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  • Farmacêuticas nos Estados Unidos: do paraíso ao inferno

    Farmacêuticas nos Estados Unidos: do paraíso ao inferno

    Os negócios das farmacêuticas já viveram melhores dias, pelo menos se se olhar para o seu desempenho no mercado bolsista. Muitas estão a despenhar-se no abismo, quando ainda há pouco ‘planavam’ pelo paraíso. Multinacionais como a Pfizer, que alcançaram máximos históricos em 2021, ‘à boleia’ dos gigantescos contratos públicos de venda de vacinas para a covid-19, são hoje uma pálida imagem de anos recentes, procurando compensar as quedas abruptas de vendas com despedimentos.

    A empresa liderada pelo veterinário Albert Bourla atingiu um máximo alcançado em meados de 2021, caindo depois dos 59,48 dólares para os actuais 23,09 dólares por acção, uma queda de 61%. Em 2025 já desvalorizou 13%.

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    / Foto:D.R.

    A sua parceira dos tempos da pandemia, a alemã BioNTech, está a sofrer a ‘ressaca’ do desinteresse das vacinas contra a covid-19 e acumula já uma desvalorização de 74% em bolsa desde o pico atingido em Agosto de 2021. E não pára. Em 2025, as acções da empresa já recuaram 16%.

    Pior ainda está a Moderna, uma das primeiras farmacêuticas a avançar com a tecnologia RNAm contra o SARS-CoV-2 e que está a apostar fortemente nessa linha para combate a outras doenças. Mas perdeu muito gás desde 2021, quando apresentaram 12,2 mil milhões de dólares de lucro. Nesse ano bateram máximo histórico em bolsa, perto dos 450 dólares. Agora, rondam os 26 dólares, recuando 38% desde o início do ano. Face ao máximo registado em 2021, perderam já 94% da sua valorização bolsista. A razão não é apenas financeira, mas também económica: nos últimos dois anos, a Moderna apresentou prejuízos acumulados de 8,3 mil milhões de dólares.

    Outras farmacêuticas, como a Merck (que opera fora dos Estados Unidos sob a marca Merck Sharpe & Dohme), com menor destaque na pandemia, tiveram outro ‘perfil evolutivo’ e até alcançaram máximos em Março de 2024. Porém, já afundou 40% desde essa altura, seguindo agora a valer 79,58 dólares. Desde o início do ano, a queda das suas acções é de 20%.

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    Estas desvalorizações, num casos recentes, noutros já ‘estruturais’, sucedem perante a incerteza vinda dos Estados Unidos, com a Administração Trump a sinalizar uma nova era, que começou com a nomeação de Robert F. Kennedy Jr. para Secretário da Saúde, passa pela recente nomeação do oncologista Vinay Prasad para liderar a regulação das vacinas e outros biofármacos.

    Nos mercados bolsistas, os investidores reagem, em regra, por antecipação, e tudo parece indicar estar a terminar os tempos de ‘passadeira vermelha’ para lucros extraordinários das farmacêuticas com a permissão da Casa Branca e dos reguladores norte-americanos. A forte quebra das acções das empresas deste sector e também das biotecnológicas mostram que as receitas e lucros de outrora arriscam a ser agora uma miragem no futuro. Pelo menos, no mercado norte-americano.

    Com efeito, os Estados Unidos são uma das principais fontes de receitas das farmacêuticas, não apenas por ser um mercado de mais de 330 milhões de pessoas mas porque, devido ao poder de compra, o preço dos medicamentos são extremamente elevados, Por norma, as farmacêuticas usam a chamada discriminação de preços por segmentação geográfica. Os Estados Unidos são, segundo a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico (OCDE), um dos países que mais gasta em cuidados de saúde em termos do Produto Interno Bruto (PIB): 16% em 2023.

    (Da esquerda para a direita) Martin Makary, líder da FDA, Jay Bhattacharya, responsável pelo NIH, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, Robert F. Kennedy Jr, secretário de Saúde e Mehmet Oz, líder do Centers Medicare and Medicaid Services (o programa federal de seguro de saúde) na conferência de imprensa de hoje a propósito da ordem executiva que Trump assinou para baixar o preço dos medicamentos no país. / Foto: Captura de imagem a partir de vídeo da conferência de imprensa .

    Apesar disso, porque há uma franja populacional sem seguro de saúde com limitações de acesso a medicamentos caros, os Estados Unidos apresentam um fraco desempenho em indicadores básicos de saúde, como a esperança média de vida e a taxa de mortalidade infantil quando comparado com os países da Europa Ocidental, Escandinávia e países asiáticos mais desenvolvidos. Por exemplo, no Índice de Prosperidade do Legatum Institute de 2023, os Estados Unidos surgem apenas na 69ª posição no segmento da Saúde. Portugal encontra-se na posição 40.

    A nomeação do reputado hematologista oncologista Vinay Prasad – professor na University of California San Francisco (UCSF) – para dirigir o Center for Biologics Evaluation and Research (CBER) da Food and Drug Administration (FDA) foi mais um sinal de tempos mais difíceis para as farmacêuticas, embora mais favoráveis para a defesa dos consumidores. Prasad tem sido um crítico das políticas de facilitismo na regulação de medicamentos e foi particularmente activo opositor da vacinação de crianças contra a covid-19.

    O CBER, que agora liderará, tem como missão fundamental a “regulamentação de produtos biológicos e relacionados, incluindo sangue, vacinas, alergênicos, tecidos e terapias celulares e genéticas”, autorizando ou não novos fármacos de ponta após uma análise de beneficio-risco, ou seja, prevalecendo as vantagens clínicas e não o lucro.

    Vinay Prasad, novo responsável pela regulação de vacinas e fármacos biológicos da FDA, nos Estados Unidos. / Foto: D.R.

