A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) arquivou uma queixa contra o Programa da Cristina onde, numa emissão, em Junho de 2019, o comentador Hernâni Carvalho usou a expressão “filho da puta” em duas ocasiões, perante a passividade da apresentadora, Cristina Ferreira. O programa, emitido em directo e durante o dia, está abrangido por regras específicas para proteger públicos sensíveis, como as crianças e os adolescentes. Para o canal de TV do grupo Impresa, “de nenhuma forma pode a SIC admitir que a emissão deste programa é (ou foi) suscetível de influir de modo negativo na formação da personalidade de crianças e adolescentes“.
Pode-se dizer “filho da puta” na televisão portuguesa sem qualquer risco de se sofrer uma sanção por parte do regulador dos media, mesmo que seja dito num programa emitido durante o dia, e visto por crianças e adolescentes.
O Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) decidiu arquivar uma queixa contra o ‘Programa da Cristina’ na SIC, de 28 de junho de 2019, no qual o jornalista e comentador Hernâni Carvalho usou por duas vezes a expressão “filho da puta”.
Hernâni Carvalho, jornalista e comentador.
O programa, emitido em directo e durante o dia, pertence “à categoria de entretenimento, e destinado a todos os públicos, sem restrições, constitui uma situação que apela necessariamente à avaliação da observância dos limites à liberdade de programação”, segundo a ERC. Está, por isso, abrangido por regras específicas que visam a proteção dos públicos mais sensíveis, em particular crianças e adolescentes.
O regulador demorou três anos e meio para proferir a decisão de arquivamento. A decisão foi tomada no dia 14 de Dezembro passado, mas divulgada apenas hoje no site do regulador.
Para a ERC, “a expressão não foi destinada a ninguém em particular, indivíduo ou grupo de pessoas, e constitui uma citação relacionada com uma pronúncia judicial”. O regulador considerou que “a expressão não é, assim, ofensiva, para efeitos da aplicação do normativo legal em causa”.
A ERC deliberou “arquivar a presente participação, por se considerar que a mera citação de uma expressão vernacular, no âmbito de um debate sobre um tema de interesse geral não pode, em si mesma, ser considerada ofensiva, nem atentatória dos direitos de outrem”.
Cristina Ferreira, apresentadora.
Para o regulador, não houve qualquer violação dos critérios para avaliação do incumprimento do disposto nas regras criadas para proteger públicos sensíveis.
Para a estação de televisão do grupo Impresa, “de nenhuma forma pode[ria] a SIC admitir que a emissão deste programa é (ou foi) suscetível de influir de modo negativo na formação da personalidade de crianças e adolescentes”.
Na base da deliberação, está uma queixa enviada à ERC no próprio dia da emissão do programa. O queixoso alegava que o comentador da rubrica Crónica Criminal, inserida no Programa da Cristina, disse em direto “filho da puta” e que “a autora do programa, Cristina Ferreira, nem reagiu e nem “apresentou um pedido de desculpas às audiências”.
O primeiro caso apresentado naquela emissão na rubrica dedicada a crimes debruçou-se sobre uma situação de violência doméstica. Hernâni Carvalho disse então que “ninguém é preso em Portugal por causa disso”, e que “até há uma procuradora que diz que chamar filho da puta a um agente da PSP não tem mal nenhum”, concluindo que “é um grito de revolta”.
Cristina Ferreira questionou então “como é que uma procuradora diz que alguém chamar nomes aos elementos da polícia, ou o que quer que seja, é apenas um ato de revolta”. Mais à frente no programa, Cristina Ferreira afirmou que “às vezes é preciso ter um bocadinho de cuidado com as frases que são ditas”. E Hernâni Carvalho retorquiu: “no meu tempo, quando eu cresci, disseram-me que não se chama filho da puta a ninguém, muito menos a um agente da autoridade”.
A SIC considerou, em resposta à queixa, que o uso daquela expressão não é negativa nem tem impacto nas crianças e jovens. “Apenas se poderia falar de efeitos negativos para a personalidade de crianças e jovens se a linguagem utilizada o fosse de forma a ofender ou atentar contra os direitos fundamentais de outrem ou se o calão fosse usado de forma frequente e descontextualizada ou gratuita”, o que, segundo a SIC, não sucedeu.
Os responsáveis do canal da Impresa sustentaram ainda que, “quando enquadradas no contexto e lógica da rubrica, as palavras de Hernâni Carvalho são antes de desincentivo à utilização de linguagem agressiva e de apelo ao respeito pela integridade moral de todos, incluindo e sublinhando a das figuras de autoridade”.
Defendeu ainda que a postura de Cristina Ferreira, na ocasião, se justificou, defendendo que apresentadora procedeu bem, pois “não interrompeu ou procurou silenciar o convidado, ao contrário do pretendido pelo queixoso”.
Mas a SIC reconheceu que “a televisão, no contexto social atual, pode e deve, como importante peça da vida pública, contribuir para uma sociedade mais digna, a que não são alheios – antes são fundamentais – o desenvolvimento da identidade e a formação do caráter dos mais jovens”.
E garantiu que “não deixará de retirar as devidas consequências desta situação, designadamente sensibilizando a produtora do programa para os cuidados a observar relativamente à utilização de linguagem mais agressiva”.
Encarar como atitude ideologicamente disfórica, no discurso queirosiano, a posição de vencidismo, tem sido a posição mais frequentemente assumida pela crítica especializada na obra queirosiana (cf., por exemplo, Carlos Reis, 1999:55). Contudo, não nos parece a conclusão mais produtiva para a compreensão da obra do autor, se a queremos entender como macrotexto em que a coerência superior subsuma o sentido pleno de todos os elementos.
É nossa convicção que o funcionamento de tal elemento da ordem do ideológico, formulável, eventualmente, como ideologema, beneficiará se for confrontada, dialecticamente, ou mesmo dialogicamente, com a afirmação romântica de entusiasmo. Em consequência dessa convicção, é nosso parecer que, semanticamente, os enunciados da obra queirosiana que podem ser lidos como decorrentes da posição vencidista se ajustam, em antinomia de alteridade e alternativa, com os seus contrários, decorrentes das coordenadas do entusiasmo.
Não pretendemos desmentir, obviamente, todo um percurso de estudos e investigações que nos demonstra quanto há de frustração e de desengano na posição histórica do cidadão – percurso esse atestado por documentos e análises, por interpretações cautelosamente conduzidas, de António José Saraiva a Carlos Reis, passando por muitos e prestigiosos investigadores, anteriores e posteriores aos citados, percurso esse cuja origem poderíamos mesmo colocar em António Sérgio.
Nem pretendemos desmentir quanto do cidadão, por responsabilidade de escritor, emergente como homem de letras e jornalista, numa época em que ganha todo o sentido a função social do intelectual, sobretudo pela sua capacidade de intervenção perante o público a quem deve a maior fidelidade, se terá incorporado na obra ficcional que ele próprio escreveu. Nomeadamente, em muitos dos enunciados de desencanto emergentes das personagens mais lúcidas de Eça, reconhecemos, em resultado dos mesmo factores já aduzidos, a presença de um juízo desencantadamente negativo sobre a sociedade portuguesa, ou mesmo sobre a falibilidade humana em geral, que será atribuível ao autor que é, também, o cidadão Eça de Queirós.
Contudo, é nossa convicção que aquilo a que se chama vencidismo é muito mais um modo de perspectivar o mundo, as formas de criar representações ou modelos expressivos que digam a visão do mundo e as opiniões dela decorrentes, do que uma tomada de posição existencial e histórica, em que a desistência, o silêncio ou o encerramento de perspectivas ideológicas são o estado definitivo.
Por outro lado, é um facto por nós aceite, à partida, que essas formas de representar variam em torno do facto de haver conflitos, de haver confrontos, de ser possível fazer melhor, de se defrontarem facções em que uma tem mais razão histórica (histórica, note-se bem) do que a outra, segundo dois modelos fundamentais: a que atende à modalidade relativa de os conflitos existirem; e a que, de um modo ou de outro, apela ao triunfo de uma das partes em conflito.
Sem pretendermos fazer epistemologia em águas “extraterritoriais”, digamos que ambos os modelos são verificáveis em todo e qualquer discurso que se desenvolva sobre os fenómenos do universo. Ora, assim sendo, podemos dizer que, na ordem do discurso, eles são identificáveis, respectivamente, pelo que Bakhtine chama o modelo dialógico e modelo monológico.
A conjectura que aqui desenvolvemos, em estado de embrião, é a de que, a verificarem-se essas duas tendências, nas modalidades discursivas a que chamamos artísticas, Eça situa-se no conjunto de autores em que predomina a primeira delas. Complementarmente, devemos acrescentar que a nossa hipótese decorre também do facto de ser nossa convicção, em comunhão com Bakhtuine, que a modalidade dialógica tem uma razão de maior amplitude histórica do que a monológica. Ora, apresentando-se as coisas desse modo, a hipótese que postulamos é a de que a chamada atitude de vencidismo constitui um modo de processar, por várias figuras da organização poética e pela opção por determinados modelos genológicos do discurso, uma visão do mundo em que ao triunfo das causas se opõe, como uma causa suprema, o peso ou a ponderabilidade das coisas.
Tomemos, como exemplo paradigmaticamente central da expressão do vencidismo queirosiano, um elemento “extra-literário”, um seu discorrer que corrobore enunciados da obra artística autoral, embora seja emitida de um lugar textualmente exterior – de um discurso peritextual, por assim dizer. Esse elemento pode ser a sua resposta a Pinheiro Chagas, em artigo anónimo, ao esclarecer quem eram os amigos que se reuniam para jantar. A designação, que, embora tendo sido apresentada em texto anónimo, se afirma ser do próprio Eça, é muito sugestiva. Chamando ao conjunto convivas um “grupo jantante”, ele cria a expressão que, pelo dinamismo da adjectivação, se opõe à usada pelos seus adversários, entre os quais se encontrava Chagas, ao designar esse mesmo grupo por “vencidos da vida”. À imobilidade da prostração, opõe-se o dinamismo do grupo actuante. Seja dele ou não (e, pelas razões que desenvolveremos longamente, a nossa convicção plena é que é bem um texto queirosiano) o artigo saído na edição de 29 de Março de 1889 do jornal Tempo (cf. Campos Matos [org.], 917 – entr.: “Vencidos da Vida” [C. M.]) merece ser considerado atentamente pelas perspectivas estimulantes que abre à hipótese que colocámos à partida. Citamo-lo, em seguida, resumidamente, apresentando apenas as frases que nos parecem essenciais:
“(…) Vencidos da vida [é um] título acabrunhante […] que a imprensa tem erguido ultimamente em torno deste grupo jantante, com considerável desgosto dos homens simples que o compõem. […] Eles comem – a sociedade, estupefacta, murmura. […] Só podemos juntar que os Vencidos oferecem o mais alto exemplo moral e social de que se pode orgulhar este país. 11 sujeitos que há mais de um ano formam um grupo, sem nunca terem partido a cara uns aos outros; sem se dividirem em pequenos grupos de direita e esquerda; sem terem durante todo este tempo nomeado entre si um presidente e um secretário perpétuo; sem se haverem dotado com uma denominação oficial de reais vencidos da vida ou vencidos da vida real ou nacional; sem arranjarem estatutos aprovados no Governo Civil; sem emitirem acções; sem possuírem hino nem bandeira bordada por um grupo de senhoras «tão anónimas quanto dedicadas»; sem iluminarem no primeiro de Dezembro; sem serem elogiados no Diário de Notícias – estes homens constituem uma tal maravilha social que certamente para o futuro, na ordem das coisas morais, se falará do onze do Braganza, como na ordem das coisas heróicas se fala dos doze de Inglaterra” (Queirós, [1928] s/d:185-188)
Ora, se atentarmos bem, o modelo discursivo que parece ficar desenhado neste relato histórico em que aparece justificada a origem do epíteto aplicado a Eça (como se este fosse, por sinédoque, a metáfora do próprio grupo) é o do simpósio. Retemos este termo – no qual insistiremos por o acharmos adequado à perspectiva que, em Eça, tem uma ampla forma do discurso a que podemos chamar as cenas ou sequências de jantar – porque ele nos ajudará a ver como a designação de vencidismo se constrói numa incompreensão de dupla dimensão: ideológica, antes de mais, porque entende determinados enunciados de Eça e do seus confrades de jantar como provenientes de um desinteresse causado pela derrota política, cultural e mesmo epistemológica; e estético-cultural, fundamentalmente, porque ignora a dimensão progressista e transformadora que a atitude jantante tem no meio cultural português. Assentamos este nosso ponto de partida nas próprias palavras de Eça acima citadas.
Uma vez que não é possível determo-nos em todos os aspectos de conteúdo que afectam a dimensão ideológica em questão, lembramos apenas, com toda a brevidade, aquelas para que aponta a própria resposta atribuída a Eça: o sincretismo dialogante que impede o grupo de se dividir em facções partidárias, a ausência de estrutura hierárquica de poder, a ausência de bandeira, hino ou data marcante que simbolize o dinamismo do grupo na esfera da luta política.
Lembremo-nos que, dentro deste grupo que se mantém coeso em fraternal convívio, se encontravam personalidades tão diversas como Guerra Junqueiro, Ramalho Ortigão e Oliveira Martins, além do próprio Eça, cada um com as suas convicções ideológicas e, como ideais estéticos, as variadas propostas de modernidade, que cada qual cultivava com as suas matizes próprias.
No entanto, a questão que mais nos importa aqui, de momento, não é tanto a dos conteúdos veiculados, ou mesmo das concepções estéticas ou ideológicas que se formulam, no debate que historicamente opõe a geração de Eça (e aqueles que a ela se ligaram, já depois de se terem desenvolvido as teses dos anos 70 do século XIX em Portugal) aos defensores de uma tradição formulada em termos românticos. A dimensão que nos parece mais curiosa tem a ver com o dispositivo semiótico do jantar que Eça apresenta.
