulas conduzirão ao cemitério em um dia de chuva.
O calor é o segundo feitiço.
Quando ele aponta, no alto do morro que domina esta cidade, os homens arrebentam os botões do colarinho e as mulheres escancaram as pernas enquanto dão de mamar ao filho recém-nascido. A praça fica repleta de pessoas afogueadas que se entreolham com amarelados olhos vazios. Na fresca da noite, anunciada pelo cheiro da erva-mate, os velhos vão para as calçadas com suas garrafas térmicas e suas bocas chupadas e mostram à lua suas geométricas dentaduras enquanto seus peitos encatarrados tentam conseguir um pouco de ar. O suor se transforma em rios quando todos aqueles velhos insones pressentem que naquela noite não resistirão ao apelo das forças primitivas e que, por fim, se transformarão em lobisomens. Assim aconteceu com o meu e com o teu avô, enquanto nossas avós percorriam alucinadamente as contas negras dos rosários com seus dedos ossudos e bondosos e murmuravam orações piedosas para a salvação de nossas almas.
O calor é o tempo das noites curtas e dos longos dias vermelhos porque o sol se detém no meio do firmamento, sobre a cúpula da nossa catedral, e ali se queda fustigando e incendiando tudo até a chegada da brisa noturna. Por isso é que só de manhãzinha, bem cedo, quando os raios alaranjados dançam no cume do morro, nossa avó asmática, fatigada pela insônia, consegue adormecer.
O calor é o tempo da mula-sem-cabeça. Por isso todos aqueles meninos se reuniam na frente da nossa casa, ao redor do vô que, sentado em seu mocho cambaio, pitando aquele cigarro de fumo Ouro Pelotense enrolado em papel Colomy, gostava de contar a história do negro Luís e de como ele se transformou em lobisomem numa noite assim escaldante e de como ele mordeu o lençol de linho branco da baronesa e de como o guarda-caça do castelo dos Simões Lopes o feriu com um tiro de bacamarte e de como o médico descobriu no dia seguinte – depois de ter-lhe retirado estilhaços de chumbo da nádega ferida – fiapos de linho entre seus fortes dentes de africano.
E por todo o penoso arrastar desta noite, no intervalo entre um e outro pesadelo, ouviremos a voz de nossa avó que recita com seu cantante sotaque lusitano os versos que nos salvarão do fogo do inferno.
O verão é a gota de suor que é quase a mesma coisa que a primeira gotícula de umidade que estava sobre todas as coisas quando Deus, nosso criador e criador de todas as coisas, admirou Sua obra. O calor é o murmúrio de todos esses homens encerrados como ladrões entre as altas e grossas paredes dessas fábricas fumacentas que são os verdadeiros braços desta nossa cidade febril. O calor é a cantiga dos teares que ensurdece nossas tias operárias e que leva para todo o sempre suas impressões digitais. O calor é também o raio de fogo que fere o cérebro de nossos gatos pretos que nessas noites de labaredas correm desatinados sobre o zinco fervente dos telhados musguentos. Lúdicos gatos lúbricos, lascivos.
O calor é o nosso pai com uma garrafa de cerveja diante dos olhos e um lápis na mão. O calor é tão bruto e insensível quanto a conta que ele faz e refaz, acabrunhado pela fria e indestrutível certeza da matemática, a conta que o mantém escravo daqueles pavilhões sufocantes. O calor é a certeza de que o inferno é aqui mesmo, agora, mas é também a certeza de que esta garrafa de cerveja, coberta de pequenos diamantes de suor, é o único anjo que Deus enviou para nos resgatar deste vale de lágrimas.
A chuva é o terceiro feitiço.
A chuva é o vidro moído que cai sobre esta cidade que um dia foi chamada Tapera, que quer dizer casa sem gente dentro, oco, vazio e nada.
A chuva, nos outros lugares do mundo, nas outras taperas, é destruição e força, ímpeto e arrogância. Aqui não, é serenidade e constância, equilíbrio e delicadeza, porque cai como flocos de algodão ou outra coisa ainda mais leve e mais acariciante. Lenta e doce, ela vai caindo e se amontoando sobre a superfície luminosa dos paralelepípedos centenários. Do jeito que cai, mansa e ordeira, fica. Por isso ninguém sabe, antes que se escoe uma semana, que está chovendo. Até que o primo tagarela nos avisa, quando estamos com o nariz enterrado no vapor cheiroso da xícara de café com leite, que a rua está alagada e que teremos que tirar os sapatos e caminhar três quarteirões até o ponto do ônibus que nos levará à escola.
Ela chegou tão de mansinho, tão manhosa, tão encantadora, que nem percebemos que os nossos dois pares de sapatos, o da missa de domingo e o de ir à escola, estão completamente úmidos e que é preciso colocá-los perto do fogão para que sequem junto com a nossa japona azul empapada. E então, um belo dia, quando faz mais de um mês que esta outra praga veio do céu para nos provar, descobrimos, por fim, que estamos ilhados. As ruas são agora pequenos rios. É por isso que reviramos a casa em busca daquele baralho mofado que não tem o Rei de Espadas ou daquele jogo de víspora que não tem o número 22, marrequinhas com arroz. E nosso pai se irrita e ameaça espatifar na parede aquele radinho japonês que comprou de um contrabandista em Rio Grande porque a minúscula porcaria não serve nem para captar os tangos da Rádio Taperense, até que nosso irmão mais velho se aproxima dele e diz com sua voz cambiante de adolescente que a essas alturas até mesmo a antena da Rádio deve estar debaixo d’água e que o cadáver inchado e insepulto do nosso bisavô possivelmente estará flutuando entre os transmissores.
A nossa chuva é aquela mesma de quarenta dias que está na Bíblia, diz o padre com sua voz alemã cheia de erres e depois ergue seus olhos de esmeralda para o teto do templo a fim de observar o balé daqueles milhões de pardais que, voando entre as vigas do teto alto, esperam a estiagem. Certamente, morreremos todos nós afogados – afirmou ele no sermão da missa das seis, para assustar as beatas que se escondem sob mantilhas negras – porque neste raio de cidade não há nenhum Noé.
Não existe Noé, eu sei, mas acontece que o leiteiro e o padeiro contaram à nossa madrinha que o padre se levanta às quatro da manhã só para rezar uma missa especial, em latim, para os pardais adormecidos. Eu garanto que é ele o nosso Noé porque o leiteiro e o padeiro viram quando os passarinhos entoaram o “Glória a Deus nas alturas” e, depois, bateram com as asinhas no peito enregelado recintando o mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa…
O vento é o quarto feitiço.
