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  • A retórica do Cosmos: a linguagem da ciência na poética de Victor Hugo

    A retórica do Cosmos: a linguagem da ciência na poética de Victor Hugo


    A produção poética de Victor Hugo manifesta-se como uma das mais marcadas pelo discurso da ciência, na descrição dos lugares, objectos e personagens, entre as que, com reconhecimento alargado, se notabilizaram no seu tempo.

    Do nosso ponto de vista, que defendemos nesta abordagem, só Jules Verne, e, até certo ponto, Zola, para nos mantermos em exemplos da literatura francesa, se evidenciam como igualmente marcados pela mesma influência, no mesmo registo textual. No entanto, a interdiscursividade que detectamos em Hugo, ao contrário da que emerge nos seus pares acima citados, não é apenas um campo que a produtividade poética reelabora, para obter uma visão do mundo realista, ou um alargamento enciclopédico do conhecimento cósmico.

    Victor Hugo (1802-1805)

    De facto, nele, a ciência surge como produtora de uma linguagem veemente e passional, qualquer coisa como o turbilhão vociferante do Cosmos que, longe de inspirar um discurso “branco” do saber, razoável e iluminado, permite o emergir poético da catástrofe sibilada, a coloração das forças imparáveis do universo, e mesmo a emergência dos caos enunciáveis pelas trevas, pelos dilúvios, pelas forças tectónicas e atmosféricas.

    De algum modo, onde o gosto clássico cessante colocava entes divinizados e titãs, todos eles antropomorfizados, Hugo coloca as forças e os objectos naturais descritos pelas ciências, como entidades animadas. Elas não são evidentemente antropomórficas: apenas a visão e escuta dos poetas permitem que as suas figuras emirjam, se anunciem com a capacidade performativa de, enquanto discursos do mundo (por vezes formas e de desígnios enigmáticos), actuarem poderosamente sobre o mundo.

    Assim, os ventos e as correntes não são movimentos cegos, mas fúrias desencadeadas, deslocando-se como agentes das fábulas, as tempestades e os trovões não são fenómenos indiferentes às paixões dos homens, mas sim, antes, forças que com eles actuam, que desafiam e transformam os poderes das personagens.

    statue on topless man

    Se a ciência do século XIX descobre e descreve os fenómenos, sobretudo os energéticos, ao poeta compete entender-lhes o sentido, a sua função actancial no desenrolar da narrativa, o seu sentido profético, ao emergirem, nos cantos líricos, como elementos de uma cosmovisão, ou, nas narrativas, como representações de um espaço vital animado, ele próprio, por forças cegas de destruição e transformação.

    De qualquer modo, a componente do conhecimento científico da época entra como parte do saber que instaura qualquer coisa como o orgulho iconoclasta do poeta, o que lhe permite ter dos séculos – pelo domínio da lenda e da história – e dos estratos cósmicos – pelo desenvolvimento da geografia, da astronomia e das ciências físicas e naturais em geral que ele adquire pelo estudo actualizado – uma visão sincrética.

    No texto “A arte a ciência”, um dos primeiros capítulos da obra que dedica a Shakespeare, (Hugo, s/d [1864]:93-96), o autor francês enuncia o princípio que o rege:

    “O universo sem livro é o esboçar da ciência; o universo com o livro é o ideal que aparece. Também se dá, de imediato, a modificação do fenómeno humano. Onde nada havia senão a força, revela-se a potência. O ideal aplicado aos factos naturais é a civilização. A poesia escrita e cantada começa a sua obra, dedução magnífica e eficaz da poesia vista. Coisa que choca ao enunciá-la: a ciência sonhava, a poesia agiu. Com o barulho da lira, o pensador escorraça a ferocidade.”

    white ceramic man head bust
    William Shakespeare

    Toda a sua argumentação, a partir daí, se desenvolve na demonstração de que a escrita, por si só, depois de ter permitido a abstracção comum à ciência e à poesia, permitiu a esta última construir uma humanidade superior que já assenta muito mais na própria escrita do que no saber da contemplação natural: “A natureza, mais a humanidade, elevadas à segunda potência, dão a arte” (p.95).

    Esta matemática, servindo o princípio da alegorização, permite a Hugo a fórmula final segundo a qual compara a arte e a ciência: “A poesia, como a ciência, tem uma raiz abstracta; a ciência tira daí obra-prima de metal, de madeira, de fogo ou de ar, máquina, navio, aeróscafo; a poesia extrai obra-prima de carne e osso: A Ilíada, o Cântico dos cânticos, o Romancero, a Divina comédia e Macbeth” (p.96).

    O reconhecimento desta superioridade, que Hugo arvora como mais-valia da poesia, desde tempos remotos, como transparece no facto de todas as obras citadas serem supremos modelos canónicos ou mesmo casos de “textos fundadores”, não impede que ele esteja atento, de um modo surpreendentemente criador, aos enunciados do discurso científico que eram inovadores no seu tempo.

    Tentaremos demonstrá-lo com alguns exemplos, contrapondo o discurso da sua voz autoral (lírico-poética, ou de narrador épico-romanesco) a casos em que esse mesmo tipo de discurso se faz sentir pela ausência de enunciados desse tipo ou por uma formulação em que o saber científico não se integra na obra literária, embora aí apareça aludido.

    Comecemos por comparar Hugo com o seu contemporâneo (nascido, tal como Hogo, note-se a efeméride, em 1802) Alexandre Dumas. Não tentaremos fazê-lo em relação ao total das suas obras, porque isso seria uma tarefa fora do âmbito de um artigo, ou até mesmo de um volume de consideráveis dimensões, mas apenas a pequenos exemplos que consideramos privilegiados.

    Em Dumas, tentaremos comentar, através de breves citações, a presença da ciência pela representação que ele faz de um mação alquimista, Joseph Balsamo, no princípio do romance que tem por título o nome da personagem – quase sempre publicado em vários tomos, ele próprio integrado num conjunto de romances que abordam o fim do antigo regime em França, numa série romanesca intitulada Mémoires d´un médecin.

    Logo após as primeiras páginas em que Joseph Balsamo é consagrado membro da ordem (que nunca é nomeada exactamente mas que reproduz, embora com bastante liberdade espectacular, os ritos de iniciação maçónicos), a narrativa apresenta-nos a personagem em viagem, atravessando uma região montanhosa de França, numa carruagem de amplas e complexas dimensões, uma espécie de habitação rolante no interior da qual o protagonista e um velho sábio manipulam enigmáticos frascos, fazem funcionar um forno alquímico no qual se prepara uma misteriosa transformação.

    Alexandre Dumas

    À volta da carruagem desencadeia-se uma tempestade cujos aspectos e efeitos lembram uma inesperada e incontrolável fúria do Cosmos, resultando dela que um dos cavalos é morto e os viajantes têm de parar.

    A descrição do acontecimento, embora obedeça aos princípios elementares do que é comum na visualização literária dos fenómenos da natureza, não tira qualquer consequência do facto de ela estar a ser observada, sentida, percebida e mesmo avaliada por dois seres de supremo saber. Os fogos celestes surgem como uma pirotecnia surpreendente de efeitos luminosos e a água torna-se numa ameaça que inunda o terreno.

    Para o velho alquimista a chuva apenas se manifesta como algo negativo por ameaçar apagar o fogo do forno onde se está a dar a grande transformação, pelo facto de a casa rolante não ter a chaminé devidamente coberta. No entanto, quando, como que por acaso, o velho alquimista se dá conta da trovoada, é com a maior naturalidade que ele explica a Balsamo que é inteiramente possível domar as descargas eléctricas e fazê-las funcionar em proveito da técnica laboratorial. É tudo uma questão de tempo e de oportunidade.

    Os segredos de tal arte, porém, não são enunciados senão pela breve explicação de que “a chama eléctrica” pode “descer até ao forno”, por um sistema de “pontas” suportadas por um “papagaio artificial”. De tal explicação, o genial discípulo, Balsamo, detentor de imensas sabedorias, não percebe nada (cf.Dumas, s/d: 46-47;vol.I).

    O quadro que aqui se nos desenha é, até certo ponto, o de uma relação do homem com o Cosmos, com aquilo que poderíamos designar até, mais funcionalmente, como macrocosmo, manifestando-se tal relação, através de um sábio. No entanto, o processo surge como uma demonstração de que o desenvolvimento do saber é eticamente negativo.

    De facto, o conhecimento contido pelas duas personagens, assente sobretudo numa espécie de manipulação de fórmulas tendentes a construir a transgressão, a arquitectar uma conspiração que altere um conjunto de elementos estruturadores da potência (essencialmente a política – o antigo regime é visto como uma determinada ordem emanada da transcendência vigorando no universo imanente do perecível), não se move para lá de um quadro ou espaço fechado: o das fórmulas dos livros e dos instrumentos sagrados e/ou proibidos.

    Tal saber encerrado, feito e dominado de uma vez para sempre, parece nada poder acrescentar à visão poética, ficcional ou mesmo cientificamente informada, do macrocosmo. Todo o saber acerca deste permite apenas domínios parciais que podem ou não ser usados para perturbar a ordem humana estabelecida.

    photo of library with turned on lights

    Dentro deste quadro epistemológico, o saber do sábio (o alquimista, o mação) é sempre um movimento perverso, surgindo no discurso como eticamente negativo. Dado que é indevido no interior do sagrado, torna-se uma actuação de sacrilégio ou de violação. O desenvolvimento da narrativa de Dumas vai revelar-nos que assim é.

    Quanto ao romancista, na construção das perspectivas que assume como narrador, nunca atribui ao saber das ciências quaisquer perspectivas complementares que lhe permitam desenvolver ou desenhar um quadro do Cosmos que ultrapasse a observação razoavelmente empírica das aparências. Tudo está feito pelo grande arquitecto, é ele que assegura a coerência do Cosmos e das suas manifestações.

    Por isso, ao sábio, compete-lhe aprender as fórmulas da manipulação, mas não o sentido dos fenómenos, que está estabelecido de uma vez por todas. A alquimia (em sentido lato e algo metafórico, claro!) não anda, neste caso, muito longe da teologia.  Aliás, na poética de Dumas, mesmo a descrição elementar de quadros do mundo, sobretudo da natureza, são, comparando-os com os diálogos e as narrações de acções, por exemplo, raros (pelos menos dentro da parte da sua gigantesca obra que nos foi dado ler) e, isso, possivelmente, porque a interrogação dos mesmos, da razão de ser das suas origens (as fontes,  as causas – mas também, complementar e simetricamente, as interacções e consequências), não era material que interessasse a uma tal visão do mundo.

    O homem de Dumas não age sobre o universo, nem é por ele transformado. Move-se no seu interior sem um saber científico. Quando o saber emerge, apresenta-se como uma perversão face ao sagrado, uma acção de feitiçaria. As relações são mais entre as personagens e os entes mágicos ou as suas manifestações intencionais, no que respeita ao cosmos (um ente supremo desencadeia uma catástrofe, por exemplo), do que entre as personagens e os fenómenos da natureza – de um modo geral e relativo, evidentemente

    Não será essa a posição de Hugo. Neste, embora nunca apareça uma figura importante de cientista, a visão científica do universo como questão estética, como material de construção poética, é fundamental. Em nosso entender, num processo complexo que não podemos dilucidar aqui inteiramente, mas que abordaremos de modo parcial, o trabalho poético de Hugo assenta na validação do discurso científico, retomando a linha das poéticas do humanismo renascentista que, em primeiro lugar, fizeram sentir a sua necessidade, embora nem sempre o tratassem satisfatoriamente como elemento central da elaboração poética.

    cliff beside sea water under bright sky

    Esquecendo a anatomia dos pintores e escultoras da Renascença italiana, abordemos a questão através de um dos nossos clássicos. E façamo-lo num texto que é de antologia e tem sido de “escolaridade obrigatória”. Trata-se, como se suspeitará, a partir do que anteriormente dissemos, do canto V de Os Lusíadas.

    De facto, aí, vamos encontrar duas descrições de forças naturais observadas que o narrador Vasco da Gama cita, quer como fenómenos de que ouviu falar, quer como ocorrências que ele próprio observou: de um modo geral, o que acontece é que ele confirma como verdadeiras as coisas extraordinárias que já eram da “enciclopédia” dos nautas, antes da viagem que o celebrizou.

    São elas “cousas do mar, que os homens não entendem”, mas que ele Gama, viu, confirmando o “que os rudos marinheiros, que tem por mestra a longa experiência, contam por certos sempre e verdadeiros” (est. 16-17).

        Em seguida, não só os enumera sumariamente – “súbitas trovoadas temerosas, relâmpados que o mar em fogo acendem, negros chuveiros, noites tenebrosas, bramidos de trovões que o mundo fendem” (est. 16) –, mas ainda  apresenta de forma mais pormenorizada  “as nuvens do mar com alto cano sorver as águas do oceano”, num quadro descritivo conhecido como “a tromba marítima” (est. 19), e “o lume vivo que a gente marítima tem por santo” (est. 18), numa apresentação evocativa (enargueia) –  que faz amplo apelo aos termos designativos do visual – conhecida como a do “fogo de Santemo”.

    fountain pen on black lined paper

    No entanto, devemos notar que, para a funcionalidade da narrativa que está a ser desenvolvida, a da viagem que leva à descoberta do caminho marítimo para a Índia contornando África, a função das descrições é quase puramente ornamental. Porque, logo um pouco à frente, ainda no mesmo canto, a verdadeira função da manifestação das forças e energias do Cosmos como obstáculo a ser ultrapassado, pelo conhecimento e pela coragem, é representada pela figura do Adamastor.

    Neste episódio, de qualidade estética e invenção narrativa unanimemente reconhecidas, emergem os elementos do clima e da topografia, bem como a mecânica das correntes e dos ventos, numa figuração alegórica que os dramatiza, constituindo-os como forças passionais, que entram em jogo com a vontade e a coragem dos navegantes. Dada a proximidade das descrições, quase marcadas pela vontade de fazer cartografia e climatologia dos obstáculos geográficos e das tempestades, e a representação “dramatizada” do episódio do Adamastor, que surge poucas estrofes adiante, quase se poderia sugerir que a entidade “Terra” ganha aparência de energia e de força ameaçadora, através das acções deslocadas – por figuração – para o actuar e dizer do titã,  não pelo exibir das suas próprias características dinâmicas.

    É claro que tal atitude poética do nosso épico renascentista não nos pode surpreender. Está em causa, na construção do seu discurso narrativo, a intensa aprendizagem da epopeia clássica, de gregos e romanos, para os quais as forças terrestres exprimiam as magnitudes, sentidos e paixões de entes primordiais, fontes de toda a energia cósmica – ou, explicitanto a inversão imaginária, os entes eram a realização das forças, não as suas representações, mas a sua verdade ontológica.

    orange rose flower beside notebook and pen

    Devemos notar, no entanto, que o sentido dos factos observados no conhecimento do mundo, das coordenadas e características dos elementos terrestres era, desde então, motivo de interrogação científica para os próprios poetas, que, no entanto, não hesitavam em simplificar a representação desses mesmos factos através dos mitemas conhecidos.

    Narrar uma viagem implicava estar atento aos elementos empíricos que constituíam essa viagem, muito embora a compreensão dos fenómenos, sobretudo os de mais evidente dinamismo, carecesse do saber livresco de séculos anteriores – quase sempre poético, ele próprio, dado que ser cultivado era ser letrado, e ser letrado passava por conhecer os épicos, os trágicos, os físicos, os filósofos, os cronistas…

    Posto isto, deve ser lembrado aqui que um outro filão discursivo nascia já por essa época, num tipo de textos que se desenvolve em paralelo àquele  a  que hoje chamamos literatura,  constituindo-se à margem das obras canónicas – mas mantendo relações com elas, muito embora se desenvolvesse em projectos que se podem relacionar com o discurso científico. De um modo geral, podemos chamar-lhe narrativas de viagens – mas teremos de admitir que os autores dessa genealogia se situam, na variedade de tendências que representam, entre Garcia de Orta e Fernão Mendes Pinto.

    Admitindo, com um imediatismo de intuição de leitor (o qual, por razões óbvias de espaço, não tentamos explicar aqui), que o segundo se encontra muito perto daquilo a que chamamos hoje literatura (e da melhor), e o primeiro não tanto, mantendo-se os seus “colóquios” sobre as “drogas e os elementos simples” num campo que seria hoje o de uma botânica, de uma química, de uma química orgânica, fazemos-lhe uma breve referência.

    photo of island and thunder

    Efectivamente, em Peregrinação, o saber enciclopédico, organizando a experiência empírica da arte da navegação, perspectiva o remoinho dos Cosmos, com os seus ventos, as suas marés, as suas tempestades, os seus territórios virgens, agrestes e quase inexpugnáveis, como uma entidade que não se faz representar por outrem.

    Nele se apresentam e encenam as forças do cosmos tal como ainda hoje se podem apresentar no discurso científicos os elementos da natureza, quando se trata, para este discurso, de os referir de modo amplo e perceptível por todos. As forças dos elementos são aceites como um facto, sem precisarem de intermediários mitológicos para os explicar – e produzem efeitos que, embora apresentem a face do destino, não reconfigurem por isso, no mundo em que a miséria humana se processa no absurdo da sua fragilidade, uma vontade celeste antropomórfica.[1]

    O empirismo propõe, como primeira atitude favorável ao desenvolver da ciência, uma espécie de “pacto de aceitação da factualidade enquanto tal”. Assim, os fenómenos podem ser enigmas, sem que sejam obras ou manifestações de entes. Podem constituir fonte de perguntas sem que a sua explicação tenha de ter uma resposta urgente, feita mais de crença do que de saber. O Cosmos é, assim, na espantosa narrativa de Fernão Mendes Pinto, uma força imanente que é preciso reconhecer na sua empiricidade. Sem esse saber dos factos, a actividade humana desenvolve-se erraticamente.

    Aliás, como se percebe no episódio da tempestade durante o qual desaparece o pirata António de Faria e o tesouro que tinha roubado com o seus cúmplices, o desencadear das forças do Cosmos é representado por imagens de fenómenos físicos sem explicação, que a si próprias se representam, forças do acaso e da fatalidade neutra  que se desencadeia e contra a qual o homem se talha na sua autenticidade.

    A densidade desse confronto existencial, que já em finais do século XVI (data presumível da redacção, embora o primeiro manuscrito que se conhece, que nem é atribuível à vontade expressa do autor – suspeitando-se que foi amplamente remanejado -, date de inícios dos séc. XVII), era uma das forças principais da intensidade poética da Peregrinação, pode-se considerar uma das pedras de toque da construção do realismo textual de Hugo.

    Uma das suas figures recorrentes, em textos narrativos e líricos sobretudo (mas também em muitos discursos das personagens, no teatro), é o defrontar das forças do Cosmos pelos seus heróis. Os animais, os ventos, as marés, os rochedos, as propriedades dos materiais são, no seu romance Les travailleurs de la mer, autênticas potestades que, sem aparecerem sob formas antropomorfizadas, actuam como verdadeiras personagens.

    Em grande parte, o antagonismo fundamental que constitui a acção central nesse romance, é a luta entre um jovem experto nas lides do mar, e as forças do oceano, contra as quais tem de lutar para levar a cabo a sua tarefa de recuperar o motor de um barco a vapor. O objectivo do jovem herói é, no entanto, conquistar a mão da donzela que ama, a qual lhe fora prometida pelo pai da rapariga, caso conseguisse recuperar o mecanismo a vapor do seu barco, desmantelado durante um naufrágio contra um rochedo do canal da Mancha.

    Para o efeito, o jovem parte sozinho, na sua pequena mas sólida embarcação de pesca, movida pela força do vento. A tarefa é pesada, quase impossível, pois o conjunto de recifes contra os quais o vapor naufragara era muito escarpado e de difícil acesso, como o estado das marés e dos ventos era inconstante, com permanentes tempestades, ventos fortes e agitações tumultuosas das águas. Dominando o conjunto de rochedos, destacava-se um: “L´Homme” (p.201).

    É esse conjunto de elementos, actuando pelo seu estatismo (escolhos do recife, inacessibilidade dos rochedos) e pela dinâmica tempestuosa (ventos, ondas, trovoadas e marés), que Gilliatt (assim se chama o protagonista) irá enfrentar, pela aplicação de uma espécie de tecnologia oriunda de algum saber (Gilliatt lia alguns livros – p. 22-23 – embora se vestisse como “ouvrier où matelot” – p. 13 – o que, naqueles locais das “ilhas do canal”, o identificava com as populações humildes e iletradas); de um poder físico de “barbare antique”, as marcas de “homme hardi et persévérant” nos vincos do rosto e na tez  a “sombre masque du vent et de la mer” (p. 34)  – enfim, sendo de “taille ordinaire et de force ordinaire, il trouvait moyen, tant sa dextérité était inventive et puissante, de soulever des fardeaux de géant et d´accomplir des prodiges d´athlète” (p.34); das graças de homem do mar como pescador e nadador (p. 36);  do “instinct” que, para distracção, o levou a aprender três ou quatro ofícios “menuisier, ferron, charron, calfat, e même un peu mécanicien” (p. 38); e de uma disponibilidade inventiva dinamizada pela sua posição de solitário e apaixonado.

    Veremos, um pouco mais em pormenor, um quadro do confronto desenhado entre este atleta da habilidade e da firmeza e as forças universais que desafia, para repararmos como para tal o discurso científico é um dos materiais a que Victor Hugo recorre para construir a sua representação. Tendo em vista tal demonstração, teremos de recorrer a um pequeno excerto, resumindo os contextos espaciais e situacionais em que ele aparece.

    Como já se explicou resumidamente em parágrafos anteriores, Gilliatt vai ao recife onde o barco encalhou. A sua chegada ao local merece, por parte do narrador, uma apresentação do local, e das características que o tornavam um obstáculo e mesmo um adversário. Contudo, antes de o apresentar enquanto “escolho” singular, concreto, o autor elabora a sua pequena entrada enciclopédica “esclarecedora”. Eis um excerto de tal verbete-resumo do saber, construído como explanação propiciatória da compreensão das “forças” do espaço onde a acção se vai desenrolar:

    Un écueil corridor est orienté. Cette orientation importe. Il en résulte une première action sur l´air et sur l´eau. L´écueil corridor agit sur le flot et sur le vent, mécaniquement, par sa forme, galvaniquement, para l´animation différente possible de ses plans verticaux, masses juxtaposées et contrariées l´une par l´autre. /Cette nature d´écueils tire à elle toutes les forces furieuses éparses dans l´ouragan, e a sur la tourmente une singulière puissance de concentration./ De la, dans les parages de ces brisants, une certaine accentuation de la tempête./ Il faut savoir que le vent est composite. On croit le vent simple ; il ne l´est point. Cette force n´est pas seulement chimique, elle est magnétique. Il y a en elle de l´inexplicable. Le vent est électrique autant qu´aérien” (p. 247). 

    shipwreck on shore

    O excerto que aqui apresentamos é uma breve amostra. Esta “explicação” sobre o vento e sobre o mar, que não exclui muitas outras anteriores e posteriores, estende-se por mais algumas páginas, antes de chegarmos de novo à situação singular em que o herói se encontra. Embora não seja um sábio, nem o conhecimento enunciado pelo narrador pareça decorrer da personagem, como que revelando o seu pensamento íntimo, deduzimos que a astúcia do jovem herói, que acima apresentámos resumidamente, é capaz de inferir as ameaças a partir da sua experiência empírica.