De acordo com as suas palavras, a prática jantante é um mecanismo discursivo, e os modelos dialógicos que ela proporciona actuam de tal modo que, por assim dizer, reformulam a construção tendencialmente monológica da ideologia, segundo os pressupostos românticos, fazendo tombar as ideias na ponderabilidade das coisas a ingerir. De algum modo, o ímpeto de elevação, de purificação entusiástica nas zonas de sublimidade ideal é contrariado pelo jogo dos discursos da materialidade que, nas cena ou sequências do jantar, parodiam a elevação, fazendo-a imiscuir-se na corporeidade material, sobretudo aquela que Bakhtine define como a que é central ao processo de carnavalização: o baixo corporal.
Este mecanismo é tanto mais curioso quanto, em Eça, ele é cultivado não como um processo em que a um discurso se opõe outro discurso, o que geraria um sistema de tese e antítese, mas como um processo de contaminação, de tal modo que o discurso perde a sua leveza, as marcas redundantes da sua incorporeidade, para se atolar nas vitualhas que se apresentam sobre a mesa. Como ele próprio diz, num outro passo do artigo citado, os vencidos apenas se “congregam (…) para destapar a terrina de sopa e trocar algumas considerações amargas sobre o Colares” (p.186). Deste modo, o discurso perde a sua diafanidade e surge parodiado por se enredar nas malhas que tece em conjunto com os elementos semióticos que pertencem a outro campo de valores.
Para percebermos melhor a fecundidade deste mecanismo queirosiano, que nos parece ter profunda raízes na cultura do seu tempo, vejamos, em primeiro lugar, o que os diz Bakhtine sobre o conceito de simpósio. Ora, segundo o autor russo, o simpósio, que é a conversa durante um banquete, cria um caso especial de “discurso dialogizado” o qual é dotado de “privilégios particulares” que, na sua origem (nos alvores da civilização), teriam exactamente um carácter cultural. Nele se encontravam, segundo nos diz Bakhtine no mesmo passo, “o direito a uma liberdade especial, a espontaneidade, a familiaridade, uma sinceridade inabitual, a excentricidade e a ambivalência em que se combinam o louvor e a injúria, o sério e cómico. Pela sua natureza” portanto “ o simpósio é um género puramente carnavalesco” (1970: 167).
Todos estes traços assim apontados, vamos encontrá-los presentes em quase todas as cenas (ou seja, refeições em que a troca de palavras entre as personagens representadas se cruza com a narração dos actos alimentares e a minuciosa descrição de alguns dos pratos) em vários romances de Eça. Por outro lado, a importância e a abundância de tais cenas (no seu sentido etimologicamente forte), nos romances do escritor português, leva-nos a ter em conta, de modo muito especial, a sua caracterização pública dos jantares do “Braganza”.
Segundo ele, no artigo acima citado, as conjecturas feitas pela imprensa e por um certo sector da sociedade portuguesa, que atribuiria uma aura negativa, um espírito derrotista, a esse grupo, era errada. Todos os chamados “vencidos” eram, a seu modo, triunfantes, segundo Eça, e o jantar era um feito moral da mesma dimensão, no campo da ética, que o feito de armas, dos doze de Inglaterra, no campo do torneio heróico.
Ora, torneios e simpósios são jogos, ritualizações de actos fundamentais da vida – mas jogos sérios. Enquanto jogos eles simulam confrontos de valores mas, de algum modo, produzem consequências que não são meras simulações. Enfatizando o acto alimentar, discursivo ou bélico, eles manejam de modo ostensivo, retórico, os materiais que estão em causa, realçando os processos segundo os quais eles funcionam e significam: a luta pela vida deixa de se processar apenas segundo os princípios cegos da natureza, para se culturalizar, tornando-se mecanismo significativo, dispositivo semiótico.
Por outro lado, a importância que o romancista português dá aos jantares está não só patente no uso que deles faz como cenas nos romances, numa quantidade pouco comum em romancistas seus contemporâneos, ou mesmo de outras épocas (se exceptuarmos a tradição menipeia – que, segundo Bakhtine, vai de Petrónio a Rabelais, autores que Eça evoca frequentemente –, e Sade), facto que já foi notado por alguns estudiosos ( Andreé Crabbé Rocha, por exemplo, no seu texto “Um motivo obsidiante na narrativa queirosiana”, Caderno de Literatura n.º 9, Coimbra, 1981), como no modo elaborado segundo o qual constrói essas cenas e, ainda, na atenção que lhe merece o jantar mesmo em textos que não têm a elaboração no romance, ou ainda na crónica.
No que diz respeito a esta variante textual da sua obra, que constitui uma produção contextual à sua produção romanesca, podendo ser entendida como uma formulação intermédia entre as práticas culturais não artísticas, envolvendo vários processos semióticos – a prática socializada do jantar oitocentista, muito especialmente o jantar de artistas e escritores, de que seria caso paradigmático central o modelo histórico do grupo parisiense de Zola, por exemplo, ou o próprio cenáculo de Coimbra e de Lisboa, que marcou toda a vivência cultural de Eça – e as práticas propriamente literárias, deve ser lembrada a sua crónica “Cozinha arqueológica”, na qual ele reconhece que “a cozinha e a adega exercem uma (…) larga e directa influência sobre o homem e as sociedades” (Notas Contemporâneas, Livros do Brasil, s/d:236). Afirma ele, aí, a necessidade de estudar de “um modo mais experimental e íntimo a cozinha dos antigos para lhes aprofundar mais completamente a estrutura moral” (p. 236).
É interessante notar ainda que, na sua digressão por alguns lugares eruditos, ele sublinha a importância do moretum romano, “uma moxifonada genial em que entrava galinha, peixe, queijo, frutas, legumes e carne migada” (p.239). Se ele vê nesse prato em que “tudo se fundia, se unificava”, formando “um petisco imortal”, a manifestação do “génio de Roma”, ou mesmo “o mais profundo e eloquente símbolo da história política e social do império” (p.239) – não será legítimo vermos nós como esse fascínio pela mistura insólita revela em Eça o reconhecimento de estar na forma dessa petisqueira a própria fórmula salutar da sátira?
De qualquer modo, quer o comer, que ele aborda especialmente nesta crónica, quer o beber, que ele trata, por exemplo, em “O bock ideal”, publicado no mesmo volume de textos ensaísticos ou mesmo paraliterários (pp. 243-250) onde seria justo colocar a variedade textual da crónica, são mais do que meros motivos obsidiantes na sua obra. Se o são, por qualquer razão a desvendar pela psicologia das profundidades, ele tornou tais motivos mecanismos semióticos extremamente sólidos que usa de modo muito deliberado, desde as suas primeiras obras, fazendo-os emergir como lugares onde a significação trabalha profundamente.
A significação que neles trabalha, porém, não se pode resumir a uma fórmula temática simples. Os simpósios, em Eça, não têm um sentido, uma radicação num material temático monosémico, onde se fixe um sentido simbólico ou alegórico único. Podemos dizer que, até certo ponto, nas cenas, nos jantares/simpósios, se joga o estado permanente do paradoxo, da ambivalência, da vacilação entre o perene e o perecível. É por essa razão que os consideramos, desde os jantares dos “vencidos”, até à ceia inesquecível do “peixe que se pesca cozinhado” em A cidade e as Serras, o lugar onde Eça faz defrontarem-se os valores do entusiasmo e os da mistura das coisas materiais com as espirituais.
Não entendemos, nessa partilha, uma oposição mais ou menos dialéctica (embora funcione, aqui, um certo tipo de dialéctica) entre espírito e matéria, positivismo e idealismo ou entre triunfalismo e vencidismo. A questão, do nosso ponto de vista, apresenta-se muito mais matizada e rica, quanto ao conjunto de valores que são implicados neste modelo de funcionamento formal dos conteúdos históricos que Eça faz emergir através das suas cenas.
Por um lado, funciona, nesse modelo de desenvolvimento das ideias e dos valores histórico-culturais, o entusiasmo que podemos entender, sumariamente, como um estado de espírito, como algo que se desprende das contingências materiais; por outro lado funciona o sistema do corpo que é, também muito sumariamente, o estado da carne, da matéria corporal, tal como ela se afigura às exigências do espírito. Em qualquer dos casos, não temos, nunca, a pureza: temos a aspiração a esta, pela sublimação, por um lado, e pela impossibilidade dessa sublimação, por outro. Tal impossibilidade manifestar-se-ia, por exemplo, numa certa metafísica da matéria, que muito seduziu o lirismo de Eça nas suas primeiras tentativas literárias, patente sobretudo nas suas “Notas marginais” primeiro texto da série que constitui as Prosas Bárbaras.
Sobre o entusiasmo, no entanto, será interessante determo-nos no que, sobre ele, diz Madame de Staël: “É o amor ao belo, a elevação da alma, o prazer da devoção, reunidos num só sentimento que tem a grandeza da calma.
O sentido desta palavra entre os gregos é a sua mais bela definição: o entusiasmo significa Deus em nós” (1968: 301, vol. II). Contudo, não é apenas a elevação, a devoção e a partilha da alma com Deus que caracteriza o entusiasmo. Segundo a ilustre divulgadora do romantismo alemão, ele exige a absorção plena do espírito, de tal modo que o corpo arrebatado pelo entusiasmo “experimenta um nobre estremecimento, o seu coração bate pelos sentimentos elevados” e chega mesmo a “fazer aliança com a outra vida” impedindo-o de “ter apenas um pouco de espírito que lhe serve simplesmente para dirigir os mecanismo da existência” (p. 302).
Dentro dessa lógica, o entusiasmo não afasta o corpo da matéria. O próprio guerreiro, mesmo quando faz guerra por interesses pessoais sente “algumas das exaltações do entusiasmo” nem que seja na “pela embriaguez de um dia de batalha, o prazer singular de se expor à morte, contrariando tudo o que em nós nos ordena que amemos a vida”. Esse arrebatamento, contudo, deve ser sincero, pois é “o entusiasmo afectado” que conduz à “usurpação da admiração dos homens”. Por último, esse mesmo entusiasmo, quando é autêntico, raramente conduz aos excessos, causando, antes a “tendência contemplativa que perturba a capacidade de agir”.
Contra esse lado negativo, que Madame de Staël pensa revelar as facetas menos positivas dos alemães, só o carácter pode servir de panaceia: “é preciso escolher o seu objectivo pelo entusiasmo, mas devemos conduzir as nossas acções pelo carácter”, porque o “pensamento não é nada sem o entusiasmo, e a acção não é nada sem o carácter” (pp. 302-303).
Ora, se “o entusiasmo é tudo para as nações literárias” e o “carácter é tudo para as nações activas” (p. 303), para a concepção liberal de Madame de Staël um e outro são necessários desde que o apaziguamento da alma seja assegurado pelo entusiasmo que é essa “qualquer coisa de orgulho e de animado” que a arranca às condições da “existência física” e lhe dá “dignidade moral” (pp. 303-304). Todas estas características que constituem a essência do entusiasmo apontam, como se vê, para uma dominância, na ordem dos valores humanos, do espiritual e anímico sobre o corpóreo. Sem os contestar frontalmente, as cenas de Eça que temos estado a enfatizar apontam-nos para um jogo de relações em que tudo se inverte.
Quando o espiritual se manifesta, está para se desenrolar, ganha ímpeto argumentativo a ordem da mesa, dos alimentos, dos objectos materiais, dos paladares e prazeres, enredando aquele nas suas malhas e desmontando-lhe a vacuidade, expondo a face negativa que a ele adere, tornando-o insustentável como reduto, lançando-lhe o lastro indelicado e galhofeiro das coisas vis da matéria.
Andamos em conjecturas que muito estimularam Platão no seu Συμπόσιον o Banquete, onde o sentido da verdade (ueritas), procurado por Sócrates, o qual diz que em sua juventude ele foi ensinado sobre “a filosofia do amor” por Diotima (Διοτίμα) O amor, diz ela, leva o indivíduo a buscar a beleza, o entusiasmo primeiro da beleza terrena ou os corpos bonitos, leva-o por degraus na escada do amor e, quando um amante cresce em sabedoria, a beleza procurada é espiritual, “direciona a mente para a filosofia” (Diotima para Sócrates no Banquete de Platão).
Mas o que abre o discernimento à verdade, enquanto ἀλήθεια, convívio com o saber supremo da inteligibilidade, vislumbrada na escala suprema do amor, é o desenvolvimento do estado de espírito propiciado pelo banquete, o estímulo entusiasmante das bebidas: “A verdadeestá no vinho” (Ἐν οἴνῳ ἀλήθεια”/En oino aletheia o latino in uino ueritas).
O mecanismo do jantar e o discurso do simpósio, em Eça, sempre se desenvolveu como a revelação da face inevitavelmente carnal do sujeito humano. Mesmo nos textos mais antigos, nos quais ele ainda não fazia uso da cena como dispositivo semiótico segundo o modelo que vimos sugerindo, o jantar já se revelava um mecanismo de manifestação da carne incontrolável. No seu texto inacabado de 1869/1870 “A morte de Jesus”, incluído em Prosas Bárbaras, já é digno de nota o tom profundamente carnal e carnavalesco que ele dá ao jantar a que o narrador assiste, na sequência do seu encontro com Jesus.
O modelo que ele nos sugere é o do jantar de Trimalcião, que ocupa uma parte importante da narrativa Satiricon, de Petrónio. Não alongamos mais tal hipótese porque, não obstante a importância que teria a indagação sobre as fontes genológicas das cenas ou sequências de jantar em Eça, não nos é possível apresentar, no âmbito deste trabalho, mesmo a título de meras hipóteses, mais do que as breves alusões que aqui ficam. Para desenvolvermos os nossos argumentos segundo a perspectiva que aqui privilegiamos, é mais importante ver como as cenas funcionam nalguns dos seus romances.