    Os efeitos da nomeação de Prasad, anunciada na terça-feira da semana passada, foram imediatos: as acções da Pfizer caíram quase 3%, fechando a valer 22,88 dólares. As restantes farmacêuticas também sofreram. O índice DJ para o sector caiu quase 4% naquele dia. Na Europa, o índice Stoxx de Saúde recuou 4,2%. As acções das biotecnológicas também assistiram a uma debandada de investidores, com o ETF S&P para as Biotechs, nos Estados Unidos, a cair 6,6% numa só sessão.

    Nos Estados Unidos, o índice Dow Jones para as farmacêuticas, que também integra empresas de consumo, como a Johnson & Johnson, perdeu 18% desde o pico máximo alcançado no início de Agosto do ano passado e recua 9% em 2025.

    Ontem, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, assinou, entretanto, uma ordem executiva para que os preços dos medicamentos nos Estados Unidos desçam para o mesmo nível dos praticados em outros países. Nos Estados Unidos, os preços dos medicamentos com receita médica são significativamente mais elevados do que os praticados em outros países, com a média dos preços a ser 2,78 vezes mais alta do que os registados em outros 33 países. Mas, em alguns casos de medicamentos de marca, os preços nos Estados Unidos podem ser 4,22 vezes mais elevados.

    Depois de um choque inicial, com as ações das farmacêuticas a cair na pré-abertura das bolsas, as cotações das empresas do sector subiram, já que analistas apontam que será difícil implementar a medida prevista nesta ordem executiva. No entanto, o menor impacte desta medida também poderá resultar numa articulação de preços: as farmacêuticas podem aceitar redução de preços nos mercado norte-americano se lhes for possível aumentar nos outros países, não causando assim qualquer impacte negativo nas contas consolidadas.

    Martin Makary, que lidera a FDA, anunciou na rede X a escolha de Vinay Prasad para liderar a regulação de vacinas e fármacos biológicos. / Foto: D.R.

    Em todo o caso, na Europa, o índice Stoxx 600 para o sector da Saúde perde 5,4% em 2025, acumulando uma desvalorização de 19% desde o máximo histórico atingido em Setembro do ano passado. Por exemplo, acções da anglo-sueca Astrazeneca, que alcançaram o máximo no Verão passado, caíram 22% desde então. No último ano, desceram 16%. A empresa está envolvida em vários processos no Reino Unido por causa dos efeitos adversos das vacinas.

    E mesmo a dinamarquesa Novo Nordisk – a coqueluche do sector europeu, por via do Ozempic, um fármaco para diabetes que agora é usado largamente para emagrecimento -, depois de ter quadruplicado a sua cotação entre 2021 e Junho do ano passado, já desvalorizou 50% desde esse pico. Em 2025 desliza 30% na bolsa de Copenhaga.

    Mas, para algumas empresas, como as biotecnológicas, a queda já vinha de trás. No caso do S&P Biotech ETF desvalorizou 48% desde o máximo alcançado em 2021, em plena febre de corrida às vacinas contra a covid-19, incluindo as baseadas em tecnologia mRNA, como a vendida pela Pfizer em parceria com a alemã BioNTech.

    Em qualquer dos casos, este novo anúncio de Trump é mais um sinal de que a pressão do Governo Federal sobre as farmacêuticas aumentar, com com um reforço do escrutínio deste sector, algo que se iniciou com o convite ao polémico Robert F. Kennedy Jr. para ocupar o cargo de Secretário de Saúde.

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    O advogado, que se notabilizou há duas décadas como um destacado ambientalista, tem sido também, há muito, um dos mais ferozes críticos das farmacêuticas e um defensor do reforço do escrutínio sobre fármacos, designadamente vacinas, propondo a realização de ensaios clínicos mais rigorosos sobre a respectiva segurança e eficácia.

    Depois da sua chegada, no meio de um coro de críticas, foram nomeados para cargos de relevo da administração de saude diversos cientistas com um historial de peso, defensores da medicina baseada na evidência: Jay Bhattacharya foi o escolhido para liderar o NIH (National Institutes of Health) e Martin Makary, para dirigir a FDA.

  • Nininho Vaz Maia recebe 1,5 milhões em contratos públicos desde 2023

    Nininho Vaz Maia recebe 1,5 milhões em contratos públicos desde 2023

    A crescente popularidade do cantor Nininho Vaz Maia, que foi esta semana constituído arguido no âmbito de uma operação de combate ao tráfico de droga, tem causado uma ‘corrida’ das autarquias à sua contratação. Apenas desde Janeiro de 2023, em 41 contratos públicos, já facturou perto de 1,5 milhões de euros. Este ano, em pouco mais de quatro meses, a fasquia aproxima-se do meio milhão de euros..

    O contrato mais recente, adjudicado como habitualmente por ajuste directo, foi celebrado com o município de Anadia, no distrito de Aveiro, na passada terça-feira, no mesmo dia em que o popular cantor foi alvo de buscas e acabou constituído arguido no âmbito de uma operação da Polícia Judiciária denominada SKYS4ALL.

    Nininho Vaz Maia / Foto:D.R.

    Num comunicado citado pela imprensa, o artista alegou estar inocente: “importa deixar absolutamente claro que o Nininho está inocente e que confiamos plenamente na Justiça. Estamos certos de que tudo será esclarecido com brevidade […]”.

    Para já, a acusação criminal não parece ter arrefecido a requisição do cantor, já que se mantém no cartaz para encerrar hoje o festival da Queima das Fitas do Porto 2025, organizado pela Federação Académica do Porto.

    Resta saber se o cantor vai continuar a ser tão solicitado por autarquias como tem sido nos últimos dois anos. Segundo um levantamento feito pelo PÁGINA UM, constam na plataforma de contratos públicos, o Portal Base, um total de 41 contratos feitos por entidades públicas para a contratação de Nininho Vaz Maia. O primeiro foi assinado em Janeiro de 2023, com o município de Vila Nova de Foz Côa, no valor de 26 mil euros. e o mais recente na passada terça-feira com o município de Anadia.