Num dia qualquer, os eucaliptos, os plátanos, os umbus e as figueiras voltam a sacudir suas cabeleiras molhadas. É sinal de que as nuvens negras se foram na direção do mar distante. Os homens abrem as portas enferrujadas de suas casas e espicham os ouvidos pelas vielas desta cidade que se chama Tapera, palavra que quer dizer campo arrasado, bandeira aviltada, barco à deriva…
Então chega o vento para revirar os olhos das raparigas nos seus leitos incendiados de virgens imaculadas, para acariciar seus seios de bicos arrepiados, para soprar entre suas coxas vermelhas, para submetê-las a todas essas torturas deliciosas.
Todos os rapazes, até mesmo os musculosos remadores do Clube de Regatas, voltam seus olhos para dentro de si e assombrados observam o que se passa no interior de seus peitos glabros: a louca corrida do sangue que pulsa e explode desgovernado em busca de uma brecha naquele corpo rijo. Por isso, eles se levantam no meio da noite, sonâmbulos, e batem com a testa latejante contra as cerâmicas úmidas do banheiro enquanto resmungam desconexas rezas de primeira comunhão.
O vento é como o apito do marinheiro, triste e solitário. À noite, observado apenas pela lua e pela coruja, ele arranha as paredes sem reboco da nossa casa, aplaina as arestas das esquinas e varre os campos semeados. O vento vai e volta, sereno, por esses becos, mas torna-se furioso, destruidor, quando se defronta com todos os obstáculos que o homem insiste em construir: estátuas, túmulos e palanques.
Por causa do vento nosso tio não larga mais aquela maldita garrafa de cachaça, nem mesmo para ir ao banheiro. O vento não lhe dá sossego, persegue-o por todos os corredores desta casa, espicaçando-o, enlouquecendo-o. Mas nós sabemos que aquele vento, aprisionado no labirinto dos ouvidos do nosso pobre tio, jamais sairá dali.
O vento é meio cabeça-de-vento, diz o professor de História, enquanto nós todos, meninos, damos gargalhadas e nos cutucamos e sussurramos: como é louco este velhinho! Mas nós somos ainda mais patetas – acrescenta o professor, folheando seu álbum de selos franceses – porque nos irritamos com o vento, mesmo sabendo que um dia ele também vai desaparecer dentro da Lagoa, que é o fim de todas as coisas que nos cercam.
Pois bem, certo dia o vento some nas curvas do canal levando consigo seus cortejos de esqueletos, seus comboios de folhas secas e suas caravanas de panelas amassadas. Lento, a passo miúdo, vai dançando sobre charcos e pântanos sempre em busca do Sul do mundo.
Depois vem o frio, quinto feitiço.
O frio é a pedra de gelo que nos recobre as pernas e o sexo e que eletriza nossas gengivas e nossos dentes. O frio é o frio mesmo, diz nossa falecida mãe enquanto coloca fralda sobre fralda na bunda de nosso irmãozinho menor mesmo sabendo que de pouco vai adiantar já que dentro de duas horas, três no máximo, ele vai despertar chorando todo mijado por causa dessa frialdade que nos encaranga a todos, indiferentemente.
O frio é o frio mesmo, sem tirar nem pôr, diz a mãe, puxando as pontas das fraldas, alfinete de segurança entre os dentes, enquanto lança olhares vigilantes para nós que, entrouxados em roupas de lã piniquenta, estamos virando cambalhotas sobre o sofá-cama.
O frio deve ter chegado a esta terra – nossa terra úmida e fria – em companhia dos tropeiros que vieram para fundar sangrentos matadouros nesta perdida parte do Sul do mundo. Eram homens casmurros e teimosos porque construíram aqui sua casa e seu trabalho sem prestar atenção ao que lhe diziam os índios: isto aqui é terra sem gente, gente sem terra, povo sem voz, fogo sem brasa e outros disparates.
O frio percorre todos os andares de nossas costelas e faz com que nos encolhamos entre os ombros e por isso sejamos homens macambúzios e cismáticos sentados ao redor de uma fogueira enquanto algum velho de largas bombachas e barba por fazer vai enfileirando mentiras e se esquece de nos passar a cuia do chimarrão.
E nós, quando nos interrogam, não sabemos responder se é por causa deste frio ou daquele calor, desta umidade ou daquele vento que muitos destes homens e mulheres foram findar seus dias entre as altas paredes do Sanatório, de onde nunca mais sairão por causa daquele enorme portão de ferro e dos cacos de vidros que cintilam sobre o muro depois da chuva.
Lourenço Cazarré é escritor
Texto originalmente integrado no livroEnfeitiçados todos nós
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Ainda a manhã era uma criança, uma coluna de viaturas do Estado-Maior do Panzer Armee entrou na cidade velha pela porta de Jaffa. Pouca gente nas ruas. Seguindo ao longo da rua do rei David, a coluna prosseguiu na direção do muro das Lamentações, o mais importante lugar de peregrinação para os judeus. O marechal Rommel decidira auscultar as comunidades religiosas. Se judeus muçulmanos, e cristãos conviviam nos Lugares Santos, porque combateriam fora deles?
A comitiva chegou ao muro, aquele resto da muralha do que outrora, um outrora muito distante, fora o templo de Jerusalém. O Templo. Desde a noite dos tempos. Onde nasceu a Contemplação. “… Uma edificação gigante ocupara toda aquela colina de Jerusalém…” explicou o guia judaico.” “… O primeiro templo foi arrasado por Nabucodonosor no século VII. E entre lágrimas, os judeus exilados levaram os rolos com os quais criaram um novo templo de papel a que chamaram a Torah, os livros sagrados.”
O franciscano alemao.
Veio a libertação do cativeiro de Babilónia e Israel construiu o segundo templo. Ainda mais grandioso que o primeiro e com a arca da Aliança. A Festa das Luzes – Hanukká – celebra a vitória militar de Judas Macabeu e a dedicação do Templo em 165 a.C. Um candelabro de oito braços, com uma luz extra para acender as outras sete em cada dia de festa.
“… No majestoso pátio reunia-se o povo eleito para pagar o meio shekel de prata, a única moeda que não tinha a efigie do imperador romano. Colada ao Templo, erguia-se a Torre Antónia, e o pretório de onde os ocupantes romanos vigiaram e controlaram a cidade até que as legiões romanas de Tito e Vespasiano destruíram o templo em 70 d.C., não deixando pedra sobre pedra”… exceto aquele muro ocidental, outrora de Glória, agora das Lamentações.
Um pequeno número de judeus rezava e tocava o muro. Que dizem eles, perguntou Rommel? O guia foi pressuroso. “… Entoam o Escuta Israel /Quando o coração chora, só Deus escuta. Mas porque tapam os olhos e batem com a cabeça no muro? “… Diz-se que Judá ha-Nasi ao recitar o primeiro verso do Shema em voz alta, criou o costume de cobrir os olhos com a mão direita. O marechal continuou: “… Bater com a cabeça é sinal da lamentação. É isso que fazem …lamentar-se?“… “Sr. Marechal: Segundo a nossa tradição, este é também o sítio onde deverá construir-se o terceiro e último templo quando chegar o Messias, o salvador que vai redimir o povo de armas na mão”.