A primeira sequência de jantar que Eça utiliza, como mecanismo semioticamente elaborado, com funções poeticamente pertinentes na sua construção romanesca, aparece logo no romance que, simplificando muito todas as questões historico-literárias que o envolvem, podemos considerar como aquele com se esteou nas letras portuguesas: O Crime do Padre Amaro. A cena é, evidentemente, o jantar dos padres em casa do abade da Cortegaça.
Na reescrita do romance, da versão de 1874 para a de 1876, aparecem duas diferenças dignas de nota: na primeira versão, a refeição era um almoço que, a partir da segunda, passa a ser um jantar; por outro lado, a conversa durante a refeição quase não existe na primeira versão, aparecendo o modelo de entrecruzar palavras com garfadas na segunda, numa forma que se mantém praticamente inalterada na versão posterior (ou edições, como propõe Carlos Reis no prefácio à edição crítica).
Nesse entretecer de discurso e deglutição, é sempre notável como os valores de espiritualidade transportados pelas palavras são sempre negados pela acção de ingerir, ou como as expectativas de espiritualidade ou de afastamento da carne, na busca do “Deus em nós”, que seria o sentido etimologicamente mais puro do entusiasmo, se transforma numa espécie de entusiasmo negro, de desenfreado apelo da carne: “logo à sopa as exclamações começaram/ – Sim, senhor, famoso, disto nem no Céu, bela coisa” (1964:260, vol. I). O excelente abade, como cozinheiro era um “divino artista” segundo as palavras do chantre (p. 260) e como era do conhecimento geral, “vivia tão absorvido pela sua arte que lhe acontecia, nos sermões de Domingo, dar ao fiéis ajoelhados para receberem a palavra de Deus, conselhos sobre o bacalhau guisado ou sobre os condimentos do sarrabulho” (p. 261).
Mas, neste simpósio, o qual, pelo tom, poderia ser inspirado pela Coena Cypryani que, segundo Bakhtine, é um dos textos fundadores do simpósio satírico, não se define apenas uma dimensão de vivência religiosa sob o olhar imóvel das personagens escultóricas do santuário (cf. pp. 262-263). Uma ética manifesta-se, também, neste entrelaçar de palavras e garfadas, como se depreende das palavras do bom abade anfitrião, quando comenta a pobreza, a propósito de um pedinte que surgira à porta: “- Muita pobreza por aqui, muita pobreza!, dizia o bom abade. Ó Dias, mais este bocadinho da asa!” (p. 265).
Não se deve concluir, no entanto, que este processo de colocar o discurso dos diálogos, referido a matérias espirituais ou elevadas, em contacto contaminador com objectos de gula ou de luxúria, no sistema dialógico do simpósio, cumpre uma função meramente de crítica social ou de tomada de posição ideológica, em militância contra um estado de coisas político conservador ou mesmo reaccionário – de que, neste caso, a Igreja seria o exemplo paradigmático.
Em todos os seus romances posteriores Eça, obtendo sentidos diferentes, trabalha sobre a dicotomia dialógica que o diálogo ao jantar lhe permite estabelecer, de um modo surpreendentemente criador, sobretudo pelo que consegue construir de dimensão paródica e carnavalesca em todos eles. Para seguirmos a sequência das suas publicações principais, os romances, tomemos como segundo exemplo a sequência do jantar oferecido pelo conselheiro Acácio de O Primo Bazilio.
Nesta, ao contrário do que se passava na cena dos padres, não se dá um encontro de correligionários em torno de um banquete, mas sim o debate ideológico entre amigos que têm, sobre a vida política portuguesa, a filosofia, o amor e a literatura opiniões diversas. O conselheiro é conservador, católico e monárquico, Julião e Jorge e Savedra são pouco crentes e republicanos. Este último tem opiniões literárias diferentes das do conselheiro. Relativamente a mulheres, o anfitrião mantém a imagem pública de puritano, embora tenha ao seu serviço uma bela moça, e opõem-se-lhe, por opiniões libertinas e sensuais, Alves Coutinho e Savedra.
O confronto entre estas várias personagens faz-se por um processo de debate típico do simpósio, de acordo com as características que lhe atribui Bakhtine, acima citadas, como se pode ver pelo excerto que em seguida apresentamos, de modo sumário. Na sequência da observação que Julião faz da ostentação católica de Acácio, Savedra comenta:
“- Não o sabia carola, Conselheiro!/Acácio, aflito, suspendeu o trinchador sobre o paio escarlate, e sacudiu:/- Eu peço ao meu Savedra que não tire desse facto ilações erradas. Os meus princípios são bem conhecidos. Não sou ultramontano, nem faço votos pelo restabelecimento da perseguição religiosa. Sou liberal. Mas reconheço que a religião é um freio…/ – Para os que precisam – interrompeu Julião./Riram; o Alves Coutinho torcia-se. O Conselheiro interdito respondeu, devagar, dispondo na travessa as rodelas de paio:/- Não o precisamos nós, decerto, que somos as classes ilustradas. Mas precisa-o a massa do povo, sr Zuzarte. Senão veríamos aumentar as estatísticas dos crimes. E o Savedra do «Século», erguendo as sobrancelhas, com a fisionomia muito sério:/- Pois olhe que diz uma grandíssima verdade. – Repetiu a máxima modificando-a: – A religião é um bridão! – Fazia com o gesto o esforço de conter uma mula. E pediu mais arroz. Devorava” (1990: 316).
Não é difícil encontrar aqui, bem explícitas, aquelas características do simpósio que o tornam inequivocamente carnavalesco. O conselheiro desfaz-se, parcialmente, da sua veste oficial, dialoga com os amigos, contradiz-se pela denegação, procura assumir uma sinceridade que não ostenta na praça pública e, em todo o tom do diálogo vemos que, pela comunhão e camaradagem desenvolvida em torno da mesa, as opiniões combinam o sério e o cómico, o louvor e a injúria.
As comidas e as bebidas, de cujo o uso o relato nos vai informando, amenizam as diferenças, possibilitam as aproximações e as aceitações mesmo quando a discórdia germina por detrás das piadas, das alusões insultuosas, das críticas mais ou menos acintosas. O riso, a gargalhada de boa disposição, são o grande mecanismo psicológico e sócio-cultural que permite essa aproximação de contrários. E o riso, tal como aparece aqui, é o dissolver das diferenças e das divergências, na mistura complexa da sátira, se entendermos esta no seu sentido pleno, tal como Bakhtine o pretende preservar, insistindo no facto de esta não poder excluir ninguém – parodiadores e parodiados, falantes e ouvintes, actores e espectadores – do seu alcance.
Neste ponto, poderíamos dizer que, contra um entusiasmo sustentado pelo carácter – que arrastaria rectidão, perseverança e elevação nos propósitos ético-filosóficos – Eça propõe a o confronto sustentado pelo riso – que arrasta o consentimento, a ductilidade e a lucidez suprema, quer em relação aos outros quer em relação a si próprio.
Para abreviarmos esta abordagem que, a seguir todas as emergências das cenas jantantes se poderia tornar demasiado longa, digamos que, todas elas, presentes em todos os romances de Eça, se deixam caracterizar pelos traços que já sublinhámos em relação às dos seus dois primeiros textos romanescos. Vale a pena, contudo, determo-nos na cena de um dos seus últimos romances, A Cidade e as Serras, em que os traços da carnavalização se tornam ainda mais evidentes. Referimo-nos, obviamente, ao jantar que Jacinto oferece, por sugestão do grão-duque seu amigo, na residência que tinha em Paris. Sabemos que, tal ceia se faz por “reclamação” do grão-duque, contra vontade de Jacinto cujo tédio lhe recomendava um “almoço curto”, porque a “alteza real” queria aí saborear um peixe muito raro que ele próprio mandaria para tal fim.
A chegada dos convidados é um verdadeiro desfilar de entidades parisienses da moda, notáveis pela origem social, pela fortuna, pelos cargos ou pelo valor artístico ou individual. Este desfilar da entrada, que lembra a paródia do jantar de Trimalcião, é observado na perspectiva céptica mas padecente de Zé Fernandes, que não conhecia quase ninguém, sentindo-se um ignorante. Já há mesa, um dos convivas repara que, no grupo, para estarem representadas todas as classes dominantes, só faltava um general e um bispo.
O reparo tem uma dupla informação: os “grandes” estão quase todos representados; mas os representantes actuantes da autoridade não estão presentes. Nesta mistura, portanto, os valores defrontam-se com todas as condições retóricas do simpósio, sem a interferência inibidora das entidades do poder. E, o que se desenvolve é uma cena inteiramente carnavalesca, segundo as anotações verosímeis do mais fiel realismo grotesco.
As formas femininas provocam os olhares lúbricos dos homens, as jóias ostentam-se com magnificência, as opiniões políticas, desde a anarquista, que sugere uma bomba a explodir no banquete, até às evocações senhoriais de caçadas feitas pelo grão-duque, cruzam-se com os golos de vinho, marcam o tom do ambiente onde se revela um acontecimento catastrófico: o peixe assado que vinha subir no elevador que ligava a cozinha ao salão jantar, requinte supremo da civilização, então, tinha ficado parado por causa de uma avaria. A real personagem, não se podendo conter, investe como guerreiro para ir resolver a situação, tentando puxar o elevador pelos cabos.
Não o conseguindo e exaltado pelo peixe que podia ver, que o fascinava com o seu belo cheiro, bramava de angústia, «Que cheiro que ele deita, que delícia», enquanto ecoavam o som do canário que “gania” e os berros e os tinidos dos metais provocados pelo facto de um dos convivas ter enfiado um pé dentro de um balde de gelo.
É nessa confusão que um dos presentes tem a ideia de pescar o peixe assado, a qual é de imediato aceite pela real personagem que, “no gozo daquela facécia, tão rara e tão nova”, faz “sumir a sua cólera” voltando a ser o “Príncipe amável, de magnífica polidez” (s/d: 78). De imediato decide que “ele mesmo seria o pescador”, usando, para o efeito, uma “bengala, uma guita e um gancho” (p.78). O material para o anzol é fornecido por uma daquelas elegantes e belas senhoras que, na confusão, poucos momentos antes, quando se descobriu a avaria, “roçavam os decotes pela farda dos lacaios” (p. 77) e é com um denodo que o faz suar que sua alteza tenta apanhar o peixe pela guelra. Embora os resultados tivessem sido negativos o Príncipe sente-se feliz porque «fora mais divertido pescá-lo que comê-lo” (p. 79), e é com verdadeiro prazer que regressa à mesa onde se regalam com “o Barão de Pauillac, cordeiro das lezírias marinhas que, preparado com ritos quase sagrados, toma esse grande nome sonoro e entra no Nobiliário de França” (p. 79).
Depois da sobremesa, durante a qual o champanhe “cintilou e jorrou ininterrompidamente” (p. 79) enquanto os doces se derretiam na boca, um poeta presente declamou um poema. O agrado foi tão grande, apesar do percalço do peixe, que o carneiro ascendeu na escala nobiliárquica, tendo-o o nobre conviva “nomeado Duque de Pauillac” (p. 80).
Esta nomeação, muito provavelmente, descende da inspirada verve de Rabelais. Bakhtine, sem dúvida, encontraria nela a clara expressão da “coroação do banquete” através do qual se entende, no festejo e celebração da carne, o triunfo da vida sobre a morte, e o “emergir de um princípio novo” (Bakhtine, 1970a: 282). Nada tem sentido, em toda a cena, a não ser a celebração de “uma verdade interiormente livre, divertida e materialista”, em que todos se despojam das máscaras e se misturam na alegre pesca ao peixe assado ou na renomeação do prato de cabrito.
Simetricamente, dentro da mesma base de valores, é a imagem “materializada da verdade que não lhe permite arrancar-se à terra, na medida em que esta lhe conserva a natureza universalista e cósmica” (Bakhtine, 1970a: 284) que actua, como base, no jantar serrano em Tormes, e permite ao “príncipe” Jacinto abdicar dos objectos da civilização e retomar o caminho pleno da terra. Não é a crença nem o ideal que movem Jacinto: é a boa mesa farta, o paladar fragrante dos alimentos colhidos perto das fontes originais.
Esta ideia da importância do baixo material como princípio valorizador da condição humana é uma constante na obra de Eça, não um mero elemento decorativo que ele coloca em certos passos das obras relativos aos banquetes, para lhe dar um sabor naturalista. É verdade que, tal mecanismo semiótico, por ele usado como processo poético, permite a construção de análises sociais, ideológicas e culturais que eram caras aos naturalistas. Mas o princípio de trabalho poético era muito mais do que um simples processo de escola. Dentro do que nos é dado conhecer, ninguém levou tão longe como Eça este processo do dialogismo, dentro dos modelos que podemos entender de um amplo realismo, profundamente impregnado do espírito da paródia e da carnavalização.
De facto, o que encontramos nos simpósios queirosianos aparece muito claramente expresso, quase teorizado, por assim dizer, na análise que faz ao “Brasileiro Soares” (Notas Contemporâneas, s/d: 114-122) de Luís Magalhães. É o homem material, deste nosso solo, cheio de joanetes, com os seus pés pesados, tão diferentes do ideal romântico, apelando sempre para o pé alado, que nesse romance é valorizado. É pelo facto de Luís Magalhães conservar toda a realidade material desse brasileiro que ama e sofre, nem ideal nem besta, mas simplesmente humano, que ele o considera profundamente original, relativamente, sobretudo, ao estereótipo que os românticos tinham construído.
Devemos acrescentar, para finalizar, que é grande a importância que Eça dá aos mecanismos de elaboração poética segundo os quais ele conserva essa dicotomia entre a elevação e a materialidade, pensando, sempre, uma ligada à outra. O caso mais flagrante é a imagem que de si próprio fornece, em “Um génio que era um santo” (Notas Contemporâneas, s/d: 251-288). No momento em que conhece Antero, em Coimbra, Eça, segundo as suas palavras, fez como os outros que o escutavam declamar: “também me sentei num degrau, quase ao pé de Antero que improvisava, a escutar, num enlevo, como discípulo. E para sempre assim me conservei na vida”.