    Gilliatt se connaissait assez en écueils pour prendre les Douvres fort au sérieux. Avant tout, nous venons de le dire, il s´agissait de mettre en sûreté la panse. (…) Les sommets lointains des bas-fonds, mis hors de l´eau par la marée descendante, aboutissaient sous l´escarpement même de l´Homme à une sorte de crique, murée presque de tous côtés par l´écueil. Il avait là évidemment un mouillage possible. Gilliatt observa cette crique. Elle avait la forme d´un fer à cheval, et s´ouvrai d´un seul coté, au vent d´est, qui est le moins mauvais vent de ces parages. Le flot y était enfermé et presque dormant. Cette baie était tenable. Gilliatt d´ailleurs n´avait pas beaucoup de choix” (p.250-252)

        Notaremos, a partir deste texto, como todos os dados da descrição, quer resultem da observação directa do herói (ou como que através dele, dado que a sua presença justifica o olhar, e os seus interesses – como aportar, como obter segurança da concha formada pelos rochedos – o privilegiar de objectos e ângulos de visão), quer provenham da voz autoral do narrador (tornando-se a autoridade, pelo modo como debita o conhecimento, autoralidade) apontam para a construção de agrupamentos e condições que sugerem o conflito: por um lado as energias cósmicas, anunciando sempre o limiar da catástrofe, e por outro o herói, avaliando os obstáculos e o eventuais adjuvantes que encontra, preparando-se para resistir à tormenta.

    book lot on black wooden shelf

    É curioso notar ainda que, um dos rochedos do recife, o mais imponente, é conhecido por “Homme”, o que lhe cria um estatuto ambíguo quer na representação simbólica quer na função que vai assumir na acção, ora adversário do herói, colaborando com a tempestade e a maré, ora seu aliado, dando-lhe apoio.

    É isso que se percebe durante a faina do herói, cujo comportamento, quer na construção dos mecanismos de apoio ao seu trabalho, quer na defesa do porto onde tem a embarcação, lembra os titãs, os deuses ou os heróis da epopeia clássica: Prometeu, Hefestos, Ulisses ou mesmo Ajax ou Heitor. Todas essas figuras, porém, surgem como referências nunca explicitadas. O processo de evocação é tão só desencadeado pelo trabalho do herói: o domínio do fogo e da forja (Prometeu, Hefesto); os conhecimentos do mar e das suas “traições”, contra as quais tem de usar precaução e astúcia (Ulisses); e a capacidade de defender o seu território contra as investidas do grande adversário em fúria (Ajax e Heitor).

    Serve-nos de exemplo do modo como herói é construído, o pequeno excerto que em seguida apresentamos:

     “Gilliatt fit la forge./ La deuxième  anfractuosité choisie par Gilliat offrait un réduit, espèce de boyau, assez profond. Il avait eu d´abord l´idée de s´y installer ; mais la bise, se renouvelant sans cesse, était si continue e si opiniâtre dans ce couloir qu´il avait dû renoncer à habiter là. Ce soufflet lui donna l´idée d´une forge. Puisque cette caverne ne pouvait être sa chambre, elle serait son atelier. Se faire servir par l´obstacle est un grand pas vers triomphe. Le vent était l´ennemi de Gilliatt, Gilliatt entreprit d´en faire son valet. (…) La forge que Gilliatt voulait établir était ébauchée par la nature ; mais dompter cette ébauche par la nature ; mais dompter cette ébauche jusqu´à la rendre maniable et transformer cette caverne en laboratoire, rien n´était plus âpre et plus malaisé” (p.269).

    person raising both hands

    Nesta luta o herói não só desenvolve os seus dotes, como manifesta a capacidade de aplicar novas soluções a partir de desafios que os obstáculos lhe colocavam. Nomeadamente, são de considerar as construções da “grua”, que ele se vê forçado a fazer, para elevar a gigantesca máquina salvada do naufrágio, e as barreiras, calculadas segundo a necessidade de resistência à energia hidráulica do mar.

    Efectivamente, a voz narrativa não deixa de aplaudir o saber artesanal de Gilliatt, comparando-o a um célebre pedreiro medieval que, antes da descoberta das leis físicas que orientavam cientificamente o seu trabalho (as do atrito), fez deslizar um gigantesco relógio num brilhante cálculo de forças estáticas e dinâmicas. No entanto, Gilliatt seria mais notável do que esse pedreiro, na medida em que trabalhava sozinho, e tinha de suspender a sua máquina de muitas centenas de quilos, para a transportar para a embarcação de salvamento (pp. 289-290).

    As considerações sobre a física e a tecnologia, no desenvolvimento da operação, são apresentadas pelo autor, recorrendo sempre à referência a conhecimentos desenvolvidos pelas ciências do século XIX.

    É igualmente com grande precisão descritiva, pelo recurso ao léxico e saber tecnológico e científico, que a luta contra o mar nos á apresentada, desenvolvendo-se a descrição a partir na narração das tarefas do herói:                   

      “Gilliat, avec cette adresse qu´il avait, plus fort que la force, exécutait une manœuvre de chamois dans la montagne ou de sapajou dans la forêt, utilisant pour des enjambées oscillantes et vertigineuses la moindre pierre en saillie, sautant à l´eau, sortant de l´eau nageant dans les remous, grimpant au rocher, une corde entre les dents, un marteau à la main, détacha le grelin qui maintenait suspendu et collé au soubassement de la petite Douvre le pan de muraille de l´avant de la Durande, façonna avec des bouts de haussière des espèces de gonds rattachant ce panneau aux gros clous plantés dans le granit, fit tourner sur ces gonds cette armature de planches pareilles à une trappe d´écluse, l´offrit en flanc, comme  on fait d´une joue de gouvernail, au flot qui en poussa et appliqua une extrémité sur la grande Douvre pendant que les gonds de corde retenaient sur la petite Douvre, au moyen des clous d´attente plantés d´avance, la même fixation que sur la petite, amarra solidement cette vaste plaque de bois  au double pilier de goulet, croisa sur ce barrage une chaîne comme un baudrier sur une cuirasse, et en moins d´une heure cette clôture se dressa contre la marée, et la ruelle de l´écueil fut fermée comme une porte” (pp.310311).

    Encontramos neste excerto um dos típicos procedimentos descritivos que remonta à tradição homérica, e que já nesse modelo clássico aparecia como propiciador de uma visão dos objectos disciplinada pela sabedoria e naturalizada pelo acto narrativo de mostrar a personagem produzindo (ou entrando em contacto com) o objecto da descrição. O domínio pleno da obra por parte do seu “artesão”, que aqui nos aparece, remete-nos para a construção da ekphrasis, termo que Hamon considera designar a “descrição literária (seja ou não integrada na narrativa) de uma obra de arte real ou imaginária (…) que determinada personagem da ficção encontra.

    Exemplo sempre citado: o escudo de Aquiles” (1991: 8). O célebre exemplo aqui citado evoca o episódio da Ilíada, em que é feita a descrição do novo escudo de Aquiles, o qual aparece passo a passo, através da apresentação das diversas etapas da sua confecção por Hefesto, o deus dos fogos e dos vulcões. A descrição como que se naturaliza, através da narração do fazer do objecto descrito[2].

    white book page with black background

    Ora, esta modalidade de discurso, tão privilegiada na apresentação de obras de arte, ou técnicas (no sentido forte da sua raiz etimológica: téchnê), é, na tradição da boa prática da escrita (de que a literatura seria um caso maior), quase indissociável do “dizer” científico. Philippe Hamon, a cujos trabalhos de investigação sobre a descrição recorremos mais uma vez, coloca a questão com muito clareza, elucidando com a sua perspectiva a argumentação que aqui defendemos:

    o enunciado descritivo é, sem dúvida, próximo, materialmente e psicologicamente, dos textos do saber para a constituição dos quais ele contribui pela sua própria actividade, ou que ele consulta para verificar e autentificar a sua descrição. (…)Deve notar-se, em primeiro lugar, que um saber (de palavras, de coisas) é, não apenas, um texto já aprendido, mas, também, um texto já escrito, algures, e a descrição pode, então ser considerada, em maior ou menor dimensão, como o lugar de uma reescrita, como um operador de intertextualidade; de-sribere, lembremo-nos, é, etimologicamente, escrever segundo um modelo. Esta operação de intertextualidade pode ocorrer entre textos disjunto de produtores diferentes (Zola para descrever o jardim, em La Faute de L´abbé Mouret, recopia os manuais e os catálogos de horticultura), como entre textos disjuntos do mesmo produtor, de acordo com um método e com protocolos de escrita, datados mas suficientemente difundidos universalmente, que consistem, para um autor descritivo, em reunir, primeiro, a sua documentação antes de escrever a sua descrição, seguidamente  em escrever, primeiro, as suas partes descritivas, antes de redigir as partes mais propriamente narrativas que as encaixarão (…) Tal processo revalida, então, a oposição ideológica entre a narrativa (a imaginação) e a descrição (o saber) e mesmo, no interior da descrição, entre um saber previamente registado pelo estudo da natureza, e a sua reescrita posterior. A operação de intertextualidade é, então, dupla, produzindo-se o rewriting no interior de uma mesma escrita, e de uma escrita para outra; mas devendo as estruturas e as marcas desse duplo enxerto ser apagadas e rasuradas tanto quanto possível  (no texto legível-referencial-clássico), o apelo ao reconhecimento, por parte do leitor, dos campos lexicais actualizados, deve fazer-se com base na ignorância da sua origem textual, ou seja, do facto de ele ter sido copiado e recopiado (de um outro texto; do dossier preparatório do autor). De onde resulta, como veremos, a grande quantidade de processos narrativos destinados a «naturalizar» a inserção do discurso do outro (o documento) no texto descritivo” (1993: 48-49).

    Parece-nos que, na fundamentação da poética de Hugo, são bem importantes estes mecanismos de oficina de escrita. O que perpassa, na leitura atenta do texto, projectando-o, em cotejo, sobre outros similares ou próximos, não é o nascimento da descrição (a partir do romantismo, com uma “época de ouro” no naturalismo) em oposição a um classicismo que o desconhecesse. É claro que, na tradição poética ocidental, da Grécia clássica até ao romantismo francês, a descrição sempre existiu.

    O que acontece é que as operações de reescrita, a partir do romantismo, e em Hugo muito em especial, para atingirem a validação poética, têm de lançar mão do disfarce de que fala Hamon, para que o não literário (o documento mundo e o documento sobre o mundo) se literarize

    O que não era necessário no caso da poética clássica que importava os seus textos, para os reescrever, da tradição literária, de um saber que já era literário (até porque todo o saber, até ao séc. XVIII, era fundamentalmente letrado, sendo as letras um acesso ao conhecimento procurado sobretudo nos mestres poetas – porque os poetas eram transmissores da ciência, em pé de igualdade com aqueles que hoje reconhecemos como cientistas: Galileu, Cirano de Bergerac, Rodrigues Lobo e Garcia de Orta escrevem diálogos, numa dimensão criativa em que é difícil dizer onde começa o literário e acaba a ciência, ou vice versa), de uma literatura que transmitia “ciência”, de uma ciência que só se podia fazer com o domínio das letras que as poéticas forneciam.

    Se é certo que o poeta, no dizer de Hugo, se defronta com o cientista, não é para o ultrapassar, como o criador poético sugere no seu texto sobre Shakespeare. Em nosso entender, a operação poética mais importante nesse confronto, é a absorção do discurso científico pelo poético. Pelo que aquele introduz neste de desafio, de renovação lexical, de abertura de perspectivas sobre o cosmos e sobre as relações do homem com este. E cremos que há, desde então, um virtuoso intercâmbio entre os campos: ele anuncia-se, sobretudo, no modo como a ciência recorre à metáfora para conceptualizar, e no processo segundo o qual a criação literária despe as roupagens da alegoria ao universo, para tomar em consideração o dramatismo das forças cósmicas. 

    A importância de tal relação, não reside apenas no modo poético de construir e dar a ver as forças do universo tal como o discurso científico as via. Em nosso entender, no diálogo que estabelece com as ciências, a criação poética desenvolve, pelo modo como vislumbra o universo, as condições para que a própria ciência ultrapasse as barreiras que se criaram entre o animismo e o vitalismo, ou seja que se possa pensar sem escândalo que “caia a barreira entre orgânico e mineral” (François Jacob, 1971: 136).

    clear hour glass beside pink flowers

    E, mais ainda: na sua dramatização das relações do homem com o cosmos, ao atribuir ao cosmos uma retórica que interage com a do homem na expressão e defesa dos seus valores, ela pressupõe o desenvolver de conceptualizações que antecipam os passos que, a partir de meados do século XIX, permitem desfazer a mitificação que assentava no conceito-barreira de força vital. E em Hugo, por certo, desenham-se as novas formas de perspectivar o objecto das ciências químicas, físicas, biológicas e genéticas que permite o aparecer como evidente, hoje em dia, que os seres vivos são “a sede de um triplo fluxo: de matéria, de energia e de informação” (F. Jacob, 1971:137).

    Ora, se a biologia, como reconhece o mesmo cientista, estava já, então, em condições de reconhecer o fluxo da matéria (cf. Jacob, 1971: 137-138), é na criação poética que o vislumbre utópico dos outros dois fluxos se desenham, antes de emergir claramente nas novas concepções das ciências que se declaram no princípio do século XX. Entre as obras que constroem o dizer dessa energia, que fazem as forças da natureza significar na construção da ficção, como dirá, quase na mesma época, Zola, conta-se a de Victor Hugo.

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia:

    Bronowski, J., 1986, Magia, ciência e civilização, Edições 70, Lisboa

    Camões, Luís, Os Lusíadas, 1987, Areal, Porto

    Dumas, Alexandre, Joseph Balsamo, s/d, Calmann-Lévy, Paris

    Greimas, A. J. E J. Courtés, (1979) s/d, Dicionário de Semiótica, Cultrix, S. Paulo

    Hamon, Philippe, 1991, La description Littéraire, Macula, Paris

    Hamon, Philippe, 1993, Du descriptif, Hachette, Paris

    Hugo, Victor, s/d[1864], William Shakespeare, Nelson, Paris.

    Hugo, Victor, 1979[1866] Les travailleurs da la mer, Hachette, Paris.

    Jacob, François, 1971, A lógica da vida, Dom Quixote, Lisboa


    [1] Simplificamos aqui uma questão bastante complexa. No entanto, assentamos o nosso reconhecimento da importância do discurso científico na literatura no ponto básico de o dado empírico valer por si, como axiologia, e não depender de valores fora da esfera da descrição em que se apresenta. Acompanhando um mestre da teoria da linguagem, semioticistas como Greimas e Courtés escrevem: “Para L. Helmeslev, é científica qualquer semiótica que seja uma operação (ou descrição) conforme ao princípio de empirismo” (1979:46). Temos em atenção, também, obviamente, o discurso dos cientistas da natureza, filósofos e historiadores da ciência, e aceitamos como base um enunciado como o de Bronowski: “Sustento que a revolução científica de 1500 em diante constitui uma parte essencialmente do Renascimento, que sem ela o renascimento não podia ser convenientemente entendido como uma reavaliação do homem (…) Desde essa época temos estado na posição ímpar de formar uma imagem única do conjunto da natureza, incluindo o homem. Trata-se de um novo empreendimento; difere dos empreendimentos precedentes pelo facto de não ser mágico, com o que pretendo significar que não supõe a existência de duas lógicas, a lógica do natural e a lógica do sobrenatural” (1986: 49-50) 

    [2] Aqui fica, a título de exemplo, um pequeno excerto de acordo com a tradução, altamente conceituada, de Frederico Lourenço: O Escudo de Aquiles (Ilíada, canto XVIII vv.478-490, dispostos linearmente) “Fez primeiro um escudo grande e robusto, todo lavrado, e pôs-lhe à volta um rebordo brilhante, triplo e refulgente, e daí fez um talabarte de prata. Cinco eram as camadas do próprio escudo; e nele cinzelou muitas imagens com perícia excepcional. Nele forjou a terra, o céu e o mar; o sol incansável e a lua cheia; e todas as constelações, grinaldas do céu: as Plêiades, as Híades e a Força de Oríon; e a Ursa, a que chamam Carro, cujo curso revolve sempre no mesmo sítio, fitando Oríon. Dos astros só a Ursa não mergulha nas correntes do Oceano”.

  • Em torno do herói intemporal da narrativa popular

    Em torno do herói intemporal da narrativa popular


    (…) O deus cabeludo disse ao vencedor menino:

    “Em brios medra Iulo; assim se vai aos astros,

    procriador e rebento divino […]”

    Virgílio, Eneida (IX, 638-641) Trad. de A. Feliciano Castilho


    Singular, sem dúvida, foi o destino de Héracles, herói quase imortal e invencível, que teve de decidir, na solidão do seu desastre, a morte que o iria arrancar ao convívio dos mortais, seus semelhantes e seus irmãos.

    Nenhum herói, como ele, na Antiguidade Grega (e nos ecos que dos seus feitos nos deram os Romanos, quando passou pela península Itálica com o gado de Gérion) foi tão solitário entre os homens e, ao mesmo tempo, tão solidário com o destino destes. Não houve, para a sua epopeia, todo a percurso terrestre, um aedo capaz de um só canto. Nem sequer um implacável Rabelais para cantar o seu gigantismo.

    naked man statue

    Mas talvez tivesse sido essa, também, a sua sorte: não ser, assim, assimilado, na unidade de um discurso, a uma “raça”, a uma “casta”, a uma classe social. Nem Pantagruel escapou a isso, inserido na “linhagem” dos reis dos gigantes. Héracles, porque viveu na boca da lenda, no sussurro fraterno dos convívios populares, nunca se fixou num painel, como os seus pares da “raça” dos Aqueus.

    Eurípides e Sófocles aproveitaram o efeito da sua loucura e da sua morte, mas o conjunto fantástico dos seus feitos, em que chegou a enfrentar os poderosos deuses e senhores do macrocosmo, apenas ficou registado em notas esparsas de eruditos e comentadores… e na evocação sonhadora que, pedaço a pedaço, o manteve vivo, às vezes respigado por intelectuais de passagem.

     “O herói dotado de poderes superiores aos do homem comum é uma constante da imaginação popular de Hércules e Siegfried, de Roldão a Pantagruel e até Peter Pan” afirma-nos Eco (1979, p. 246).

    brown statue of man near green trees during daytime

    Quase tão atemporais como o arquétipo enteado de Hera, sempre perseguido pela ira da madrasta alguns heróis de FC e da BD (ficção científica e banda desenhada) parecem reassumir, de forma variada, de acordo com os padrões  e condicionalismos históricos, uma estrutura mítico-narrativa elementar que equaciona com a mesma persistência infantil, imatura (revelando as aspirações que têm muito mais a ver com inflexibilidade fantástica do inconsciente do que com o dimensionamento razoável com o real), as pulsões elementares, os impulsos radicais do limitado e condicionado para a imensidão do tempo infinito e para as metas mais longínquas do espaço.

    De acordo com os saberes científicos e as observações empíricas que a tecnologia permitiu nas mais variadas épocas, os heróis populares gozaram sempre de uma omnipotência delirante, plasmada nas fantasias mais arrojadas, relativamente ao espaço e ao tempo. Quer para Héracles, quer para Superman, quer ainda para Odin, que “pela infinita importância do valor se tornou deus” (Carlyle, 1956: 61), os limites cronotópicos não existiam. Intermédios, por aparente “realismo” (verosimilhança, diria o Estagirita), introduzido pela ciência pós-positivista nas suas potencialidades, os heróis de FC assemelham-se, nas viagens que fazem aos astros remotos, às galáxias mal entrevistas a essa estirpe gerada na imaginação popular desde tempos lendários e que encontra em Héracles, o dos doze trabalhos, o ilustre antepassado modelar.

    Contrariamente aos heróis micénicos. que as palavras de Lukács tão bem enquadram, Héracles não e só um herói dos “bem-aventurados tempos que podem ler no céu estrelado o mapa dos caminhos que lhes estão abertos e que têm de seguir […] tempos cujos caminhos são iluminados pela luz das estrelas (1962:27). Ou melhor, ao contrário dos que bateram às portas de Ílion, nas planícies de Troia, o vencedor de Leão de Nemeia, o que frechou o sol num arrebatamento de fúria, o que substituiu Atlas, o Titã, enquanto este lhe colhia os pomos, não é um herói só desse tempo.

    Os tempos em que ele se moveu, para dizer melhor, os da U-cronia, persistiram nos sucessores que lhe herdaram os genes e o génio do imaginário. Para Superman, para o herói de O Construtor de Universos (The Maker of Universes), de P. José Farmer, para os “Jedi” de A Guerra das Estrelas, filme realizado por George Lucas, e mesmo para o “cavaleiro” da África fantástica que Burroughs criou em Tarzan dos Macacos, não existe o fim desses tempos – de nenhum tempo.

     “Para eles”, citando ainda Lukács, na mesma obra, “tudo é novo e, todavia, familiar; tudo significa aventura e, todavia, tudo lhes pertence. O mundo e o eu, a luz e o fogo distinguem-se nitidamente e, apesar disso, nunca se tornam definitivamente alheios um ao outro, porque o fogo é a alma de toda a luz e todo o fogo se veste de luz. Assim não há um único acto de alma que não adquira plena significação e não venha a finalizar nesta dualidade […]” (p. 27) e por isso o tempo não existe, ou melhor é um absoluto, criado no espaço pelas suas acções.

    Este universo de que o autor húngaro nos fala magistralmente só na literatura dita “culta”, a dos canonizados deixou de existir. Apenas persiste nos leitores e espectadores de “culto”[1]. Para os heróis de FC ou mesmo para o seu irmão, Tarzan do “planeta África”, o fim da orbe conhecida não significa o alheamento ou a perdição. Para eles é apenas o espaço da aventura e o tempo ali não tem significado. São incomensuráveis porque U-tópicos e como tal são U-crónicos.

    Nenhum deles, evidentemente, resiste à prova da historização à clepsidra da biologia. Héracles é o dos doze trabalhos, não o conquistador que se vincula à história da Grécia e nela procria. São as suas histórias de iniciáticas passagens, sobreponíveis e permutáveis, que fazem dele um corpus heroico, um ser infinito que só se decide a morrer quando a perfídia do Centauro o arranca à pele que era sua, limite do próprio, invólucro que o limitava, como cosmo, no cosmo maior, em intercâmbio, mas sem dissolução.

    gray concrete statue under cloudy sky during daytime

    O próprio retorno cíclico à aventura marca essa eclosão do tempo. Se o passado legendário encerra as indeterminações de  Héracles  no  tempo  da civilização  que o “lê” e nele se podem inserir os feitos sem que a cronologia implique o desgaste da personagem, o mundo moderno, onde vivem os heróis herdeiros da tradição dos trabalhos, põe, por vezes,  o tempo entre parêntesis de forma mais adaptada ao comum consumo  dos romances de aventuras  em  que o  herói  evolui, é marcado pelo tempo, como se vê na sucessão de Dumas e continuadores: Os Três Mosqueteiros, Vinte Anos Depois, O Homem da Máscara de Ferro, talvez pela incitação do romance realista.

    Dessa reintrodução do tempo cíclico no pós-folhetinesco, fala-nos Eco de forma exemplar:

    O Superman não pode consumir-se porque um mito é inconsumível […] deve, portanto, permanecer inconsumível, e, todavia, consumir-se segundo os modos de existência quotidianos. Possui as características do mito intemporal, mas só é aceite porque a sua acção se desenvolve no mundo quotidiano da temporalidade, paradoxo que os argumentistas de Superman têm, de algum modo, que resolver (com) uma solução paradoxal! […] Os argumentistas exco­gitaram uma solução muito sensata e original. Estas histórias desenvolvem-se numa espécie de clima onírico – inteiramente inadvertido pelo leitor – onde aparece de maneira extremamente confusa o que acontecera antes e o que acontecera depois,  e quem narra retoma continuamente o fio da história como se se tivesse esquecido de dizer alguma coisa e quisesse acrescentar alguns por­ menores ao que já dissera.» (1979,  pp.  253, 257-258).