    Neste recente contrato com autarquia da Bairrada, o cantor receberá 40.590 euros por um concerto de 90 minutos na ‘Feira da Vinha e do Vinho’, agendado para o dia 18 de Junho. O contrato foi efectuado com a Gigs on Mars, detida em partes iguais por Pedro Pontes, agente do cantor, e pela empresa Lemon Ibéria, controlada por António Vilas Boas, fundador dos Pólo Norte.

    De entre os 41 contratos encontrados desde 2023 – antes desse ano, não existem outros -, 40 foram feitos através de ajuste directo e apenas um pelo procedimento de contratação excluída, o que, na prática significa o mesmo: o cantor foi ‘escolhido a dedo’.

    Nininho Vaz Maia afirmou estar inocente, num comunicado enviado à imprensa. / Foto: D.R.

    Ao todo, foram 36 autarquias e quatro entidades municipais que contrataram o popular cantor nascido numa família cigana, que se tornou numa das coqueluches do panorama musical nacional.

    O montante dos contratos oscila entre os 22.140 euros e os 217.132 euros, sendo que neste último caso se tratou de um espectáculo que abrangeu ainda performances de Profjam e a Festa M80 num contrato com a autarquia de Vila do Conde.

    Em média, excluindo o montante mais elevado dos contratos, o valor pago por autarquias para contratar o cantor rondou os 33.320 euros, com IVA incluído, sendo evidente que os cachets têm aumentado. Nos contratos estabelecidos este ano (Abrantes, Góis, Olhão, Estremoz, Vila Real, Alter do Chão, Marinha Grande e Azambuja), que atingem os 4.711 euros, o valor médio é já de cerca de 47 mil euros por concerto.

    A maioria dos contratos foi adjudicada a Nininho Vaz Maio através da empresa Gigs on Mars, Lda, mas também há contratos através de outras entidades, sobretudo quando outros artistas estão envolvidos, designadamente com as empresas Music Mov, Miguel Castro Oliveira Unipessoal, Lda – IAM Event Production & Brand Consultancy e José Manuel Rodrigues Caetano, Unipessoal, Lda.

    Se, para já, não há sinais de estar a abrandar a procura de serviços do artista, as críticas já fazem ouvir sobre a sua contratação e presença em espectáculos, designadamente no encerramento da Queima das Fitas do Porto, apesar de o cantor não ter sido ainda condenado na Justiça.

    Saliente-se, aliás, que como fenómeno musical, Nininho Vaz Maia tem feito também um percurso fora do circuito dos contratos públicos, sendo exemplo disso a Queima das Fitas (esteve no ano passado em Coimbra) e sobretudo espectáculos comerciais, com entradas pagas. Por exemplo, há menos de dois meses esgotou duas noites no Meo Arena, em Lisboa.

    De resto, o facto de o cantor ter nascido numa família pertencente a uma minoria pode mesmo pesar a seu favor e mitigar o facto de ser arguido num processo de tráfico de droga, podendo evitar que Nininho Vaz Maia perca o seu ‘allure‘ numa época em que a etnia ou a origem e nacionalidade são factores usados politicamente, tanto por partidos da esquerda, como da direita.

    De facto, Nininho tornou-se num dos símbolos de homenagem à cultura cigana e de defesa das minorias, perante o crescimento de discursos hostis à sua comunidade e também a imigrantes, numa altura em que em Portugal se assiste a um cada vez maior aprofundamento da desigualdade económica e social.

    Foto: D.R.

    Em ano de eleições legislativas e autárquicas, mesmo estando acusado, Nininho Vaz Maia pode encontrar alguma ‘imunidade’ e continuar a ser requisitado por autarquias, graças à sua origem familiar, e mediante o aproveitamento ideológico das minorias — de forma positiva ou negativa — pelos partidos tanto de esquerda como de direita.

    Assim, apesar de estar acusado, talvez o popular artista consiga continuar a facturar com contratos com entidades públicas, lucrando com a crescente polarização política em torno das minorias.

  • Apneia

    Apneia


    Paulo Vero é homem dos sete ofícios


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Lagares Suburbanos

    Lagares Suburbanos


    Paulo Vero é homem dos sete ofícios


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Sem sequer subir ao palco, Tony Carreira ‘saca’ lucro milionário com Passagem de Ano em Lisboa

    Sem sequer subir ao palco, Tony Carreira ‘saca’ lucro milionário com Passagem de Ano em Lisboa

    Em finais de Junho, Carlos Moedas subiu a um palco do Terreiro do Paço para, de voz estridente, anunciar a entrega da medalha de mérito cultural a Tony Carreira. Pouco meses depois, sem chinfrim, de forma discreta, a empresa do cançonetista, a Regi-Concerto, teve uma oferta de ‘mão-beijada’ concedida pela Câmara Municipal de Lisboa: a co-organização das festas de Ano Novo no valor de 265 mil euros, incluindo IVA. Com um cartaz que não custará mais de 80 mil, constituído pelo ‘veterano’ José Cid e pelo seu próprio filho Mickael, e como a EGEAC assume ainda despesas, Tony Carreira terá um lucro, sem subir ao palco lisboeta, próximo dos 150 mil euros. Algo apenas possível quando se tem ‘mérito’… para sacar ajustes directos num mercado onde o ‘amiguismo’ prevalece.


    Não foi só uma Medalha de Mérito Cultura da Cidade que este ano Tony Carreira recebeu das mãos de Carlos Moedas; também recebeu de ‘mão-beijada’ o direito de co-organizar as festividades da Passagem de Ano no Terreiro do Paço, possibilitando-lhe meter no cartaz o filho Mickael, em queda de popularidade. E se a medalha pode pesar no coração do cançonetista; o ‘cheque’ pelo espectáculo na oficialmente chamada Praça do Comércio, com vista para o Tejo, vai pesar-lhe bem na carteira.