O marechal registou as respostas com uma atitude respeitosa que tinha para com todas as informações, mas notava-se que o seu espírito prático não apreciava aqueles atos de contrição. Convidou o guia a acompanhá-lo ao monte sagrado, o terceiro lugar mais sagrado do islamismo. O guia perfilou-se “… Um judeu não penetra nesse local; foi profanado pelo Islão e poderíamos estar a violar, sem querer, o Santo dos santos”. Após uma breve troca de impressões com o séquito, Rommel deu ordens para findar a visita do Muro.
Basílica de Getsémani,com a Rocha da Agonia.
A comitiva levou pouco mais de dez minutos a chegar ao monte do Templo, o local mais sagrado da cidade e talvez do mundo, para judeus cristãos e muçulmanos. A rocha usada em sacrifícios, é uma das razões pelas quais a cidade de Jerusalém é considerada Cidade Santa por várias religiões. Os muçulmanos chamam-lhe o Nobre Santuário, Al-Haram ash-Sharif. E não admira porquê. O centro da esplanada corresponde ao monte Moriá onde terá ocorrido o sacrifício de Isaac, filho de Sarah dizem cristãos e judeus. Ou de Ismael, filho da escrava Agar, dizem os muçulmanos. Sobre a “pedra do sacrifício”, o rei David ergueu um santuário para acolher a Arca da Aliança. As obras do Primeiro Templo foram terminadas por Salomão mil anos antes de Cristo, e destruídas por Nabucodonosor II em 587 a.C., com o exílio judaico na Babilónia. O Segundo Templo voltou a ser destruído em 70 d.C. pelos romanos, com a exceção do Muro das Lamentações
E ali estavam no centro da esplanada, no centro do mundo, rodeados da mole de madraças, refeitórios, fontes e cúpulas entre as quais sobressaía a Mesquita de Al-Aqsa, construída pelo califa Omar no século VII sobre as ruínas do Templo. Entre todas as construções a que ofuscava a vista era a Cúpula da Rocha. Era um octógono perfeito de admiráveis proporções, coroada por uma gigantesca cúpula…
Descalçando as botas no exterior, o marechal Rommel e a comitiva penetraram na Cúpula onde se admirava a elaborada decoração a vermelho e ouro. O guia, que vestia uma jelaba de cor vermelha e capuz pontiagudo teceu louvores a Saladino que conquistara Jerusalém aos Cruzados. O interior da cúpula estava repleto de uma massa de azulejos que louvavam a um só Deus e a Maomé o seu profeta. Um segundo conjunto de azulejos louvava Jesus como o maior dos profetas, escritos em um tempo em que o Islão era concorrente direto.
Basílica das Nações, Getsémani.
“Por estas escada de rocha, Maomé subiu aos céus…”, dizia o guia sobre a Al Miraaj, a viagem aos céus realizada pelo profeta Maomé ajudado pelo anjo Gabriel… No interior da cúpula está o poço das almas. E a mais antiga misdrad do mundo aponta na direção de Meca.
“… O Islão é guerra santa. Que tem o guia a dizer sobre isto?” Enquanto o intérprete militar traduzia a pergunta do marechal, o guia ficou muito crispado e respondeu por tiradas… “… Maomé era chefe de Estado e fez a guerra. Quando foi atacado por Meca, lutou. Mas trouxe a paz para a Arábia e unificou-a através da diplomacia. No Ocidente tendes a ideia de que o Alcorão é jihad e guerra santa. Mas das 40 vezes que o termo surge no Alcorão, apenas dez se referem à guerra. Jihad também é aperfeiçoamento, partilha. O marechal insistiu. “… Mas pergunte-lhe quem decide se a jihad é de paz ou de guerra.” “… Está tudo no Corão”, foi a resposta.
Já o sol de Agosto dardejava sobre os tetos de Jerusalém, e a manhã ia avançada quando Rommel e a comitiva transpuseram os portões de ferro forjado que demarcam os terrenos da Basílica da Agonia. Descendo em ziguezague das muralhas sul da urbe, surgia de repente esse cristianíssimo templo, no sopé do Monte das oliveiras, e dos grandes cemitérios judaicos que bordejam o vale de Josafat. Era uma construção invulgar com uma fachada multicolorida e doze pequenas cúpulas no teto, evocando as doze nações que a construíram. Era ali que o marechal decidira concluir a visita das três religiões. Poderia ter ido à igreja do Santo Sepulcro, mais esplendorosa, quiçá mais simbólica. “… Jerusalém é uma cidade de pedras e rochas e dizem-me que está ali a rocha da agonia”, dissera o marechal.
Aguardava-os um franciscano alemão, frei Werner. Estatura elevada e porte afável, sotaina castanha bem cuidada tal como as sandálias da mesma cor. “… Sr. marechal foi neste jardim de Getsemani que Jesus e os seus discípulos oraram na noite em que o Messias foi preso pelos soldados romanos”. No interior da basílica, frei Werner explicou o que viam retratado nos painéis dos muros. “… Ali apareceu-lhe um anjo do céu para o confortar. Acolá Jesus disse “aquele a quem eu beijar…”. Enquanto ladeava o recinto octogonal junto ao altar-mor, rodeado por uma colunata, o franciscano relatava os eventos como se tivessem sucedido ontem. “… Foram-no buscar para o prender quando se sentava ali, nesta rocha. “Outra rocha”, disse Rommel… “como na mesquita”. “Sim sr. Marechal… Mas ali ao lado é uma rocha que evoca a glória de deus. Aqui no monte das oliveiras, é uma rocha de sofrimento, de agonia dos homens.”
Marechal Rommel, em revista às tropas.
O marechal escutou aquelas palavras enquanto caminhavam lado a lado. “… frei Werner, pouco sei fora da minha vida militar: sei que o suor poupa sangue, que o sangue poupa vidas, e que o cérebro poupa ambos. Acha que Jesus se devia ter deixado prender? Não seria melhor ter fugido?” Frei Werner olhou algo compadecidamente para o compatriota e afirmou. “… E o que é o cérebro, sr. Marechal? É quem pergunta ou quem responde? É quem nos guia, ou é guiado?” Rommel preferiu nada dizer. Tinham atingido a rocha da agonia, junto ao altar mor.
Era cercada por uma cinta de ferro forjado encimada por aves – falcões, pombas e melros – era a rocha da agonia onde Jesus orou. frei Werner continuou o relato: “… Segundo o Evangelho de Lucas foi aqui que Jesus entrou em agonia e o seu suor tornou-se em gotas de sangue a escorrer pela terra.” Esta rocha recolheu o sangue de Cristo até ele mais não aguentar e exclamar “… Pai afasta de Mim este cálice!” “… Que significa isso?” perguntou Rommel.