      Não é verdade que também para os feitos de Héracles é indiferente que ele tenha lavado primeiro os currais de Augeias e só depois tenha matado a Hidra?… e não é verdade que, de forma surpreendente, ele nos surge na Gigantomaquia[2] ajudando os olímpicos contra os titãs, paradoxo do tempo como sucessão das clausulas aristotélicas? É essa imagem que nos dá Lacassin do herói da selva fantástica:

    Passando da situação inconfortável das vítimas à altitude do reparador de defeitos, ele conhecerá, neste novo empenho, um campo de acção ilimitado, intrigas renováveis até ao infinito (sublinhado do autor). Sacrificando a afectividade à metafísica, passa a encarnar e a simbolizar a luta contra a injustiça […] Deixando os lugares fechados do melodrama e da vingança ele vai percorrer um universo fantástico povoado de cidades mortas ou luminosas, divindades obscuras e ferozes; fantasmas barrocos e cruéis. […] Antes de percorrer este continente mítico numa busca iniciática, Tarzan, como um cavaleiro sujeito a provas similares, deverá arrancar-se ao contexto familiar e afectivo (sublinhado do autor), despojar-se da existência anterior. É-lhe necessário perder a recordação de tudo o que pudesse evocá-la: título, nome, fortuna, parentes, amigos e inimigos” (1971: 99-100).

    green mountain near cloudy sky

    Que mais será necessário para forjar o herói salvífico à dimensão do cosmo?  Não era essa, também, a obrigação de “jedi” Luke Skywalker de A Guerra das Estrelas para se opor à arrogância do Império, num confronto que envolve o Universo inteiro, com os seus milhões de galáxias? Nesta orbe alargada até aos limites do vislumbre astrofísico o que é o tempo para ele como para qualquer outro “astronauta” da FC senão uma coisa que se atravessa onde a morte não existe, dimensão ínfima de um segundo? Para o homem que viaja à velocidade da luz, acima dela, que vai do “big-bang” à “luz-fóssil”, o sentido da temporalidade existencial não existe. É nesse senti do, creio, que Marie Françoise Dispa, afirma: 

    Na FC os astros representam apenas um dos fins do percurso; eles são, antes de mais, um símbolo da insatisfação eterna do homem. A raça humana mal tinha nascido  já pensava em evadir-se da Terra. Em todos os tempos as estrelas foram objecto de ambição dos homens; e acabaram por as atingir. […] Falta qual­ quer coisa aos homens que eles esperam encontrar nas estrelas. (107-108)”

    Farmer, que foi em toda a literatura de FC que conhecemos o autor que mais se aproximou conscientemente dos ecos que nela emergem dos velhos mitos, especialmente os de Héracles e os de Zeus, não hesita em fazer do seu herói de O Construtor de Universos, o inominável “senhor da fortaleza situada acima das nuvens, suspensa no espaço”.

    Para a ela regressar, depois de um percurso terrestre em que perdeu a memória da origem e atingiu a velhice, o senhor da morada dos imortais tem de atravessar mil aventuras, vencer centauros, titãs e a própria Górgona para recuperar a memória e poder. Escutando ainda M. F. Dispa, que expressamente compara os heróis da FC aos cavaleiros da epopeia medieval na perspectiva de Bédier[3], podemos concluir com ela, acerca do problema da morte nestas fantasias: “O amor, amizade, a ternura, enfraquecidos pela proximidade constante da morte, não podem desenvolver-se num tal estado de coisas… a imortalidade, que cada indivíduo procura com tanto ardor, provoca necessariamente, a mais ou menos longo prazo, a estagnação da espécie humana” (Dispa 114).

    Se o herói (e mais uma vez o revemos como Héracles) opta pela sua humanidade, se esquece a ânsia de absoluto que o levará a desafiar os deuses, os monstros e as distâncias entre os astros, acaba por se entregar, por cansaço, à morre. Não esqueçamos que para Troyes, Percival e Galaaz eram cavaleiros celestes! A FC e todo o sistema que em seu torno se move é, nas ambições astrais, metafísicas e epistemológicas, o processo de um mito, às vezes subterrâneo e subalternizado, mas sempre presente. Como diz Muniz Sodré “pretendemos aqui afirmá-la como um mito vivo e contínuo (ou seja, uma grande “narrativa” constituída e não fragmentada em discursos), um saber que se quer totalizante em relação ao passado e ao futuro” (Sodré, 1973: 107).

    No fundo, na audácia da fantasia, a FC e os heróis que na sua esfera se movem, pelo poder de nomeação, pela capacidade de integração de novos lugares no universo conhecido, o cosmo ilimitado do viajante, conseguem o acro de cosmização de que fala Eliade: “Importa compreender bem que a cosmização dos territórios desconhecidos é sempre uma consagração: organizando o espaço reitera-se a obra exemplar dos deuses” (s/d. [1960?]: 35).   

    Exemplaridade que o herói assume normalmente seguro da sua origem divina, semidivina, maravilhosamente extraterrestre, extraordinário pelo poder da tecnologia ou, ainda, consagrada pela grande Mãe: a Terra/Gea. Como nas escrituras ou no como maravilhoso, o herói quanto mais perto está do super-homem, do semideus, mais certo é ser a sua origem fabulosa, mesmo divina. Novo paradigma em que Héracles ocupa o centro.

    Mas também a ele pertencem Superman, vindo de um planeta de seres que só lá não são excepcionais, e o terrestre Tarzan, originário de uma “raça” de senhores, que, perdido, em criança na selva, se tornou hegemónico entre todos os seres selváticos, incluindo os indígenas humanos. Para não nos alargarmos mais, citamos de Marthe Robert este passo lapidar:

    selective focus photography of boy wearing black Batman cape

    “Estabelecendo uma correlação tão visível entre as calamidades do nascimento e uma carreira abençoada pelos deuses, o conto não faz mais do que seguir a linha de pensamento própria do mito e da lenda, no que esta tem, precisamente, de mais singular. […] O ser privilegiado ao eleito, em virtude de tarefas sobre-humanas, não pode deixar de ser um mal vindo, uma criança abandonada, sacrificada, crivada de golpes por aqueles mesmos que estavam encarregados de a proteger. Não que o herói seja exaltado unicamente por causa da força de que dá provas nas desgraças dos seus começos. Mas porque, sobretudo, expulso de casa é obrigado, dessa forma, a romper os laços de sangue, liberta-se assim das coacções carnais e espirituais que constituem para o homem do comum o essencial da fatalidade” (1979: 55).

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Carlyle, Tomás, 1956, Os Heróis, Guimarães Editores

    Dispa MarieFrançoise, 1976, Héros de la sciencefiction, DE BOECKA, Bruxelles

    Eco, Umberto, 1973 Diário Mínimo, Península, Barcelona

    Eco, Umberto, 1979, Apocalípticos e Integrados, Perspectivas, São Paulo

    Eliade, Mircea (s/d [1960?]) O Sagrado e o Profano, Livros do Brasil, Lisboa

    Grimal, Pierre,1986, A Mitologia Grega, Europa-América, Lisboa

    Lacassin, F., 1971 Tarzan, UGE, col.  10/18, Paris

    Lukács, Georg, 1962, Teoria do Romance, Presença, Lisboa

    Robert, Marthe, 1979, Romance das Origens e Origensdo Romance, Lisboa, Via edit.

    Sodré, Muniz, 1973 A Ficção do Tempo, Vozes, Petrópolis (Brasil)


    [1]Cult Films have limited but very special appeal. Cult films are usually strange, quirky, offbeat, eccentric, oddball, or surreal, with outrageous, weird, unique and cartoony characters or plots, and garish sets. They are often considered controversial because they step outside standard narrative and technical conventions. They can be very stylized, and they are often flawed or unusual in some striking way.” (26/9/2018). É evidente que esta noção é extensível à produção literária e à BD/Graphic Novels

    [2] Súmula unitária coligida a partir de diversos autores, constitui parte da Teodiceia de Hesíodo. “El asalto al Olimpo: La Gigantomaquia“.

    EL MITO Y SUS FUENTES. De acuerdo con Homero1, los Gigantes fueron una raza de hombres salvajes, gobernados por Eurimedonte que habita-ban en la isla de Thrinacia, en el lejano oes-te y que fueron exterminados por su insolencia hacia los dioses. Pertenecen, por tanto, a una tribu ancestral que fue destruida por su soberbia, y no por un combate, que no se cita en los poemas homéricos. La ver-sión más difundida sobre su origen la da Hesíodo, quien les considera seres divinos, nacidos de la sangre vertida en el seno de la tierra, Gea, cuando Urano fue mutilado por Crono. De ellos se dice que son seres enormes, de armaduras lustrosas e ingentes lanzas. Según Píndaro, los gigantes nacieron en los campos Flegreos, en Sicilia, Campa-nia o en Arcadia, y según otras fuentes (Apolodoro, Pausanias, Píndaro o   Estrabón), en Palene (Tracia). Homero y varios escritores tardíos los sitúan en zonas volcánicas, por lo que parece probable que el origen de la historia de los gigantes esté relacionado con una explicación sobrenatural de determinados fenómenos físicos de la naturaleza, asociados con fenómenos volcánicos.

    [3] De origem bretã, passou a infância em Reunião, depois tornou-se professor de literatura francesa da Idade Média. Publicou muitos textos medievais em francês moderno, como Tristan e Iseut (1900), La Chanson de Roland (1921), os Fabliaux (1893). Foi eleito membro da Academia Francesa em 1920.

  • O bem, o mal e o crime: nas sombras do ‘film noir’

    O bem, o mal e o crime: nas sombras do ‘film noir’


    Qualquer tentativa de breve definição daquilo que se entende por film noir corre o risco de ser redutora. Mesmo uma exposição mais alongada, que possa ser inscrita numa revista da especialidade, poderá ser muito insuficiente, ou, se tentar dar uma imagem aberta do conjunto de obras a que se tem chamado film noir, poderá incorrer na superficialidade vertiginosa das referências e alusões, porque esta não podem ser explanadas na continuidade do texto que procura circunscrever o fenómeno.

    Assim, tentando fazer uma breve apresentação do corpus dificilmente discernível e quase impossível de encerrar, buscando, simultaneamente, elucidar um pouco a origem da designação genológica, mostrando como ela se conceptualizou, tombamos na ladeira escorregadia do acto redutor para nos precipitarmos, em seguida, no negrume sombrio e letal de uma referencialidade que pouco mais é do que alusiva.

    Contudo, pelo (pouco) que se exporá em seguida, verificará o leitor destas linhas, eventual espectador empenhado, ou mesmo fanático, que não pode ser de outra maneira.

    De algum modo, embora se constitua como género, enunciando assim a finitude, pelo menos teórica, do corpus a que se refere, o  film noir categoriza muito mais do que aquilo que pode ser entendido como o conjunto, já de si gigantesco, dos filmes que nele se integram. A expressão, que podemos entender como um termo conceptual, liga-se, de modo forte, a um agrupamento de filmes descritíveis como histórias de acção, intriga e mistério, em torno de um ou mais crimes, sendo o (ou os) protagonista potencial vítima de uma urdidura, às quais, mais recentemente, se tem aplicado, também, com frequência a designação de thrillers.

    A conduta criminosa, a acção para a travar e a mente dos antagonistas surgem como centrais para definir os traços fundamentais do conjunto de obras que são a referência fundamental do termo. Mas não é tudo. A síntese que Abílio Hernandez Cardoso faz dos eventos e contextos que originam a designação ajuda-nos, pela sua  justeza e brevidade: 

    Quando, em 1946, Nino Frank utilizou, pela primeira vez a expressão film noir, cunhando assim uma designação que viria a ser adoptado pela generalidade dos historiadores, teóricos e críticos de cinema, fê-lo com a intenção expressa de descrever aquilo que ele entendia representar uma tendência emergente no cinema americano produzido durante a guerra. Nesse verão, em pouco mais de um mês, estrearam-se em Paris cinco thrillers desse período, nos quais Frank detectou um desvio significativo relativamente às normas dominantes do cinema clássico de Hollywood, tanto no campo narrativo, como no temático e estilístico”.[1]

    Se o nascimento do termo fica assim esclarecido, bem como fica aludido o contexto em que é criado, ou seja, o da chegada às salas europeias, particularmente as francesas, do cinema produzido no interior do sistema clássico de Hollywood, em moldes que se apresentam como novidade, seria bom explicitar, desde já, quais os traços que terão impressionado Nino Frank, marcando o género que ele designa por “aventure criminelle”, no título do artigo que publica na revista L’écran français.

    Esse “nouveau genre policier” que, na época, ainda não se designava, nem na totalidade nem em parte, por “thriller”, além de um nome, que lhe foi dado, precisava de ser definido. O que  Frank faz, ao dizer que os filmes surgidos nesse verão, em França, eram policiais com um estilo mais negro, repletos de aspectos visuais apelativos, uma narração complexa e uma forte incidência na psicologia (cf. in Ballinger e Graydon, 2007: 4).

    Posteriormente, a partir desses reparos, os estudiosos foram precisando o alcance e a minuciosidade das características identificadores do género. É a ainda a Hernandez Cardoso que recorremos para sintetizar os traços que os críticos, estudiosos e teóricos foram determinando na produção artística em causa:

    Desses traços, um dos mais frequentemente referidos é o de um estilo visual marcado pela predominância de uma tensão entre luz e sombra, visualmente traduzida no efeito chiaroscuro, e pelo uso frequente de linhas oblíquas e ângulos muito acentuados, que produzem um efeito de desequilíbrio composicional da imagem. Igualmente recorrente é a menção ao carácter sinuoso e complexo dos procedimentos narrativos, onde avulta o uso do flashback e da voz sobreposta. Do ponto de vista temático, os elementos mais valorizados incluem a presença obsessiva de um espaço urbano, nocturno, corrupto e opressivo, bem como a presença de uma nova imagem de mulher, marcada pela assunção uma sexualidade sem remorso e personificada na figura da femme fatale. No centro deste mundo instável, fica reservado para a figura masculina o estatuto ambivalente de herói-vítima. Não admira, por isso, que ao noir se atribua em geral uma visão do mundo eminentemente existencial, aprisionada entre o desejo de valorização da liberdade individual e a noção do carácter inexorável do destino” (2001: 108).

    Para um leitor que não esteja completamente desprevenido, que se mova apenas alguns patamares acima da literacia básica, este conjunto de traços não pode deixar de ser sugestivo. Talvez não todos, imediatamente e em todas as suas extensões, mas, pelo menos, alguns de modo mais ou menos gritante. Segundo o que nos é dado reconhecer, fazendo decorrer alguns conhecimentos que nos foram fornecidos por produções artísticas com as quais convivemos, bem como pelas observações de estudiosos que se têm interessado pelas diversas facetas culturais das quais o cinema emerge e com as quais mantém, ainda hoje, fortes laços de intercâmbios e influências, podemos afirmar que a lista das actividades artísticas e de representação em geral que estão na origem dos traços dominantes que caracterizam o noir é enorme. Tentaremos apresentar algumas delas, muito sumariamente, procurando manter sempre a referência aos elementos apresentados na síntese que acima citámos.

    O efeito central, que dá nome ao fenómeno artístico, o negro, emergente na sua contraposição ao luminoso, decorrente, muitas vezes do modo como os focos de claridade lançam as sombras dos objectos com que esbarram, é central na produção do expressionismo alemão que, como se sabe, foi um dos movimentos ou escolas que, no tempo do mudo, lançou as bases da formação do cinema narrativo cuja dominância fez triunfar a forma de expressão tal como a conhecemos hoje.

    É claro que, se juntarmos a este traço, só aparentemente formal, a presença do tal traço temático do espaço urbano, nocturno, ameaçador e até mesmo aterrorizante, temos a marca influenciadora do próprio naturalismo literário e de certas variantes do gosto popular do gótico. E, se a isso adicionarmos a importância da perspectiva, mais ou menos perturbada pelo medo ou angústia, através da qual esse universo é visto, em imagens que têm, por vezes, a marca imprecisa e alógica do sonho, percebemos como o próprio conhecimento psicanalítico é convocado nestas obras, ainda que nem sempre de modo rigoroso ou, pelo menos, parcimonioso.

    É bom que se note que as variantes francesas da narrativa gótica literária eram incluídas num género designado por roman noir, para o qual muito contribuiu Sade, um autor fundamental para compreender a dialéctica do bem e do mal em que a mulher (ou o homem) fatal e o/a protagonista, vítima ganha todo o sentido, em extensão, aprofundamento e variedade. Será bom lembrar ainda que, mais perto de nós, numa posição de grande proximidade temático formal das obras nucleares daquilo a que se chamou film noir, estão os romances policiais publicados em França numa colecção a que se chamou La Série Noire, fazendo eco do nome da revista americana Black Mask, que tinha publicado histórias do autores que eram nome de referência da colecção francesa.

    Os autores dessas colecções, como não podia deixar de ser, constituíam, quase todos, o cânone de onde saíam os argumentos do filmes mais ampla e unanimemente reconhecidos como noir. No interior do sistema relativamente coeso que era a literatura de massas de então, surgiam em modelos editoriais (colecções, publicações especializadas), como volumes que na Europa se chamavam romances policiais ou detective novels e nos Estados Unidos pulp fiction[2].

    O cânone de que falamos distingue-se, no entanto, da literatura policial tradicional, por secundarizar (ou mesmo anular) o modelo da investigação do crime problema ou do evento mistério (o whodunit), dando toda a ênfase à acção física, e, muitas vezes, à intervenção musculada, à resolução violenta do “mistério”; e fazendo o meio, a psicologia das personagens e os ambientes emocionais sobreporem-se aos espaços quase “experimentais” ou altamente estilizados que o “romance problema” tradicional enfatizava (repare-se, por exemplo, em plantas ou planos de pormenor que S.S. Van Dine fazia das mansões e locais arquitectonicamente nobres, que Philo Vance visitava, os quais quase se assemelhavam a maquetes).

    The Scarab Murder Case (1930): maquete da “casa museu”, o local do crime, p. 34 in https://www.fadedpage.com/showbook.php?pid=2013112 (cons. 21 de Maio de 2018)

    The Scarab Murder Case (1930): maquete da “casa museu”, o local do crime.

    Como diz Chandler, um dos maiores autores, entre os que incrementaram a junção do policial com o noir:

     “O realista do crime escreve sobre um mundo em que gangsters podem dirigir nações e quase governam cidades, em que hotéis, prédios de apartamentos e restaurantes famosos pertencem a homens que fizeram dinheiro com bordéis, em que uma estrela de cinema pode denunciar [o gang], e o homem de aspecto decente do fundo do corredor é o patrão do jogo clandestino; um mundo onde um juiz com a cave cheia de bebidas alcoólicas de contrabando pode mandar um homem para a cadeia por ter uns decilitros no bolso; onde o Presidente da Câmara duma cidade pequena pode, por dinheiro, ser cúmplice dum assassínio; onde ninguém pode passar em segurança numa rua escura, porque a lei e a ordem são coisas de que falamos mas evitamos praticar; um mundo onde é possível assistir-se a um assalto à luz do dia e ver quem foi, mas desaparecer rapidamente no meio da multidão sem contar a ninguém, pois os assaltantes podem ter amigos com armas de cano comprido ou a polícia não gostar do testemunho e, em qualquer dos casos, o advogado venal da defesa pode sentir-se autorizado a abusar e a enxovalhar uma pessoa em pleno tribunal, perante um júri de mentecaptos seleccionados, sem outra oposição da parte do juiz que não seja uma admoestação de circunstância, porque o cargo de juiz é um cargo político”(2012: 73).

    Quanto ao aspecto eminente e criativo da sintaxe narrativa que a nova “escola” de cinema apresenta, podemos dizer que ela assenta em dois aspectos fundamentais da construção do relato ficcional: na simultaneidade de dois registos de enunciação, o da focalidade da câmara e o da voz off, sendo que o registo oral é, quase sempre, homodiegético ou mesmo, mais “poeticamente”, autodiegético (ficando o registo marcadamente extradiegético – de feição heterodiegética ou “autoral”, ou de marca autodiegética, rememorando eventos acentuadamente revolvidos e já distanciados – para o efeito documentário, que muitas vezes emerge, por exemplo, em Anthony Mann); e a manipulação da continuidade cronológica, sobretudo pelo efeito de flashback ou analepse, introduzindo a importância do ponto de vista narrativo, dos processos de rememoração (a memória, a recordação, o inconsciente…) e a multiplicidade dos pontos de vista, quer pela intervenção de vários relatores de acordo com um inquérito (Citizen Kane é um modelo) quer pelo modo como uma rememoração ou confissão altera os factos ou a ordem destes (À Beira do Abismo, por exemplo).

    Já se vê que, uma tal organização poética do discurso narrativo associa esta nova produção, mesmo nalguns casos de obras mais populares, às tentativas das vanguardas literárias modernistas para renovaram os processos narrativos.

    Citizen Kane, de Orson Welles (1941)

    E, por outro lado, é de reconhecer, dentro da mesma ordem de ideias, que a entidade masculina (mas a feminina também, por vezes, como acontece em Whirlpool –1949 – de Otto Preminger) nestes filmes toma o lugar fundamental para o funcionamento do mecanismo melodramático da ficção gótica ou do roman noir francês: ser objecto de uma conspiração, vítima de uma conjura ou de um equívoco legal, situação da qual só pode sair (e esse é, por vezes, o tema da fábula contada) batendo-se pela verdade, ou seja tornando-se herói. Contudo, no mais típico noir, essa atitude de luta nem sempre é assumida.

    The Killers (1946) de Robert Siodmak é, talvez, um dos exemplos mais acabados do puro noir, no sentido de ser uma das obras que assume integralmente quase todos os traços considerados nucleares do género. O protagonista acossado pelo infortúnio e os próprios fantasmas, a vamp implacável, o tom nocturno e asfixiante do espaço urbano, a violência e a criminalidade, o recurso ao flashback para apresentar a crónica da queda de um boxeur e também o próprio funcionamento do psiquismo do jornalista, oscilando entre a reconstituição equilibrada e racional e a evocação quase fantasmática do universo que reconstitui, são os aspectos mais marcantes do filme.

    Burt Lancaster e Ava Gardner em The Killers de Siodmak (1946)

    Trata-se de um nos mais célebres e carismáticos film noir, inspirado numa breve história de Ernest Hemingway, o qual tem como figura central uma  personagem recorrente nos seus contos, e com certos aspectos de alter ego autoral,  Nick Adams,  que, em jovem, num bar, teria ouvido uma conversa entre dois assassinos profissionais, os quais pretendiam abater um indivíduo que, segundo é sugerido no diálogo,  teria ganho “indevidamente” um combate de boxe. Embora elíptica, a história parece ter origem nas próprias vivências de Hemingway, como repórter, em Chicago.

    Reign of Terror (ou The Black Book 1949), de Anthony Mann, foge, aparentemente, à configuração central que permite identificar o espécime como membro da família noir.

    Contudo, a visão “actual” que lança sobre o conturbado período do terror da revolução francesa, o modo como convoca os mecanismos da intriga e da suspeita num universo asfixiante da metrópole moderna em nascimento, restaurando um universo ficcional muito caro ao gótico e ao roman noir francês, tornam este filme uma peça especial que os amantes e especialistas têm incluído no corpus, com tanta mais razão quanto o seu autor, Anthony Mann, é uma das figuras centrais do panteão canónico que lançou os fundamentos do “género”.