Esta frase final não é um mero remate retórico. Eça pensa-se assim e, quanto a nós, apresenta-se muito bem, como julgamos que ele sempre foi: os olhos fitos no ideal, mas assumindo a postura descendente. A sua hugolatria, se virmos bem, assenta nessa mecânica fundamental de estabilidade terrestre com apelos e admirações cósmicas. E dizer-se hugolatra e não hugoliano, representa uma definição muito clara de si próprio. Talvez nenhuma imagem, enfim, dissesse tanto de si próprio, em tão breve alegoria, como a que ele usa num outro passo de “Um génio que era um santo”:
“rondava em torno destas revoluções, destas campanhas, destas filosofias, destas heroicidades ou pseudo-heroicidades, como aquele lendário moço de confeiteiro que assistiu à tomada da Bastilha, com o seu cesto de pastéis enfiado no braço, e quando a derradeira porta da fortaleza feudal cedeu, a velha França findou, deu um jeito ao cesto leve, e seguiu, assobiando a «Royale», a distribuir os seus pastéis.” (p.260)
Não falta, a este comentário, nem sequer a referência ao elemento alimentar, como sugestiva alusão à fruição do material. Só talvez seja excessivo o assobiar a «Royale» – mas não é esse mesmo o processo da grande sátira, atingir o próprio autor, não deixar ninguém de fora?
Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora
Bibliografia
Bakhtine, Mikhail, 1970 La poétique de Dostoievski, Seuil, Paris
Bakhtine, Mikhail, 1970a L’oevre de François Rabelais, Gallimard/TEL, Paris
Queirós, Eça, 1964, O crime do padre Amaro, 2 vol. Lello e Irmão, Porto
Queirós, Eça, 1990, O primo Bazilio, D. Quixote, Lisboa
Queirós, Eça, s/d, A cidade e as serras, Lello e Irmão, Porto
Queirós, Eça, s/d, Notas contemporâneas, Livros do Brasil, Lisboa
Queirós, Eça, s/d, Cartas inéditas de Fradique Mendes, Lello e Irmão, Lisboa
A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) leu literalmente um artigo de opinião irónico e cáustico do escritor brasileiro Ruy Castro, recém eleito membro da restrita Academia Brasileira de Letras, escrito no rescaldo do assalto ao Capitólio em Janeiro de 2021. E decidiu agora enviar uma participação ao Ministério Público por alegado incitamento ao ódio, além de considerar que promove o suicídio. O Diário de Notícias, onde o também jornalista brasileiro de 74 anos colaborava semanalmente desde 2018, não só o dispensou como retirou o polémico texto de linha. Ao PÁGINA UM, Ruy Castro reagiu, dizendo que “nunca me imaginei tão letal – ou que Trump e Bolsonaro fossem tão idiotas.”
Distinguido em Outubro do ano passado como um dos 40 membros da restrita Academia Brasileira de Letras – na gíria literária, classificados como “imortais” –, o escritor e jornalista Ruy Castro foi acusado pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) de usar expressões de ódio e de incentivo ao ódio contra Donald Trump e Jair Bolsonaro num artigo publicado no Diário de Notícias há dois anos.
A deliberação do regulador dos media portugueses foi aprovada por unanimidade em finais de Novembro, mas apenas esta semana divulgada. O Conselho Regulador – presidido pelo juiz conselheiro Sebastião Póvoas, que estará de saída de funções – remeteu ainda a deliberação e uma participação ao Ministério Público, “uma vez que a peça [de Ruy Castro] pode eventualmente configurar a prática de um crime de incitamento ao ódio e à violência, nos termos do artigo 240º do Código Penal”, sancionável com pena de prisão de seis meses a 5 anos.
Ruy Castro, além de jornalista, é autor de mais de duas dezenas de obras, e um dos 40 membros da prestigiada Academia Brasileira de Letras, fundada em 1897 por Machado de Assis.
Além disto, a ERC recomenda que o Diário de Notícias deveria “doravante exercer um maior cuidado na selecção e edição de artigos de opinião, de forma a acautelar a publicação de textos com as características” do texto do académico brasileiro.
Em causa está um texto, extremamente acintoso mas também irónico de Ruy Castro – que é actual colunista permanente do Tal&Qual desde este mês –, publicado em simultâneo no Folha de São Paulo e no Diário de Notícias no dia 10 de Janeiro de 2021, intitulado “Conselho a Trump: mata-te”. Este foi, aliás, o último artigo do escritor brasileiro de 74 anos no periódico da Global Media, com o qual colaborava desde 2018. Este polémico texto já nem está, aliás, no histórico da coluna do Diário de Notícias, tendo sido retirado de linha, estando assim apenas disponível em sistema de arquivo.
Ruy Castro – autor de celebradas biografias sobre Nélson Rodrigues, Carmen Miranda e Garrincha, e de vários romances, tendo mais de 20 obras editadas em Portugal – confirmou ao PÁGINA UM que a sua “colaboração no Diário de Notícias [foi] encerrada por causa desse artigo”, dizendo ainda sentir-se “maravilhado de saber que um obscuro cronista brasileiro pode induzir o homem então mais poderoso do Mundo, Donald Trump, e seu carbono brasileiro Jair Bolsonaro a se matarem”. E surpreende-se, de forma irónica, com o alcance do seu escrito: ”Nunca me imaginei tão letal – ou que Trump e Bolsonaro fossem tão idiotas.”
Diário de Notícias dispensou escritor após a publicação de artigo contra Trump e Bolsonaro. Ruy Castro colaborava desde 2018, e este é o único artigo que foi retirado de linha.
No seu texto escrito há dois anos, no rescaldo ao ataque ao Capitólio de 6 de Janeiro daquele ano, Ruy Castro apontava baterias ao antigo presidente norte-americano, dizendo que Trump instigara “o seu gado a tomar o prédio do Congresso e pressionar os congressistas a dar-lhe a vitória”, e que, perante o insucesso, conjecturava que poderia ainda usar os seus poderes presidenciais para “desfechar uma última vingança contra os adversários que o reduziram àquilo que ele mais temeu desde que nasceu: ser chamado de perdedor.”
Num estilo corrosivo, mas dentro daquilo que se considerava as balizas alargadas da opinião, Ruy Castro especulava, em tom de desprezo, sobre a possibilidade de Trump, como perdedor, “querer jogar uma bomba nuclear no Irão […] para complicar a vida de Biden”. Mas propunha uma solução, ou melhor apresentava uma recomendação, “a única atitude capaz de fazer dele, aí sim, um ícone, um símbolo, uma bandeira a ser desfraldada para sempre por seus seguidores idiotizados. E essa atitude seria: matar-se.”
Ruy Castro dizia mesmo que “nós, brasileiros, adquirimos uma certa prática no assunto”, remetendo para o suicídio do então presidente Getúlio Vargas em 1954. O então colunista do Diário de Notícias escreveu que “Trump poderia fazer exatamente como Getúlio”, ou seja, “o tiro na coração, e não na cabeça”, uma vez que “o tiro na cabeça faz uma grande lambança, com sangue, miolos e cacos de osso espalhados pelo aposento”, enquanto “o tiro no peito é absolutamente clean. Mantém o rosto intacto, apto a ser fotografado e servir de modelo para uma máscara mortuária, útil na confeção dos futuros bustos e estátuas – como os que Getúlio tem por todo o Brasil.” E conclui: “Seria uma saída honrosa para Trump, e com a vantagem de nem lhe desfazer o penteado.”
Ataque ao Capitólio em 2021 suscitou artigo de opinião cáustico e irónico do Ruy Castro, levado à letra pelo Diário de Notícias, que o dispensou, e pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social, que remeteu uma participação ao Ministério Público por incitação ao ódio.
Os três últimos parágrafos do polémico artigo de opinião – que também suscitou celeuma no Brasil – foi dedicado a Jair Bolsonaro, que Ruy Castro brinda de “genocida”. Castro recomendava-lhe similar solução – o suicídio –, “mas que não esperasse pela derrota na eleição, e sim que fizesse isto já, agora, neste momento [Janeiro de 2021]. Até porque, fechava, “nenhum minuto sem Bolsonaro será cedo de mais para o Brasil”.
A análise da ERC a este texto aparenta ter sido feita em sentido literal, mesmo nas alusões à questão do suicídio. Na fundamentação, o regulador diz que “tem vindo a acompanhar e a expressar a sua preocupação com a proliferação nos media de mensagens ofensivas e de discriminação étnica e racial, de incitamento ao ódio e à violência, entre outras, seja nas caixas de comentários das diferentes peças editadas online e nas respetivas páginas das redes sociais, seja no contexto da emissão de programas de informação e debate, sobretudo na área do desporto.”
E acrescenta ainda a deliberação do regulador que “embora a peça em apreço não seja uma notícia, mas sim um artigo de opinião, não deixa de ser relevante, no quadro de uma publicação de um órgão de comunicação social generalista, de cobertura nacional, o especial cuidado que se deve ter aquando da menção a comportamentos suicidas, bem como de discurso que possa ser entendido como enaltecedor do suicídio”.
ATENÇÃO: Este texto revela detalhes sobre o conteúdo da peça teatral Catarina e a beleza de matar fascistas, pelo que coloca em causa o efeito de surpresa a potenciais espectadores que ainda não viram esta representação. O texto foi escrito para servir de reflexão ao conteúdo da peça e relata o que o repórter assistiu do que se passou em palco e também fora dele. Se ainda não viu a peça e tem planos de o fazer, terá então de ter em conta este esclarecimento e decidir se quer mesmo prosseguir com a leitura. Se deseja saber o que provoca a discussão sobre a peça e é-lhe indiferente conhecer antecipadamente detalhes da mesma, poderá ler à vontade e ficar na posse de informação que lhe será útil na medida daquilo que pretender depois fazer com ela.
Devemos matar um fascista uma vez por ano? Este é o mote da peça de teatro Catarina e a beleza de matar fascistas, que regressou à cena no Centro Cultural de Belém (CCB), entre 4 e 7 deste mês, depois já aí ter estado em 2020 e ter percorrido várias salas em outras cidades portuguesas, de Espanha, França, Bélgica, Itália, Noruega e Suíça. Com texto e encenação de Tiago Rodrigues, este trabalho tem vindo a suscitar diversas reacções, nomeadamente no que diz respeito a críticas de incentivo à violência. Fomos ver e contamos o que vimos.
Os actores já se encontram em palco à medida que os espectadores entram na sala. O cenário está iluminado e à vista de todos. Os artistas conversam em surdina entre si e observam os passos de quem entra, procura lugar e senta-se. Vê os que encontram amigos enquanto outros, sentados no lugar errado, têm de trocar de fila quando chegam os possuidores do bilhete certo.
Quem se sentou nas pontas, tem de levantar-se para deixar passar aqueles que ocupam o meio da fila. Falam depois entre si, olham para quem entra e comentam o nome de alguma personalidade pública que, entretanto, apareceu. Apontam para detalhes no palco e há ainda os que tiram a fotografia para a sua rede social, informando uma audiência privada. É um espectáculo que só pode ser visto de cima do palco pelos actores.
Talvez os espectadores ainda não se tenham apercebido nesse momento, mas dá para intuir que, ao longo da peça, algo vai mudar na ordem natural das coisas.
Temos vista ampla para o cenário onde a acção se irá desenrolar: uma casa de madeira e uma mesa preparada para uma refeição. Visto da audiência, os actores movimentam-se no lado extremo esquerdo do palco, enquanto no lado extremo direito, onde está a mesa, permanece sentado à cabeceira da mesma apenas um actor. Veste fato e gravata e depreendemos, sem que seja necessário que nos digam, que aquele é o fascista que, fazendo jus ao título da peça, está ali para ser morto.
A toalha que cobre a mesa tem escrito, na parte lateral virada para o público, a frase “Não passarão” – um lema cuja origem remonta às tropas francesas durante a I Guerra Mundial, mas tornado célebre na versão castelhana “¡No pasarán!” durante a Guerra Civil de Espanha por Dolores Ibárruri Gómez, dita “La Pasionara” e uma das fundadoras do Partido Comunista Espanhol. Saberemos depois que estamos no Alentejo, na propriedade de uma família, e que a história se passa num futuro próximo, com um governo de extrema-direita no poder.
É tradição desta família matar um fascista por ano. E isso tem uma origem que remonta a 1954, ano em que a ceifeira Catarina Eufémia, de apenas 26 anos, foi assassinada pela GNR durante uma greve em Baleizão, Alentejo. Uma amiga de Catarina, casada com um guarda da GNR, discutiu nessa noite com o marido por ele não ter impedido aquela morte. O diálogo tornou-se violento e culminou com a mulher a matar o marido e pai de seus filhos. Por ser fascista. Foi o primeiro fascista a ser morto e acabou enterrado debaixo de um chaparro.
A partir daí, essa mulher pediu, em carta deixada aos seus descendentes, que todos os anos se reunissem e mantivessem a sua tradição – embora na carta não especificasse que deviam matar um fascista (como será referido mais tarde ao longo da representação).
Os protagonistas – à excepção do fascista – vestem-se todos de ceifeiras, seguindo as instruções da carta, homens incluídos – figurinos de José António Tenente. É-lhes ainda pedido que, enquanto estiverem juntos, tratem-se todos pelo nome de “Catarina”. Homens incluídos.
O actor António Fonseca faz de tio. É o mais velho da família, sendo que seria filho do primeiro fascista morto, pois a primeira Catarina de todas era a sua mãe. Beatriz Maia é a Catarina que vai matar o seu primeiro fascista, enquanto Carolina Passos Sousa interpreta o papel da irmã mais nova, a Catarina que ainda tem de esperar pelo dia em que terá oportunidade de matar o seu fascista. Isabel Abreu é a mãe de Catarina, que já matou sete homens. Homens, não. Eram fascistas… Os outros três actores, todos Catarinas, são interpretados por Marco Mendonça, António Afonso Parra e Rui M. Silva.