    Sem se conhecer, mais uma vez, os critérios de selecção de artistas e produtoras para a organização de espectáculos, a Empresa de Gestão de Equipamentos e Animação Cultural (EGEAC) escolheu este ano a produtora de Tony Carreira, a Regi-Concerto, para co-produzir as celebrações do Novo Ano na principal praça de Lisboa, que terá como ‘ponto alto’ as actuações de José Cid – e convidados não definidos – e de Mickael Carreira, para além do habitual fogo-de-artifício. O contrato foi assinado no passado dia 20, assinado por António Manuel Mateus Antunes – o nome real de Tony Carreira, como gerente da Regi-Concerto –, apesar da EGEAC ter anunciado o cartaz na semana anterior.

    Carlos Moedas entregou medalha de mérito cultural a Tony Carreira em Junho passado, Meio ano depois, a autarquia entregou, por ajuste directo, um contrato que lhedará um lucro de quase 150 mil euros. Foto: CML.

    O valor do contrato por ajuste directo, justificado para defender direitos de autor, uma alegação bastante questionável, atinge os 265.680 euros, incluindo IVA, mas os custos para a empresa municipal deverão alcançar os 300 mil. Com efeito, através do contrato, a EGEAC assume também responsabilidades bastante onerosas, como a obtenção de licenças, a promoção e publicidade, a disponibilização de camarins e equipamentos auxiliares, a contratação de serviços de segurança, a limpeza e logística, e a garantia de fornecimento eléctrico adequado.

    Por sua vez, a Regi-Concerto, a empresa de Tony Carreira obriga-se apenas a assegurar a representação dos artistas, incluindo contratação e gestão de despesas relacionadas, bem como a montagem e operação de equipamentos técnicos (som, iluminação e vídeo).

    O montante a pagar pela empresa municipal da autarquia liderada por Carlos Moedas será o mais elevado de sempre conseguido pela empresa de Tony Carreira em contratos públicos. Considerando valores sem IVA – que, neste caso, atinge os 216 mil euros –, a Regi-Concerto tinha, até agora, como contrato mais chorudo, um ajuste directo para as festas populares do Monte da Caparica em 2022. Por “serviços musicais e audiovisuais” não especificados no contrato, a União das Freguesas de Caparica e Trafaria pagou à Regi-Concerto um total de 74.260 euros. O segundo contrato público de montante mais elevado da Regi-Concerto referia-se, por sua vez, à contratação do próprio Tony Carreira para abrilhantar a Passagem do Ano de 2023 para 2024 em Coimbra. Há um ano, autarquia coimbrã despendeu 62.500 euros para ter o artista.

    E é, exactamente, por esse motivo que o valor agora pago pela EGEAC assume um montante exorbitante, até porque Tony Carreira – que é um dos artistas mais bem pagos em contratos públicos – decidiu rumar para outras paragens. Por valores desconhecidos, vai actuar no Hotel Tivoli de Vilamoura para um selecto público que se dispôs a pagar um mínimo de 490 euros por cadeira (e mesa).

    De facto, considerando os preços praticados tanto por José Cid como por Mickael Carreira, os cofres da Câmara Municipal de Lisboa foram generosos para a Regi-Concerto. No caso de José Cid – que se mantém, aos 82 anos, ainda bastante activo –, o seu ‘cachet’, quando actua sozinho, variou este ano entre os 12.500 e os 50.750 euros. O seu mais recente concerto foi para as comemorações do 20º aniversário da elevação a cidade de Anadia – a sede do concelho onde se radicou ainda na adolescência –, e cobrou apenas 15 mil euros. Mas há um ano, pela actuação na Passagem de Ano no Campo de Viriato, a autarquia de Viseu pagou à sua empresa (José Cid, Lda.) 30 mil euros. Aliás, esse foi o valor que a própria EGEAC lhe pagou em 2019 para actuar na Passagem de Ano, poucos meses depois de ter recebido o Grammy Latino de Excelência Musical.

    Quanto a Mickael Carreira, que tem tido uma carreira sobretudo à sombra do pai, o seu valor medido em termos de ‘cachet’ e procura é mais baixo ainda do que o do veterano José Cid. De facto, em actuações a solo, apenas se encontram três contratos públicos com a sua presença este ano: em Arronches, na Chamusca e no Marco de Canavezes, por valores entre os 18.500 e os 21.330 euros. Em 2023 registam-se apenas dois (Pampilhosa da Serra e Lamego), por valores próximos.

    Deste modo, atendendo as ‘cachets’ habituais de José Cid e Mickael Carreira, e mesmo tendo em conta os valores mais elevados praticados em festas de Passagem de Ano, jamais seria de esperar valores acima de 70 mil euros para o conjunto, a que se podem juntar mais entre 10 mil e 20 mil euros de fogo-de-artifício. Ou seja, o lucro imediato por uma noite para a Regi-Concerto deverá estar próximo dos 150 mil euros, um excelente negócio para Tony Carreira, por obra e graça do contínuo esbanjamento de dinheiros públicos sem se conhecerem critérios de escolha dos artistas e das produtoras nem de custos.


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  • Um cemitério de ilusões

    Um cemitério de ilusões


    Artur Matos costumava acreditar que as dificuldades enfrentadas pelos navegadores portugueses na costa africana tinham sido, por si só, uma prova de resiliência e génio. Quer dizer, até começar a trabalhar com Elias Mukuba, para quem as “dificuldades” dos colonizadores eram um eufemismo irritante para descrever a brutalidade das expedições e o impacto devastador sobre as populações locais. Já se começara a habituar, mas continuava a ser um cabo de guerra constante: Artur tentava enfatizar os perigos da empreitada em tempos inóspitos, Mukuba insistia que o verdadeiro perigo fora trazido pelos próprios portugueses.

    O capítulo que Artur estivera a redigir durante mais de uma semana abordava o fracasso da colonização inicial de Benguela. Descrevera como as expectativas ambiciosas de Paulo Dias de Novais e, mais tarde, de Manuel Cerveira Pereira tinham dado lugar a uma realidade de desastres logísticos, doenças e conflitos com os sobas locais. Era uma narrativa que misturava tragédia e ironia, mas pressentia que Mukuba desejaria que fosse transformado numa lição de moral.