    The Killing (1956), de Stanley Kubrick, é um dos mais tardios espécimes que os especialistas incluem no cânon nuclear do film noir. Essa sua chegada em fase já avançada da produção americana do “género” em questão cria, em relação aos seus antecedentes, uma certa distância (que envolve ironia e distanciação), que é perceptível logo a partir do jogo de sentidos que se gera entre o título e os desenlaces dos destinos fatais de cada um dos intervenientes no golpe. De facto, se killing designa, além do sentido primeiro, matança, talvez numa fixação catacrética, a palhaçada, o espectáculo e, até, o sucesso financeiro, o certo é que os membros deste ataque, cujo chefe, para aparecer como assaltante “visível”, faz uso de uma máscara quase surreal de palhaço, acabam mortos ou vencidos[1].

    Contudo, esta é uma das obras mais persistentemente mantidas no grupo nuclear do cânone pelos especialistas, devido à estrutura narrativa em flashback, em virtude da violência patenteada, pelo desnorte existencial das personagens que, não sendo profissionais do crime, escorregam para o abismo da fatalidade, arrastadas pelo sedutor plano de um experiente fora-da-lei, e também, mais particularmente, pela relação de fatalidade amorosa que uma das personagens mantém face à sua amada infiel, pela utilização da câmara subjectiva sobretudo no acompanhamento deste duplo perdedor (na acção criminosa e no amor) e pelo uso altamente estilizado do contraste de sombras e luz, de branco e de preto sobretudo na expressão dos clímaxes emocionais e afectivos.

        

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Ballinger, Alexander e Danny Graydon, 2007, The Rough Guide to Film Noir, Rough Guides, London

    Cardoso, Abílio Hernandez, 2001, “Subjectividade, desejo e morte no film noir americano” in Villas-Boas, Gonçalo e Maria de  Lurdes Sampaio, Crime, Detecção e Castigo, Granito, Porto

    Chandler, Raymond, 1969, “The Simple Art of Murder” in Pearls Are a Nuisance, Penguin, London

    Chandler, Raymond, 2012, “A Arte Simples do Assassínio”, tradução de Carlos Leite, in Sampaio, Maria de Lurdes e Gonçalo Villas-Boas, Ficção Policial – Antologia de Textos Teóricos, Afrontamento, Porto


    [1] Os filmes em causa foram: The Maltese Falcon de John Huston (1941), Murder, My Sweet, de Edward Dmytryk, Double Indemnity, de Billy Wilder, Laura, de Otto Preminger e, The Woman in the Window, de Fritz Lang, todos de 1944.    

    [2] The Black Lizard Big Book of Black Mask Stories, era como se chamava a primeira colecção, editada a partir de 1920 saída da Pulp fiction magazine, Black Mask, na qual aparecerem dois romances completos. O de Hammet ainda hoje é célebre.

    [3] killing (ˈkɪlɪŋ) adj 1. informal very tiring; exhausting: a killing pace .2. informal, extremely funny; hilarious. 3. causing death; fatal. n 4. the act of causing death; slaying5. informal a sudden stroke of success, usually financial, as in speculations on the stock market (esp in the phrasemake a killing)ˈkillingly adv  Collins English Dictionary – Complete and Unabridged, 12th Edition 2014 © HarperCollins Publishers 1991, 1994, 1998, 2000, 2003, 2006, 2007, 2009, 2011, 2014

  • O realismo e o crime

    O realismo e o crime


    Sem dúvida, as dificuldades de uma aproximação relativamente ao REALISMO enquanto conceito, e sobretudo no campo da expressão artística, são problemáticas. Como categoria epistemológica ele teria as suas exigências de rigor relativamente à arte e seria uma forma de normatização do trabalho das “práticas significantes”.

    Entre parêntesis, anotamos quanto é discutível, debatível nos seus pressupostos essenciais, a própria teorização desse real: Lukacs, por exemplo, um dos últimos grandes teorizadores das poéticas realistas herdadas das perspectivas teóricas e práticas do século XIX (Balzac, Dickens, Zola)  procurava cingir a expressão aos elementos de referência, a um real exterior ao texto,[1] muitas vezes pela “preocupação do «documento», de uma história real, ou mesmo de um romance de chave interpretativa”, apresentação do mundo em “quadros” de “paisagens bem como de pessoas” ou “anotações, registos de fenómenos tal como surgem” e também pelo “gigantesco esforço de classificação que organiza” a ficção “em função dos lugares, das classes, das profissões, dos sexos” (cf. Tadié, 1970: 76-79).

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    Mas, por outro lado, uma perspectiva linguística, ou uma semiótica, em muito devedora à tradição saussuriana, reclamaria, com pertinência, a consideração em que teríamos de tomar a própria materialidade dos elementos expressivos, enquanto constituintes desse mesmo real.

    Estes, dada a sua própria existência objectiva, produzindo o sentido pelo significado lhes atribui o uso da linguagem no constante de relação referencial e contextual, possibilitariam uma formação de mensagens relevando de códigos bem definidos; uma vez que, esses sim, condicionariam uma noção de real resultante do próprio acto de comunicação; a ignorância deste último aspecto viciou, em muitas ocasiões, os próprios termos de importantes debates em torno da arte, por ter minimizado a importância da dimensão semântica, que relaciona uma representação com o representado, através dos signos que emprega. 

     O realismo, como escola, instituindo um programa poético, seria uma das muitas determinantes e condicionantes dos códigos nos quais se inscrevem e aos quais se subordinam as mensagens artísticas.  De facto, para os escritores europeus de finais do século XVIII e, sobretudo, os romancistas do século XIX, como para os seus leitores, o realismo na literatura obedece a um ideal e tem as suas normas: a convicção que os elementos construídos pela nossa percepção, a partir dos dados da sensação, tal como foi teorizada pelo sensualismo[2] do século XVIII são fiáveis, pelo que permitem a representação fiel do real, e um discurso verídico que tem as suas regras próprias de verosimilhança.

    man in white long sleeve shirt driving car

    Resulta desse facto que, para os teóricos da literatura, bem como os de outras expressões artísticas, a partir dessa época, mas, sobretudo,  de meados do século XIX em diante, até aos nossos dias, o realismo é um estilo literário, ou de produção semiótica,  entre outros, com características próprias, que devem produzir uma espécie de efeito de transparência, de tal modo que, na leitura das obras realistas, o leitor deve ter a impressão de que  está perante um discurso que nos coloca em contacto imediato com o mundo como ele é, camuflando ou ocultando a evidência da sua própria presença enquanto texto.

    Posto isto, para retomarmos a narrativa policial como objecto central em relação ao qual a problemática do realismo se põe, queremos comentar, resumida e muito esquematicamente, uma pequena frase em epígrafe a um livro de contos policiais de um autor português, Lima Rodrigues que assim diz: “Dada a falta de ambiente nacional para certos contos aqui apresentados, recorri, por vezes, a locais e nomes estrangeiros.

    Situá-los em território nacional, com nomes e ambientes portugueses, seria tirar-lhes aquele cunho de realidade que só o ‘clima’ que não o nosso lhes poderia dar”. O livro referido é:  Histórias que eu não contei (edit. Europa-América/Livros de Bolso, 1965, com prefácio de A. Varatojo).

    Repare-se como a noção de realismo, para que a expressão “cunho de realidade” remete, sem ambiguidade nem equívoco, depende de um “clima” cuja escolha é primordial para   a recriação de uma ficção. Não é de estranhar que este pequeno texto epigráfico, liminar (em relação paratextual, como diria Genette) em posição sobredeterminante dos conteúdos do livro, como enunciado explicativo prévio, estivesse de acordo com um outro de inspiração platónica que citamos em segunda mão: “A verdade não faz as coisas senão como elas são, e a verosimilhança fá-las como elas devem ser.

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    A verdade é, quase sempre, defeituosa, pela mistura de condições singulares que a compõem. Não há nada que, ao nascer no mundo, não se afaste da perfeição da sua ideia. É preciso procurar os originais e os modelos na verosimilhança e nos princípios universais das coisas onde não entre nada de material e de singular que os corrompa”. O realismo, antigo e moderno, cai muitas vezes nesta tentação de universalização de que o texto que acabamos de referir, de René Rapin, extraído do seu livro, Reflexions  sur la Poétique, datado de 1674 (cit. in Genette, 1968: 6), é a  sincera teorização.

    O verosímil, como conceito que exprime a regulamentação do real de acordo com a ideia e a ideologia em sentido lato (concepção do mundo) e, eventualmente, com a ideologia em sentido estrito (convicção ou crença), é muito importante para a compreensão dos mecanismos a que presidem à factura dos romances policiais.

    Assim, tornou-se frequente o entendimento fascinado da ficção policial, pelo que é comum o comentário espontâneo do leitor de romances, ou do espectador de filmes, policiais, após  o final dos mesmos:  “Ora…, não  era lógico que o assassino (ou a vítima, ou o polícia)  procedessem  desta maneira… no lugar dele eu faria…”, como se os factos reportados fizessem parte de um estado de coisas  compatibilizado com a opinião ou convicção de quem lê, dependendo das crenças do leitor a aceitabilidade do exposto. 

    Como género ou variante temática, o romance (ou o filme)[3] policial tem os seus modelos. Mas, modelos, não quer dizer imposição para mera reprodução das obras exemplares. Ao contrário de outros modelos de narrativa realista, sobretudo daquela que é reconhecida como verosímil por se cingir a uma realidade consensual, que constituirá a base de uma convicção generalizada, misto de concepção do mundo e de corresponder ao credível, o policial precisa de instaurar o mistério como tema central e a sua descoberta o corolário.

    man in black and white crew neck t-shirt wearing black cap

    Assim, o autor, “até ao último momento, não deverá revelar o nome do culpado” (Todorov, 1968: 145); no entanto, como nota ainda Todorov, para respeitar essa regra, relativa ao mistério, que é o modelo dominante, como particularidade da categoria sequencial do processo narrativo, complicação, o autor tem amplas possibilidades de variação.

    De facto, a identidade do criminoso pode manter-se misteriosa de diversas maneiras: era a mais insuspeita das pessoas, ou era um dos suspeitos que apresentou um falso álibi, aparentemente verídico, ou era alguém que não tinha sido considerado a candidato a suspeito. Mas a categoria mistério pode ser desenvolvida noutra dimensão, como o faz, por exemplo, Ruth Rendell, ao tornar misterioso o processo que levou ao acto de matar dando logo na primeira frase a causa do crime: “Eunice Parchman killed the Coverdale family because she could not read or write”; toda esta narrativa romanesca de Rendell se centra no processo da formação do carácter da criminosa a partir da sua obsessão em ocultar o facto de não saber “ler nem escrever”.

    A mediocridade que podemos sentir em algumas narrativas policiais ou de mistério não tem a ver, essencialmente, com a qualidade de escrita ou com os processos estilísticos conotados com o valor da literariedade, uma vez que estes, como acontece com a narrativa literária em geral, mas sobretudo a romanesca, não se revelam, aí, com a mesma pertinência com que são arvorados no texto de feição lírica.

    A fragilidade poética do texto policial é sentida, sobretudo, quando a organização da intriga, elemento constitutivo da narrativa que, no caso do policial, assume posição hegemónica, não elabora com rigor os seus contornos de mistério, que devem ser surpreendentes, mas não excessivamente rebuscados, sendo o equilíbrio dessa polaridade, entre o monótono e o aparatoso, a pedra de toque da elaboração do verosímil policial. Introduzir a analepse, de modo formalmente elaborado, pode ser a dimensão em que o golpe de mestria se revela. Todos o usaram, mas cada um dos mais aclamados mestres do género o fez de modo diferente.

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    Por exemplo, Holmes, usa muitas vezes, um resumo epigonal, quase em modelo de post-scriptum, pós epílogo, no qual lança todas as luzes sobre o mistério que acaba de explicar e resolver, ao seu parceiro, Watson; Poirot é mestre nas confissões obtidas, em narrativas quase finais, da boca dos suspeitos, às quais acrescenta as suas correcções; Marlow usa os desabafos afectivos em que faz o seu libelo acusatório.

    A chateza muitas vezes sentida em relação a alguns exemplares deste modelo romanesco resulta, de facto, a de o autor não conseguir superar, pelo menos em parte, os dados anteriores, ou seja, já realizados, do género, mas sempre, a partir deles, ter em conta os elementos formais do conteúdo e da organização da narrativa, já executados por outros criadores do género, reconhecidos como mestres. É claro que esse trabalho de inovação na continuidade se processa como um jogo, entre o autor e o leitor, que procura alcançá-lo, na sua mestria de inovação.

    Mas, para que o jogo se processe, para que o leitor o aceite, é necessário que o verosímil seja dado, desde o início, como base de credibilidade, dentro da qual o crime surja como improvável no quadro geral das convicções generalizadas na comunidade de partilha dos conhecimentos.

    Segundo Todorov, no mesmo texto, “O detective deverá apoiar-se, no seu discurso[4] final, sobre uma lógica que porá em relação os elementos até então dispersos; mas esta lógica releva de uma possibilidade científica e não do verosímil. A revelação final deverá obedecera dois imperativos: ser possível e ser inverosímil” (T. Todorov, 1968: 146).

    Para darmos um caso, diversificadamente repetido, que se tornou um dos topos mais célebres da literatura policial, o enigma do quarto fechado, podemos dizer que a evidente impossibilidade de alguém aparecer morto por um golpe humano, dentro de um quarto fechado, de onde desaparece, também, o instrumento letal, é inverosímil, mas não impossível, de um ponto de vista epistemológico que tenha em consideração as mais elaboradas conjecturas. Como, aliás, o demonstra o imenso número de célebres variantes, que vão desde os mais carismáticos fundadores do género, como Poe ou Gaston Leroux, até aos mistérios de John Dickson Carr/Carter Dickson.

    black and red rod in tilt shift lens

    E, para que este inverosímil surja, necessário se torna que o contexto narrativo apareça como verosímil. E como surge esse contexto narrativo verosímil no romance policial?

    A resposta a esta pergunta para ser correcta, e não surgir grosseiramente, com uma carta que se tira da manga, deveria ser morosa e pormenorizada. Deveria surgir, por exemplo, através uma análise das condições que produziram o universo de uma grande burguesia abastada que regulava um universo de estabilidade doméstica, dentro do qual a lenta e ordeira investigação do romance problema era verosímil e que, a partir dos anos trinta e da agitação financeira que acabou por conduzir à Segunda Guerra Mundial, deu lugar a uma nova ordem do mundo capitalista, em que os romances da série negra adquiriram os seus próprio contornos de verosimilhança. É claro que tudo isto não se fez sem um apoio das maquinarias gigantescas da informação.

    Como nos lembra Michel de Certeau, o real institui-se, a partir de meados do século passado, como a ordem natural das coisas: “O grande silêncio das coisas transformou-se no seu contrário através do media. Outrora constituído em segredo, passou a ser tagarela. Abundam, por toda a parte, notícias, informações, estatísticas e sondagens. […] A narrativa de tudo o que se passa constitui a nossa ortodoxia” (1990: 270).

    Cingimo-nos, por isso, a uma ou duas sugestões, relativas ao verosímil que rege a narrativa policial. Em primeiro lugar, recorremos, ainda, ao mesmo texto de Todorov: “Apoiando-se no anti-verosímil, o romance policial caiu sob a lei de um outro verosímil,   o  do seu próprio género” (1968: 146).

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    A partir deste ponto, compreendemos o campo de limitações que originam a carência desta literatura em Portugal:

    1º – A inexistência de um público leitor alargado, até ao terceiro quartel do século passado, incentivando o desenvolvimento de uma imprensa dita popular ­­;

    ­2º – A falta de uma  tradição romântica em que o romance de mistério  tenha ostentado a existência de modelos de  suspense como os que foram desenvolvidos nos espaços culturais anglo-saxónicos e, até certo ponto, franceses, criando a base que o romance de investigação vai retomar como apelo ao interesse de um público leitora alargado;

    3º – A não existência, entre nós, até quase aos nossos dias, de uma informação noticiasse o crime dando-o como um acontecimento possível, nas suas diversas fases, sob forma escrita de apresentação factos ocorridos.

    O texto de Viollette Morin, que em seguida apresentamos, nunca se poderia aplicar ao   jornalismo português, tal como foi praticado até à queda do regime salazarista: “A narrativa do assalto à mão armada é o relato de um roubo invertido. Ela desenvolve um espectáculo que se torna inverosímil desde que puxemos até aos limites da sua maior verosimilhança: a realidade da vida.

    Nenhuma reconstituição romanesca de piratas ou de gangster lhe é comparável. Mal ou bem armado, infame ladrão ou gentleman-gatuno, o romanesco coloca em evidência o seu eixo de oposição maléfica. De qualquer dos lados, ladrão ou roubado, que esteja o Bom contra o Mau, a verosimilhança mantém-se defensiva.

    man in blue denim jeans and blue shirt walking on pedestrian lane during daytime

    Um tem razão, outro não tem. Este é o seu código romanesco a sua legibilidade. Ao contrário, com a restituição da realidade, agarrada na vivacidade do seu movimento, esse código não tem mais lugar” (1968: 97-98).

    Como se vê, se o romance romântico de mistério inspirou a ficção policial de investigação, ou melhor, lhe forneceu alguns dos seus parâmetros de credibilidade, entre provável e o possível, não foi essa a única fonte escrita dos modelos romanescos, a única matéria fabulatória verosímil com a qual o romance policial se confrontou.  E a América. com a sua Série Negra tem ido buscar à técnica jornalística a inspiração para muitos dos seus mais brilhantes clássicos da literatura policial (veja-se um Hammett, por exemplo).     

    E claro que o cinema, de cariz policial ou noir tem gozado do benefício oriundo da mesma fonte. É esta tradição escrita, cuja carência em Portugal é notável (de Camilo a Reinaldo Ferreira, passando por Eça/Ramalho, são pouco mais de uma dezena de títulos a inserir-se na tradição da narrativa de dominante mistério/crime/investigação), o grande manancial onde o jogo poético, ou mecanismo ficcional, do género policial se enforma. A partir de dados de uma escrita que são outros tantos mais de um código que é o de um género narrativo (romanesco e cinematográfico).

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Arvon, Henri, 1970, Lukacs, Estúdios Cor, Lisboa

    Genette, Gérard, 1968, “Vraisemblable et motivation”, in Communications, nº 11, pp. 5-     21, Seuil, Paris

    Lukacs, Georg, 1974, Écrits de Moscou, Éditions sociales, Paris

    Lukacs, Georg, 1975, Problèmes du réalisme, L’Arche Éditeur, Paris

    Morin, Violette,1968, “Du larcin au Hold-up”, in Communications, nº 11, pp. 91-98, Seuil, Paris

    Tadié, Jean-Yves, 1970, Introduction à la vie littéraire do XIXe siècle,Dunod, Paris

    Todorov, Tzevetan, 1968, “Du vraisemblable que l’on ne saurait éviter”, in  Communications, nº 11, pp. 145-147, Seuil, Paris


    [1] O realismo, segundo Lukacs, resulta, sobretudo do modo de o escritor colocar as suas personagens, sobretudo os protagonistas, numa relação com o real, referencial e contextual, empiricamente aceitável de concretismo positivo, face ao emergir fenomenal, mas, além disso em confronto dialéctico com esse mesmo real:“A «vitória do realismo» é sempre a vitória do real; uma vitória sobre as restrições erróneas, os preconceitos, as representações incompletas [e] quando, no processo de reflexo literário da realidade, o pensamento e o ser entram em contradição, [o escritor autêntico] tem a suficiente capacidade, coragem e sinceridade para se colocar, sem reservas, do lado da realidade — na sua actividade de figuração — e para deixar ao factos da vida refutar as suas própria ideias”(Lukács, 1974: 144); “A generalidade em Balzac é, pois, sempre concreta, real, conforme ao ser. Assenta principalmente na profunda concepção daquilo que é típico nas personagens individuais. Assenta na profundidade que, por um lado, longe de apagar ou suprimir o individual, pelo contrário, o sublinha e o torna mais concreto, e que, por outro lado, faz surgir as relações do indivíduo com o seu meio social, de que é o produto, no qual e contra o qual age, de uma maneira muito complicada, mas, contudo, inteligível” ( Lukacs, in Arvon, 1970: 202); “A relação do homem com mundo exterior e a energia humana em luta com o mundo exterior, só podem exprimir-se pela figuração real de uma luta” (Lukacs, 1975: 173). Com este horizonte teórico, Lukacs propõe-se corrigir as limitações que designa por esteticistas, dos realistas de procedimentos de representação mais formais, como por exemplo o naturalismo de Zola e o modo de este encarar a representação do mundo real: “O interesse já não está no interesse d(est)a história; ao contrário, quanto mais banal e geral ela for, mais ela se tornará típica. Fazer mover personagens reais num mundo real, dar ao leitor um farrapo da vida humana, todo o naturalismo está aí. […] O sentido do real só se torna absolutamente necessário quando está em causa o pintar da vida” (Zola, 1971: 215-216). Será interessante notar, dentro do quadro destas concepções, com alguns pontos de antagonismo motivadas por posicionamentos ideológicos, como o POLICIAL parece harmonizar os dois pontos de vista: ele faz apelo à importância da luta (Lukacs) pela prática do investigador na descoberta da verdade, e à dimensão da pintura (Zola) pelo que actividade da descoberta da verdade reside na qualidade do olhar que divisa os índices no interior das paisagens. O último excerto de Lukacs que apresentámos é tirado de um texto intitulado “Narrar ou Descrever”, que será sempre de grande utilidade ter presente, como instrumento teórico, do romance policial e da narrativa noir, em geral, quer literária, quer cinematográfica quer ainda de BD (temos em mente, sobretudo, uma narrativa do género daquela que foi criada pelo génio de Alex Raymond e Ward Green em Rip Kirby).[

    [2] Designação que se dá a uma doutrina (Locke, Condillac) segundo a qual todos os conhecimentos e todas as faculdades do espírito decorrem da sensação, sendo todo o conteúdo do espírito humano produto da experiência, ou seja uma forma de empirismo.

    [3] Reportando-nos à mais consensual distinção, que reconhece ao romance maior adensamento do universo diegético ou ficcional e, à novela, um maior desenvolvimento de peripécias e acções sucessivas e/ou paralelas, podemos dizer que as narrativas de Agatha Christie ou Raymond Chandler são romances ainda que de diferentes pontos de vista éticos e ideológicos, enquanto Edgar Wallace e Sapper se aproximam se aproximam mais do ritmo da novela. A nossa designação básica para uma narrativa mais ou menos alongada no tempo e no espaço é romance, como a anglo-americana é novel (que tem a abrangência conceptual do nosso romance), em espanhol é novela e em francês é roman. No cinema, a narrativa policial é, por norma, de ritmo mais marcadamente novelesco, o que se percebe comparando, por exemplo, a austeridade de cenários (ou décors) e ambientes sociais em The Big Sleep (1939) de Chandler com o filme, aliás excelente, de Hawkes, que adapta o romance, em 1946, conservando, dele, sobretudo, as grandes linhas da intriga. A mais impressionante narrativa cinematográfica dentro das grandes linhas do género, ainda que de tónica mais criminal do que detectivesca (o que se chamou, entre nós, filme de gangsters) de construção diegética romanesca, quase em tom de romance de  formação, ou de aprendizagem é, sem dúvida,o Once Upon a Time in America (1984) de Sergio Leone. Mas é preciso atenção a avaliar os textos policiais genologicamente porque, nas traduções, são muitas vezes as adaptações simplificadoras que prevalecem. Em O romance policial em português na década de 50 – da tradução: fugas, atalhos e desvios, parágrafo 1.3, do capítulo “Questões de Ordem Teórica”, acessível em ACDEMIA.EDU,  Maria de Lurdes Sampaio dá-nos um breve quadro das manipulações feitas pelos tradutores portugueses dos romances policiais, sobretudo anglo-americanos e, muito em especial, os de Chandler, em que nos parece que os textos usados pelos “transpositores” lusos  foram mais os do script do argumento para adaptação, do que os dos originais literários. 