Depois, é claro, há o fascista, interpretado por Romeu Costa.
E hoje é o dia em que uma Catarina, que cumpriu 26 anos – a mesma idade de Catarina Eufémia quando morreu –, vai matar o seu primeiro fascista.
Ela está contente e mostra-se empenhada. Sente-se motivada para disparar a pistola, depois de ter raptado o fascista, tendo para isso criado um perfil falso nas redes sociais e, a pretexto de uma reunião secreta para a mudança da Constituição, leva-lo até uma cilada. Só que há algo que não corre como nas vezes anteriores. Como aconteceu todos os anos, desde 1954:
Catarina tem dúvidas no momento de disparar e anuncia que não consegue matar o fascista.
Começa então, em família, de uma forma mais ponderado, mas também exaltada, toda uma discussão filosófica e política sobre a necessidade e a beleza de matar fascistas. Saltam imensa citações e palavras como “a cadela do fascismo está sempre com cio” (isto é Brecht) ou ainda Karl Popper e o seu “Paradoxo da Tolerância”, que diz: “Se estendermos a tolerância ilimitada mesmo aos intolerantes, e se não estivermos preparados para defender a sociedade tolerante do assalto da intolerância, então os tolerantes serão destruídos e a tolerância com eles”.
E Catarina, aquela entre eles que tem dúvidas sobre matar fascistas, será ainda colocada face ao dilema sobre para que lado puxar uma alavanca de modo a desviar um comboio desgovernado: para o lado onde está uma aldeia e causar a morte a centenas de pessoas ou para o lado onde existe apenas uma casa, mas é nela que se encontra a sua mãe? Ela prefere uma terceira via, nada original e de duvidosa exequibilidade, mas que não satisfaz a resolução do dilema. E este permanecerá a pairar na sua essência.
Ao contra-argumentar com a mãe, Catarina pergunta se matar fascistas não será também uma forma de impor uma ditadura. Claramente, na ficção que serve de pano de fundo à peça, a tradição de matar um fascista por ano durante sete décadas – são 70 anos –, não impediu que eles chegassem ao poder.
O fascista destinado a ser executado é o autor dos discursos que levaram um líder da extrema-direita a ser agora o primeiro-ministro de Portugal. E tem um cão chamado “Kaiser” – que significava “Rei” em alemão. Para Catarina, a solução não é matar os fascistas, mas falar com as pessoas que os elegeram e compreender os motivos que os levaram a votar neles. A mãe diz que o problema é “opiniãozinha” e o facto de os fascistas terem voz.
Conforme explicou o autor Tiago Rodrigues, num texto datado de 25 de Abril de 2020, esta peça estava pensada para ser sobre o rapto de “um juiz ultraconservador e machista que proferiu várias sentenças favoráveis a homens que agrediram mulheres”.
Embora Tiago Rodrigues não o mencione pelo nome, acrescenta que o magistrado “citou textos religiosos para condenar a vítima pelo seu comportamento adúltero”, sendo esse o caso de 2017, do juiz Neto de Moura, e que acabou por ter um castigo disciplinar pelo Supremo Tribunal de Justiça.
Tiago Rodrigues gosta de juntar a vida contemporânea à ficção que cria. Isso viu-se com o seu trabalho de 2011, “Tristeza e Alegria na Vida das Girafas”, peça teatral depois adaptada ao cinema por Tiago Guedes, cuja acção decorre durante o governo da Troika e onde o próprio autor do texto interpreta o papel de um primeiro-ministro inspirado na figura de Passos Coelho.
“Não se trataria de uma história de justiça ‘olho por olho’ feita pelas próprias mãos, mas de um caso de justiça ‘olho real por olho teatral’”, explica o autor da peça “Catarina e a Beleza de Matar Fascistas”. Mas em 2019, quando estava a trabalhar no texto, a realidade em Portugal ofereceu-lhe mais material: “Em Outubro, as eleições legislativas em Portugal traduziram-se numa vitória expressiva da esquerda e de forças progressistas.
No entanto, também resultaram na eleição de um deputado de extrema-direita pela primeira vez em 46 anos de democracia. De uma paisagem política em que a extrema-direita tinha uma expressão tão residual que quase parecia ridícula, passámos para um contexto em que o populismo de tendência fascizante passa a ter representação parlamentar”, registou.
E acrescenta: “Dir-me-ão que estamos ainda longe do perigo ameaçador da ascensão dos populismos de extrema-direita em muitos países europeus, mas não podemos negar que se trata de uma alteração drástica e traumática da vida política portuguesa. Além disso e infelizmente, não parece ser um fenómeno passageiro”.
É neste contexto que, enquanto Catarina discute com todas as outras Catarinas da sua família, o fascista permanece calado, tal como sempre esteve desde o início da representação. Sem voz. Há um momento em que é interrogado sobre a posse de um telemóvel, mas só responderá com abanos de cabeça para indicar “sim” e “não”. Permanecerá à vista do público durante toda a peça, com cara de assustado, de condenado à morte. É levado de um lado para o outro e tenta resistir, mas sem sucesso. Vai sendo exibido consoante algumas mudanças de cenário.
Diga-se ainda, do ponto de vista cénico, a peça proporciona efeitos técnicos eficazes, como quando as paredes da casa criam cenários, movendo-se ao sabor dos protagonistas. Também os momentos em que se escuta música são acompanhados da acção em que os personagens colocam auscultadores – e ouvem-se composições de Hania Rani, Joanna Brouk, Laurel Halo e Rosalía.
Entre conversas sobre a vida das andorinhas e a sua felicidade e liberdade, Catarina decide-se a, finalmente, matar o fascista. Já é quase noite e a cova está preparada. O fascista será sepultado, tal como todos os outros antes dele, debaixo de um chaparro. E a cortiça nunca será retirada. Espera-se que Catarina dispare o seu revólver e todas as outras Catarinas têm também um revólver na mão.
Só que Catarina volta a ter dúvidas e defende que o fascista não deve ser morto. A irmã mais nova não aceita e avisa que, nesse caso, ela matará o fascista. Catarina mete-se à frente dele, defendendo-o. A seguir, passa-se tudo muito rápido… E é aqui que uma das Catarinas assume uma posição de maior relevo.
O actor Marco Mendonça, por ser de origem moçambicana, destaca-se no elenco dos protagonistas que interpretam os descendentes da ceifeira alentejana. Ele interpreta uma Catarina pouco comunicativa em palavras. Fruto de um trauma por matar fascistas. Ele fala, e de forma assaz eloquente, mas apenas quando mete os auscultadores e o público entra no seu mundo interior. É ele que, em algumas situações, guia o público como um narrador.
Será esta Catarina que dispara sobre Catarina e, então de forma muito rápida, sem se perceber de onde, todas as outras Catarinas são abatidas a tiro. O ruído do primeiro disparo, aquele que atinge Catarina enquanto tenta proteger o fascista, assusta-nos. Os outros disparos, nem tanto. Mas sente-se mesmo o cheiro a pólvora vindo da arma.
Silêncio. Só há duas pessoas vivas em palco e uma delas é o fascista. A outra é a Catarina de Marco Mendonça. O fascista olha para ele e percebe que está livre. A Catarina viva não parece que o vá matar como fez às outras. Então, o fascista veste o casaco e prepara-se para ir embora. Abandonar aquele local e dar graças por estar vivo.
Só que, obviamente, tendo estado calado durante toda a peça, o actor tem de mostrar que também tem voz. E um texto para dizer. O fascista vai à boca de cena e começa a falar. A falar sobre liberdade e o que aprendeu com a experiência. E o discurso do fascista usa palavras que nos parecem familiares. Daquelas que ouvimos às vezes na televisão ditas por quem defende o trabalho dos polícias, por exemplo. Não incentiva à invasão de países, mas diz defender o seu.
Instala-se nesse momento a confusão da parte do público. Ouve-se um grito contra o actor e as suas palavras, vindo lá de cima, da zona das galerias. Seria um actor extra, alguém contratado para iniciar o momento que se seguiu ou foi mesmo uma reacção emocional genuína? Isso é para ser respondido por quem quiser um dia explicar como aconteceu. Agora, a seguir a esse primeiro grito de revolta, começou um coro de protestos à medida que Romeu Costa dizia o discurso do fascista.
O discurso dura bem mais de 10 minutos – esta informação é apenas uma estimativa pessoal –, mas é difícil de captar os argumentos do fascista, pois agora o espectáculo está nos protestos que se ouvem vindos da plateia e galerias. As Catarinas “mortos” levantam-se e colocam-se em fila, no lado esquerdo do palco, atrás da Catarina viva, a olhar quer para o fascista que discursa, quer para o público que se manifesta.
Canta-se o “Grândola Vila Morena”, mas não estamos na vida real, em 2013, quando, por exemplo, se interrompiam os discursos de Miguel Relvas com o mesmo cântico. Há legendas em inglês num discreto ecrã no topo da casa de madeira. É por elas que nos podemos guiar em relação a algumas das palavras do actor que representa o fascista enquanto o público não se cala e não deixa ouvir o que ele está a dizer. Pois o que ele diz também faz parte do texto de Tiago Rodrigues.
A dada altura do discurso, percebe-se que o fascista fala das andorinhas. As mesmas que tanto agradavam às Catarinas. Só que, para ele, as andorinhas são pássaros que chegam, fazem ninho onde querem, sujam tudo à sua volta e vão embora sem dizer “obrigado”. Menciona ainda como uma minoria não pode impor a sua vontade a uma maioria – mas, sem lembrar que a legitimidade de uma maioria, vê-se na forma como esta trata as minorias.
Há um espectador que tenta subir para o palco, mas é impedido por um segurança. No fim da peça, o segurança explica que não foi o primeiro a ter esse tipo de reacção: “Costuma acontecer também nas outras sessões”. Numa outra sessão há o registo de uma mulher que atirou um sapato contra o actor.
Será que essas pessoas que apupam e não deixam ouvir o discurso do fascista sabem que o actor Romeu Costa, aquele que até tentaram agredir, é um profissional da interpretação e que, no início de 2022, tinha em cena no Teatro D. Maria II um monólogo autobiográfico intitulado “Maráia Quéri“, onde relatava a sua experiência de vida como homossexual na cidade de Aveiro? [O título é uma versão aportuguesada do nome da artista Mariah Carey].
A peça termina com o fim do discurso: “Viva Portugal”. E o fascista sai de cena. Vivo. Ninguém lhe deu um tiro. As luzes apagam-se e há, finalmente, aplausos do público. Várias chamadas de actores ao palco para os aplausos, onde eles agradecem de forma colectiva, deixando-nos a pensar como seria se fossem um a um, até ao actor fascista.
Tiago Rodrigues escreveu ainda: “Se, como defende o historiador Federico Finchelstein, os populismos contemporâneos são ‘uma reação autoritária a uma prolongada crise de representação democrática’, então não será precisamente no território dos sub-representados – esses que os líderes populistas manipulam para efeitos eleitorais, mas que continuam a oprimir com mecanismos de exploração – que podemos imaginar uma história de resistência violenta?”.
Haverá alguma moral a retirar desta representação para além da manipulação das emoções dos espectadores a desejar a morte do fascista, mas que Catarina quis defender com o custo da sua própria vida? A moral será então pensar como, a caminho dos 50 anos do 25 de Abril, quantas mais Catarinas precisam de se matar entre si até que o fascismo deixe de ter razão para existir.
Um tópico central para descrever a mirada do viajante europeu, sobretudo quando se desloca pelos espaços subordinados ao domínio mercantil, colonial ou mesmo imperial do “Ocidente”, é o exotismo. Podemos mesmo postular, como hipótese de trabalho, que esse tema aglomera quase todos os outros procedimentos de representação e tematização que decorrem da focalização narrativa e descritiva do viajante europeu (e, de um modo geral, identificado com a civilização ocidental), quando se relaciona com os traços sobressalientes dos espaços sociais e físicos que divergem daqueles que assume como fundamentais do seu espaço civilizacional de inserção.
O desenvolvimento do ponto de vista sobre o mundo e, principalmente, sobre o «Outro» (as populações, de costumes e organizações sociais diferentes das europeias, no fundo, quase sempre, os povos colonizados) a que chamamos exótico, assume, na Europa, uma importância extrema durante todo o século XIX que, segundo muitos estudiosos da história económica, se pode considerar o século da “expansão comercial” (cf. Hobsbawm, 1978: 191-219; Moura, 1992:70-94; Todorov, 1989: 315-340).
O termo, tal como o conceptualizamos aqui, formula-se, na sua máxima amplitude, de acordo com o saber comum, patente nos dicionários e enciclopédias, como “aquilo que pertence a outro país ou clima”, mas entendendo o sentimento e o juízo, estético ou ético, relativo a outros espaços e humanidades como decorrentes dos discursos avaliativos, marcados pela dominante ideológica.
O interesse por essas “outras humanidades” criou especialidades disciplinares como a etnografia, a etnologia ou a antropologia (sem esquecermos a “geografia humana” que, desde o antigo grego Estrabão, trata os outros povos como objectos, “outros” passíveis de atrair o interesse das políticas expansionistas) que, num primeiro momento, reflectiam um etnocentrismo que reduzia os outros a um «Outro», constituindo-o como uma alteridade, ou seja, predominantemente “um objecto, interessante, é certo, mas estranho” (Thines e Lempereur, 1984: 254 – entrada “Despaisamento” ;cf. tb. Said, 1995:11-110; Ashcroft e Ahluwalia, 1999: 57-86;Moura, 1992: 3-15).
Segundo Segalen, autor francês para quem a aventura poética foi, essencialmente, a da encenação verbal do encontro com os povos distantes, sobretudo os da China, Japão e ilhas do Pacífico, o “Exotismo” é uma “sensação” que “não é mais do que a noção do diferente; a percepção do Diverso; o conhecimento de que qualquer coisa não é nós próprios” sendo inevitável concluir, por isso, que “o poder do exotismo é o poder de conceber o outro” (Segalen, 1986: 41).