Werner cruzou as mãos atrás das costas e disse em tom mais baixo que até aí usara de tal modo que Rommel se teve que inclinar para o escutar: “… Quer a resposta convencional ou quer algo mais profundo … Herr Feldmarschall?Diga o que achar mais verdadeiro. Werner continuou com à-vontade: “… Na minha Ordem, houve um monge do século XII chamado Joaquim, que profetizou o início da terceira era, a era do espírito. Depois na obra de um filósofo nosso compatriota, li que estamos no início da terceira época do cristianismo: a fundação da Igreja de João. As revoluções e as batalhas desta guerra culminam o avanço da história para o final. Mas é preciso que alguém ponha termo à guerra para que surja a ” redenção”. Dito isto, Werner calou-se abruptamente.
Rommel entendeu que o franciscano lhe queria segredar algo mais. “…E então?” “… Então, pegue nessa ideia e permita a conclusão da ideia joaquimita e joanina. Toda a Alemanha o admira!, senhor marechal ”. Werner animava-se. “Todos seguirão um herói. Ponha fim a tanto derramamento de sangue, a tanta perseguição. Afaste de nós esse cálice! Werner estava a ficar exaltado. ”… Ponha fim à guerra aqui em Jerusalém… Chame todos os judeus, muçulmanos e cristãos. Diga que não admite mais mortes e que ressuscitou a nossa Alemanha, a Alemanha de Kempis, Cusa, Tauler, Eckhardt, Durer, Lutero, Kepler, Bach, Goethe e Beethoven e Heine e Einstein. Werner já não cabia em si -. “…Diga a todos que vai fazer a paz, a começar por aqui, Jerusalém”. Ao proferir as últimas frases, Werner estava praticamente a gritar, com as lágrimas nos olhos. Os circunstantes tinham-se virado para ele guardando profundo silêncio, à espera da reação de Rommel.
Mesquita de Omar [ex-Basílica da Rocha], Jerusalém. Circa 1941-45.
O marechal nada disse. Passados longos segundos que a todos pareceram uma eternidade, tomou a mão direita do frade franciscano, empunhou-a calorosamente e colocou a sua mão esquerda por cima de ambas. “… frei Werner explicou-me maravilhosamente o que foi a agonia de Jesus. Estou-lhe muito grato por isso.” E depois calçou as luvas enquanto se dirigia rapidamente para o exterior.
Nessa noite escreveu a sua mulher.
Querida Lu
Jerusalém tem três religiões e todas sabem o que querem, mas creio que ainda está por nascer quem saiba fazer o que pretendem. Visitei os lugares santos. Todos rezam ao mesmo Deus e plantam oliveiras. Talvez um dia tente plantar uma destas árvores em Herrlingen. Bons sonhos para ti e espero que colhas as maçãs do nosso jardim e faças a receita da compota.
Teu
Erwin
[CONTINUA]
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O verdadeiro Pai Natal não nasceu na Lapónia, mas sim na Anatólia, actual Turquia. Tendo vivido nos séculos III e IV, o arcebispo de Myra de seu nome Nicolau andou por terrenos e tempos atribulados, ao longo do antigo Império Romano, que só com o imperador Constantino se tornaria cristão. A sua fama de benemérito inspirou em 1823 um professor norte-americano a “criar” o Pai Natal, que viria depois a ser aproveitado pela Coca Cola para uma campanha de marketing. Mais fantasiosa ainda é, contudo, a sua hagiografia – isto é, a sua vida em livro – escrita por um padre português do século XVIII, João Antunes Monteiro, prior da alfacinha freguesia de São Nicolau e influente conselheiro do rei D. João V. Nem contada nem lida se acredita.
Na véspera de Natal de 1822, o norte-americano Clement Moore, professor de grego contou aos seus filhos, através de um poema, a história de um certo Nicolau, por sinal santo homem da Igreja Católica do século IV, que viajava num trenó puxado por renas, desde o pólo Norte, e distribuía brinquedos pelas crianças, enfiando-se pelas chaminés.
A fábula pegaria bem de estaca nas décadas seguintes, alimentando-se também de aspectos do folclore alemão e holandês, que então celebravam a data da morte de São Nicolau – dia 6 de Dezembro – com a oferta de prendas.
São Nicolau de Myra.
Daí até se encontrar uma figura para o mais famoso e aguardado velhinho foi um pulo. Na segunda metade do século XIX, vários cartoonistas criariam uma iconografia, sempre em evolução: primeiro a preto e branco, mais tarde, já na terceira década do século XX – através de uma campanha de marketing da Coca Cola – com as suas inconfundíveis roupas vermelhas e brancas.
As primeiras versões do Santa Claus – a alteração fonética da fusão do alemão Sankt Niklaus e do holandês Sinterklaas – até foram pouco politicamente correctas: o velhinho, mais do que bonacheirão – na verdade, a barriga era descomunal –, promovia o tabagismo.
Os primeiros cartoons – desenhados por T. C. Boyd, F. O. Darley e, sobretudo, pelo anticlerical Thomas Nast – apresentavam-no quase invariavelmente com um fumegante cachimbo nos beiços.
A Igreja Católica, claro, não apreciou muito. E se, porventura, os autores da brincadeira tivessem vivido um século antes teriam tido problemas. Parodiar um santo do quilate de Nicolau de Myra seria então inadmissível; heresia, no mínimo, com direito, eventualmente, ao crepitar de lenha.
Ilustração de Thomas Nast de 1881 do Pai Natal
Se São Nicolau parece ter sido, de facto, um bom filantropo, as suas vidas – a terrena e a celestial – mostram que foi homem que, embora piedoso, não andou por aqui em grandes brincadeiras. O próprio diabo que o diga, que supostamente sofreu amarguras diversas sempre que com ele se cruzou. Pelo menos é o que mostram os biógrafos deste santo, em escritos fantásticos disseminados ao longo dos séculos. Uma dessas biografias – que bebeu inspiração a vários sermões seculares – até é bem portuguesa; publicada em 1720, pelo então prior da paróquia lisboeta de São Nicolau, João Antunes Monteiro.
Este padre foi, curiosamente, uma figura preponderante na Corte lusitana da primeira metade do século XVIII. Era para o rei D. João V, aquilo que porventura Vítor Melícias foi para o antigo primeiro-ministro António Guterres.
Ou seja, o prior da alfacinha paróquia de São Nicolau – no centro da Baixa, que foi freguesia até 2013, estando agora integrada na de Santa Maria Maior – era um dos conselheiros predilecto do Magnânimo, não apenas espiritual, mas também em negócios de Estado. Por exemplo, chegou a desempenhar funções de gestão em algumas fases da construção do Aqueduto das Águas Livres. A sua influência no Terreiro do Paço foi tanta que não admira que a dita biografia do nosso Pai Natal – pomposamente intitulada Breve compêndio da prodigiosa vida e estupendos milagres do glorioso Arcebispo de Myra S. Nicolao Taumaturgo, advogado universal de todos os peccadores – tivesse sido oferecida à Virgem Maria pela soberana, augusta e excelsa mão do magnânimo, generoso, esclarecido e sempre memorável monarca D. João V Nosso Senhor”, conforme consta no frontispício. Portanto, estamos perante uma obra escrita para ser levada a sério. Na verdade, muito a sério – naquela época, claro.