    [4] A reunião final de Poirot, que herda o modelo das considerações finais de Sherlock Holmes, por vezes, em confidência, ao seu amigo Watson Agatha Christie criou, também uma imitação de Watson, em Hastings, que, contudo, não se manteve constante em todas as aventuras de Poirot.

  • E a grande novidade da Feira do Livro de Lisboa (ao ar livre) é… a ausência de máscaras

    E a grande novidade da Feira do Livro de Lisboa (ao ar livre) é… a ausência de máscaras

    Desde 2020, a Feira do Livro de Lisboa foi “empurrada” para Agosto. Depois de fortes restrições nas úlltimas duas edições, abriu ontem a 92ª edição. Há muitos livros, encontros com autores e muitos comes-e-bebes. Só faltam mesmo as máscaras, que não deixam saudade.


    Já foi na Primavera, com chuvadas à mistura, agora tem sido em pleno Verão, mas é uma tradição incontornável em Lisboa. A caminho do centenário, ontem, abriu a 92ª edição da Feira do Livro, em pleno Parque Eduardo VII.

    Embora o panorama sócio-económico actual seja de crise e inflação, a Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL) promete que esta, sim, será a maior de sempre: 340 pavilhões e 140 participantes, entre grandes grupos editoriais, pequenas editoras e mesmo alfarrabistas.

    Ontem, na inauguração, a maior diferença que saltou à vista, face aos dois anos anteriores, não foram os livros, nem as roulottes com comida, nem a presença já habitual do presidente da República. Foi sim uma ausência face às duas edições anteriores (2020 e 2021): a máscara facial. Além de todas as outras medidas como a entrada condicionada ou o álcool gel.

    A “normalidade” tem-se vindo a recuperar aos poucos e os corredores da Feira comprovaram-no. Poucas foram as máscaras, muitos os livros.

    Longe de estarmos perante uma canícula, pela tarde de ontem o fluxo de visitantes ainda era moderado, e concentrava-se não tanto nos pavilhões, mas nas sombras das árvores. E também, sem surpresa, nas zonas dos “comes e bebes”, incluindo bancas de gelados, mais apetecíveis que um Prémio Nobel.

    Mas não apenas de livros viverá esta feira. Estamos perante um evento cultural em que haverá workshops, debates, showcookings – que foram interrompidos durante a pandemia – e as costumeiras sessões de autógrafos para todos os gostos e feitios. Os fins-de-semana são garantidamente os dias com maior concentração de autores para dois dedos de conversa – às vezes nem isso, se a fila for grande para os mais populares – e uns autógrafos da praxe.

    Um colaborador da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, que já representa a marca na Feira do Livro de Lisboa há seis anos, disse ao PÁGINA UM que a afluência de visitantes estará agora próxima da realidade pré-pandemia. “Nota-se uma clara diferença em relação aos últimos anos, as pessoas estão mais descontraídas e não têm tanto medo de mexer nos livros”, reconheceu Gonçalo Silva.

    Junto aos stands do grupo editorial Penguin Random House, o testemunho de outro vendedor também foi positivo. João Alves, um estreante a trabalhar nesta edição, assegurou que, apesar de ser esperada uma maior afluência ao final da tarde, logo nas primeiras horas da manhã “as vendas correram muito bem”.

    Este será o terceiro e último ano em que a Feira do Livro decorre na recta final do Verão (em Agosto e Setembro), ainda no decurso das medidas impostas no âmbito da pandemia. Em 2023, o evento voltará a realizar-se de acordo com o calendário habitual – entre Maio e Junho. Na cidade do Porto, por sua vez, a sua Feira inicia-se hoje.

  • Almeida Faria

    Almeida Faria


    Quando, em 1962, Almeida Faria, nascido em 1943, publicou o seu primeiro romance, Rumor Branco, a opinião da crítica em geral foi a de um entusiasmo sem reservas. Não existe uma só nota de reserva, entre os vários comentários que, por essa altura, eram dignos de respeito. Entre os leitores mais atentos de então o romance foi considerado uma obra profundamente inovadora nas nossas letras.

    A maior parte dos estudiosos e críticos que, na década de 60, deixaram a sua opinião registada sobre o primeiro texto que Almeida Faria publicou, contam-se leitores exigentes como Vergílio Ferreira, Alexandre Pinheiro Torres e Leodegário de Azevedo Filho. Não obstante a frontalidade com que os dois primeiros discordavam, por razões históricas e culturais várias e complexas, ambos colocaram, desde logo, o romance Rumor Branco entre as grandes obras que aquela década vira nascer.

    Almeida Faria nasceu em 1943.

    A Sociedade Portuguesa de Escritores atribuiu-lhe, nesse mesmo ano, o Prémio Revelação. Na sua apreciação do mesmo texto de Almeida Faria, publicado alguns anos mais tarde, Leodegário de Azevedo Filho afirma: “Rumor Branco é, antes de tudo, uma experiência de linguagem, colocada em plano estético e capaz de trazer novas energias ao género”.

    O carácter profundamente inovador das narrativas de Almeida Faria, que publicou o romance já referido com 19 anos de idade, foi sobejamente enfatizado por Vergílio Ferreira, e confirmado por Óscar Lopes no prefacio ao segundo romance do jovem autor, A Paixão,publicado três anos depois. Uma assimilação profunda, inteligente e criativa dos mais ousados códigos regeneradores criados pela narrativa modernista que então se colocava na vanguarda, era reconhecida por todos os críticos e historiadores literários de então.

    De facto, embora se situasse abertamente num campo temático e de referências através do qual os seus romances se mantinham próximos do neo-realismo, Almeida Faria desenvolvia francamente a sintaxe narrativa e a perspectiva lírica da enunciação romanesca segundo novas influências onde se destacavam sobretudo os processos de criação poéticos típicos de Proust, de Joyce, de Faulkner e de alguns mestres do nouveau roman.

    Embora a vertente lírica da narração tivesse sido o aspecto que mais marcou a sua escrita nos primeiros textos que publicou, aspecto que, provavelmente, terá levado Vergílio Ferreira prefaciar-lhe a primeira versão de Rumor Branco, a criação poética de Almeida Faria não se manteve numa fórmula fixa de procedimento romanesco.

    A revisão profunda que faz ao seu primeiro romance e a escrita de Cortes, romance onde parece desenvolver uma deliberada secura verbal por oposição à discursividade através da qual a dimensão passional e irracionalizante se tornava dominante na sua primeira produção romanesca, revelam uma preocupação do escritor em renovar a sua poética.

    Essa nova fase de escrita, que ele assume como “libertina”, expressa como programa mais evidente a vontade de retomada de valores filosóficos e estéticos que se reportam à grande produção romanesca do século XVIII.

    Rumor Branco foi publicado originalmente em 1962.

    Está em causa, evidentemente, um programa de criação poética que, sem se ligar excessivamente à tradição mais banalizada do realismo, na continuidade do romance realista oitocentista, retome alguns dos processos esquecidos das fontes do racionalismo europeu, funda a modernidade, com duas linhagens que o modernismo esqueceu: a do romance de aprendizagem e a da narrativa libertina.

    Nesta última dimensão, podemos dizer que a sua obra se desenvolve unitariamente num ciclo ou trilogia, a que chamou Lusitana e que se compõe de três romances: Cortes (1978, prémio Aquilino Ribeiro da Academia das Ciências de Libo – prefaciado por Manuel Gusmão em 1986), Lusitânia (1980, prémio D. Dinis, da Casa de Mateus, prefaciado por Luís de Sousa Rebelo) e Cavaleiro Andante, (prémio Originais de Ficção da APE).

    Considerando, no entanto, a produção da obra de Almeida Faria como um conjunto unitário, não nos devemos deixar arrastas por um simplismo que deixe supor dois ciclos claramente distintos: um, inicial, em que o corpus seria a própria linguagem, tomada como objecto, e outra em que a história contada se revelaria a matéria mais importante.

    De facto, a evolução de Almeida Faria, problematizando as relações entre as histórias contadas, a linguagem em processo, a voz narrativa e a historicidade em que a produção se afirma, é fundamentalmente a de um discurso literário em permanente interrogação dos valores que mobiliza a vários níveis. Estão sempre em causa, nas suas obras, as relações que a produção literária estabelece com o universo social em que emerge, convocando, frontalmente, quer os valores ideológicos que se apresentam como tradição, quer os que emergem como questionamentos desses mesmos valores.

    É desse modo que, por exemplo, Óscar Lopes o vê, em 1963, logo na data de publicação do seu primeiro romance. Ultrapassando a novidade espectacular que a nova escrita propõe, com as suas rupturas, quer em relação à gramática da narrativa quer à da sintaxe ou mesmo à da ortografia, o crítico português reconhece que o romance “exprime (…) um movimento geral de assimilação e crescimento integral humano”. Reconhece ele, no processo fabulatório, a base expressiva dos “termos religiosos da tradição cristã” em fusão com a “divinização da ansiada unidade amorosa”.

    A ligação desta problemática com a da dimensão social, ou mesmo sócio-política, torna-se mais evidente no romance seguinte: a Paixão. Romance em que a multiplicidade das vozes se cruza num modelo que, resumidamente, poderíamos dizer remeter para o As I Lay Dying, de Faulkner, nele se expressa “o sonho prometeico, ou luciferino, da omnipotência humana” o qual, nas palavras do mesmo Óscar Lopes, que vimos citando livremente, “é comum a todas as mitologias”. Por isso, Almeida Faria o lê na ressurreição que evoca como sequência da “Paixão”, que ele vê, no plano da História, como síntese de todos os sofrimentos, partilhas e compaixões fraternas.

    A Paixão, segundo romance de Almeida Faria publicado em 1965.

    O romance seguinte, Cortes, pode ser entendido, a partir do seu título, em três dimensões distintas: uma que tenha como objecto central a obra do autor; outra que o encare como um  índice a acirrar do modelo das múltiplas vozes e perspectivas que, ao contrário de A Paixão, não se encontram em comunhão, mas sim em confronto; e uma terceira que assuma o título a partir do próprio nível elementar da escrita – ou seja, propondo uma passagem de um discurso emotivo, marcado pela passionalidade e até por um fluir verbal ao sabor do dizer como prazer da dicção, para uma escrita vigiada, avara, racionalmente vigiada.

    Digamos que a segunda perspectiva é a que poeticamente se revela mais interessante. Porque conceptualiza o sentido de “corte” como “discurso de ferida ou de violência que a ruptura provoca” e, segundo Maria Alzira Seixo, dado que, por esse mecanismo, “cada capítulo funciona, não como um degrau narrativo (…) mas fundamentalmente como espaço da contra-di(c)ção que em si desenha (…) oposições significantes” (Seixo, 1986: 194), tal perspectiva é a que mais amplamente revela o processo criativo.

    É segundo esta reformulação da multiplicidade de perspectivas e vozes que a obra de Almeida Faria acaba por se desenvolver, em direcção ao projecto “libertino”, segundo o qual as racionalidades emergem como “re-corte”.

    Decorre desta vontade poética, pensamos, a terceira perspectiva por nós proposta, de encarar uma mudança, ou inflexão, na obra do autor, em direcção a modelos sintáctico-discursivos mais regulados pela racionalidade, abandonando registos que, por simplificação, poderíamos designar como imitadores dos processos da “corrente de consciência” ou mesmo do fluir de uma verbalidade pré-consciente ou mesmo, por sugestão figurativa, inconsciente.

    Contudo, parece-nos digno de nota que, por recurso analógico, ou seja, de lançar mão à metáfora, se possa entender o “corte” como o processo segundo o qual o autor procura “arrumar” a sua obra em “logias”.

    Primeiro, projectando uma trilogia da Paixão de que Cortes seria o segundo volume (e A Paixão o primeiro, obviamente); depois, enveredando por uma decisão editorial de fazer a Trilogia Lusitana, acaba por arredar A Paixão, como elemento central, dando nome ao conjunto, acabando por encerrando a série, já tetralogia, com O Cavaleiro Andante, depois do romance Lusitânia, com o qual pensara, primeiro, encerrar a série.

    Poderíamos um dia, num outro espaço e lugar, interrogar o jogo de paixão e de corte que tal ajustamento representa na obra do autor. Ou então o que representa uma hesitação entre uma Tetralogia Lusitana, incluindo A Paixão, e a Trilogia Lusitana, que, como tal, foi publicada.

    De qualquer modo, todo um processo de transformação do conjunto se continua a desenvolver com a produção e publicação dos volumes seguintes. Cada um deles gera novos projectos e amplia a matéria romanesca começada em A Paixão: desenvolvimento de uma história familiar que se prolonga e transformação dos processos poéticos que a dá a ver.

    Publicado em 1980, Lusitânia recebeu o Prémio Dom Dinis da Fundação da Casa de Mateus.

    Efectivamente, em relação à matéria ficcional criada, o que se dá é o processo já não apenas do corte mas, mais acentuado, o do afastamento. Lusitânia, segundo volume da trilogia (terceiro da tetralogia, se esta existir no projecto autoral), aponta-nos, pelo próprio processo de representação textual escolhido – a troca de cartas entre as várias personagens, confronto de discursos à maneira setecentista de um Laclos, por exemplo – a distância que separa as personagens de uma “Lusitânia” em diáspora.

    Os discursos cruzam-se entre Portugal, Itália e Angola. Em Portugal a correspondência tenta superar a distância entre Lisboa e Montemínimo.

    A partir de Lusitânia, mas ainda dentro da unidade “tri” ou tetralógica, a temática deixa de ser estruturada no sistema dominante do discurso cruzado. A errância passa ser o modelo formal do processo romanesco. A distância, a ruptura, a perda ou o estado de exílio fazem-se representar por um processo que poderia ser designado pelo título do último volume – até à data, claro, nada impede que um outro surja, um dia – do conjunto: O Cavaleiro Andante.

    Curiosamente, este último texto pode ser assimilável, por alguns dos processos formais que desenvolve, à última obra romanesca publicada pelo autor até à data: O Conquistador. Dado que este texto, quanto à matéria, já não se integra no ciclo “lusitano” dos anteriores, poderemos pensar num próximo ciclo romanesco, como que em secância, recortando-se a partir do anterior? Talvez. E é, julgamos, a capacidade de produzir uma obra em permanente estado de formação estrutural e abertura inovadora que tem caracterizado a imensa qualidade da produção de Almeida Faria.

    Um dos aspectos que mais insistentemente tem atraído a atenção dos críticos que se debruçam sobre a obra de Almeida Faria decorre, como consideração generalizadora, dessa qualidade. Para quase todos, este autor que, desde o primeiro momento, Vergílio Ferreira reconheceu como imensamente prometedor, tem apresentado o encanto do grande desafio que é a criação de um universo através do qual o destino do homem se interroga, originando, ao mesmo tempo, um modelo representativo, uma linguagem poética que questiona e reactiva os processos de a literatura se fazer.

    Podemos assinalar ainda, como trabalhos seus de importante projecção cultural, o conto Os passeios do sonhador solitário (1982), devaneios, à moda iluminista de Rousseau, como ela próprio reconhece, a partir da pintura de Mário Botas, uma quase que ekfrasis com subtítulo Conto e Libreto; o ensaio de apresentação de Spleen de Mário Botas, “Do poeta-pintor ao pintor poeta”; duas peças de teatro, A Reviravolta, 1999 e Vozes da Paixão, 1998, versão teatral do seu romance, Paixão; e vários textos de intervenção sobre a literatura e a cultura portuguesa publicados em volumes colectivos e jornais.

    Autor com uma carreira plena, tendo interrompido a escrita de ficção numa idade em que muitos outros estão quase no começo, Almeida Faria pode ter ainda algo a acrescentar à sua obra. Seja o que for, pelo que já é patente, será sempre um elemento importante na literatura portuguesa – por alargamento, uma peça considerável da nossa cultura.

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Seixo, Maria Alzira, 1986, A palavra do romance, Horizonte, Lisboa

  • Herberto Helder

    Herberto Helder


    Sem pretendermos fazer qualquer aproximação específica, que seria abusiva para lá de toda a semelhança que existe entre todas as manifestações singulares, na difusa categorização genológica de arte, ocorre-nos, na leitura deste longo poema de Herberto Helder, a lapidar conclusão que Blanchot apresenta de uma leitura de um fragmento de Kafka:

    Não se pode escrever senão quando estamos senhores de nós próprios diante da morte e apenas quando estabelecermos com ela relações de soberania. Se, diante dela, perdemos a continência, não a podemos conter, então ela tira-nos as palavras da caneta, corta-nos a palavra; o escritor não escreve mais, grita, um grito confuso que ninguém percebe e que não emociona ninguém. Kafka sente aqui profundamente que a arte é relação com a morte. Porquê a morte? Porque ela é o extremo. Quem dispõe dela dispõe de si, está ligado a tudo o que pode, é integralmente poder. A arte é o domínio do momento supremo, supremo domínio” (L’éspace Littéraire. Idées. Gallimar, p. 107).

    Não nos parece nada descabido aproximar o conceito de ciência última do  de supremo domínio, propondo uma visão global, de um poeta dificilmente cernível no conjunto da sua obra. E isto  a propósito do livro que aponta, exactamente, para um entendimento encerrado, Última  ciência, embora, ironicamente, negando qualquer desfecho.  Não cremos sequer que seja necessário determinar a autoridade nietzschiana para encontrar, na busca do saber, o poder, o qual seria o campo de valências onde a indeterminação, eventualmente, nasceria, já que sobre a aproximação de última e extremo ou supremo parece não haver dúvidas.

    É o próprio texto, porém, que liminarmente e lapidarmente no-lo diz, se os símbolos e a topografia do corpo não mentem, ou não são vazios incipit.  “Com uma rosa no fundo da cabeça, que maneira obscura de morte”. Não nos parece que estejamos aqui muito longe de  uma sabedoria de ocultas dimensões, antecâmara de um encontro nupcial com a sageza dos ocultos domínios. Duas personagens enchem permanentemente a cena da visão do saber que o livro patenteia: o eu da enunciação e a criança de múltiplos poderes que parece constituir a figura actancial privilegiada de relação com o cosmo e muito primordialmente com a origem matricial: a mãe, a placenta, a madeira, os minerais e os próprios astros e as suas propriedades.

    Não é possível aludir a esta poesia carregada de simbologias altamente codificadas e de
    metáforas profundamente inaugurais, ordenadas em sistemas de uma sumptuosidade que já
    foi notada, por exemplo, por Gastão Cruz, numa pequena nota publicada em Phala n.” 11, sem fazer referência ao discurso alquímico, subjacente que parece ser o manancial imaginário forte, a carne e o plasma do texto de Helder.

    Última ciência foi publicado em 1988.

    Contudo, embora a profusão de rosas, e outras corolas matriciais, de pedras rutilantes, de metais preciosos, de leões de pedra, leopardos, formações cristalográficas e estátuas, de calcinações em dinâmicas figuras, e de outros elementos significativos, seja bastante grande para poder ser ignorada, ou minimizada, como lista ocasional ou frágeis ressonâncias semânticas e se apresente, antes, como paradigma amplamente declinado em ressonâncias poderosa no corpo do poema, é preciso fazer um reparo fundamental no caso presente: nunca o corpus simbólico pré-existente condiciona o processo do poema, nunca a produção verbal de Herberto Helder fica condicionada pelos elementos de sacralidade com que se confronta.         

    Diríamos quase (e, para isso, relendo algumas das versões de As magias,arte poética última insistentemente republicada com acrescentos) que a ciência da máquina-lírica,  oráculo que, electrónico ou flogístico, parece ter sempre iluminado, com a sua sombra, a poéticado autor, se apurou no horizonte com a alquimia onde o verbo encontrou a negação de um discurso dialógico. O Iniji emerge (ciência primeira) com um romper de “um lento nevoeiro roçando a face da matéria. Era possível que nos confundíssemos com os torrões e calhaus.

    Não havia nenhuma ciência, nenhuma lembrança” (As Magias, p. 11). No horizonte do sujeito poético emerge essa imensidão de uma sabedoria imemorial, uma língua que “não era de sedução para subornar, ou para dominar. Dela provinham as palavras (…) Existiam ao mesmo tempo que a vida não desligadas dela. Eram uma dança, uma natação, um voo, um movimento” (As Magias, pp 11-12). Sem afirmar aqui a metafísica implícita do autor, mas procurando antes vislumbrar o sistema de trabalho do seu “forno”, da sua “retorta”, dos seus “fluidos”, parece-nos de considerar que para Herberto Helder a gramática do saber original se postula como horizonte, como matriz no cosmo, origem do discurso poético, ainda que o forjar deste, preso embora à sacralidade e ao deslumbramento, nunca seja seu servo ou submisso repetidor.

    Atrever-nos-íamos mesmo a afirmar que (perdoe-se-nos o sacrilégio), tal como os grandes poetas místicos de outrora, cátaros ou cristãos de outras doxas mais ou menos tuteladas, Herberto Helder se serve, notoriamente em Última ciência, do discurso sagrado dos símbolos de acesso à obra de transfiguração para com eles dar inicio à sua obra própria.

    Toda a ordem litúrgica, toda a simbologia verbal de frase feita de fórmula lapidar é aqui submetida a uma segunda ordem de transformação perturbadora, reformuladora dos elementos essenciais de forma a atingir-se um novo plano de reelaboração do cosmo. E pensamos mesmo que, se em relação a ele tem todo o sentido falar do orfismo, isso deve-se, em grande parte a essa sua capacidade de transformar todo o canto, em canto próprio: verbo ritmo, ressonância cósmica.

    Se Iniji é o saber antigo, original, matricial de onde emanam os sentidos da palavra assumida no puro evanescimento do seu valor próprio, a arte poética, dimensão rutilante da poesia, é esse diálogo com as sombras e com a luz a partir dos dados interiores da sua fundação, do seu mistério, aí, onde ela é magia. E magia não é um antes da palavra, um vazio, um branco, uma ausência, um nada. Ela só é possível quando se sabe e se assume que a transfiguração é a das palavras e que no ofício divino, na mestria do universo, quer o diálogo seja com as sombras quer com a luz ou com os deuses “cada imagem é a cicatriz de outra imagem” e que “a mão experimental se transforma ao serviço escrito das vozes”.

    pen on white lined paper selective focus photography

    Numa obra que nunca se recusou a qualquer das experiências dos limites (e sempre, da abjecção à alquimia, o grande limite é o de “uma vida selada”), este texto de Herberto Helder aparece-nos como mais um curioso culminar. Para um poeta que já se silenciou tantas vezes, não sabemos nunca como olhar através dos seus escritos que se querem últimos. É ainda em Ultima ciência que lemos o oráculo do discurso da morte que, aí, cicatriz de uma imagem de fim, nos afirma “inocente … Arte de redacção: ver isto, ver a morte – dar-lhe um nome de diamante com o nervo dentro” (p. 43). Voltará depois da morte conhecida e dominada?

    Segundo Eco, na “sociedade de massas, na época da civilização industrial, observamos um processo de mitificação afim ao das sociedades primitivas e que, todavia, no início, procede muitas vezes segundo a mecânica mitopoética posta em prática pelo poeta moderno” (1991: 250), parece-nos interessante observar como nesta actualidade se apresentam alguns procedimentos ou figuras variantes  das metamorfoses (a transfiguração, a camuflagem, o disfarce, a máscara ou a ocultação), quando elas se reformulam nos espaços modernos das cidades, numa partilha entre os mistérios nocturnos, da esfera órfica e infernal, e o bulício urbano, em que ao confronto tradicional do cidadão e do seu vizinho, desde a Antiguidade (o «ateniense», o «romano») até à Revolução Francesa (o «burguês») se opõe o face a face,  entre o anonimato do próximo como ente emergente da multidão (a sempre ameaçadora hipótese de uma alteridade estranha e inquietante), e o sujeito que  percorre esse turbilhão de estranhos, como transeunte indiferenciado: o indivíduo das massas.