Na obra em que reflecte sobre o processo da sua criação poética que, até certo ponto, muito deve à profunda consciência crítica com que praticou a postura etnográfica, face aos povos distantes entre os quais viveu, reconhece Segalen que, para atingir a capacidade de “conceber o outro” de forma tão aberta, despreconceituosa e receptiva, é necessário “despojar a palavra de todos os seus ouropéis: a palmeira e o camelo; o capacete colonial; as peles negras e o sol amarelo” devendo ser rejeitados os imaginários “dos programas de agências Cook” (1986: 41).
É claro que não basta um olhar lançado sobre regiões distantes, que se revele num discurso que tematiza esse próprio olhar numa narrativa ou registo descritivo de viagem, para produzir a alteridade como elemento exótico. Muitos são os espaços e os entes presentes nas odisseias antigas, nos romances de cavalaria medievais, que não instituem o Outro como entidade exótica, como objecto “interessante e estranho” a conhecer. Os monstros e maravilhas que emergem nessas narrativas não podem ser exóticos porque povoam o universo lendário comum aos autores, leitores, narradores e personagens que habitam, constroem ou actualizam esse mesmo universo.
O Ciclope não é um ente “descoberto” por Ulisses que fosse necessário incluir no capítulo “Os Entes Animados da Natureza” da “Enciclopédia” grega de “Todos os Saberes” da Antiguidade Clássica. Ele já existia num “capítulo” dessa enciclopédia que constitui uma obra fundamental da na cultura em que cabem Homero e Ulisses (cada qual em seu nível de “realidade”): a Teogonia de Hesíodo. O interessante, nesses contactos clássicos da antiguidade, não reside na descoberta do desconhecido, mas sim na confirmação do universo lendário, revelação perceptível dos entes já constantes no inventário fantástico ou no bestiário de maravilhas.
O exótico, no sentido que lhe atribuímos, apresenta-se como a figura ou registo retórico do que é “de fora”, como indica o termo grego quase homónimo. Sendo um procedimento retórico, ele liga-se aos modelos expressivos das culturas em que existe. De algum modo, todas as culturas e, sobretudo, todas as civilizações (entendendo estas como uma ampliação e uma organização ideológica reforçadas daquelas) determinam o exótico em relação a si. Entendemos, no entanto, que no processo de expansão dos países europeus, a construção do exótico assumiu formas e funcionamentos ideológicos que, entre os estudiosos modernos, acentuadamente críticos do colonialismo e das várias expressões do domínio imperial (sobretudo “ultramarino”), apresentam acentuada tendência para o etnocentrismo ideologicamente estruturado.
No fundamental, este não difere muito dos outros – contudo assenta em instituições de poder (capital financeiro, exércitos expedicionários, enclaves de ocupação – quando não mesmo colónias – cimentados e fundamentados ao longo da história) e de conhecimento (estudos histórico-geográfico-antropológicos que localizam, delineiam e caracterizar o “Outro”) que lhe fornecem um escopo qualitativamente diferente.
Segundo Moura, “se as viagens militares e comerciais e científicas se multiplicam, o importante para a vida literária é que os escritores não hesitam em deslocar-se para fora da Europa” (1992a: 70). O processo é, como o sublinha insistentemente Michel Serres, a propósito de Verne, o da “narrativa da segunda viagem”, que podemos ampliar considerando, por sugestão, a viagem segundo os traços dos outros: “a viagem mundial dos sábios”, a apropriação da terra, em nome da «expansão civilizadora e progressista», é feita pelos “Astrónomos no Cabo, físicos na América do Sul, agrimensores, cartógrafos, e geólogos por toda a parte” (1974:12).
A viagem dos escritores relaciona-se com esta última modalidade. Podemos encará-la, seguindo Moura, de um modo geral, como “relação de viagem”, a qual “se torna uma espécie de género menor (simultaneamente produção e marca do escritor profissional)” (1992a: 70). “Já não são os marinheiros, os soldados, os agricultores ou os missionários que se apropriam da terra,” diz Serres, “são os cientistas” (1974: 12). O estudioso dos discursos entrecruzados da ciência e da literatura refere-se, nesta enumeração de profissões de captores da Terra, não só a entidades historicamente reais como, e sobretudo, a personagens de Jules Verne, que, quanto a esta matéria, merece ser uma referência piloto.
Quando Serres acrescenta, como que em resumo daquela enumeração, que “a nossa geografia invadiu o planeta […] eis criada a viagem segunda […]” não conta apenas com as deslocações dos sábios propriamente ditos, mas também com os descritores que os acompanham de perto. Não serão, talvez, as personagens da “viagem terceira”, porque os saberes que ostentam são os que directamente revertem dos textos dos sábios, mas, muitas vezes, são os protagonistas da enunciação expansionista do imperialismo moderno. Essa atitude pode ser descrita, de acordo com a visão que Said apresenta a propósito das viagens dos escritores europeus do século XIX ao Médio Oriente, como a do autor “para quem a viagem real ou metafórica é a realização de um projecto urgente e profundamente sentido” pelo que “o seu texto é construído a partir de uma estética pessoal, alimentada e informada pelo projecto” (Said, 1995: 158).
Uma obra muito interessante, para ser observada segundo este ponto de vista, é o livro de “notas de viagem” de Eça de Queirós que foi publicado sob o título de O Egipto[i]. Nele se concentra, de modo muito versátil, essa dupla ambição da época, ao escrever relatos de viagens: apresentar um mundo tal como o concebem os “sábios” mas colocando-o sob a mirada do “autor”. Tal escrita mantém, por um lado, as marcas da reportagem e, por outro, as da elaboração literária. Serres usa uma fórmula muito sua para transmitir essa ideia de encanto, de transparência e dependência do saber: “então, a terra ciclo (cycle), o espaço curvo para as deslocações, é, igualmente, o lugar da enciclopédia.
O saber é, sem hesitação, o das coisas e do mundo” (1974:12). O conhecimento do mundo é, segundo uma tal produção, valorizado literariamente, levando adiante um esforço de construção do pitoresco, seja ele “o das personagens autóctones”, seja o “dos espaços exóticos descritos” (cf. Moura, 1992a: 120). O objecto literário que produz esse pitoresco pode entender-se sob a designação geral de descrição, enlaçada com toda a problemática da ecphrasis (cf. Lausberg, 1972: 217-219).
Segundo Jean-Michel Adam e André Petit Jean, assumindo como referência um texto de Hamon[ii], a afirmação geral subentendida como uma crença pelo romance realista e naturalista é a de que o mundo é rico, diverso, abundante, descontínuo; dessa convicção básica decorrem algumas posições assumidas pelo escritor realista/naturalista, quando procura representar toda essa variedade e riqueza: transmitir uma informação acerca do mundo; copiar o real com a palavra; dar o primado a esse real, apagar, tanto quanto possível, a mensagem; fazer do estilo um processo de apagamento da marca estilística (ou seja, instalar, como desinência própria do estilo, um procedimento tendente ao grau zero), deve apagar-se ao máximo; procurar que a informação fornecida sobre o mundo se torne documental, para produzir o efeito de evidência no leitor.
Recorrendo aos esquemas analíticos de Ogden e Richards, pela ampla aceitação que tiveram nos estudos sobre a linguagem, podemos dizer que o principal objectivo do realismo romanesco é o apagamento do significante (símbolo, na terminologia por eles usada) em favor do significado (referência em Ogden e Richards) e, sobretudo no naturalismo, na sobrevalorização do referente. Escusado será dizer que, nesta escola, o primor estilístico aponta para a vontade de produzir um significante valorizado pela sua transparência, capaz de dar a ver um mundo experienciado pelos escritores e pelos seus contemporâneos.
A obtenção dessa transparência valorizaria a produção de um verbo cristalino, dependente de um virtuosismo estilístico em quase tudo correspondente ao grau zero da escrita de que fala Barthes, mas empenhado na História enquanto processo artesanal de criação de um meio para não ser percebido, mera passagem para o que se dá aperceber – ou seja, mero acesso ao documentado (cf. Barthes, 1965: 59-68)[iii].
A partir desta arrumação relativa de dados extraídos de teorias e práticas do romance clássico, Adam e Petitjean formulam três funções fundamentais na teoria da representação descritiva: uma função matésica, relativa à difusão do saber; uma funçäo mimésica, relativa à ilusão de realidade; uma função semiósica relativa à regulação do sentido (cf. Adam e Petitjean, 1989:26). Embora tomemos como base esta partilha esquemática de funções, que permite uma visão analítica muito útil para a nossa abordagem das narrativas de viagens de que Jules Verne, sobretudo, seria o exemplo supremo e epigonal, assumimos, em simultâneo, que a função onde primordialmente se dá o efeito de perturbação do sentido na obra romanesca ou “documental” de viagens é a mimésica.
Se, na lógica da produção, a função matésica é a primeira, até por admitimos que uma sabedoria empírica experiencial antecede qualquer escrita, como “semiótica do mundo natural”[iv], a verdade é que, na literatura de viagens, a grande perturbação aparece com o sistema enciclopédico posto a funcionar hiperbolicamente e transbordando, muitas vezes, dos mecanismos mimésicos (nos quais deveria ser servilmente utilizada) e mesmo semiósicos (aos quais serviria de matéria para a construção da referência e, a partir desta, de produção de sentido do real ou de reprodução da natureza).
A vontade enciclopédica dos escritores (como o de Eça, por exemplo, em O Egipto) ultrapassa a encenação ficcional, a naturalização mimética da tradição em que se inserem, para pôr esta ao serviço da informação documental da reportagem. É através da hiperbolização da enciclopédia que a ilusão de cópia do real se perde, que a mimese vacila e, em consequência, a obra dos autores realistas, ao referir-se a outras paragens, ultrapassa os limites intencionais da ideologia realista da representação[v].
Como J.-M. Moura afirma, tendo como referência as categorias de Adam e Petitjean que temos vindo a utilizar, a narrativa exótica realista torna-se uma “escrita paradoxal de uma realidade mal (ou nada) conhecida” pelo que “só a pode encarar na condição de conciliar a estranheza denotativa (léxico, temática do espaço exótico) e a narrativa simbólica subjacente”; e é por isso que, na sua opinião, a descrição exótica é original, ao representar, uma vez que “constrói um espaço-tempo afastado da experiência comum do leitor – susceptível de derivar para a fantasia e para o maravilhoso –, embora a sua vocação principal seja a de autentificar a narrativa […]” (cf. Moura, 1992a: 125).
A longa descrição que o Eça de Queirós narrador/relator de O Egipto nos faz das terras que visitou, desde Port-Said até às terras de lavradio do Nilo e ao deserto circundante, introduz, com toda a evidência, a novidade semiósica do modelo de descrição que, desde o Itinéraire de Paris à Jérusalem, de Chateaubriand, se vinha afirmando, através dele e de outros autores como Nerval, com a sua Voyage en Orient,até aos grandes realistas como Flaubert, que escreveu, antes de Eça, nas suas memórias, muitas notas documentais sobre a viagem que efectuou ao Próximo Oriente e ao Norte de África em busca de informação para Salammbô (1862).
Este novo modelo de escrita, que elege a descrição como estrutura textual privilegiada, para dar conta da narrativa do trajecto, tornando a enargeia (cf. Lausberg, 1972: 217-219) como o fazer fundamental do actante, apresenta o percurso deste como uma espécie de pretexto, ou de elemento secundarizado, ao serviço da actividade do ver e, em seguida, do dizer o que se observou. A descrição, conforme se pode observar na imensidão da obra de Jules Verne, por exemplo, confunde-se com a própria acção da personagem, emergindo como um caso particular e revitalizado da ecphrasis.
Se aceitarmos como válida a hipótese ainda actual da semiótica na abordagem de intensos efeitos de sentido, numa dinâmica polissémica, em “objectos textuais complexos” (Greimas) como o romance e admitirmos, com Denis Bertrand (cf.1985:29-30), que a «referência» não é uma referência ao “referente”, mas que, mais elaboradamente, o discurso toma como referência uma “realidade” já informada de sentido (um objecto já seria, em si mesmo, um significante carregado de sentidos); se, posto isso, aceitarmos o postulado de essa “realidade” ter sido erigida em figuras significantes que mantêm em conjunto relações explicitáveis, podemos assumir que o mundo a que nos referimos no discurso é ele próprio um discurso. Mas o pacto realista de leitura, o fundamental dos seus efeitos de sentido, assentava, pelo código literário-estético que acima apresentámos, numa “ignorância” prévia desse facto.
Em Verne, por exemplo, e na escrita realista de viagens em geral, esse acordo tácito, esse pacto estético-poético entre escrever e ler, apresenta constantemente o perigo de ficar perdido. Não lidando com espaços, objectos, coisas e lugares já discursificados como “realidades” partilhadas por eles e pelos seus leitores, referindo-se a mundos desconhecidos, pela esmagadora maioria dos seus contemporâneos (entre eles o próprio Verne que, como viajante, foi muito limitado, se o compararmos com os seus heróis), os escritores que relatavam viagens revelavam os mundos distantes, “conhecidos” apenas pelos aventureiros e viajantes ousados, como percursos extraordinários e cheios de peripécias.
Os esquemas narrativos que enquadram tais viagens têm de enfatizar o elemento projecto de aventura para tematizarem o interesse da história para lá da factualidade já divulgada pelos relatos autênticos que servem de documentos aos escritores e, simultaneamente, precisam da prova documental, para não se tornarem suspeitos.