    Por isso, Artur não conseguia deixar de se sentir dividido enquanto escrevia. Parecia-lhe claro que a narrativa histórica, mesmo quando embasada em factos, teria sempre, pelo menos aos olhos do seu editor, um prisma interpretativo. E, como escritor, teria de encontrar um equilíbrio, mesmo se a responsabilidade de escolher as palavras servia também para moldar percepções. Havia dias em que sentia que estava apenas a esculpir sombras, contornos de verdades, mas nunca a totalidade.

    Chegou o dia daquilo que Artur começou a denominar “revisão”, ou seja, os encontros com o editor, após lhe enviar o manuscrito uns dias antes.

    – Matos, o seu texto faz com que estes homens pareçam heróis trágicos. – Mukuba disparou logo que Artur abriu a porta.

    Esticou-lhe o manuscrito. Estava densamente sublinhado; passagens com uma força exagerada da caneta vermelha, quase rasgando o papel.

    – Colocou os portugueses como se fossem mártires numa cruzada gloriosa. Já parou para pensar que os nativos eram aqui as vítimas, e não os seus patrícios os protagonistas desta tua epopeia de falhanços?

    Artur levantou o olhar. As palavras de Mukuba tinham um peso que ressoava, porque ele sabia que, em parte, eram verdadeiras. Mas sentia também que existia uma necessidade de olhar para os eventos com as lentes da complexidade, reconhecendo não apenas o sofrimento infligido, mas também os paradoxos dos que infligiam.

    – Elias, estou apenas a relatar os factos. – Artur tentava manter a calma, mas sentia o estômago a apertar. – Sim, eles enfrentaram doenças, dificuldades e hostilidade local. Isso é inegável. Não estou a dizer que foram mártires, mas também não posso ignorar que as condições eram extremamente adversas.

    – Adversas para quem, Matos? Para os homens que chegaram em navios armados e deixaram destruição por onde passaram? Ou para as populações que já estavam ali, a viver tranquilamente, até que apareceram os tais “exploradores”?

    Eis o dilema do historiador: descrever a História pelos factos, ou pela ética? Este pensamento rondava agora a mente de Artur Matos, desde que conhecera Elias Mukuba, como uma sombra persistente, mesmo se se esforçava para conciliar duas perspectivas irreconciliáveis: a dos vencedores, com as suas narrativas de poder e progresso, e a dos vencidos, cujas vozes muitas vezes se perdiam entre os escombros do tempo. Mas, afinal, quem são os vencedores e os vencidos?

    Artur sabia que os factos eram o ponto de partida inegável de qualquer narrativa histórica. Datas, nomes, eventos: eram pilares sólidos, ou pelo menos assim pareciam. Mas os factos raramente são neutros. A escolha de quais factos incluir, de como os enquadrar, de que voz privilegiar ao narrá-los; tudo isso é um acto de interpretação que inevitavelmente reflecte valores e prioridades. Mais do que descrever o que aconteceu, o historiador tinha de decidir o que significava.

    Mas a ética, essa companheira incómoda, se lhe abrem a porta, não permite que o historiador se refugie na neutralidade aparente dos factos. Havia algo de perturbador em relatar a violência, o sofrimento, a exploração, sem uma perspectiva crítica. Artur sabia que a História estava cheia de horrores perpetrados sob a bandeira do progresso, mas como capturar a humanidade das vítimas sem cair na armadilha de demonizar todos os que estavam do outro lado?

    Esse dilema começara a manifestar-se em cada linha que escrevia sobre Benguela. Relatar as dificuldades enfrentadas pelos colonizadores portugueses poderia ser interpretado como uma tentativa de gerar simpatia por aqueles que, afinal, eram os invasores. Por outro lado, enfatizar apenas os horrores infligidos aos nativos corria o risco de reduzir os acontecimentos a uma batalha simplista entre bons e maus.

    Artur queria explicar esses dilemas a Mukuba, mas o editor continuava no ataque.

    – Olhe para isto. – Mukuba apontou para um parágrafo que descrevia a escolha de Cerveira Pereira de fundar São Filipe de Benguela num local que mais tarde se revelou insalubre. – Aqui, escreve: “Os sonhos de Cerveira Pereira foram afogados pelos pântanos e pelas febres.” Sonhos, Matos? Sonhos? Este homem chegou, queimou aldeias, matou nativos e roubou terras. E chama a isto sonho?

    – É uma figura de estilo, Elias. – Artur suspirou. – Não estou a glorificar o homem. Estou a descrever a ironia do fracasso dele.

    Mukuba inclinou-se para trás na cadeira e olhou para Artur com uma expressão que era metade exasperação, metade diversão.

    – Ironia, diz? A verdadeira ironia, Matos, é que eles achavam que estavam a civilizar, mas acabaram a construir a sua própria sepultura. Benguela tornou-se um cemitério de brancos porque eles não entendiam a terra, não respeitavam o clima, e, acima de tudo, porque estavam cegos pela ganância.

    Artur ficou em silêncio, reflectindo. Havia algo profundamente desconcertante naquela visão. Ele sempre vira os colonizadores como figuras de uma tragédia maior, mas Mukuba conseguia despir a narrativa de qualquer resquício de simpatia. Não havia tragédia em quem vê na exploração uma escolha deliberada. Esse ponto o perturbava mais do que queria admitir.

    Saiu da reunião pouco depois, com as folhas avermelhadas de sublinhados e nota para “reflexão”, vincara o editor. Artur passou as duas semanas seguintes a reescrever o capítulo, tentando encontrar um equilíbrio entre a crítica às acções dos colonizadores e a contextualização histórica das suas motivações, descrevendo como os portugueses, ao tentarem transformar Benguela num posto avançado lucrativo, enfrentaram uma resistência feroz dos sobas locais, além do confronto com a Natureza, ou melhor, com a malária que dizimava as tropas, alimentando os motins internos por força do desespero e da desorganização.