    A ideia de procurar compreender alguns fenómenos culturais, transpostos para textos literários magnifica-se, ao que parece, na poética de Herberto Helder, onde todo o sistema poético assenta na assunção de que a continuidade está sujeita a rupturas que, se não forem tratadas como transformações – ou transfigurações, ou devorações, ou desapossamentos – redundam no desaparecimento, no esquecimento ou na morte.

    yellow and brown leaves on white ceramic tiles

    A constante reaparição da sua obra depois dos finais anunciados da escrita, apontam, de algum modo, para uma estética do estertor, em que a obra é uma efémera evanescência e a vida um continuo entrecortado de cortes, de amputações e de outras formas incisivas das variantes da ruptura na busca de uma metamorfose final.

    Vemos, na preocupação constante que o poeta ostenta de encerrar a obra e de a eternizar como Livro, sempre seguida da exaltação do livro reeditado sob transformação (Ofício Cantante….Poesia Toda) – numa espécie de frenesim onomástico ou veneração do batismo como ritual propiciador do renascimento transfigurador, arrastando esse movimento, os actos mutação, reformulação, jogo de variantes, tendentes a assegurar a continuidade sob a forma mutações – uma atitude de regulação vital da poesia, ou da poesia como vitalidade.

    Toda essa actividade de escrever para ser ou de existir como escrita força certos posicionamentos fundamentais ao poeta. Julgo que podemos destacar dois: a apropriação dos acervos e modelos poéticos como matrizes a serem transformadas (com a variante forte da publicação da “antologia”, ou das “traduções”, dos mananciais da poesia exótica ou enigmática, normalmente de origem popular e anónima); e a preparação da obra própria enquanto espólio labiríntico, eivado de “artes poéticas” de tons órficos e elaboradas conceptualizações heraclitianas.

     É claro que, para a percepção de um leitor ou poeta, ou qualquer entidade colocada na convergência dessas duas funções, o assumir desses dispositivos de produção poética se encaminha para um jogo de dimensões demonológicas. O tocar numa obra por qualquer entidade introduzindo-lhe transformações por constituir uma adaptação, uma outra obra inspirada na primeira, dá origem àquilo a que Herberto Helder chama “obra maléfica” (Photomaton e Vox, p. 21) – qualquer coisa como uma “opus nigrum”[1]. O que nos deixa perante uma revelação que nem sempre se patenteia a quem se deixa envolver pelo poderoso discurso poético de Herberto Helder.

    person sitting on blue wooden bench on beach during daytime

    Esta percepção é transmitida pela seguinte afirmação de Frias Martins: “a poesia é levada pela assunção do amor pelo caminho de tudo aquilo que diante dos olhos (da luz) se encontra e cuja mensagem se destina derradeiramente ao coração” (1983: 33). Não obstante a correcção desta observação, temos de reconhecer que ela se manterá sempre incompleta, quando atendemos ao conjunto da obra de H.H. em todas as suas dimensões. E isto porque uma boa parte da sua obra parece obedecer mais aos apelos do demoníaco, e de um erotismo ordenado por Thanatos. Não será essa uma das figurações de Orfeu? O que resta de amor, depois da ida às regiões da morte.

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Martins, Manuel Frias, 1983, Herberto Helder, Um Silêncio de Bronze, Horizonte, Lisboa

    Eco, Umberto, 1991, Apocalípticos e Integrados, Difel, Lisboa


    [1] “Opus Nigrum”, é uma velha fórmula alquímica que significava a fase de separação e dissolução da matéria, mas para pior.

  • José Rodrigues Miguéis

    José Rodrigues Miguéis


    Como alguns outros grandes nomes da nossa literatura, nascidos entre finais do século XIX e os primeiros anos do século passado, José Rodrigues Miguéis (1901-1980) é, muitas vezes, esquecido, nos panoramas histórico-culturais que trabalham, quase sempre, numa busca de método e compreensão, por agrupamentos periodológicos, ou mal entendido (ou mesmo mal-lido, no sentido bloomiano do termo), na sua postura ideológica e crítica, segundo inserções e valorizações apologéticas que o lêem numa singularidade mitificante de excepcionalidade exemplar.

    Quanto a esses aspectos, podemos dizer que emparelha, quase completamente, com dois dos vultos mais importantes da nossa literatura, seus contemporâneos: Ferreira de Castro e Aquilino Ribeiro. O que os poderá unir, no sentido positivo, é um encontro nem sempre harmonioso, em torno da Seara Nova e, em sentido negativo, a tendência para se manterem esquivos a grupos e movimentos.

    José Rodrigues Miguéis (1901-1980)

    Com eles emparceiram também, por esta última razão, outros nomes contemporâneos, como José Gomes Ferreira e Irene Lisboa, que gravitam, desenquadradamente, em torno de enquadramentos que marcaram a época – sobretudo o segundo modernismo, o da Presença, e o neo-realismo, mas também o naturalismo, o primeiro modernismo e mesmo o surrealismo.

    Na sexta edição da História da Literatura Portuguesa de que é co-autor, juntamente com António José Saraiva, Óscar Lopes considera Miguéis o “ficcionista mais importante daquilo que designamos por realismo ético” (s/d [196-], 1058).

    Caracterizando e historiando esse tipo de realismo, diz o autor, no mesmo texto, que os autores que inclui nesse grupo deveriam, por nascimento, “aproximar-se da geração presencista […]; mas devido a condições óbvias que os isolaram ou inibiram no decénio de 30, a sua obra mais significativa coincide com o advento do neo-realismo e está condicionada, se não directamente por ele, quando menos pelos factores históricos que lhe(s) são comuns” (s/d: 1057).

    Primeira obra de Miguéis, publicada em 1932.

    Esta oscilação de pendores, entre um esteticismo modernista e uma moral de intervenção social, tê-los-á levado a uma busca de unidade “entre certos valores estéticos e certos valores éticos”, atreves de uma prática literária que Óscar Lopes designa por “realismo ético”, o qual se demarca de um “certo introspectivismo, certo metafisicismo grandiloquente alternativos em Presença”, por um lado “e, por outro lado,” do “neo-realismo, que encara as relações humanas como obedecendo a leis objectivas, consistindo a superação humana em delas se aperceber e tirar partido”, para se constituir como “um realismo social, em que o indivíduo figura, não como inatamente singular, nem como um modo transitório do Adão universal, mas como uma singularidade circunstancial e evolutiva” manifestando-se pela “afirmação de uma lei moral subjectiva e oposta à lei objectivamente histórico-sociológica” (pp. 1057-1058).

    Repare-se que este é um texto escrito numa época em que era difícil falar de “certas coisas” em Portugal. Não era muito viável um professor de liceu de então, que Óscar Lopes era, elaborar explicações muito extensas e completas sobre o que era o neo-realismo, como é que se poderia colocar no quadro da cultura e do conhecimento, do ponto de vista ideológico, aquilo a que ele chamava o “realismo ético”, pois teria de se evocar um paradigma marxista, para lhe poder contrapor um kantismo ou um neokantismo, assim como explicar mais miudamente de que modo é que modernismo era psicologista e metafísico em oposição a perspectivas sobre o homem mais atentas às constantes materiais, e, em suma, os paradigmas lukacsianos do “modernismo” e do “realismo crítico” se opunham ou se articulavam com o de “realismo socialista”.

    Assim, o ensombramento de alguma dúvida quanto à dimensão axiológica recai sobre as suas primeiras novelas, Páscoa Feliz de 1932, e Saudades para Dona Genciana de 1957 (depois recolhido em Léah – 1958), produção que, no entender de Óscar Lopes, “pode lisonjear o culto, então literariamente em moda, do acto gratuito dostoievskiano, numa apetência de crime-e-remorso que por fim aliena o protagonista de uma verdadeira responsabilidade” (p.1059).

    De facto, tal apreciação parece aplicar-se perfeitamente a uma personagem como o narrador de Saudades…, quando reflecte:

    “[…] a vida nada me oferecia além do Protesto. À falta de melhor enveredei resolutamente pelos meandros da Acracia. (O termo soava-me melhor do que Anarquismo.) Destituído de qualquer esperança de destino pessoal, sonhava pulverizar o nada em que vivia. […] Li com fervor Hamon, Jean Grave,  Kropotkine e Bakunine […]. Mas aborrecia os utopistas, os socialistas, os comunistas, todos os que pretendiam reorganizar a sociedade em bases novas […]. Sonhava sobretudo com o amor livre: uma revolução que desse a cada homem o direito de possuir a fêmea que lhe apetecesse e quando lhe apetecesse” (1968: 215-216).

    É nesse quadro que Uma aventura Inquietante, por exemplo, é considerado, muitas vezes, um romance que aproveita algumas das regras da narrativa policial para, quase a jeito de paródia, propor um novo horizonte ético, instaurando uma viragem no sistema de valores convocado segundo o qual toda a acção humana é julgada e responsabilizada face à realidade histórica, mesmo quando a referência subjacente é disfarçada ou surge sob evocações quase alegóricas.

    Cena do filme Saudades para Dona Genciana, adaptação do romance de Miguéis, realizado por Eduardo Geada e protagonizado por Virgilio Castelo e Rita Ribeiro.

    É desse modo, por exemplo, que muitas realidades belgas, no romance acima citado, lembram as portuguesas, ou o milagre da aparição virgem mãe de Cristo aos pastorinhos se realiza numa povoação chamada Meca, de um país que tem como capital Lisboa, mas onde os indivíduos que se movimentam para o “28 de Maio” e “fundam” o Estado Novo levam nomes enigmáticos ou são designados por iniciais, sobre as quais os exegetas se pronunciam interminavelmente, em O Milagre segundo Salomé.

    Numa edição posterior da obra já acima referida, Óscar Lopes reformula de modo curioso o horizonte crítico da recepção literária de Miguéis. Em boa parte, a reformulação deve-se ao desaparecimento da vigilância impendente sobre a dimensão ideológica e a referência política de todos os discursos, incluindo os culturais.

    Tendo acabado a censura, é possível apresentar o quadro da emergência e evolução do autor de Léah tendo em conta as coordenadas político sociais com as quais o seu discurso se articula, a partir do sindicalismo amplo de um órgão de comunicação social como A Batalha, em que pontificam vultos como Vitorino Nemésio e José Régio, e uma publicação eivada da mais ousada vontade de vanguardismo ideológico como a Seara Nova.

    Uma aventura inquietante, romance publicado em 1958.

    Não só é registada, agora, a sua crítica aos seareiros, pela “falta de conexão com qualquer movimento organizado de massas” que eles revelam, como é assinalado positivamente o seu afastamento, em 1931, “dos presencistas, com que também polemizou numa linha precursora do neo-realismo” e louvado o seu empenho social na “organização democrática de trabalhadores emigrados” nos EUA (cf. Saraiva e O.Lopes, 1996: 1027).

    Ao reavaliar, oportunamente, a sua obra, tendo em conta as publicações mais tardias, Óscar Lopes, nesta última edição da História de que foi co-autor (exclusivo responsável pela época em que se insere Miguéis, como nos informa a nota da página do registo do ISBN, patente na 17ª edição), considera O Milagre Segundo Salomé “uma simples sátira, à clef, das condições do colapso da 1ª República”, minimizando-o, quanto à preocupação ideológica e social por comparação com as suas restantes obras posteriores a Saudades para Dona Genciana.

    Ora, esta avaliação, do ponto de vista da história literária, não é consonante com a fortuna que algumas obras do autor de Páscoa Feliz conheceram recentemente. Efectivamente, pelo que se pode verificar nos comentários que em diversos sítios da rede aparecem sobre o autor e a sua obra, o interesse maior tem recaído, sobretudo, em O Milagre Segundo Salomé e, logo a seguir, em Saudades para Dona Genciana.

    Pelo que se percebe dos próprios comentários, essa fortuna recente deve-se, essencialmente, às adaptações que Mário Barroso e Eduardo Geada fizeram, respectivamente, das duas obras acima citadas. Diga-se, desde já, que o primeiro título, que podemos considerar a derradeira obra publicada pelo autor (há outras, mas são póstumas), tem sido o que maiores atenções têm merecido, dos leitores e espectadores que praticam crítica e análise dessas práticas expressivas ou artísticas, da parte dos quais têm surgido mesmo abordagens que equacionam a relação entre o literário e o cinematográfico bem como a proporia questão da adaptação.

    Para arrumar com algum simplismo uma questão que, a ser tratada, teria de ser desenvolvida, especificamente, noutro discurso, seguindo outro fio de interesses e atenções, pode dizer-se que a adaptação de Geada mereceu menos atenção (e, até, acolhimento) em grande parte porque os tempos eram outros, o olhar sobre o relacionamento interartístico era menos informado e, por isso, menos tolerante, razão pela qual o filme, ao qual não falta alguma grandeza e dignidade pela perturbação artística que convoca, acabou por ir sendo esquecido e, de algum modo, eclipsando o texto literário do qual pretendeu ser, entre outras coisas, uma leitura e uma resposta na continuidade cultural.

    Sobre a fortuna cultural que o cinema veio trazer ao último romance publicado por Miguéis, pode servir-nos de exemplo o resumo que Edimara Lisboa Aguiar faz para o trabalho que realizou sobre a adaptação feita por Mário Barroso:     

    O milagre segundo Salomé, publicado em 1975, foi adaptado ao cinema por Mário Barroso, tendo como protagonistas Ana Barroso e Nicolau Breyner.

     “O presente trabalho propõe a leitura da história a partir da literatura relida pelo cinema como questão relevante para se compreender o fascínio do espectador contemporâneo pelos filmes de época. Para isso, analisaremos a ficcionalização das aparições em Fátima por José Rodrigues Miguéis em seu romance O Milagre Segundo Salomée sua reordenação pela adaptação cinematográfica realizada por Mário Barroso” (2010: 305).

    Não só o romance é lembrado a partir do filme, que se apresenta como adaptação, como se entende a prática de adaptação como leitura, prática de crítica e comentário que, duas décadas antes, não era tão comum. O que, nas observações de alguns críticos do filme de Geada, eram reservas ao modo como a obra cinematográfica perdia o texto literário, as suas referências e a sua atmosfera, transforma-se, anos mais tarde, nas apreciações de como as diferenças são culturalmente significativas, pedindo-se ao filme que seja apenas a expressão conforme das suas possibilidades e das suas vontades de compreensão, independentemente da qualidade ser ou não reconhecida à obra actualizadora.

    É o que podemos verificar, por exemplo, nas afirmações de Diana Marlene Soares do Couto, feitas na sua dissertação de mestrado, apresentada à Universidade de Aveiro em 2009, sob o título O Milagre Segundo Salomé: (Des)Encontros entre Miguéis e Barroso:

    “Consideramos que o filme foi uma interpretação livre do romance – Mário Barroso di-lo explicitamente –. Quantas vezes, na análise do filme, não demos por nós a pensar que “esta não é a Salomé”, ou “esta atitude nunca poderia ser tomada por Gabriel”… Isto apenas significa que, como já tivemos oportunidade de referir, o romance nos envolveu mais, nos conquistou, nos despertou a imaginação, nos fez viajar, pela estrutura, pelas linhas, pelas palavras… vivemos revoltas militares e políticas, apaixonámo-nos pelas personagens, pelos espaços, pelos meios envolventes, pela intriga, pela acção… fomos cativados pela eloquência, pelo estilo, pelo pormenor, pelo sarcasmo, pela ironia de José Rodrigues Miguéis. /O filme, apesar de ter sido uma interpretação livre de Mário Barroso, permite que coloquemos rostos às personagens e houve casos em que isso foi feito com sucesso.

    Com efeito, actores como Nicolau Breyner, Paulo Pires, Ana Bandeira, Ricardo Pereira vieram enaltecer José Rodrigues Miguéis e a sua obra O Milagre Segundo Salomé. Mário Barroso diz-nos que não sabe por que enveredou por esse desenlace, que não consegue encontrar nenhuma explicação, queremos crer que a razão não tem importância, que basta ter gostado do livro e ter resolvido fazer reviver uma obra que permanecia esquecida, que pouca gente conhecia. Ler o livro e ver o filme, um cruzamento com um só objectivo: O Milagre Segundo Salomé”(2009: 174).

    Não será possível encontrar todos os motivos que terão levado Carlos Saboga, argumentista do filme, a estruturar o seu argumento ou guião literário[1], muito provavelmente em estrita colaboração com Mário Barroso, da forma que o fez. Restará saber se, do filme, existe um registo equivalente ao que, na nota anterior, designámos por guião cinematográfico, segundo a terminologia proposta pelos mestres de tal matéria. 

    Idealizado na década de 30, Miguéis apenas viria a concluir este romance, em dois volumes, na década de 70 do século XX:

    Que o realizador toma as suas liberdades em relação ao argumento, não há dúvida. Os primeiros planos do filme, que assumimos como sendo uma sequência pré-diegética, integrável ainda no discurso do genérico, colam-se à sequência proposta pelo pré-texto verbal, formando uma espécie de prolepse em relação ao incipit do argumento literário. Procurando evitar a distorção interpretativa por unilateralidade subjectivizante, preferimos apresentar a sequência segundo as palavras que Diana Couto usa na sua tese:

     “Logo depois do título, um plano de conjunto relâmpago, em plongée, de três pastorinhos num terreno ermo, em estado de veneração, de joelhos a benzerem-se e a olharem para cima. Associamos logo estas três personagens, um rapaz e duas raparigas, aos três pastorinhos de Fátima. O efeito é esmagador: imaginamos logo que quem está no plano superior é a Nossa Senhora. Ora, eis que nos aparece logo, de facto, em contre-plongée, uma figura feminina vestida de uma capa azul claro, cobrindo-lhe também a cabeça, que, por estar contra o sol, se torna quase imperceptível, não sendo, pois, possível delinear-lhe os traços do rosto. O Milagre aparece logo na abertura do filme, como se, em forma de preâmbulo, pretendesse dar já uma informação ao espectador, como se quisesse que esta imagem da Aparição não saísse mais da sua memória” (2009: 119).

    Só depois aparece o “agora” – “Lisboa, por volta de 1917” – anunciado nas primeiras linhas do argumento literário, embora o sistema audiovisual permita acrescentar o repicar do sino ao texto que não o assinala. “A procissão de Santa Maria Madalena pela paz e pela redenção das meretrizes” (Saboga, s/d: 2) é o que surge, no filme, como sinédoque, num rosto de mulher velada, num primeiro plano/enquadramento (P1) como primeiro plano da sequência (P2) que depois de desvela, em planos na linha de profundidade (P3) nos planos sequenciais posteriores[2], aparecendo, como imagem estatuária, em tamanho natural, enquadrada no conjunto de devotos, fiéis e acompanhantes.

    É claro que este começo, em que uma prolepse anuncia, quase em genérico, o acontecimento que será a grande peripécia a partir da qual a acção dramática se intensifica, arrasta consequências para a dimensão temática do filme: propõe a questão religiosa, toda a dimensão cultural, ideológica e simbólica que o milagre arrasta, para o centro dominante da acção posta em cena.

    Assim, o actuar das personagens, quer na dimensão pública do campo, da rua, do salão e doutros espaços de convívio, quer na privada, dos actos íntimos e das paixões, aparece francamente sobredeterminada pela dimensão da crença ou mesmo do arrebatamento fanático. É verdade que o título da obra, que o filme importa integralmente do livro, quase o único acto em que lhe é integralmente “fiel”, pressupunha uma tematização em que a dimensão da religiosidade se poderia entender como dominante.

    A posição retórica do título pressupõe esse predomínio macroestrutural, de facto, mas o romance de Miguéis, de algum modo, joga com o efeito resultante dessa pressuposição em oposição aos elementos da narrativa que, tendo nela uma presença semântica e ideológica muito poderosa, manifestam uma apenas uma fraca relação com o sagrado ou uma vaga dependência da crença.

    Léah integra um conjunto de contos e novelas, publicado em 1958.

    De facto, é bastante curioso que, de um modo geral, as personagens do romance de Miguéis, incluindo a própria protagonista, crismada (para não dizer “carismada”) Salomé, muito profanamente (para não dizer sacrilegamente), nunca, ou quase nunca, (Salomé tem alguns rebates de religiosidade, depois do incidente traumático que a transformou em origem do milagre, sem que disso se apercebesse), se manifestam crentes ou preocupados com o sagrado. É claro que o filme, ao dramatizar apenas uma parte da acção que o romance narra, para obter maior coesão e concentração da acção, tem de propor a sua “leitura” dessa dimensão ideológica da temática presente na narrativa literária.

    Por isso, a dimensão ritual da religião, destacada logo nas primeiras imagens, emerge como demonstração de que a crença existe muito mais pela exteriorização histriónica do que pela adesão profunda das personagens.

    No plano da organização da narrativa como sequencialidade de acções encadeadas, o filme respeita, em geral, a ordem cronológica da apresentação dos factos, em sucessividade, pela instância narradora. É claro que alguns aspectos iterativos do romance, que Miguéis apresenta como ocorrências da vivência de rotina do casal Zambujeira/Salomé, quer em privado quer em público,  nomeadamente nos convívios de que são anfitriões, de onde resulta uma das mais sumptuosas e mais bem sucedidas sequências do filme, bastante longa, contendo, ela própria várias cenas ou sequências menores, em que se apresenta uma amostra da melhor sociedade, numa recepção que Cerqueira (Zambujeira, no romance) dá, em grande parte para apresentar Salomé, sua amante inteiramente assumida.

    Concentrada a acção num reduto temporal muito menos amplo do que o que se patenteia no romance, o filme refaz a ordem segundo a qual alguns acontecimentos se desenrolam, a relação de Zambujeira com Salomé acaba por ficar menos desenvolvida, coexistindo as aproximações entre Gabriel e Salomé com a continuação da relação que a protagonista mantinha com Cerqueira, o que no romance não acontece.

    O enredo dramático adensa-se, deste modo, na obra cinematográfica, de tal modo que aí se inverte o “final feliz” presente no romance, onde se anuncia quase a idílica união interminável de Gabriel e Salomé. De facto, o desenlace em que o tenente Braz (Azaredo, no romance) abate Salomé, Gabriel e o casal amigo que se encontrava em casa dele, vem alterar completamente o tom da construção da intriga, eliminando a dimensão optimista da comédia popular (que tende a premiar uma aprendizagem positiva da vida) e introduzindo o discurso disfórico pela nota trágica a culminar o enredo melodramático.

    Assim, podemos dizer que o filme realiza duas operações macroestruturais, para introduzir o ritmo narrativo na sua dramaticidade e actualizar a avaliação ideológica na sua dimensão temática: a transformação do final feliz em patética pirueta trágica que os pregões finais dos ardinas sobre as aparições vêm reforçar; e a redução da temporalidade do romance, expandida desde a meninice de Zambujeira até à sua provecta idade, a um presente dramático em que ele, já sexagenário, (com o nome de Cerqueira), actua como amante da mulher que nunca conhecera como Dores e apenas reconhece como rameira que sobressai na “profissão” pela sua imensa beleza e uma “aura” de quase santidade.

    De algum modo, o guionista e o realizador optaram por retirar ao romance aquela dimensão que Cláudia Sousa Dias, num dos textos mais extensos e atentos que, recentemente, foram dedicados a esta obra de Miguéis, caracteriza do seguinte modo:

    “Na primeira parte, intitulada A Queda Ascensional, os Retrospectos descrevem os antecedentes das personagens principais que interagem durante a trama propriamente dita.
     Trata-se de um texto, de certa forma, atípico em relação ao resto do romance. O registo utilizado nesta secção da narrativa está recheado de juízos de valor, onde o narrador utiliza uma linguagem que apela ao sentimento a fazer lembrar os ultra-românticos, Victor Hugo, Camilo Castelo Branco ou Castilho, o que retira um pouco a qualidade literária ao texto. Contudo, logo após as primeiras cem páginas, o Autor abandona o tom persuasivo relativamente ao carácter de algumas personagens e adopta um estilo de prosa mais analítico e objectivo – sobretudo nos Entremezes de Gabriel Arcanjo – de onde sobressai a veia satírica e irónica do Autor, a tónica que irá dominar todo o romance.