A linguagem usada pelo padre João Antunes Monteiro na biografia de São Nicolau torna-se deliciosa – alguns poderão dizer delirante – pela forma como descreve, em minuciosos e mirabolantes detalhes, a vida daquele santo. Embora não existam quaisquer documentos, as biografias apontam para o ano de 270 depois de Cristo, na antiga cidade marítima de Patara, uma região de Lycia, na actual Turquia. Na Anatólia, portanto – um tanto afastado da comercial aldeia do Pai Natal, na Lapónia.
E por falar em Jesus Cristo, saiba-se que as hagiografias dizem que São Nicolau teve um nascimento, supostamente a 15 de Março, com contornos semelhantes. Com efeito, remetendo para a biografia do padre João Antunes Monteiro, os pais do santo – Epifânio e Joana – “sendo casados em muita paz, concórdia e santos costumes” desejavam um filho. E tantas instâncias fizeram que a Virgem Maria “apresentou no Consistório da Santíssima Trindade” aqueles desejos paternais, pelo que, pouco tempo depois, “lhe enviou o Senhor do Céu um anjo que os certificou (…) que brevemente haviam de ter um filho muito mais santo e com muito mais préstimo para o serviço de Deus do que tinham desejado”. E assinalou-lhes ainda o dia e hora da chegada.
A Coca Cola “apropriou-se” do Pai Natal na década de 20 do século XX, dando-lhe o “formato” que hoje conhecemos.
O recém-nascido parece ter dado sinais de evidente santidade logo que viu a luz do dia. Estava a parteira para o lavar e “ele se pôs de pé com muita notável firmeza (…), com os olhos postos no Céu e as mãos erguidas e postas sobre os peitos”. São Vicente Ferrer – um clérigo do século XIV, actual patrono da Comunidade de Valência – diria que aquele prematuro acto era de agradecimento a Deus por “o ter feito criatura racional à sua imagem e semelhança e porque o tinha livrado dos perigos que poderia ter dentro do cárcere do ventre de sua mãe”.
Foi por este prodígio que São Nicolau se tornou também, em muitos países, o santo protector dos partos difíceis. Depois disto, o facto de ele, por “mais meiguices que sua mãe lhe fazia para tomar o peito”, ter jejuado, com precisão, às quartas e sextas-feiras, já não pode causar muita admiração ao mais cépticos…
O seu primeiro grande milagre estava, porém, reservado para a idade escolar, antes de completar os sete anos, segundo a biografia setecentista. Como os pais eram ricos, costumava ele levar dinheiro para distribuir pelos pobres antes de entrar na sala de aulas. Consta que, em certo dia, uma pobre aleijada chegou atrasada, devido à deformidade, e lastimou-se da sorte. Pois bem, o pequeno Nicolau condoeu-se e “levantando o coração a Deus”, fez o sinal da cruz sobre a cabeça da rapariga e disse: “Em nome do Senhor Jesus Nazareno, levanta-te e anda”. O resultado, claro, foi imediato!
Mas foi em artes da ressurreição que Nicolau de Myra deu cartas, de acordo com os seus biógrafos. E aqui bateu mesmo Jesus Cristo, que apenas fez Lázaro regressar à vida. O primeiro lote de ressuscitados ocorreu ainda na sua adolescência, durante uma peste na região de Lycia. O padre João Antunes Monteiro diz mesmo que “Deus o conservava para ressuscitar mortos” ou coloca como hipótese que “temeu a morte ter encontros com quem a podia consumir e sepultar”.
Mesmo assim, não teve dotes para salvar os progenitores, embora o prior lusitano informe que a Virgem Maria “lhe limpava as lágrimas e o consolava, mostrando-lhe no Céu as almas dos seus pais entre os coros dos Bem-Aventurados.
Herdada a fortuna dos pais, Nicolau pôde então dar largas à sua costela filantrópica, que está na base da fábula do Pai Natal. O seu lusitano biógrafo destaca sobretudo a história de um velho viúvo com três filhas donzelas, a quem o demónio tentava, a expô-las ao perigo de perder a castidade” – que é, como quem diz, a prostituí-las.
Biografia do padre João Antunes Monteiro, publicada em 1720, prior da freguesia de São Nicolau, então pertencente a Lisboa Ocidental.
Assim, certa noite, Nicolau decidiu deitar anonimamente, pela janela da casa do velho, uma bolsa de ouro suficiente para pagar o dote da primeira filha. Na segunda noite, repetiu a dose, para outra filha. E o mesmo sucedeu na terceira, para a última.
No entanto, desta vez, o velho fez uma espera e surpreendeu o benemérito, pelo que Nicolau fez-lhe prometer que não divulgaria a sua acção. A manutenção do segredo custou alguns dissabores ao velho, porque o seu tão repentino enriquecimento causou murmuração entre a vizinhança. Como é normal, estes “mais depressa se inclinaram a julgar mal do que bem”, pelo que, para salvar a honra do velho, Nicolau de Myra se viu na contingência de se denunciar como o obsequiador.
A sua entrada num mosteiro, em data desconhecia, teve como consequência um aumento dos seus milagres, que se sucederam em catadupa, quase sempre tendo o demónio por inimigo. Os seus sucessivos exorcismos até levam mesmo o diabo, certa vez, a lamentar-se: “Ai que Nicolau me vence em tudo e não me deixa executar meus intentos”, assim relata o padre João Antunes Monteiro.
E como o dito belzebu já não conseguia endemoninhar ninguém, decidiu, noutra ocasião, incendiar uma cidade, mas Nicolau interveio mais uma vez, pelo que o fogo se extinguiu sem deixar lesão alguma nos edifícios. À conta disto, Nicolau também se tornou o padroeiro contra os incêndios urbanos.
Pouco tempo depois, faria ele uma viagem até à Terra Santa, seguindo os passos de Cristo, tendo os anjos como cicerones, segundo o seu biógrafo. E pelo caminho foi curando enfermos, cegos, surdos, paralíticos e um ou outro endemoninhado. Regressado ao seu mosteiro, teve tempo ainda para multiplicar um pão para dar de comer a 70 operários que estavam construindo uma igreja. E como estes, mesmo de barriga cheia, não conseguiram mover uma grande coluna, Nicolau benzeu a gigantesca pedra e, com a ajuda de apenas dois clérigos, colocou-a no sítio exacto.