Essa prática, em Eça, é patente, embora o uso que dela faz seja paradoxal, sobretudo se relacionada com os escritores da sua época que narraram viagens. Por um lado, “O Egipto de Eça de Queirósé, em grande parte, a descrição do país visitado naquele ano de 1869” o qual, segundo o resumo que Luís Manuel Araújo apresenta em seguida se pode considerar “um Egipto muçulmano, «romântica terra dos califas», das mesquitas, dos pachás, Cádis, ulemas, derviches, felás…” (Araújo, 1988: 21); por outro lado, não obstante os registos resultantes da observação directa, mesmo para a redacção das suas notas coligidas em O Egipto não deixa de recorrer a fontes: Maxime du Camp, Gérard Nerval, Edmond About e, sobretudo, Théophile Gautier (cf, Araújo, 1988: 36-37); e, por fim, encarando-o numa terceira modalidade de representar o espaço percorrido, verificamos, em A Relíquia, que praticamente não recorre às suas próprias notas de viagem sobre o Médio Oriente (ao contrário do que fez Flaubert, por exemplo), onde situa grande parte da acção do romance.
Propondo-nos observar o processo de representação, nas obras que estudamos enquanto narrativas de viagens ou textos que tematizam os seres e objectos distantes, é de toda a utilidade enfatizar o modo de se construir o outro, como é elaborada a sua imagem – eventualmente articulando-se num imaginário estruturado como paradigma – integrada nos espaços representados.
Delimitamos, nas possibilidades de abordagem teórica, a que privilegia “o estudo das imagens do estrangeiro numa obra ou numa literatura” aquela que algumas conceptualizações do estudo da literatura comparada “têm chamado a imagologia literária” (Moura, 1992: 10). A designação que aqui mantemos atende, sobretudo, ao sentido circunscrito por A. M. Machado e D.-H. Pageaux, quando afirmam, por exemplo, que “um dos cumes da reflexão comparatista” é a “da representação do outro ou aquilo a que habitualmente se chama imagens” (1988:51), perspectiva dentro da qual cabe o conceito de homo viator. Assim, entendemos este, ora como “viajante solitário”, funcionário de estado, cientista ou mero turista, ora como “membro” de um grupo. Delineia-se, assim, um par contrastivo no imaginário das viagens: o viajante (quase sempre figura do “eu” ou do “nós”) e o nativo (quase sempre a figura do outro do ele ou eles cujas designações tendem a ligá-los aos espaços designados[vi]).
O herói viajante que tem em Verne uma das suas máximas expressões, quando se movimenta por mundos estranhos, não busca apenas o pitoresco, procura, também, o conhecimento, é um “insaciável que corre mundo, jornalista ou repórter cosmopolita que acumula as experiências e os testemunhos recolhidos sobre o universo definitivamente fragmentado caótico” (Machado e Pageaux, 1988:44).
De facto, no “espaço estrangeiro vai descobrir (ou esquecer !) o Outro” ou descobrir-se como alguém “para quem o Outro constitui também um elemento básico da narrativa de viagens” (1988: 45), integrando o seu olhar num colectivo que, ou o acompanha, ou lhe serve de referência como “leitor”. Para ele, o Outro é aquele acerca do qual comunica ao leitor imóvel informações que poderão tornar-se preciosas e princípios de saber enciclopédico. Atendendo a essa funcionalidade, a primeira configuração que podemos dar do homo viator típico da época da expansão imperial é o seu carácter genérico, universal, tópico (no sentido que Eco lhe dá para se referir a um tipo estereotipado) e que tem importância no universo de ficção ou da representação em geral, sobretudo pela sua mobilidade.
Em Verne, essa característica é a da mecanicidade que o aproxima muito da figura do mobilis in mobile, de que o célebre Nautilus é o modelo mais ilustre do século XIX. No universo ficcional de Eça, a figura de Topsius, tipificação do «orientalista»[vii] germânico, é o topos do viajante apetrechado enciclopedicamente, que viaja sobretudo para confirmar o “já conhecido e sabido”.
Sem entrar na exploração fantasiosa, o relato “verídico”, O Egipto, Notas de Viagem, deixa transparecer a importância da referida mobilidade. Mesmo quando integra registos fantasiosos que poderá ter recolhido em leituras de mestres e amigos, como Théophile Gautier, que ele encontrou, aliás, no Cairo, durante a viagem de que nos dá conta no seu relato, Eça coloca os dados recolhidos ao longo da sua informação enquanto sujeito que percepciona um espaço que apresenta em tom de reportagem.
Mas deve notar-se que o seu modo de dar a conhecer as terras e os mares que atravessa reflecte o sentido da celeridade que os Europeus já obtinham nas viagens durante o século XIX. A viagem de Eça, que durou pouco mais de dois meses (de 23-10-1869 a 3-1-1870), é rica na representação da deslocação: menos de duas semanas é a duração do percurso de Lisboa a Alexandria, ao longo do qual Eça regista descrições das grandes escalas mediterrânicas.
Da cidade do delta parte para o Cairo, regressa a Alexandria, vai de barco até Port Said, assiste à abertura do canal do Suez e segue, depois, para Jerusalém pela cidade egípcia do Norte, à qual regressa, vindo da Terra Santa, para embarcar para Lisboa. Mas como se esta movimentação que, ainda hoje, é notável, em tão pouco tempo, não lhe bastasse, ele “estendeu” o seu relato a terras onde não foi, representando um percurso ainda mais surpreendente pela extensão (cf. Luís Manuel Araújo, in Matos, 1993: 362-366; entrada EGIPTO)
A experiência do viajante pode perturbar uma interioridade perceptiva capaz de enriquecimento qualitativo, levando à alteração (melhoria, degradação, alteração das concepções do mundo), por se mover em espaços anunciados como novidade, onde o próprio humano aparece diferente. Ora, como Jean-Marc Moura nota, o exotismo, ou seja, o registo do outro e dos espaços diferentes exibidos ou mesmo apresentados ostentatoriamente, enquanto efeito de procedimento, não se faz sem uma certa dimensão do estereótipo, notório, sobretudo, nas narrativas de acção e/ou aventuras: “As formas romanescas rígidas da superioridade do Ocidente, sempre sob ameaça de um Terceiro Mundo pitoresco, carregado de cores, mas votado a uma desordem perpétua [representam ] a afirmação da excelência do primado ocidental sobre a ordem internacional […] A forma privilegiada desse maniqueísmo é o estereótipo” (Moura, 1992: 153).
No entanto, e paradoxalmente, não só é estereotipado o que surge como figura do Outro, mas também o viajante surge, muitas vezes, sob os traços de tal tipificação. Ambos os aspectos podem ser vistos, com forte relevo, em duas obras de Eça de Queirós: A Relíquia e O Mandarim. A sátira surge, em ambos os romances de Eça, sobretudo da rigidez do quadro mental do observador, que se torna, de algum modo, também ele, um estereótipo. No primeiro texto, uma das experiências mais curiosas da literatura de viagens portuguesa, no século XIX, o cruzar sugestivo dos dois estereótipos surge na figura de Topsios, nomeadamente quando o filho da “gloriosa Alemanha”, em “peregrinação científica” a “colher notas para a sua formidável obra” ([1987] s/d: 123) aparece a chamar Teodorico ordenando-lhe: “ergue-te e parte para Jerusalém”.
Ele assume, a partir daí, o estereótipo do “europeu germânico”, regulando a observação do Outro através do aparato da sua “teoria”, produzindo, assim, ao longo do percurso em sonho de Teodorico, o efeito de guia de um imaginário, todo ele assente nos estereótipos das “sagradas escrituras”, da representação de algumas das partes da Bíblia, da sua reprodução em textos escritos e pictóricos e, principalmente, das vulgatas, quer do livro sagrado da cultura judaico-cristã, quer das obras artísticas dele decorrentes.
Algo de muito semelhante se passa na perspectiva que o romancista português nos oferece através do quase-irmão de Teodorico, Teodoro, na sua viagem à China, em O Mandarim[viii]. Com uma diferença fundamental: ao contrário do Egipto, a China não é, nem parcialmente, conhecida ou experienciada, através de qualquer contacto directo, por Eça de Queirós. Porque terá situado o escritor grande parte da sua história no espaço da civilização chinesa? A pergunta não é ociosa: temos a impressão de que, em Eça, se manifesta uma incongruência ou mesmo um artificialismo evidente relativamente às bases e pressupostos a partir dos quais construímos o horizonte de expectativas que guia a nossa leitura do romance realista.
Tal artificialismo é mais patente em Eça do que em Verne, evidentemente, quando este busca, também, uma perspectiva do Celeste Império, em Tribulations d’un chinois en Chine. O que talvez se deva ao facto de, sendo o autor português, numa perspectiva histórico-literária, entendido como um realista-naturalista em sentido estrito[ix], esperarmos da sua criação romanesca uma apresentação de espaços directamente percepcionados pelo autor e reconhecíveis pelos seus leitores mais prováveis.
Se essa condição não se verifica, esperamos uma documentação histórica e geográfica desenvolvida (segundo o modelo flaubertiano, por exemplo) e uma forte argumentação cultural e epistemológica para justificar a digressão pela distância temporal e/ou espacial (patente, também, no percurso de Flaubert na criação da sua Cartago). Como Eça de Queirós nunca foi à China, é provável que a documentação seja indirecta, proveniente de relatos com objectivos práticos de conhecimentos geográficos ou mesmo para utilização de turistas.
Por outro lado, o filão histórico-cultural que ele convoca não parece constituir-se como espaço de uma experiência directa do protagonista, fundamental para a sua funcionalidade enbquanto carácter. No fundo, a China emerge em O Mandarim como metáfora (ou mesmo como dimensão espacial alegórica) da distância: num primeiro momento, espacial, conotando, de imediato, o afastamento cultural e histórico (não por ser distante no tempo, mas por ser outra a historicidade da civilização chinesa), mas, logo de seguida, ética.
Dois universos de alteridade que será interessante registar, também, como fortemente marcantes da configuração estética e ideológica que a viajem produz na ficção de Eça, são os dos países europeus tecnologicamente mais evoluídos do que Portugal (de que o exemplo flagrante é a Paris de A Cidade e as Serras) e o que se refere a África a Sul do Sara como um todo sincrético (como “aparece”, por exemplo, em A Ilustre Casa de Ramires ou n’A Correspondência de Fradique Mendes), carregado de apelos como espaço fascinante, mas nunca apresentado em pormenor. Como nota à parte, não podemos deixar de referir As Minas de Salomão de Rider Haggard, livro de que Eça se teria quase “apropriado” ao traduzi-lo (na opinião de alguns estudiosos, constituindo quase uma “versão” e não apenas uma simples “tradução”).
No interior do quadro de referências e observações que temos vindo a desenvolver, o romance A Relíquia vem enquadrar-se de modo curiosamente paradoxal. Por um lado, ele cumpre, em quase tudo, os códigos restritos da narrativa de viagens tal como funciona dentro do sistema regulador da poética realista e naturalista. Nem sequer resvala momentaneamente para o apelo do fantástico, tal como acontece em O Mandarim. O processo utilizado para introduzir uma diegese parcialmente fantástica, desenrolada ao longo de acontecimentos cuja narração ocupa uma boa terça parte do texto total do romance, no enquadramento de um mundo possível pautado pelas regras da verosimilhança realista, obedece inteiramente aos princípios de qualquer verificação empírica que um espírito positivista, experimental e naturalista reconhece como fazendo parte dos fenómenos normais. De facto, é através do sonho que o extraordinário aparece e é dentro dele que o universo distante no espaço emerge com a imponência que a distância no tempo lhe acrescenta.
Tudo se revela aceitável, neste caso, porque o sonho, sendo embora uma representação do mundo não coincidente com a da percepção consciente da vigília, tem um lugar próprio para surgir – na mais ousada das hipóteses um pré-consciente onde se espraiariam os impulsos e os fenómenos inconscientes –,inteiramente compartimentado em firmes eclusas. A ciência, o bom senso e o senso comum reconhecem, milenarmente, o sonho como desvio à ordem fenomenal da percepção e representação do real que não contamina as regras deste, em virtude de a razão o poder enquadrar como uma estranheza exterior ao ser e fluir da consciência, não constituindo, portanto, matéria de inquietação para o conhecimento e a representação “normais”.
Complementarmente, a intervenção das regras realistas e naturalistas fica assegurada, em A Relíquia, dado o universo diegético que o sonho manifesta emergir inteiramente regulado pelo discurso das crónicas sagradas bem como das narrativas da história que procuraram avaliar a veracidade dos registos religiosos e da tradição.
A figura central da elaboração desse universo, o sábio Topsius, indica a presença do modelo da fiabilidade da representação realista, no plano da exigência de rigor e erudição documental – embora, como adiante veremos, a paródia hiperbolizante do enciclopedismo faça vacilar a firmeza de um tal saber acumulado. O Oriente que, de facto, se desenrola de modo algo colorido e carregado de entrecho romanesco, resulta da intromissão de Topsius no sono de Teodorico, dando origem, como figura inaugural, ao gigantesco sonho que se desenrola como presentificação do processo de Jesus, no quadro reconstituído da Palestina, no dealbar da nossa era, Anno Domini primordial (entre 30 e 33 da Nossa Era, os eruditos hesitam – cf. Fouilloux e outros, 1995).
A personagem que intervém no sonho orienta-o como um indicador de percurso, instrutor de um programa de acção, como tinha sido, na diegese em que o sonho se integra, um instrutor da leitura dos objectos culturais avistados, monumentos e “lugares históricos”, durante a viagem realizada no real do romance.
A sequência do sonho é iniciada com a intervenção ilocutória de Topsius, modalidade performativa de uma palavra de forte poder hortativo: “Teodorico, Teodorico, ergue-te e parte para Jerusalém!”. Já se vê, pelo estilo da exortação, que ela não se propõe apenas formular uma ordem, mas sim fazer ecoar, perlocutoriamente, a dimensão bíblica, ao evocar, por exemplo, a cura do paralítico por Jesus “Levanta-te, pega na tua enxerga e vai para casa” (Mateus 9, 6).