    Assumem assim, os cineastas, a sua opção de actualizar o discurso narrativo retirando-lhe, na dimensão retórica, a ganga directamente argumentativa e, na poética, o pendor romanesco para ser biografia (acompanhando o evoluir da personagem ao longo da vida, como Dickens faz com o seu David Copperfield, por exemplo, instituindo o modelo, ainda que em tom de paródia às estruturas do melodrama), fazendo assim funcionar, com o máximo de intensidade, a dimensão dramática em torno da qual se estrutura a segunda parte da narrativa, aquela em que Zambujeira/Cerqueira é já sexagenário e a sua amante é já, plena e assumidamente, a esplendorosa Salomé.   

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Activa:

    Miguéis, José Rodrigues, 1968, Léah, Estúdios Cor, Lisboa

    Miguéis, José Rodrigues,2000/2002, O Milagre Segundo Salomé (I e II), Estampa, Lisboa

    Passiva:

    Aguiar, Edimara Lisboa, 2010, O milagre de 1917 na pena de Miguéis e na lente de Barroso

    Chion, Michel, 2001, Como se escribe un guión, Cátedra

    Couto, Diana Marlene Soares do, 2009, O Milagre Segundo Salomé: (Des)Encontros  entre Miguéis e Barroso

    Dias, Cláudia Sousa, 2008, O Milagre Segundo Salomé de José Rodrigues Miguéis

    Saraiva, A. J. e O. Lopes, s/d [6ª ed], História da Literatura Portuguesa, Porto Editora, Porto

    Saraiva, A. J. e O. Lopes,1996, História da Literatura Portuguesa, Porto Editora, Porto

    Vanoye, Francis, 1996, Guiones modelo e modelos de guión, Piados, Barcelona


    [1] Mais recentemente, os estudiosos da matéria têm optado por utilizar, para designar este nível de desenvolvimento do texto pré-fílmico, o termo  continuidade dialogada que, como diz sinteticamente Vanoye, “oferece a distribuição da história em cenas e sequências, a descrição das acções e o texto completo dos diálogos” (1996: 14) –  segundo Chion, em França esta é já considerada como guião (scénario) (2001: 208), sendo também verdade que, mesmo na América, é com um modelo muito semelhante que os grandes realizadores trabalham; o guião/guião cinematográfico (shooting script, découpage técnique e, não esquecer, roteiro, em português do Brasil) é um passo, ou, atendendo à hesitação na designação, uma série de passos finais que vão das elaborações narrativo/ descritivo/ dramáticas das fases anteriores, apenas um pouco mais extensas, às expressões mais próximas, que se possam conceber, de um texto escrito reproduzindo, integralmente, o filme acabado. Porque, como lembra Vanoy, na “inversão dialéctica própria de  todas as relações entre modelo e objecto […] também o filme se converte em modelo de […] guiões”, de tal modo que nas análises de objectos fílmicos  se trabalha “não tanto sobre guiões como sobre modelos de guiões, que proporcionam as películas terminadas e as suas transcrições” (1996: 21). A planificação técnica (que seria o modelo ideal de guião – aquele que Robbe-Grillet emula nos seus ciné-romans) só se pode considerar satisfatoriamente acabada, se tudo correr bem, quando o filme estiver acabado e tiver sido incorporado, no texto, o último pormenor registado pela “anotadora”, dando conta das próprias hesitações do realizador e das suas decisões finais.

    [2] O termo plano, no léxico português relativo ao cinema, pela sua longa dependência da terminologia francesa, é ambíguo, como naquela língua (antes de se deixar marcar pelo léxico anglo-americano do cinema, tal como já vai acontecendo entre nós) aplicando-se a três ordens estruturais utilizadas pelo discurso cinematográfico: a sincrónica/paradigmática, em que, por exemplo, o grande plano pode alternar (ou evoluir, num processo que o fará jogar com a dimensão diacrónica) com o plano de conjunto, ou o plano médio, diferenças que relevam do enquadramento do que emerge no campo da imagem, jogando com o fora de campo, ou seja o que fica fora do enquadramento (que registámos como P1 — que equivale,  grosso modo, ao paradigma verbal de shot, graduando-se entre o close-up e o long shot na cinematografia anglo-americana); a diacrónica, em que o plano é parte constituinte da sequência (que registámos P2 — equivalente ao paradigma shot/take anglo americano); e a sincrónica, in præsentia, em que o primeiro plano alterna com o de fundo, ou com o intermédio, ou seja, naquela diferenciação que emerge da ilusão da profundidade de campo (que registámos como P3 — oscilação que os textos anglo-americanos americanos designam por deep/shallow focus).

  • Quem foi a mulher do último rei de Portugal? O Expresso não sabe

    Quem foi a mulher do último rei de Portugal? O Expresso não sabe


    Caro amigo leitor, veja se consegue responder a esta questão sem ter de ir procurar em livros ou na Internet: quem foi a mulher do último rei de Portugal?

    Se não sabe – ou até diz que nem sequer precisa de saber para continuar a sua vida –, tudo bem. Pode permanecer na ignorância sobre a sua própria História, pois esse é um direito que lhe assiste.

    Aliás, num país que se diz republicano, acredito que até seja um ponto de honra e orgulho dizer que não sabe, nem quer saber, nem lhe interessa conhecer o nome da mulher do último rei de Portugal.

    gold and blue crown

    No entanto, um povo culto e conhecedor da sua própria História é um povo exigente. E, dessa exigência, resulta depois uma melhor escolha dos governantes. Só que há portugueses com orgulho na sua ignorância e, mesmo assim, permitem-se serem exigentes com os dirigentes. Estes, que não são propriamente burros, sabem que os outros, ignorantes da sua História, podem depois ser facilmente comprados com falinhas mansas e subsídios. É, aliás, da História.

    Serviu esta introdução para dizer que há dias, na revista do Expresso (Edição 2591 de 24 de Junho de 2022), na secção de passatempos, nas palavras cruzadas, no 2 Horizontal, pedia-se que se indicasse, com seis letras, a “mulher do último rei de Portugal”.

    Assim que olhei para aquilo, pensei que era uma questão muito inteligente e lembro-me de ter congratulado, mentalmente, o autor – Marcos Cruz – por ter apresentado uma tão interessante questão.

    Repare-se que não estava a pedir o nome da “última rainha de Portugal”, embora se pudesse dizer que a mulher do rei é sempre uma rainha. Não. Se fosse a última rainha de Portugal, a questão poderia tornar-se aberta a subtilezas e interpretações jurídicas quanto ao que o autor das palavras cruzadas pedia. Seria a última rainha reinante, que foi D. Maria II, ou a mulher do último rei de Portugal?

    Palavras cruzadas do Expresso: para seis letras, quem foi a “mulher do último rei de Portugal”. A resposta certa (Amélia) estava, afinal, errada.

    Perguntar quem foi a mulher do último rei de Portugal é, assim, um pouco diferente do que perguntar quem foi a última rainha de Portugal, se bem que para uns puristas, uma e outra são sempre a mesma coisa: é mulher de rei? Então é rainha!

    Mas, é preciso ver que o último rei de Portugal, quando deixou de ser rei, ainda não era casado. Não tinha rainha. Porque, como todos bem sabemos, o último rei de Portugal foi… bem, caro leitor, quem foi mesmo o último rei de Portugal?

    A maioria das pessoas a quem coloco esta pergunta costuma dizer que o último rei de Portugal foi D. Carlos. Cada vez que me dizem isso, peço-lhes então que verifiquem os seus conhecimentos sobre a História que ambos partilhamos em comum pelo facto de termos escrito “República Portuguesa” no CC.

    Se D. Carlos foi assassinado no Terreiro do Paço, a 1 de Fevereiro de 1908, pelo Costa e Buíça, e se, nesse mesmo dia, mataram também o seu filho mais velho e herdeiro do Trono, Luís Filipe, então Portugal ficou sem rei entre Fevereiro de 1908 e 5 de Outubro de 1910, data da Implantação da República?

    Ora, claro que não, caro leitor. Claro que não porque, o último rei de Portugal não foi D. Carlos, mas sim o seu filho mais novo, que ficou para a História de Portugal como D. Manuel II.

    Aclamado em Cortes, no mesmo edifício onde hoje é Assembleia da República, a 6 de Maio de 1908, seria deposto a 5 Outubro de 1910, tendo partido para o exílio, em Inglaterra, com a sua mãe, Amélia de Orleans.

    Estabelecido então, sem sombras para dúvidas, que o último rei de Portugal não foi D. Carlos, mas sim o seu filho D. Manuel II, a questão levantada pelas palavras cruzadas do Expresso é, deveras, interessante.

    Senão vejamos: D. Manuel II, último rei de Portugal estava solteiro quando foi deposto a 5 de Outubro de 1910. A rainha era a rainha-mãe, Amélia, mulher de D. Carlos e mãe de D. Manuel II.

    De facto, o último rei de Portugal casou. Mas o matrimónio só teve lugar em 1913, três anos depois de ter sido deposto do trono de Portugal, já quando estava a viver no exílio inglês. D. Manuel II casou a 4 de Setembro de 1913 com Augusta Vitória, princesa de Hohenzollern-Sigmaringen. Esta foi, de facto, tal como pedia as palavras cruzadas do Expresso, a “mulher do último rei de Portugal”.

    Daí a minha primeira reacção ter sido a de verificar ali uma maneira muito inteligente de colocar a questão, já que, dizer “última rainha de Portugal” seria algo que levantaria dúvidas. Haveria quem defendesse que se deveria considerar Augusta como rainha, visto ter casado com um rei – mesmo que ele não o fosse na prática –, e haveria aqueles que defenderiam que a última rainha de Portugal seria aquela que ocupava o cargo em 1910, antes da abolição da monarquia, o que, nesse caso, era D. Amélia, mulher de D. Carlos e mãe de Manuel II.

    D. Manuel II foi destronado em 1910, com a implantação da República, e era então ainda solteiro.

    Mas a questão do Expresso era taxativa e sem espaço para dúvidas, uma vez que não nos embrenhava em questões jurídicas, apresentando-nos, sim, uma simples questão de cultura geral colocada de forma inteligente: quem fora a mulher de D. Manuel II, último rei de Portugal? E a resposta, única e inequívoca, é só uma: Augusta.

    Só que, caro leitor, com quantas letras se escreve a palavra Augusta? Com sete letras. Mas a resposta que o Expresso pedia… seis letras. É nessa altura que aquilo que eu considerava ser a coisa mais inteligente que tinha visto no Expresso nos últimos anos, acabou por se transformar na dúvida mais agonizante sobre a ignorância histórica de Portugal, impressa num jornal que vai comemorar 50 anos de vida em Janeiro próximo e que é responsável pela informação transmitida a muitos portugueses.

    E que forma opinião.

    Será que o Expresso ignorava que o último rei de Portugal fora D. Manuel II e julgava que o pai dele, D. Carlos, é que era o último rei? É que Amélia, mulher de D. Carlos, tem seis letras… Será que a resposta certa era Amélia e não Augusta?

    Esperei uma semana para confirmar a minha dúvida.

    Uma semana depois (Revista Expresso 2592 de 1 de Julho de 2022), lá vinha a solução da 2 Horizontal, seis letras: Amélia. Para o Expresso, a mulher do último rei de Portugal chamava-se Amélia, mulher de D. Carlos e mãe de D. Manuel II.

    Esta ignorância da parte do Expresso é a mesma de muita gente em Portugal e que, infelizmente, ameaça contaminar as gerações futuras. Não vou entrar em clichés de afirmar que, quem não conhece a sua História está condenado a repeti-la, mas gosto sempre de avisar que George Orwell escreveu no seu 1984 que “quem controla o passado, controla o futuro; quem controla o presente controla o passado”. E o Expresso controla o presente. E se o Expresso nos diz que a resposta correcta à questão de quem foi a “mulher do último rei de Portugal” é Amélia, então o Expresso, ao controlar o passado, está a reescrever o futuro.

    É que esta questão da mulher do último rei de Portugal não é de somenos importância. Ao ignorar que D. Manuel II foi o último rei de Portugal e que casou, mas morreu sem deixar descendência, é o futuro que está em causa.

    O Expresso, ao ignorar isto, nunca vai conseguir informar os seus leitores que o último rei de Portugal morreu em 1932, há exactamente 90 anos – cumpridos a 2 de Julho –, três dias antes da tomada de posse de António de Oliveira Salazar como Ditador, a 5 de Julho de 1932.

    D. Carlos, penúltimo rei de Portugal, assassinado em 1908,e a sua mulher, D. Amélia de Orleães, durante uma visita à Madeira, em 1901.

    O Expresso não vai assim poder contar que, um mês depois, a 2 de Agosto de 1932, Salazar presidiu ao funeral do último rei de Portugal, quando o corpo de D. Manuel II veio de barco de Inglaterra e o caixão desfilou depois pelo Terreiro do Paço, no mesmo local onde pai e irmão foram assassinados 22 anos antes, e sepultado no Panteão dos Braganças, no Mosteiro de São Vicente de Fora.

    Na verdade, a Monarquia não acabou a 5 de Outubro de 1910, mas sim quando Salazar fez o funeral ao último rei de Portugal, em 1932, sendo que a mulher do último rei de Portugal, Augusta Vitória, faleceu a 29 de Agosto de 1966. Sem descendência.

    O Expresso não vai conseguir ainda contar aos seus leitores que, por D. Manuel II não ter deixado filhos de Augusta, Salazar conseguiu manter o poder porque o país estava dividido entre monárquicos e republicanos.

    Já estava assim desde 1910, pelo que houvera a necessidade de um golpe militar a 28 de Maio de 1926; mas, em 1932, os monárquicos estavam divididos sobre quem deveria suceder a D. Manuel II. Era preciso encontrar um candidato dentro do País ou então ir buscar, ao exílio, na Áustria, os descendentes do rei D. Miguel.

    Mas este era de má memória, pois os descendentes representavam o rei banido do trono depois da derrota na Guerra Civil de 1832-34, contra o irmão D. Pedro IV, do qual D. Manuel II era o último representante real directo.

    D. Manuel II e a sua mulher Augusta Victoria de Hohenzollern no exílio. Nascida em 1890, no Império Alemão, casou em 1913 com o deposto rei português seu primo em segundo grau, Faleceu em 1966, na Alemanha.

    Para Salazar foi a oportunidade de ouro para dividir e reinar. Pediu aos partidários de uma solução interna que se mantivessem quietos, senão iria à Áustria buscar os descendentes do rei Absolutista, mais bem organizados. Disse depois a estes que estivessem quietos, senão iria encontrar uma solução interna. E disse aos republicanos que estivessem quietos, senão iria buscar não importa quem. E todos, “a bem da Nação”, ficaram quietos.

    Nos anos 50 do século passado, seguindo uma proposta do deputado Jorge Botelho Moniz, terminou a chamada Lei do Banimento e os descendentes de D. Miguel puderam regressar a Portugal. Entre eles, veio uma criança chamada D. Duarte, agora o putativo rei de Portugal. O Estado Novo apostou na ignorância dos Portugueses e começou a controlar o passado. A controlar o nosso futuro. Já ninguém falava numa solução interna.

    A 5 de Abril de 1967, o corpo de D. Miguel, após ter sido exumado na Áustria, regressou a Portugal e foi sepultado ao lado do corpo do irmão, D. Pedro IV. Pouco a pouco, o regime do Estado Novo começou a corrigir o resultado da Guerra Civil de 1832-1834, substituindo a memória de D. Manuel II, último rei descendente directo de D. Pedro IV e das ideias liberais, pelos descendentes de D. Miguel, absolutistas e conservadores. E, a 10 de Abril de 1972, já com Salazar morto e enterrado em campa rasa em Santa Comba Dão, o corpo de D. Pedro IV, foi trasladado do Mosteiro de São Vicente de Fora e enviado de barco para o Brasil, por ocasião dos 150 anos da Independência do País.

    D. Duarte Pio de Bragança não é descendente de D. Manuel II, que não teve filhos.

    O Expresso bem que poderia dizer que, em breve, quando o coração de D. Pedro IV, que está na Igreja da Lapa, no Porto, voar num avião da Força Aérea do Brasil, por ocasião dos 200 anos da Independência do País, aquele será o último vestígio físico em Portugal do antecessor do último rei de Portugal. Mas para isso seria preciso primeiro que o Expresso soubesse a História de Portugal.      

    P.S. A pessoa que assina as palavras cruzadas do expresso é “Marcos Cruz”. É do conhecimento público que este é o pseudónimo de Mercedes Balsemão, mulher de Francisco Pinto Balsemão, dono e fundador do Expresso e descendente de um filho bastardo de D. Pedro IV. Tal não significa que tenha sido ela a responsável pela questão que provocou esta crónica. Poderá ter sido outra pessoa que a substituiu. De qualquer modo, em última análise, cabe ao director do semanário fazer a devida correcção. A mulher do último rei de Portugal chamava-se Augusta e não Amélia. Amélia era a senhora sua mãe.

    Frederico Duarte Carvalho é jornalista e escritor


    N.D. Os textos de opinião expressam apenas as posições dos seus autores, e podem até estar, em alguns casos, nos antípodas das análises, pensamentos e avaliações do director do PÁGINA UM.

  • Ferreira de Castro

    Ferreira de Castro


    A posição de Ferreira de Castro (1898-1974), como escritor, tendeu sempre para uma afirmação de empenhamento político e/ou ideológico. Quer a problemática da situação social, quer a da convicção religiosa, impregnaram, de um modo evidente, os seus escritos, desde o primeiro momento.

    Por isso mesmo, ele inscreveu-se, ao longo da sua carreira, nos horizontes preceptivos do naturalismo, do neo-realismo e, nos momentos finais, nas tendências de um realismo didáctico-religioso, que marcou algumas produções europeias dos pós-guerras. Assim, duas ou três notas biográficas parecem-nos importantes, para entendermos um pouco melhor o escritor Ferreira de Castro.

    O enquadramento geográfico de origem é, no presente caso, um dos pontos a evidenciar em tais notas. Deve registar-se, sobre essa matéria, que o autor ora referido nasceu numa aldeia, então “remota e primitiva”, aonde nem mesmo o comboio chegava, para já não falar da escassez e primitivismo das estradas. Trata-se do povoado de Salgueiros, freguesia de Ossela, conselho de Oliveira de Azeméis, distrito de Aveiro.

    Ferreira de Castro

    Segundo o seu mais aturado estudioso, Jaime Brasil, essa origem determinará, em grande parte, o homem e o escritor, pois em tão humilde reduto, mal localizável no mapa, ainda hoje, habitava a família de Ferreira de Castro, ignota e recatada como o local de seu afinco. Modesta foi, na mesma tradição, a infância e a formação de José Maria Ferreira de Castro.

    É em relação a esse meio que ele consegue destacar-se primeiro. O suficiente para melhor o representar, sem, contudo, se distanciar a ponto de se afastar dele: numa época em que a Instrução Primária tinha dois graus, só ele e o filho do professor da escola, então, se candidataram ao segundo. É verdade que o realizou com sucesso, mas também é certo que as posses da família nunca lhe permitiram ir mais além.

    Adquiridas as aptidões básicas para ser capaz de se exprimir, com mais destreza do que os seus conterrâneos, adquirindo a capacidade da escrita desenvolta a que se entrega desde os primeiros momentos da adolescência, parte de Ossela antes de ter completado os 13 anos de idade, rumo ao Brasil, em 1911.

    Aí, entre os 14 e os 16 anos, dedica-se a uma precoce e invulgar actividade de escrita, que vai enviando para pequenos jornais e revistas de diversos estados do país sul-americano, enquanto trabalha como funcionário de um armazém, num seringal amazónico.

    Não menos surpreendente é que tenha escrito o seu primeiro romance com 16 anos de idade, acabando por publicá-lo no ano em que completou 18 anos. Vale a pena enumerar as suas obras mais precoces, que publica a um ritmo quase frenético, ao mesmo tempo que exerce a profissão de jornalista, quer no Brasil, até 1919, quer em Portugal, dessa data até 1927:

    Primeira obra de Ferreira de Castro, publicada quando contava apenas 18 anos.

    Criminoso por Ambição (1916), Alma Lusitana (1916), Rugas Sociais (1917-18), Mas… (1921), Carne Faminta (1922), O Êxito Fácil (1923), Sangue Negro (1923), A Boca da Esfinge (1924), A Metamorfose (1924), A Morte Redimida (1925), Sendas de Lirismo e de Amor (1925) A Epopeia do Trabalho (1926), A Peregrina do Mundo Novo (1926), O Drama da Sombra (1926), A Casa dos Móveis Dourados (1926), O Voo nas Trevas (1927).

    Um tal ritmo de actividade de escrita, feita, sobretudo a jornalística, para sobreviver e actuar, enquanto cidadão, no mundo, parece ser uma marca muito própria do escritor português, propondo um projecto verdadeiramente caro a certas facções do modernismo literário europeu, segundo as quais o acto poético-literário se apresentaria como fundamentalmente um impulso vital: mais do que pelo que representa, segundo um tal ponto de vista, o escritor intervém política, ideológica e socialmente pela actuação no mundo como escritor.

    Assim, não seria a vida e a existência social que explicariam a obra, como queria um certo biografismo tradicional, mais conformista, mas seria, antes, a obra, o fazer da obra, a luta pela obra, que ajudaria a explicar o homem. Como Miriam Cendrars diria de seu pai, Blaise Cendrars (não por acaso entusiasta tradutor de A Selva, de Ferreira de Castro) poderíamos nós dizer do autor de Emigrantes: “se o seu material era a vida, a vida do homem […] era a escrita” (1996: 82).

    Mas não é só pelo que demonstra da sua precoce e quase vital capacidade de produção que o corpus romanesco acima apresentado é significativo. Também o é por ter sido totalmente abandonado pelo autor que, logo no ano seguinte ao do último romance acima indicado, em 1928, publica a primeira das obras que considerará verdadeira e infinitamente suas: Emigrantes.          

    É importante reiterar o que dissemos logo no início desta breve apresentação. A posição de Ferreira de Castro, como escritor, tendeu sempre para uma afirmação de empenhamento político e/ou ideológico. Quer a problemática da situação social, quer a da convicção religiosa, impregnaram, de um modo evidente, os seus escritos, desde o primeiro momento. Por isso mesmo, ele inscreveu-se, ao longo da sua carreira, nos horizontes preceptivos do naturalismo, do neo-realismo e, nos momentos finais, nas tendências de um realismo didáctico-religioso, que marcou algumas produções europeias dos pós-guerras.

    No fundo, trata-se de defender, no plano do romanesco, a propagação dos “valores universais e abstractos da humanidade, liberdade, justiça e humanitarismo” (Benjamin, 2006: 332; cf. tb. Benjamim, 2006:332-333). O romancista português mantém, em muitos dos seus romances, por via de uma história que desenvolve como o relatório de uma experiência, a sua profunda aprendizagem naturalista, embora se afaste, em certos casos, de alguns dos traços estilísticos mais evidentes da “escola de Zola” como, por exemplo, a sobrevalorização dos traços de carácter, ou a representação exaustiva dos estigmas fisiológicos, juntamente com a pormenorização intensa dos traços fisionómicos.

    Primeiro romance de sucesso de Ferreira de Castro, Emigrantes foi publicado em 1928.