    Quando enviou, de novo o manuscrito, recebeu três dias depois um telefonema de Mukuba.

    – A parte dos motins contra Cerveira Pereira parece-me interessante, excepto a classificação: escreveu que ele foi “vítima de insubordinação.” Mas não menciona que essa insubordinação veio de soldados que estavam a morrer de fome e de doença, enquanto esse homem acumulava escravos e riquezas pessoais.

    – Está implícito – retorquiu Artur, embora sabendo que Mukuba não aceitaria esse argumento.

    – Implícito? Matos, esse é exactamente o problema. A História nunca é explícita sobre o que os poderosos fazem de errado. Está sempre tudo nas entrelinhas. E sabe quem é que nunca lê as entrelinhas? As pessoas para quem vocês, escritores brancos, escrevem.

    Artur ficou calado por um momento. Sentia na pele a cor da sua pele. O editor continuou:

    – Ok, Elias. O que sugere, então?

    – Sugiro que deixe os seus “sonhos” e “ironia” de lado e que sejas honesto. Escreva como foi: um grupo de homens que chegou para roubar terras, matar pessoas e falhou miseravelmente. É isso que quero ver neste capítulo.

    Telefone desligado, Artur Matos sentiu-se também derrotado, e assim despachou a versão final em três tempos, iniciando o capítulo com uma frase que sabia que Mukuba aprovaria: “Benguela tornou-se a tumba de quem chegou para transformar sonhos de conquista em pilhagem.”

    No manuscrito que, pouco depois, enviou ao editor, estava lá tudo: os detalhes das batalhas, das alianças instáveis com sobas locais e da doença que devastava tanto portugueses quanto nativos, destacando em detalhe episódios particularmente sombrios, como a destruição de libatas inteiras como represália por ataques aos soldados portugueses, mas também a resistência local e da terra.

    Quando reencontrou o editor, Artur estava confiante de que agradaria a Elias Mukuba:

    – Este capítulo tem potencial, Matos. Mas ainda falta uma coisa – disse-lhe um sorridente Elias.

    – O quê? – perguntou Artur, já receoso.

    – A voz dos que resistiram. Não basta dizer que resistiram; quero saber como. Quero ouvir o soba que enfrentou Cerveira Pereira. Quero que a resistência tenha um rosto.

    Artur sabia que já nem valia a pena argumentar, assentiu, pegou no manuscrito e regressou a casa. No dia seguinte, adicionou um diálogo ficcional entre Cerveira Pereira e um soba chamado Cangombe. No texto, o soba confrontava o governador português, dizendo-lhe: “Os vossos canhões podem derrubar as nossas casas, mas nunca vão compreender a nossa terra. E é por isso que ela vos vai devorar”.

    Poucas horas depois de ter enviado a última versão do terceiro capítulo, a secretária de Elias Mukuba ligou-lhe.

    – O doutor pediu-me para lhe dizer: “agora sim, agora estamos a chegar lá”.

    [continua…]


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  • Fala um agave

    Fala um agave


    Caminhar à beira-mar ao início da manhã. É a maneira mais natural de começar muitos dos meus dias. Olho distraído, sem interesse, os transeuntes que, como eu, andam de um lado para outro sob as palmeiras e nem sequer invejo os banhistas que vão à procura de um bronzeado do sol escaldante e que hão-de mergulhar na água em busca de alívio. Os meus olhos são atraídos pelo movimento das ondas, pela mudança da superfície arenosa, pelas poucas pedras que surgem aqui e ali, pelas plantas dispostas de acordo com geometrias humanas por vezes artificiais. Mas elas não obedecem à vontade dos outros, sentem-se livres de viver segundo o seu destino e, como seres livres, expressam a sua alma, falam-nos ao coração, se as soubermos ouvir com humildade.

    O agave estava ali onde o tinha ultrapassado sabe-se lá quantas centenas de vezes, mas agora eu estava parado na sua frente e fixava-o como, não sei porquê, nunca fizera antes. A sua folha mais externa estava marcada por inúmeras lacerações, profundas e quase todas sobrepostas, fruto de repetidas ofensas cometidas por um vil e anónimo Caim. As feridas sobre aquela pele lisa de seda verde chocaram-me, o sol e a atmosfera de veraneio afastaram-se para longe daquela abominação. Ressoaram então na minha mente as frases solenes e suplicantes do responsório do Sábado Santo «O vos omnes qui transitis per viam»[1] (das Lamentationes de Jeremias 1,12); tinha ficado petrificado e parecia ouvir o ditado sagrado «Attendite et videte, si est dolor sicut dolor meus»[2].

    A natureza mostrava os seus sofrimentos, mas não bastava que eu me limitasse à compaixão miserável e superficial do momento, ela queria com essa visão abrir a minha consciência para as dores do mundo, ela queria que eu lembrasse que o Cordeiro de Deus cuida delas todos os dias, como todos os dias em que vivemos e nos divertimos – até na praia pouco distante –, mas também todos os dias em que ficamos surdos às tragédias dos outros ou nos matamos entre irmãos. Diante daquela majestosa planta torturada, eu ainda poderia recorrer ao Senhor: «Par l’horreur de ce dernier vêtement qu’on vous retire, Ayez pitié de tous ceux qu’on déchire»[3] (Paul Claudel, Le Chemin de la Croix, 10ª estação).

    Mas permaneci inerte e chorei. Fui-me embora sem querer mais ver o mar luminoso de Junho.

    Antonio Delfino, Crucifixus (foto digital, 2023).

    Antonio Delfino é Professor da Universidade de Pavia (em Cremona)


    [1] Ó todos vós que passais pelo caminho.

    [2] Prestai atenção e vede se há uma dor semelhante à minha dor.

    [3] Pelo horror desta última roupa que vos é tirada, Tende piedade de todos aqueles que dilaceramos.