Pouco depois de ter sido nomeado arcebispo de Myra – cargo para o qual tinha recebido três premonições, a última das quais envolvendo Cristo –, houve de obrar mais uma fantástica ressurreição. Dois estudantes de Atenas, em peregrinação, acabaram na salgadeira de um estalajadeiro, cortados em postas. Nicolau, sendo avisado pelo Espírito Santo, obrigou o estalajadeiro a mostrar-lhe os despojos e, juntando-os, ressuscitou os jovens.
Situação similar terá ocorrido anos mais tarde, numa viagem até Roma. Neste caso, Nicolau descobriu a malvadez de outro estalajadeiro que lhe apresentou um prato de carne retirada de três mancebos, em vez do atum que lhe pedira. Nesta mirabolante viagem, conforme a descrição do padre João Antunes Monteiro, até os animais beneficiaram das suas artes.
Passagem da biografia onde se destaca a acção de oferta “furtiva” de São Nicolau de Myra.
Numa noite, perto de Bari, mais outro estalajadeiro foi tentado pelo demónio e, porque o arcebispo de Myra e o seu companheiro fizeram parca despesa, cortou as cabeças dos burros que os transportavam. Na manhã seguinte, ainda um pouco antes da aurora, perante aquele espectáculo, Nicolau mandou coser as cabeças aos respectivos corpos dos burros – ressuscitaram, claro. Com um pequeno percalço nesta operação sem luz, quase às cegas: os burros ficaram com as cabeças trocadas. Ou seja, o burro que era branco ficou com a cabeça do burro que era preto; e ao preto, claro, restou-lhe a cabeça do branco.
Ainda antes destas aventuras, Nicolau chegou a ser perseguido, preso e mais tarde deportado, durante a época de Lícinio, que liderou o Império Bizantino entre os anos de 313 e 324, quando então foi derrotado por Constantino, o Grande, que concedeu liberdade religiosa aos cristãos. A partir daí tudo se alterou para Nicolau de Myra; mandou arrasar templos pagãos – em especial os dedicados a Diana –, substituindo-os por igrejas. No meio deste processo, a biografia do nosso prior lisboeta diz que os demónios se lamentavam e berravam pelos ares, “testemunhando que iam vencidos pela virtude de Nicolau”.
Na biografia escrita pelo padre João Antunes Monteiro existem mais uns quantos prodígios obrados por Nicolau de Myra até à sua morte aos 65 anos, supostamente no dia 6 de Dezembro – aliás, a data em que o calendário litúrgico e alguns países o evocam. A causa é desconhecida, mas não terá sido mártir.
Cripta na igreja de Bari, onde estão depositadas as ossadas de São Nicolau.
Se a vida lhe cessou, os milagres não. Daí que a segunda metade do livro do padre João Antunes Monteiro, a partir da página 113, seja ocupada a detalhar a infindável quantidade de curas milagrosas e mais ressurreições, por via do maná que saía ininterruptamente do seu corpo, enterrado na zona de Myra.
Na verdade, eram dois, os manás: um que lhe brotava da cabeça, com a consistência de óleo; outro que lhe escorria dos pés, com aspecto aquoso. Na lista de supostos beneficiados pelos poderes desse santo maná, conforme o relato do seu lusitano biógrafo, constam mesmo duas portuguesas, que no início do século XVIII sofriam de supostas febres malignas.
Mas, nessa altura, as ossadas de Nicolau já há muito se encontravam em Bari, na Itália. Em 1087, umas dezenas de marinheiros e clérigos conseguiram, no meio de algumas peripécias, roubar as relíquias do santo da sua sepultura original em Myra, região entretanto perdida em 1071 pelo cristão Império Bizantino, no decurso da batalha de Manzikert, para o islâmico Império Seljúcida.
A chegada desta comitiva com as santas ossadas a terras italianas foi celebrada ao som de sinos, tambores e clarins. Mas essa alegria acabou em tragédia: como o bispo de Bari e os aventureiros não se entenderam quanto ao local para depositar as ossadas, entraram em vias de facto. E daí a pouco “houve pendência, e nela mortes e feridos”.
O nosso biógrafo lusitano do Pai Natal não esclarece se, após esta estapafúrdia batalha campal, houve ressurreições por intercessão de São Nicolau. Apenas informa que as ossadas acabaram transladadas pelo papa Urbano II para a actual Igreja de São Nicolau. Depois, a biografia é rematada com uma novena. Amen.
N.D. Uma primeira versão deste artigo foi publicada no final de Dezembro de 2006 na extinta revista GR-Grande Reportagem.
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Artur Matos ajeitou a gola da camisa pela terceira vez, como se o gesto pudesse aliviar uma ansiedade que insistia em instalá-lo na condição de réu. Não fazia calor; o nervosismo era mais interno, fruto de uma convocatória inesperada que chegara na véspera. Passara toda a tarde procrastinando a escrita de um ensaio ambicioso sobre os mistérios da Ordem de Cristo, projecto trazido de Lisboa, que ninguém pedira, que se destinaria, por certo, à prateleira dos esquecidos. Entretivera-se no YouTube, assistindo a cenas de gatos em situações hilariamente patéticas, como se aí encontrasse um reflexo de si mesmo, preso num ciclo de adiamento e auto-ironia.
Agora, caminhava pelas ruas de Benguela, com o aroma pesado da cidade a invadir-lhe os sentidos: um misto de maresia, poeira e carne grelhada. Por entre edifícios coloniais, que ainda guardavam ecos de um passado nunca completamente resolvido, abeirou-se de uma construção de linhas rígidas, um testemunho do pragmatismo da arquitetura lusa. Era apenas a fachada. Procurou pela placa que indicava a editora AfroHistórias. Quando a encontrou, hesitou por instantes, a cabeça cheia de imagens difusas de historiadores coloniais e o peso de vozes críticas que ele próprio evitava ouvir.
Enquanto subia a escadas reparou que o interior se modernizara, mesmo mantendo-se europeu, e tocou a uma campainha que trouxe o condão de lhe abrir a porta. O espaço da editora era uma síntese do pragmatismo contemporâneo: linhas limpas, decorações minimalistas e uma recepção dominada por cartazes coloridos com títulos como ‘Revoltas Submersas’ e ‘Nzinga: A História Não Contada’. O logotipo na porta de vidro fosco – o contorno de África coroado por uma águia imperial – parecia sugerir que aquele era um espaço para narrativas que alçavam voo sobre verdades negligenciadas.
Ao entrar, Artur encontrou uma secretária baixa, em madeira polida, onde uma jovem de cabelos entrançados falava ao telefone num tom de autoridade natural. Não precisou de palavras para ser ordenado a aguardar; o gesto seco da mão foi suficiente para deixá-lo com a sensação de estar numa sala de espera de um dentista ou de um julgamento iminente. Não passara dez minutos, e a secretária, mascando pastilha, e quase sem o olhar, apontou uma porta. Entrou.