    No entanto, mantém com ela marcas do reconhecimento, nomeadamente no apuro quase pictórico das descrições dos espaços, que, por assim dizer, caracterizaram os primeiros romances da segunda fase, nomeadamente aqueles que o celebrizaram como grande ædo da emigração, em harmonia com os contornos da acção e com os traços físicos e anímicos dos caracteres humanos (cf. cjfjorge, 2001).

    Pode-se deduzir, tendo em atenção o que sabemos do êxito e aceitação variável que teve a obra de Ferreira de Castro na nossa cultura, que tocamos um ponto fundamental para a compreensão da produção do autor. Para desenvolvermos as nossas considerações, não podemos deixar de abordar, ainda que brevemente, o modo como ele foi enquadrado, a partir do naturalismo, no panorama da nossa história literária. É evidente que, a opinião mais importante a que devemos dar atenção, quando se trata de perspectivar Ferreira de Castro na nossa história literária, no universo cultural em que a sua obra se moveu, é a de Óscar Lopes.

    Segundo ele, a obra de Ferreira de Castro, logo a partir do seu primeiro romance consagrado, Emigrantes, obteve uma ampla audiência (cf. in Saraiva e O. Lopes, s/d -17ª edição- :1025). Nas suas palavras, “Ferreira de Castro foi um dos mais populares e traduzidos escritores portugueses, o que se deve ao facto de os dois romances que mais o consagraram [Emigrantes e A Selva] ressumarem, apesar de todas as limitações de escrita, a sua própria dura experiência, mal conhecida, de emigração num seringal da floresta amazónica” (pp.1025-1026).

    Para tornarmos mais clara a perspectiva que queremos aqui defender, resumidamente, devemos comentar as palavras que citámos, de Óscar Lopes. Notemos, desde já, simplificando muito, que, se ele admira o valor documental de experiência humana do emigrante trabalhador braçal, logo restringe o valor pleno da obra pelas “limitações da escrita”.

    Por outro lado, acentua, com a devida simpatia, a aceitação popular que os romances tiveram por parte dos leitores “comuns”. É importante registar estes factos porque o crítico e historiador literário, se é parco nos encómios, chegando mesmo a ser restritivo na valorização, não deixa de manifestar simpatias e considerações positivas quando afirma que a obra do romancista “contém algumas das situações mais representativas do novo realismo social” (in Saraiva e O. Lopes, s/d-17ª edição: 1026). Cremos ter apresentado aqui, muito resumidamente, os dados e as conjecturas básicas para o breve enquadramento histórico-literário que pretendemos fazer.

    Como primeiro ponto a destacar, surge-nos o sucesso das obras de Ferreira de Castro junto de um público de leitores fiéis.

    Como segundo ponto a ter em conta, devemos sublinhar o facto de as obras de Ferreira de Castro terem deixado de ser integradas nos grupos ou escolas literárias do seu tempo, nomeadamente o modernismo e o neo-realismo; deixaram, assim, de ser lidas num sentido forte do termo, que inclui a valorização canónica.

    Como terceiro ponto, devemos ainda acrescentar que os seus textos, de uma maneira geral, deixaram de estar presentes nas antologias – quer entre os modelos de escrita do secundário, quer nos académicos, nas listas de obras para análise do ensino superior. Tudo se passa como se a produção do romancista tivesse mantido uma presença subterrânea relativamente aos valores do poético (a relação com as outras obras reconhecidas como artísticas pelos próprios escritores) e do literário (as qualificações necessárias para estar presente, como exemplar, nos elencos das escolas e universidades).

    Escultura em homenagem a Ferreira de Castro em Oliveira de Azeméis, inaugurada em 1966, para comemorar os 50 anos de percurso literário.

    Se admitirmos que um cânon literário é “uma lista ou elenco de obras consideradas valiosas, dignas de serem estudadas e comentadas por essa mesma razão” (Sullà,1998: 11), poderíamos admitir que, entre os valores de leitura e os de estudo e comentário se processou um divórcio no que diz respeito aos romances de Ferreira de Castro. Usando os conceitos de legível e escritível, que Barthes propõe para distinguir, grosso modo, o que separa o clássico, como objecto consumível, não problemático, do poético, que, pelo efeito estético, convida o leitor a não ser apenas um consumidor, mas a recriar ou a problematizar (cf. 1970: 10), podemos dizer que, segundo essa bipartição, Ferreira de Castro entrou no cânon da legibilidade, tendo sido proscrito do da escritibilidade.

    Enquanto elemento da legibilidade, ele tornou-se, como o provam as edições e o número de exemplares vendidos, uma espécie de campeão do cânon clássico; como proscrito da poeticidade, tornou-se um esquecido ou um desvalorizado.

    A perda das qualificações necessárias para estar presente, como exemplar, nos elencos das escolas e universidades, como acima evocámos, provém, talvez, do facto de ele ser um clássico deslocado, de ser demasiado legível no momento em que escrevia, não sendo possível ao reconhecimento escolar e académico enquadrá-lo na cultura do seu tempo, quer o escopo fosse o do modernismo, quer fosse o da postura ideológica no debate do seu tempo. De certo modo, é contra a legitimidade destes factos culturais que o nosso texto procurará argumentar.

    Ora, como no campo da cultura em geral, e da literatura em particular, a legitimidade é estabelecida exactamente pelas operações de canonização, a nossa argumentação não pode ser, evidentemente, dirigida contra os critérios de tal processo de reconhecimento.

    Procuraremos, antes, mostrar que talvez a razão de se terem excluído os romances de Ferreira de Castro dos cânones da poeticidade se deva a leituras equívocas. Ou por outra, dado o espaço parco de que dispomos, procuraremos lançar a dúvida sobre alguns passos do processo que levaram à exclusão de F. C. dos elencos que merecem ser estudados e comentados. Procuraremos, assim, instalar uma suspeita: a de se terem avaliado mal alguns aspectos da sua obra, no processo de legitimar a sua exclusão.

    Uma das razões pelas quais a obra do autor de Emigrantes se tornou muito popular foi a da sua acessibilidade aos leitores. Tal acessibilidade pode ser entendida, sem com isso se estar a raciocinar mal ou apressadamente, como uma excessiva obediência aos códigos do género, aos processos, já gramaticalizados, que fazem dum romance um mecanismo de legibilidade simplificada.

    Uma rápida síntese desses mesmo códigos, e dos que se lhes opõem, pode revelar-nos os dados básicos pelos quais se procedeu a uma depreciação poético-literária do romancista que aqui analisamos. Em primeiro lugar, devemos ter em conta que todo o modernismo português, incluindo o neo-realismo que, nesse ponto, se mantém aliado do próprio presencismo, procura valorizar aquilo que Óscar Lopes, na obra citada, chama os “impulsos impremeditados”(p. 1025), defendendo o “psicologismo” contra os “processos de reportagem”.

    Interior do Museu Ferreira de Castro, em Sintra.

    Simultaneamente, outros procedimentos que ganham valor poético são os da valorização do “mostrar”, pelo apagamento do “contar” (o narrador omnisciente deveria, segundo esse código modernista, desaparecer, ou reduzir-se ao máximo como “voz”); o da proscrição das axiologias (contra as teses asseguradas e validadas pela voz narrativa épica) em favor de uma ausência de valores seguros por uma voz de valor imperativo autoral – mesmo o neo-realismo, para defender as suas teses sociais, preferirá o processo de fornecer os dados da acção sem comentário do narrador, ou seja, apresentando os factos através de uma focalização diegética comprometida política e ideologicamente, mas suspendendo o juízo autoral.   

    Julgamos que os elementos e processos condenados pela crítica contemporânea de Ferreira de Castro se podem resumir aos que caracterizavam o romance clássico, ou seja, o romance naturalista que, tendo ele próprio constituído o seu cânone, se preparava para ser desvalorizado como previsível, datado, e legível pela crítica modernista ou modernizante.

    Tal legibilidade que, junto com o facto de abordar temáticas de dramatismo popular (que lhe reforçavam a legibilidade e, por outro lado, os vínculos com o naturalismo da tradição zoliana – que, como se sabe, era atenta aos dramas populares da “patologia social”), liga Ferreira de Castro ao naturalismo (como o próprio Óscar Lopes o reconhece – cf. 1986: 40-41), revela-se uma “facilidade de leitura” que reforça, pelo facto de Ferreira de Castro também não ter abdicado do excesso de “voz” épica (comentadora e judicativa), a suspeita que sobre ele recai por parte da crítica neo-realista.

    Publicado em 1930, A selva, com contornos auto-biográficos, é uma das obras de Ferreira de Castro mais aclamadas pela crítica.

    Dado que a descrição (pelo que manifesta de um exercício voluntariamente “autoral”, de léxico e sintaxe “culta”) e o seu funcionamento, segundo determinados moldes, é um dos processos mais comummente atribuídos o naturalismo, sendo um dos sinais a causar a “datação” das obras que o usam, é esse mesmo processo que iremos observar nos primeiros romances da segunda fase de Ferreira de Castro, segundo os propósitos já acima expostos.

    Devemos ter em conta, no entanto, numa conceptualização que iremos afeiçoando à medida da nossa argumentação, o que, na descrição, leva à construção dos efeitos de lugares e de espaços.  

    Começando pelas primeiras linhas do primeiro romance “reconhecido” pelo autor, Emigrantes, vejamos um exemplo que, relacionado com os princípios naturalistas e modernistas, nos pode ajudar a reavaliar a obra de Ferreira de Castro.

    As primeiras palavras do romance são as de uma descrição. Depois de apresentar uma ave, no seu esvoaçar, a descrição, motivada por esse movimento, desenvolve-se pela apresentação do pinhal e, seguidamente, da paisagem em que este se enquadrava. Só depois a descrição volta ao animal, revelando que este estava a fazer o ninho. A voz do narrador, que se presume ser a que descreve, assume a posição épica clássica na construção da ekphrasis documental.

    Mas o olhar que ele usa é o da personagem que, pelo que nos é revelado mais tarde, se desenvolve como protagonista. É essa personagem que nos é descrita exactamente na posição de observador do trabalho do pássaro. Descansando, à sombra de um pinheiro, vendo o trabalho da ave e toda a paisagem onde a actividade se inscreve, a personagem começa por ser apresentada através da sua recordação. A liberdade do esvoaçar da pega leva-o a evocar os seus tempos de menino, durante os quais se dedicava a apanhar ovos nos ninhos. Só regressa ao presente quando se detém a “contemplar a sua casita”.

    Segue-se a descrição da casa, da horta, dos campos que se estendiam “para lá do muro”. São estes que, fazendo-lhe surgir o desejo de os ter, introduzem o tema da emigração: era preciso emigrar para arranjar dinheiro para os comprar.

    Para abordarmos, desde já, o centro da questão sobre a qual queremos argumentar, reparemos que, se a voz que descreve é, indiscutivelmente, a do narrador “épico”, segundo o modelo naturalista que pretendia dar o enquadramento das personagens, o uso que aqui é feito de uma tão prolongada descrição (são quase quatro páginas), remete-nos para o “interior” da personagem. Se atentarmos bem no processo, podemos verificar que o mecanismo revelado neste passo não é o dos primeiros ensaios do “romance «dramatizado»” de que fala Dorrit Cohn,[1] mas sim o do “monólogo narrativizado” do romance realista com os seus processos bem desenvolvidos que permite apresentar a “fluidez íntima” da sua personagem “perante a experiência fugitiva” (cf. Cohn, 1981:140-41).

    Não se trata da narrativa auto-diegética, do percurso de auto-análise, como José Régio, entre outros, se propôs reactivar para construir os seus romances em torno de uma consciência. Contudo, este procedimento, se observado dentro dos códigos da época, não se revela menos moderno e produtivo. Sobretudo se atendermos ao modo privilegiado como é usado e a funcionalidade que tem, ao longo da narrativa, tal processo de F. de  C. parece-nos bem mais próximo dos usos modernistas que Virginia Woolf  lhe dá (em Mrs Dalloway, por exemplo) do que dos escritores de construções romanescas mais tradicionais.

    Publicado em dois volumes, A volta ao mundo teve a primeira edição em 1940 e 1941.

    Só por uma questão episódica de moda muito momentânea, que leva a enfatizar alguns dos processos que Proust usou, nomeadamente o  da narração autodiegética, se pode pretender ver um modernismo assente no romance de consciência (“dentro de uma cabeça”, como João Gaspar Simões emblematizou num subtítulo que acabou por tornar evidente o processo modernista) contra um tradicionalismo assente na modalidade épica da enunciação.

    De facto, é historicamente muito mais moderno o processo usado por Ferreira de Castro, que só se começa a desenhar, com clareza, num momento desenvolvido do realismo do século XIX, com Flaubert, sobretudo, mas também, intensamente, com os momentos mais ousados do naturalismo. Ferreira de Castro utilizará o processo, de modo quase exaustivo, sobretudo em duas narrativas romanescas: Tempestade (1940) e A Curva na Estrada (1950).

    Em ambas, o processo narrativo visa, sobretudo, obter, de modo hiperbolicamente intenso, o funcionamento da consciência dos seus protagonistas: o primeiro, pela exposição do processo de paixão amorosa arrebatada pelo ciúme, o segundo, pelo confronto de uma personagem face às ideologias políticas, dentro das quais se realiza o seu processo de fundação da personalidade enquanto militante político das esquerdas socialistas, na Espanha pré-franquista.

    Em ambos os casos, impulsos vitais e fantasmas superegóicos activam, como um turbilhão matricial, a formação dos traços inconscientes segundo os quais o fluir das consciências se vai manifestado nas suas rupturas trágicas, no dramatismo fantasiado das suas obsessões, que um narrador omnisciente, ou em focalização zero, vai apresentando. 

    Ferreira de Castro aproxima-se, quanto a este ponto, de Thomas Mann que, no século XX, segundo Cohn, é quem leva até ao ponto limite de todas as possibilidades a narração heterodiegética – de um narrador extradiegético, evidentemente.

    Por esse processo, manifesta-se a “superioridade do narrador”, quando comparado com uma personagem ou com um narrador autodiegético (que, para este efeito, é o mesmo), “relativamente ao conhecimento da vida interior da personagem e às capacidades requeridas para a descrever e avaliar” (1981:45).

    Na modalidade mais comum no século XIX, podemos falar, seguindo Cohn, de uma psico-narrativa, sempre que um narrador apresenta a vida interior de uma personagem de modo mais profundo e completo do que essa mesma personagem seria capaz de fazer, quer mantendo-se claramente dissociado da mente que “lê” ou “disseca”, quer apagando-se completamente, deixando-se absorver por ela.

    O modo de sustentar a tese, de desenvolver uma máxima ou enunciado de valor gnómico e hortativo, numa formulação ficcional, no caso de algumas das suas narrativas, deve ser encarado em duas vertentes: o da motivação de quem assim o formula, e o da sua validade no plano poético e noético.

    Instituto supremo, de 1968, foi o último romance de Ferreira de Castro.

    Esta dupla validação, se é importante na produção artística em geral, assume particular importância quando a obra realizada se ostenta como portadora de uma tese ou, como é mais frequente, de várias teses. Porque, de facto, se qualquer enunciado artístico não consegue separar a sua formulação estética, de apelo aos sentidos, de uma formulação que a torna objecto inteligível, da ordem do conhecimento, costuma ser apanágio da expressão artística, em geral, produzir a sua própria instância de verdade na fantasia, constituindo esta como instância suprema.

    Contudo, na formulação poética de tese, a dimensão gnómica surge em paridade com a estética. Por vezes, o seu peso é tal, sobretudo quando se trata de um assunto de “actualidade”, que se sobrepõe mesmo à valorização artística. Estão, nesse caso, narrativas de Ferreira de Castro que se constroem quase como documentários, ou relatos de situações sociopolíticas bem determinadas, dentro de reconhecíveis formulações ideológicas, das quais representam destacados exemplos A Lã e Neve (1947), A Missão (1954), e O Instinto Supremo (1968).

    Uma das características marcantes do trabalho literário de Ferreira de Castro,  a de ele se absorver profundamente numa inventio empenhada na reportagem e na documentação,  não tem tanto a ver com a sua oficina de escrita, como, sobretudo,  com o seu processo de busca de materiais. Isto torna-o um viajante em permanente busca de casos, tópicos e motivos emblemáticas para a construção da sua ficção, e um apaixonado antropólogo amador.

    Os dois últimos títulos por nós apresentados são reveladores do primeiro aspecto, dado que a acção do penúltimo se situa em França e a do último no Brasil. Mas é evidente que a eles são apenas exemplos mais recentes – não nos esqueçamos de que Emigrantes (1928) e A Selva (1930) se reportam à experiência brasileira, e A Curva na Estrada (1950) revela uma aturada atenção à política espanhola, além de uma cuidadosa documentação sobre a matéria.

    O aspecto do pendor marcadamente etnográfico e antropológico surge, sobretudo, a partir de Eternidade (1933), onde se observa uma aturada atenção à sociedade madeirense, e adensa-se  em três romances fundamentais como ilustração do género: Terra Fria (1934), narrativa quase esquemática, de tons épicos e melodramáticos, relatando um triângulo passional vivido por três habitantes de uma remota terriola de Trás-os-Montes, onde os sentimentos básicos se manifestam no quadro de uma sociedade a viver nos limites da escassez e da ausência de enquadramento político nacional,  em arredamento do processo histórico; A Lã e a Neve (1947), onde se reflecte todo o quadro ideológico, económico e político da Europa, em plena II Guerra Mundial, num microcosmo aldeão, no qual os confrontos políticos e as lutas de classes se desencadeiam ao ser introduzido o modo de produção industrial cheia de tiques tayloristas, no seio de uma população a viver, praticamente até à véspera, uma economia baseada na pastorícia, pautada pela rotina sazonal da transumância;  e O Instinto Supremo (1968), onde se narra o avanço de uma equipa de trabalho etnográfico, visando, em última instância, desbravamento, aculturação, com abertura de vias modernas e fundação de povoações no coração da Amazónia, num processo em que se patenteia como esse acto de aculturação, procedendo no sentido do domínio, nomeadamente da instalação da Lei e da sua força, procura  ostentar, na vanguarda, a pacífica movimentação do “cordeiro” – arrastando mesmo prosélitos prontos a serem abatidos, sem procurarem replicar contra a investida dos parintintins, sedentos de salvaguardarem o seu universo primitivo. 

    Um historicismo positivista latente parece “guiar ideologicamente” Ferreira de Castro, não só nestas obras de inclinações “etnográficas”, como naquelas em que, mais claramente, assumiu a atitude do repórter ou do viajante documentarista: Pequenos Mundos, Velhas Civilizações (1937), A Volta ao Mundo (1940 e 1944), As Maravilhas Artísticas do Mundo – Volume I (1959) e Volume II (1963).

    AS maravilhas artísticas do Mundo, uma obra monumental de Ferreira de Castro, publicada em dois volumes em 1959 e 1963.

    Neles, estão presentes os valores da civilização com base nos modelos axiológicos do Ocidentes, nomeadamente o reconhecimento da humanidade como universalmente idêntica. A descoberta desta identidade, no construir da civilização, partindo do desenvolvimento dos valores próprios, parece-nos constituir o centro ideológico dominante que norteia o humanismo modernista de Ferreira de Castro, elaborado pela atitude de compreender o Outro, na sua diferença de base, desde que se revele capaz de assumir os valores do progresso, que são os da civilização ordenada, segundo as dinâmicas do desenvolvimento técnico-científico, marcas da humanidade tendendo para o “uno”. Descobrir essa unidade, para lá de diferenças episódicas, no quadro de uma experiência empírica que a volta ao mundo faculta é, em nosso entender, uma formulação de máxima importância para a constituição da mentalidade moderna do pensamento histórico e filosófico do Ocidente.

    Não mais o “outro” empírico e experienciado se revela a face temível da alteridade (o Outro enquanto fantasma cultural, monstruosidade ameaçadora), mas, antes, vem ostentar a manifestação de uma variedade racionalmente previsível, teoricamente já anunciada pelo pensamento iluminista. O que surge, de modo inovador, como proposta humanista, é o ser diferente nos seus fundamentos culturais, mas idêntico na sua valorização ontológica. Ganha significado, desse modo, a visão do Outro como semelhante, admitindo o sentido de uma comunhão em que o universo seria uma frátria, ou um uniteísmo, à maneira de Fourier (cf. Barthes, 1971: 107), integrando pátrias, lugares das diferenças culturais. Fundamentalmente, no entanto, ao optimismo relativo que parece construir-se como uma conclusão entretecida no desenrolar da perigeia modernista, herdeira da utopia de Jules Verne, vem contrapor-se, em Ferreira de Castro, um pessimismo que se traduz, quase sempre, por um olhar fascinado pelos rituais e símbolos da morte, marcos do percurso para uma “vida eterna”.

    Ferreira de Castro em 1960, na Livraria Sá da Costa, na companhia do jornalista Alfredo Noales, do jornal República.

    Perpetuando, de modo dinâmico, a memória do autor, existe hoje, com localização em Ossela, um Centro de Estudos Ferreira de Castro, a funcionar em modo de Associação, tendo como sede a Biblioteca de Ossela. Esta foi construída pelo escritor em frente à casa onde nasceu.  Ambas foram por ele doadas à comunidade.

    A Associação foi constituída a 19 de Março de 2001, tem como principais objectivos a promoção internacional da leitura e do estudo da obra do autor e rege-se por estatutos próprios. Além de encontros, colóquios e outros eventos culturais, a Associação promove, com a colaboração da Casa-Museu Ferreira de Castro, em Sintra, a publicação de uma revista dedicada a estudos sobre a obra do autor e temas afins, Castriana, da qual já se publicaram cinco números.    

    Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora


    Bibliografia

    Andrade, J. P., Ferreira de Castro, in Coelho, J. Prado (org.), s/d, Dicionário de Literatura, Figueirinhas, Porto

    Barthes, Roland, 1966, Critique et Vérité, Seuil, Paris

    Barthes, Roland, 1970, “Par où commencer?” in Poétique nº 1, Seuil, Paris

    Barthes, Roland, 1970, S/Z, Seuil, Paris

    Barthes, Roland, 1971 Sade, Fourier, Loyola, Paris, Seuil

    Benjamin, Walter, 2006, A Modernidade, Assírio e Alvim, Lisboa

    Brasil, Jaime, 1961, Ferreira de Castro, Arcádia (A Obra e o Homem), Lisboa

    Cabral, Eunice, 1998, A Ilusão Amorosa na Ficção de José Régio, Vega, Lisboa

    Cendras, Miriam, 1996, Blaise Cendrars, l’or d’un poète, Gallimard, 1996

    Cohn, Dorrit, 1981, La transparence intérieure, Seuil, Paris

    Hamon, Philippe, 1991, La Description littéraire, Macula, Paris

    Jorge, Carlos J.F., 2001, Figuras do Tempo e do Espaço: para Uma Leitura Literária dos Textos de Viagens,  Ulmeiro, Lisboa

    Lopes, Óscar, in Saraiva, A. J., e O. Lopes, s/d, 17ª ed., História da Literatura Portuguesa, Porto Editora, Porto

    Lopes, Óscar, 1986, Os Sinais e os Sentidos, Caminho, Lisboa

    Sullà, Enric, in Sullà (org.) 1998, El Canon Literario, Arco/Libros, Madrid

    Torres, A. Pinheiro, 1977, O Neo-Realismo Literário Português, Morais, Lisboa 


    [1] Assentamos a nossa argumentação em dois conceitos que, segundo  a crítica alemã,  designam os dois processos segundo os quais se tem desenvolvido mais produtivamente a revelação da vida interior das personagens: a “psico-narrativa” (cf. D.Cohn, 1981, 37-63), que é a revelação dos estados de espírito da personagem pelas palavras de um narrador omnisciente, mais ou menos interveniente; e o “monólogo narrativizado” que é a “transformação do discurso interior das personagens, tornando-se o discurso do narrador” (1981:122)