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  • O poema 

    O poema 

    Diziam que o poeta vivia num mundo só dele. Não era verdade. O poeta trabalhava, tinha prazos, contas para pagar, e um cão. O poeta, despido da poesia, era apenas um homem na Terra.

    Certo dia, terminou um livro. Imprimiu-o. Lembrou-se, então, de que nem sabia quando tinha comido pela última vez. Dirigiu-se ao frigorífico. Estava vazio. O estômago também. O poeta apontou numa folha: “ovos, galinha, milho e…”. Havia de lembrar-se do que faltava.

    Colocou o manuscrito num envelope. Ia entregá-lo pessoalmente na editora. Já que tinha de ir ao supermercado, logo tratava dos dois assuntos.

    O espelho da sala mostrou-lhe que estava de pijama e chinelos. O poeta foi ao quarto, arranjou-se e voltou. Pegou no envelope, procurou a lista das compras, mas tinha desaparecido. Nada que o espantasse. Chegou mesmo a duvidar da sua existência. Estava exausto. Já não tinha certeza de nada.

    black Corona typewriter on brown wood planks

    Foi até à editora e entregou o envelope. Sentiu-se aliviado, mas sem vontade de ir às compras. Decidiu, por isso, encomendar o almoço e aproveitar para deitar mãos a um novo projeto.

    Algumas semanas depois, o livro foi publicado. Sentia-se ansioso. Os últimos dois não tinham sido recebidos como esperava.

    Chegou o dia do lançamento. Sala cheia numa importante livraria da capital. A apresentação a cargo de um conhecido e reputado académico. Tudo corria como no seu melhor sonho. O poeta, no entanto, não percebia o que levava o professor a considerar que a sua obra remetia para temas como o princípio do mundo, o ovo cosmogónico, a dúvida relativa à primazia do ovo ou da galinha, nem porque referia a incerteza expressa pelo final deixado em aberto.

    O público aplaudiu. O poeta, encolhido, com cara de ponto de interrogação, perguntou:

    – Em que página está esse poema?

    – Na página 23. – respondeu o professor. – A propósito, pergunto-lhe: por que não o colocou na página 1? Qual foi o critério de edição?

    O poeta abriu o livro e leu:

    “Ovos,

    galinha,

    milho

    e…”.

    Sem hesitar, dissertou sobre as grandes questões que pretendeu levantar com este poema. Esclareceu todas as dúvidas.

    shallow focus photography of brown eggs

    O académico ficou estarrecido com a explicação. Era brilhante. Elogiou e agradeceu a humildade e generosidade do autor.

    O poeta, de livro na mão, dirigiu-se ao supermercado:

    – E… arroz. – completou.

    Críticos, estudiosos, jornalistas, leitores ávidos e grandes conhecedores apressaram-se a ler a obra e ajoelharam-se perante o génio do bardo.

    Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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  • Território de proclamação

    Território de proclamação


    Paulo Vero é homem dos sete ofícios


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Sh’ma Israel

    Sh’ma Israel


    Num palco apertado, com uma cortina vermelha janota a servir de fundo, uma jovem rapariga de cabelos castanhos, anelados e frisados, entoava com requebros uma canção que os presentes pareciam conhecer perfeitamente: “Sh’ma Israel elohay ahshav ani levad”. Chegado o momento certo, os convivas elevavam e faziam tilintar as canecas, os copos ou as taças que empunhavam, e escutavam enquanto entoavam o refrão solicitado por Raquel – assim se chamava a cantora: “Escuta, Israel/Quando o coração chora, a alma grita!”

    Para os que ali vinham pela primeira vez, a canção estranhava-se, mas logo se entranhava. A melodia insinuava-se, e toda a sua melancolia ajudava os circunstantes a esperar por dias melhores: “…Escuta, Israel, meu Deus, tu és o todo-poderoso/ Tu me deste a vida, tu me deste tudo/ Em meus olhos uma lágrima, o coração chora em silêncio/ E, quando o coração se cala, a alma grita.” Eram apenas palavras, mas todos viviam o refrão, aconchegando-se do frio que se fazia sentir, aproximando-se uns dos outros, no bar Mitzvah, no coração da cidade velha.

    Numa mesa encostada a um dos recantos escuros do Mitzvah, trocava impressões um pequeno grupo mais recolhido, após se escutar o Sh’ma Israel. Foi para lá que Raquel se dirigiu após recolher uma salva de palmas e colocar as mãos em gesto de agradecimento.

    Via Juliana e a torre do YMCA (Young Man’s Christian Association) em Jerusalém. Anos 40

    “… Raquel, vem, vem depressa!”, exclamou Ester. “… Há bolos de mel.” “… E o chá de menta está a ferver.” “Não me fales nisso, que me fazes lembrar como este inverno nevou em Jerusalém.” “… Ainda estou a ver os nossos rapazes a divertir-se, atirando bolas de neve uns aos outros.” “… É verdade. Foi em fevereiro. Os tetos ficaram de uma brancura nunca vista.” “… Os mais velhos dizem que não nevava desde 1921.” “… Em 21 ainda estávamos a nascer.” “… Olha, o frio deve ter ajudado muito”, disse um dos amigos, que usava uma pala negra sobre o olho esquerdo.

    O grupo era formado por membros das organizações clandestinas nascidas para defender os colonatos judeus contra os ataques árabes. Estavam ali companheiros como Moshe Dayan e Yigal Allon. Tinham aprendido a táctica das guerrilhas com o capitão britânico Charles Orde Wingate, que organizara os Esquadrões Noturnos Especiais para combater os árabes. Durante os motins de 1936-1939, serviram no Vale do Jezreel e na Galileia e, depois, colaboraram na libertação do Líbano e da Síria das garras de Vichy. Dayan entrara para a Haganah aos 14 anos de idade e perdera o olho esquerdo em combates no Líbano. Quando os britânicos proibiram a Haganah, em 1939, ficou preso e encarcerado por dois anos. Allon, no retorno à Palestina, ajudou a fundar o Palmach.