Era uma sala de reuniões austera, quase monástica, com quadros de figuras históricas africanas que pendiam das paredes em poses heróicas. Amílcar Cabral, num canto, parecia olhar directamente para Artur, não com o desdém de quem despreza, mas com a severidade de quem espera. Quando Elias Mukuba entrou na sala, trouxe consigo uma aura de precisão e autoridade. Fácil se mostrou a Artur que era o editor – homem alto, de pele retinta e olhos penetrantes, que pareciam ter o poder de desarmar qualquer tentativa de dissimulação.
– Matos, agradeço por ter vindo. – A sua voz era quente, mas desprovida de desperdício.
Artur levantou-se, respondendo ao cumprimento com um aperto de mão. – O prazer é meu – disse, com a casualidade mal ensaiada de quem sabia que aquele não era o seu terreno.
Mukuba não perdeu tempo.
– Preciso mesmo de alguém para escrever ‘A História Verdadeira de Benguela’. Queremos uma narrativa que transcenda a tradição paternalista e colonial, mas que, ao mesmo tempo, respeite os factos. O seu nome foi-me recomendado, mas, confesso, hesitei quando soube que era… branco.
A observação caiu na sala como uma granada silenciosa. Artur piscou os olhos, tentando avaliar se aquilo era uma armadilha ou apenas um teste. Mukuba não desarmou, sustentando o olhar como quem aguardava uma reacção.
– Imagino que seja uma hesitação natural – respondeu, com um leve sorriso que escondia o desconforto. – Afinal, quando o assunto é História, todos preferem a voz de quem não tem culpa dos desastres.
Mukuba riu, mas um riso seco, como uma faca que encontra resistência.
– Não se trata de culpa, Matos. Trata-se de legitimidade.
Os olhos do editor mantinham-se fixos, inabaláveis, como quem esperava uma confissão. Artur hesitou, não por falta de argumentos, mas por saber que não havia resposta que fosse suficiente.
– Contudo – continuou Mukuba –, acredito que a legitimidade pode ser conquistada, desde que o trabalho seja feito com honestidade e rigor. Quero que escreva este livro, embora sem metáforas que disfarcem massacres como progresso. Sem paternalismos. Consegue fazer isso sendo português?
Houve um silêncio carregado. Artur sabia que a questão não era apenas sobre História. Era sobre um peso que ele, na verdade, nunca carregara. Ainda assim, a alternativa era retornar ao conforto desconfortável do seu escritório e ao vazio do manuscrito inacabado.
– Aceito – disse, sabendo que acabara de entrar numa arena onde o fracasso seria recebido com um júbilo silencioso.
—
A quantia prometida, acrescido de um bom adiantamento, choruda, era irrecusável para Artur, ainda mais paga em dólares e sem recibo. E com uma única condição: teria de enviar o manuscrito inicial de cada capítulo na véspera de cada reunião semanal.
Embrenhou-se, sem mais perda de tempo – os Templários foram engavetados – na complexidade dos documentos que foi vasculhando nas raquíticas bibliotecas de Benguela, nas pesquisas cibernéticas, páginas digitalizadas enviadas de Lisboa. Começou a escrever sobre as primeiras viagens de Diogo Cão, quando a costa africana era ainda um mistério habitado por monstros mitológicos, até à consolidação de São Filipe de Benguela como um pqueno posto avançado daquilo que nomeou ser a violência lusitana. Mas mesmo com esses detalhes linguísticos, cada momento se revelava um labirinto de interpretações possíveis como se a voz de Elias Mukuba lhe sussurasse nos neurónios. Artur sentia-se, por vezes, como Diogo Cão ao desembarcar pela primeira vez em terras africanas: perdido, vulnerável e consciente de que a sua presença não era bem-vinda.
A tarefa revelou-se assim uma odisseia de desafios históricos e psicológicos. Cada linha escrita se impunha como uma luta entre a tentação de perpetuar a narrativa heróica e a obrigação de expor a crueza dos factos. E viu logo na primeira reunião que, apesar dos seus escrúpulos na escrita, Mukuba não lhe iria facilitar a vida.
– “Os portugueses avançaram com temeridade”? – disparou Mukuba, logo à entrada desse primordial encontro entre autor e editor, impondo um tom que carregava o peso da crítica. – Temeridade? E o genocídio que acompanhava esses avanços, Matos?
– Não se pode simplificar assim – rebateu Artur, ainda nem sequer se sentara. – Esses homens enfrentaram mitos e monstros imaginários. Isso é temeridade, não acha?
Mukuba ergueu uma sobrancelha, impiedoso.
– Não, Matos. Isso é o poder a subjugar vidas humanas. São narrativas como essa que mascaram tragédias.
Artur sentiu-se numa corda bamba, tentando equilibrar a factualidade e a sensibilidade. Não ia correr nada bem esta aventura, cogitou. Manteve-se calado, enquanto o editor lhe foi fazendo comentários aqui e ali, mas a discussão atingiu o clímax quando sugeriu adicionar uma citação fictícia para dar voz a um soba local.
– Não posso fazer isso. Seria inventar História.
– História inventada, Matos? E o que acha que significa “descobrir”? Os seus antepassados “descobriram” uma costa que já tinha sido habitada por séculos.
—
Artur saiu da reunião desanimado, por um lado, animado, por outro. Mukuba acrescentara-lhe mais um pequeno adiantamento, que disse ser extra.
– Envie-me o manuscrito alterado, e dou-lhe uma resposta antes de avançar para o seguinte.
Mesmo deixando cicatrizes no ego, Artur refez o texto e o tom, desconstruindo o mito do Mar Tenebroso e mostrando como a História tinha sido, desde sempre, um jogo de manipulação. E deixou o manuscrito na editora. Dois dias mais tarde, recebeu um telefonema de Mukuba, aprovando a versão, mas acrescido de um comentário final que lhe pareceu mais uma adaga:
– Ficou aceitável, Matos. Para um escriba europeu, não está mal.
No momento em que desligou o telefone, Artur sentiu que acabara de sobreviver a uma batalha, mas não à guerra.
[continua…]
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Aqui me sobra muito tempo. Em apenas duas horas cumpro minha tarefa obrigatória. Escrevo cinco cartas por dia. É a minha cota diária, estabelecida por sugestão do doutor Oliveira. Mas permaneço nesta sala as horas regimentais, que são cinco. Pode ser que alguém telefone pedindo explicação sobre uma carta.
Não, ninguém telefona. Nunca. A última ligação ocorreu há uns três anos. Uma pessoa que discou um número errado.
Antigamente? Quando comecei a trabalhar, e lá se vão mais de três décadas, éramos sete funcionários aqui na Seção. Já naquela época o chefe era o doutor Oliveira. Ingressei como contínuo. Admirava os velhos escriturários, gostaria de ser como eles. Muito contribuinte chegava furioso até este balcão. De dedo em pé, cuspindo marimbondos, o cidadão vinha exigir explicação sobre as cobranças. Alguns até esmurravam o tampo do balcão, soltando fumaça pelas ventas, mas os escriturários daquele tempo praticavam a altivez. Eles retrucavam no mesmo tom. O senhor contribuinte que se colocasse no seu devido lugar…
Naquela época? Trabalhava-se muito, mas havia um clima de camaradagem. Se alguém precisasse sair para resolver um problema pessoal, os colegas o cobriam sem reclamar. Quando se encerrava o atendimento ao público, às quatro da tarde, o ambiente interno se descontraía rapidamente.