    Ester pegou no prato com azeitonas que estava sobre a mesa e, enquanto as distribuía a cada um dos presentes, disse em tom mais baixo:
    “… Um dos nossos foi aprisionado por patrulhas alemãs em Tiberíades e levado para o YMCA. Sabemos que é um sargento do 8.º Exército britânico, de seu nome Hans Jonas. Ora aí está alguém que jamais fará má figura, se for torturado pelos alemães.”
    “… Estes alemães não torturam; o Afrika Korps não é a SS”, obtemperou Ester.

    Raquel mudou o rumo da conversa:
    “… Não me falem só de guerras. Olhem, o que eu queria agora era que me oferecessem um par de sapatos vermelhos, que os meus estão velhos. Não gostavas também de ter um par, Ester?”
    “Eu preferia os azuis-escuros expostos na montra da Jevod…”, respondeu esta.

    Moshe Dayan (à esquerda) aos 20 anos.

    Estavam nisto quando frei Werner entrou no Mitzvah. Ali vinha amiúde e imediatamente se dirigiu ao encontro da tertúlia. Nada mais o identificava como sacerdote senão uma minúscula cruz de lata, usada no casaco como flor na lapela.
    “… Werner!”, disseram alegremente as raparigas.
    “… Finalmente alguém que não pensa apenas em granadas e metralhadoras”, acrescentou Raquel.

    O franciscano esboçou um sorriso cúmplice e serviu-se de uma taça de chá quente, na qual molhou delicadamente o bolo de mel.
    “… Esta manhã, o marechal Rommel visitou a minha basílica.”

    Os olhos de todos, exceto os de Ester, abriram-se mais:
    “… A sério? Antes deslocou-se ao muro e depois à montanha. Anda a ver o que valem as nossas religiões.”
    “A nossa vale pouco mais do que o poder no cano das espingardas”, disse Ester.
    “… E quem fala pelos muçulmanos?”, perguntou Raquel.
    “… Falas tu, já que lembraste deles e gostas de ser boazinha.”

    Raquel assentou uma canelada por debaixo da mesa a Moshe e acrescentou:
    “… Estejam mas é calados. Quero ouvir o que Werner nos tem a dizer sobre esse marechal.”

    Frei Werner continuou. “… Primeiro, foi uma surpresa que ele nos visitasse a nós, em vez do Sepulcro. E eu apenas lhe disse o que vos repito todos os dias: é preciso que alguém venha fazer a paz. Agora ando a ler muito um alemão que diz a mesma coisa. Chama-se Hans Jonas.
    “… Quem? Como se chama?”, exclamou Ester. “… Jonas.” “… Não é possível. Ontem um alemão com esse nome deu entrada na prisão.” “… Com o mesmo nome?” “… Sim.” “… Com uns 40 anos de idade?” “… Sim.” “… Ruivo, com óculos?” “… Sim…” Dayan, que estivera muito calado até então, sussurrou. “Não sabia que o sujeito escrevia livros. Esquisito.”

    Enquanto todos se admiravam daquela coincidência, o franciscano extraía um cachimbo do bolso interior do seu casaco e, com ele, batia na mesinha para retirar os restos de tabaco queimado, acabando por dizer no tom mais natural do mundo: “… Há uma coisa que se pode fazer.” “Então, Werner,” disse Raquel, enquanto lhe pisava levemente o pé por debaixo da mesa. “Queres convertê-lo à tua fé?” … Nada incomodado pela pressão, Werner olhou para dentro do cachimbo, como quem procura um objeto perdido lá dentro, e continuou sem levantar os olhos: “… Ester, podes tentar que Rommel escute um recado?” Ester nada dizia. “… Fazes isso, Ester? Fazes isso por mim?” “… Qual recado, Werner?” À sua volta todos se entreolharam, exceto Ester, sempre muito séria. “… Deveriam pedir a Jonas que ele levasse o mesmo apelo que eu lhe fiz”, exclamou Werner fitando todos, e um a um.

    Todos engoliram em seco, à exceção de Yigal, que, pegando na caneca pousada na mesa, emborcou um trago para depois dizer: “… Rommel não é nazi, e também não é parvo.”

    Jovem cantora judia . Anos 40

    Quase saía fumo da cabeça daqueles jovens que depois se lançaram a trocar impressões sobre se valia a pena convencer o marechal a receber um prisioneiro judeu, alemão mas britânico. Era preciso um motivo à vista. Comunicar informações? Não era crível! Que queria mudar de campo? Seria um golpe baixo e correria mal. Atribuir-lhe a revelação de um plano? No fim foi Raquel quem teve a ideia mais simples, enquanto ajeitava os caracóis. “… Digam a verdade. Que esse Hans Jonas lhe quer comunicar uma verdade. Se o marechal tem fama de homem reto, vai querer ouvi-lo de certeza.” Silêncio geral. “… Esta miúda vai longe”, disse Yigal. “… Ui, tenho que voltar ao palco. Já há novos clientes.

    Raquel regressou sorridente ao pequeno palco, onde também se instalaram dois velhotes, um com um violino e outro com uma trompete. “… Agora, em homenagem a um amigo meu que gosta muito da paz, vou cantar de Duke Ellington It don’t mean a thing.” A sala ajeitou-se para ouvir a novidade. O violino atacou devagarinho a melodia, e a trompete preparou os espíritos para o que ali vinha. Depois, Raquel começou a entoar a nova melodia que dera no gosto do swing: It don’t mean a thing. E, por uns momentos, em Jerusalém, pareceram bem longe as guerras enquanto se ouvia a canção de Duke:
    Não quer dizer nada, tudo o que há a fazer é cantar… Não faz diferença se é doce ou faz calor… Basta dar ritmo a tudo o que te ouço… Mas não quer dizer nada, se não tiver balanço.

    [CONTINUA]


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