Quando o doutor Oliveira se aposentou, ficamos reduzidos a três escriturários. E não foi nomeado um novo chefe.
Há uns cinco anos, os dois outros escriturários fizeram um cursinho de digitação e foram transferidos daqui. Restamos eu e essa máquina de escrever.
A cota de cinco cartas?
Uma vez o doutor Oliveira, já aposentado, veio aqui e me disse em confiança:
– Bartolomeu, faça em uma semana o que poderia concluir em um só dia. Aí, você sempre terá uma boa papelada em cima da sua mesa. Parecerá atolado em trabalho.
Gente boa, funcionário exemplar, o doutor Oliveira. Faleceu faz dois anos. Fui ao enterro dele. A mãe do coitado tinha morrido uma semana antes. Desconsolado, ele meteu jornais por baixo da porta da cozinha e vedou as frestas da janela com fita isolante preta. Depois abriu as bocas do fogão, mas não tocou nos fósforos. Ficou só esperando.
Sim. Foi ele quem escreveu a carta-padrão, que leio para a senhora:
Prezado Cidadão, em revisão rotineira, a Secretaria de Fazenda desta Prefeitura Municipal constatou que Vossa Senhoria não pagou a(s) parcela(s) do Imposto Predial referente(s) ao(s) mês(es). Tendo em vista o fato acima, estamos enviando-lhe novo(s) boleto(s), com o(s) valor(es) corrigido(s), multa e juros acrescidos, a fim de que seja procedido o pagamento do(s) mesmo(s) numa agência bancária credenciada.
Belo texto, não?
Nesse ponto, preciso fazer uma confissão à senhora. Sou um sujeito inquieto, criativo. Faz três anos que não repito uma redação. Uma só! A máquina de escrever favorece a minha rebeldia, na verdade a acirra.
Comecei pelo erro. Um dia escrevi: Prezadi. Veja: a letra i está ao lado da letra o, aqui no teclado. Completei: Prezadíssimo.
No dia seguinte cheguei aqui empolgado. Resolvi começar uma carta de modo dramático: Prezado Cidadão!
Veja só que irreverência: meter ponto de exclamação em correspondência oficial. Não é pouca epopeia.
E fui me aprofundando. Um dia, contrariado com certo contribuinte que eu sabia ser mau pagador, inseri uma palavra:
…de que seja procedido, imediatamente, o pagamento…
Por que ajo assim?
Porque me recuso a desempenhar minha missão de forma burocrática. O uso de um computador me empurraria para a acomodação. Mas isso não, jamais! Quero que meu trabalho tenha sempre um pingo de contestação e resistência. É isso que me fez infiltrar palavras inesperadas e pontos de exclamação ou interrogação no texto oficial.
Ontem mesmo, por exemplo, escrevi o seguinte:
A fim de que seja procedido o pagamento do(s) mesmo(s) numa agência bancária credenciada, sob pena de ser Vossa Senhoria…
A senhora já viu ameaça e reticências em uma correspondência oficial?
Não viu nem nunca verá. Criatividade total.
Quando? Eu me aposento neste final de ano. Aí, certamente, aposentar-se-ão também os pontos de exclamação e as reticências.
Com relação ao inquérito que trouxe a senhora procuradora municipal até esta Seção, quero dizer o seguinte: sim, tem fundamento a denúncia de que não me limito a escrever e enviar aos contribuintes apenas as cartas protocolares, adulteradas, de cobrança. Sim, reconheço que também remeto aos senhores munícipes contos de minha lavra.
Mas explicarei.
Desde que me tornei o único funcionário desta Seção, passei também a escrever histórias curtas. Mas só depois de ter cumprido minha cota diária de cinco cartas, claro!
Eu simplesmente ponho um papel em branco na máquina e me abro para o que vier. Datilografo. Palavra chama palavra. Trato de alinhar os vocábulos que, do cérebro, me chegam às pontas dos dedos.
Isso era de início um passatempo, uma brincadeira, um jogo. Eu tratava apenas de dar certa coerência à enxurrada de palavras que me avassalava. Tempos depois me surgiram historinhas com princípio, meio, desenlace.
Se eu tenho uma explicação?
Claro. Isso que a senhora chama de disfunção funcional decorre do excesso de tempo livre. Redigida minha cota de cartas, todos os dias, constato que aquele relógio, ali na parede, avançou apenas um ou dois números. Então, tendo diante dos meus olhos uma folha branca, passo a batucar no teclado. Sou um homem de vida interior agitada, repito. Tenho imaginação fértil e razoável domínio da língua escrita…
O que eu faço com as tais histórias?
Bem, no começo eu as guardava numa pasta que está naquele armário de aço. De vez em quando pegava uma delas e a retocava. Punha uma palavra nova, retirava duas. Botava uma vírgula, eliminava um conetivo. Perseguia as repetições que costumam esconder-se muito bem num texto. Isso na parte, digamos, física. Porém, o que escrevemos possui também uma camada espiritual. Nessa camada, eu me limito a instilar um pouco de humor, melancolia ou até mesmo desilusão.
Sim. Eu os chamo contos a esses meus trabalhos, mas reconheço que, se nós os analisarmos com maior rigor, descobriremos que de fato são modestas crônicas de um escriturário municipal.
Sim, de certa forma, a senhora tem razão quando diz que, sendo contos ou crônicas, tanto faz, no fundo são textos roubados ao erário público.
A remessa aos contribuintes?
Não! Isso não!
Foi assim: um dia eu me perguntei: o que fazer com essas histórias?
A resposta que me veio foi: entregue-as a seus verdadeiros donos, os contribuintes.
Pensei inicialmente em remeter essas crônicas àqueles que realmente saberiam apreciá-las: professores, artistas e intelectuais, os que aparecem no jornal palpitando sobre o que acontece na cidade. Mas desisti ao concluir que gente assim, sempre ocupada em dar entrevistas, não teria tempo para dedicar aos meus escritos.
Pensei depois em remetê-las para os aposentados, que são numerosos aqui na cidade. Meu raciocínio era simples: eles têm mais tempo ocioso. Mas, por fim, acabei me decidindo por escolher os destinatários ao acaso no nosso fichário.
Agora, tem aí um detalhe relevante: sempre comprei envelopes e selos com meu próprio dinheiro.
Que isso fique bem registrado no seu inquérito! Selos e envelopes saem do meu bolso!
Lourenço Cazarré é escritor
Texto originalmente integrado no livroKzar Alexander, o louco de Pelotas
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