Pela intromissão de tal referência canónica, parecem ficar asseguradas duas dimensões de verosimilhança no relato de acontecimentos extraordinários, concatenados na magnificente minuciosidade de um sonho: a da possibilidade da intervenção do sagrado, como propiciadora das manifestações dos acontecimentos extraordinárias, e a da validação ética dos acontecimentos narrados como exemplos de dimensão alegórica.
De facto, não é fácil estabelecer quais as fontes que terão servido directamente a Eça, dado que, desde a Bíblia até aos escritos do seu contemporâneo Renan, que escreveu mesmo uma Vida de Jesus, poderíamos encontrar eventuais “documentos” para a narrativa encaixada que representa uma boa parte textual de A Relíquia. Sendo essa narrativa a do processo de Jesus, ou seja, que constitui parte dos relatos canónicos dos Evangelhos que relatam os últimos dias de Jesus em Jerusalém e nos campos e povoados dos arredores da grande cidade, o texto, inevitavelmente, presentifica um cenário natural, social e humano que não corresponde, de forma alguma, ao que se apresentaria, em finais do século XIX, aos olhos do viajante português.
Eventualmente, muitos outros historiadores da religião e orientalistas que, sumariamente, aparecem caricaturados em Topsius, poderão ter fornecido bases documentais para a “restauração” praticada por Eça, ao apresentar uma “Judeia às portas de Jerusalém” (p. 129) bem como a própria cidade, com um colorido que parece querer rejeitar alacremente a visão sombria dos “caminhos” e das “colinas”, que Teodorico “vira dias antes, em torna da Cidade Santa, dissecadas por um vento de abstracção, e brancas, da cor das ossadas” (p. 128).
De facto, a quase ausência, no romance, fora da sequência do sonho, de registos paisagísticos, geográficos ou topográficos é impressionante e a secura das breves descrições digna de registo, quando comparada com as narrativas de viagens, quer verídicas quer ficcionais, elaboradas durante o século XIX e conformes aos códigos do realismo. Se compararmos o procedimento de Eça, ao apresentar as terras percorridas pelo seu protagonista, nas páginas em que relata a sua permanência no Egipto, com as que ele próprio escreveu como notas de viagem sobre essa região que visitou, verificamos essa mesma discrepância.
Uma das razões para tal opção será, talvez, como nota Luís Manuel de Araújo, relativamente às notas pessoais de viagens, o facto de Eça reconhecer que “o seu texto” não poder deixar de “conter”, eventualmente “demasiadas influências de outros autores, ter muitas passagens retiradas (mas não necessariamente copiadas), de obras anteriormente lidas” (1987: 234).
Provisoriamente, na impossibilidade de podermos pretender compreender integralmente as motivações estéticas, poética e ideológicas para uma tal secura, podemos assumir, como hipótese de sustentação dos argumentos que desenvolvemos neste nosso trabalho, que Eça não só sentia o peso da documentação no seu texto, como entendia que dificilmente poderia escapar à repetição dos “lugares comuns” (topoi) relativos aos “lugares visitados” (loci) preso aos códigos da representação canónica da ecphrasis e da enargeia, caso usasse, no romance, os dados enciclopédicos acumulados como notas.
Seja qual for o objectivo que encontremos nessa atitude, ela parece desenvolver-se, em Eça, como uma posição crítica que partilha com outros escritores, mestres e émulos, relativamente a certos aspectos que se poderiam considerar formas estereotipadas da literatura de viagens, como que em contraponto à exuberância da representação do pitoresco que se afirma na narrativa realista, posição essa tendente a minimizar os aspectos hiperbólicos para que muitas vezes a descrição tendia nos relatos de viagens. De facto, como lembra Carlos Reis, quando Teodorico Raposo confessa, no prólogo de A Relíquia, ter pretendido que as páginas em que dá conta de outras terras “se não assemelhassem a um Guia Pitoresco do Oriente” (p. 6), parece fazer eco do narrador de Viagens na Minha Terra quando afirma que não “adoptará como modelo «quaisquer dessas rabiscaduras da moda que, com o título de Impressões de Viagem, ou outro que tal, fatigam a imprensa da Europa»” (Reis, 1999: 116).
Assim, proposta a abertura de uma diegese onírica, retrospectivamente fantástica, seria possível verter toda a cor da experiência vivida e das sensações experienciadas, misturadas com os topoicitacionais, através de documentações inevitavelmente recolhidas dos historiadores do passado, dos orientalistas, arqueólogos e estudiosos das religiões, além das provenientes das fontes bíblicas, sem com isso iludir ou mesmo enganar o leitor, o receptor da mensagem cultural, sugerindo a utilização de processos de captação directa (documentação em primeira mão, presentificação pelos processos da reportagem, segundo os princípios da enargeia) quando, na verdade, o que inevitavelmente se fornecia era o decalque mais ou menos disfarçado de uma representação do mundo já amplamente textualizada segundo códigos estéticos e literários. Ora, parece evidente que a mais destacada textualização que Eça faz dessa textualidade anterior, a que dificilmente conseguiria escapar, é Topsius.
Verdadeiro alfa e ómega do dispositivo poético (mas claro que, também e primordialmente, retórico e, em última instância, semiótico) que Eça põe em acção no seu romance, Topsius é a garantia de sustentação de uma superstrutura narrativa realista em equívoca ordenação de todas as propostas paradoxais que o romance apresenta: a naturalização da passagem de um licenciado português algo tacanho para um universo desconhecido, onde acaba por se mover como um verdadeiro cosmopolita, falante desenvolto de várias línguas (pelo que se deduz das suas práticas), capaz reconhecer e avaliar os espaços naturais e arquitectónicos; a importância bem como a limitação e fatuidade de um saber enciclopédico para a captação dos espaços desconhecidos e para a representação dos mesmos; a ordenação do discurso onírico sob a forma de uma narrativa actualizadora das sequências mitificadas ou legendarizadas do processo de Jesus e da Paixão; e a possibilidade de presentificar textualmente todo o cenário de um espaço distante tal como teria existido há quase dois mil anos.
De facto, Teodorico, dividido entre uma existência canalha de «Raposão», hipocritmente ocultada, e uma existência familiar, dominada por uma tia beata e preconceituosa que lhe garantia a sobrevivência e lhe assegurava as perspectivas de futuro, quando lhe é proposta a ida a Jerusalém, revela toda a sua ignorância e a estrutura ideológica retrógrada que o informa:
“Ir a Jerusalém! E onde era Jerusalém? Recorri ao baú que continha os meus compêndios e a minha roupa velha; tirei o Atlas, e com ele aberto sobre a cómoda, diante da Senhora do Patrocínio, comecei a procurar Jerusalém lá para o lado onde vivem os Infiéis, ondulam as escuras caravanas e uma pouca de água num poço é como um dom precioso do Senhor” (p. 61).
A travessia rápida, até Alexandria, coloca-o, assim, de imediato, diante de um universo novo, para o qual Tpsius, quer na cidade do Nilo, quer “nas ruas fuscas de Jerusalém”, ou “junto aos destroços de Jericó” ou ainda “pelas estradas da Galileia” tinha sido “sempre instrutivo, serviçal, paciente e discreto”, um autêntico cicerone cujas palavras o viajante português “reverenciava” (p.71).
O simulacro paródico de tal instrução, surge, no prólogo, quando o narrador, em tom de retrospectiva mais distanciado do que aquele que usa na narrativa propriamente dita, indica a peça erudita de Topsius a que o leitor curioso se deverá reportar caso queira saber pormenores acerca da terra visitada, “Jerusalém Passeada e Comentada”. Fazendo a apresentação sumária do monumento de erudição publicado, “em sete volumes […] impressos em Leipzig”, Raposo revela como se processou o intercâmbio cultural luso-germânico, ao referir as palavras do companheiro de viagem: “o esclarecido Topsius aproveita-me, através desses repletos volumes, para pendurar, ficticiamente, nos meus lábios e no meu crâneo, dizeres e juízos de beata e babosa credulidade – que ele logo rebate e derroca com sagacidade e facúndia!” (p. 7).
Tudo sugere que a língua em que falavam seria a “adâmica”, embora possamos acreditar que Tupsius, entre as suas imensas capacidades eruditas, possuísse também a de falar Português. Ainda que nada nos seja dito sobre isso, poderíamos aceitar que comunicavam em Latim, língua que o «Raposão» poderia ter aprendido no colégio para onde a tia o mandou e que Topsius, verdadeiro académico do século XIX, certamente dominaria. O que já não é tão claro é qual a língua que peregrino lusitano utilizaria com a inglesa que conhece em Alexandria e com a qual mantém uma arrebatada relação erótica, a vivência emocional intensa de toda a viagem, ou com Potte, o guia grego, ou ainda com Fatmé, a dona do prostíbulo de Jerusalém.
Fica sempre a dúvida sobre a língua que é utilizada, tanto mais quanto a comunicação nos parece simplificadamente fantasiosa, ao ponto de a barreira da língua só ser evocada no momento em que, no bordel de Fatmé, ao tentar “seduzir” a jovem núbia, Teodorico reparar com uma agudeza que não é a da personagem mas, eventualmente, a da instância autoral autor através dela: “Não compreendia o meu falar: e nos seus olhos esgazeados flutuava a longa saudade da sua aldeia na Núbia, dos rebanhos de búfalos que dormem à sombra das tamareiras, do grande rio eterno que corre eterno e sereno entre as ruínas das religiões e os túmulos das dinastias…” (p. 105). O que nos leva a pensar que a comunicação é aqui um acto convencional, que não conhece barreiras na construção ficcional, excepto quando a sua falha se revela poeticamente significativa, como é aqui o caso.
De facto, ela revela a impossibilidade do encontro amoroso, causado pela imensa distância cultural que separava as duas personagens, sublinhando a tosca ignorância de Teodorico sobre a mulher que procurava seduzir, construído numa espécie de litotes, em que uma imagem poética, que é o reverso da mentalidade do narrador, exprime, pelo seu contrário, a boçalidade do sujeito a quem a enunciação é atribuída.
Já se vê que, mesmo no modo como fantasia as realidades linguísticas, Eça contorna os preceitos da representação realista que, nos diálogos do mundo, encontra a matéria mais dócil para transpor segundo esses mesmos princípios. Essa fantasia parece querer representar, exactamente, o reverso da descuidada facilidade com que toda a comunicação se processa, nova série de litotes que surge paralelamente à que exprime a quase nula comunicação existente entre os viajantes – sobretudo Teodorica Raposo – e os habitantes dos países visitados.
O contraponto entre o fracasso da relação com a mulher núbia e a plenitude da relação, em Alexandria, com a inglesa Mary é revelador de uma percepção estética, exposta segundo os mecanismos da paródia e do burlesco, da intransponível barreira existente entre o viajante europeu, eivado dos seus conhecimentos e preconceitos, e os naturais dos países ou regiões com as quais se punha em contacto: afinal o viajante português vai encontrar, no Egipto, não uma mulher oriental – tipo feminino ao qual quer Nerval quer Flaubert, por exemplo, deram forte relevo nos seus relatos, apresentando-o como objecto de extrema atracção – mas uma europeia que, embora aparecendo como luveira, vendia os seus “favores”, encontrando nessa relação o objecto fatal, embrulhado como fetiche, que transforma completamente as suas perspectivas de futuro, ao ser aberto, por gafe, pela “titi”, que recebe o embrulho como contendo uma “relíquia”.
Se nos lembrarmos que, na Palestina, lugar por onde Jesus andou, não conseguiu encontrar nenhuma relíquia, acabando por recolher um ramo de espinheiro para fazer um simulacro de troço da coroa de espinhos, percebemos quão fracassada é a carreira deste peregrino e de que modo lhe estava vedado o acesso à compreensão do Oriente.
Tendo em vista o objectivo de contornar as exigências de uma estética realista estrita, sem, contudo, abandonar o seu horizonte poético ou epistemológico, Eça parece ter enveredado pela acumulação de paradoxos e contradições na utilização dos modelos e dos elementos que costumam ser empregues com dispositivos produtores dos efeitos de real e naturalização da representação.
Por um lado, o seu narrador autodiegético focalizador quase exclusivo da história contada, centro da maioria dos processos de percepção das ocorrências relatadas e dos objectos, seres e espaços percepcionados, revela-se equívoco pelas suas limitações culturais e ideológicas; por outro lado, o parceiro de viagem que poderia ser a fonte de informação canónica, garante da função matésica ou enciclopédica, aparece como focalizador distorcido por a sua perspectiva ou o seu discurso emergirem através do testemunho limitado do narrador, o que leva a uma hiperbolização paródica do seu saber – qualquer coisa que o aproxima das figuras patéticas de Bouvard e Pécuchet, copiadores e acumuladores de ideias e conhecimentos já “feitos”, como se sabe; e, por outro lado ainda, relativamente à percepção do mundo diferente e estranho, é dada uma dimensão textual maior ao sonho do que à vigília e, como que em corolário de uma lógica do imaginário, uma maior importância ao passado, evocado pelo sonho, do que ao presente, revelado (mal) em estado de vigília.
Entre outras coisas, ao sonho pode ser atribuída a função de fazer emergir, no discurso do narrador, uma versatilidade imaginária e uma capacidade de compreensão que os processos mentais de Teodorico, anteriormente, não tinham revelado. Se o sonho for esse processo a que podemos chamar “iluminação de uma mente embotada pela sua própria brutalidade”, podemos dizer que o seu resultado foi dar uma “visão do mundo”, uma sageza, a um indivíduo que, desperto, não seria capaz de a alcançar.
A diferença de percepção é notória, entre a personagem que viaja, em estado de vigília, e a que sonha, embora a entidade romanesca Teodorico englobe ambas. Assim, podemos apreciar o espírito obtuso do narrador protagonista quando, alertado pela voz cicerónica para o facto de estar diante do Santo Sepulcro, reage do seguinte modo: “Fechei o meu guarda-chuva. Ao fundo de um adro, de lajes descoladas, erguia-se a fachada de uma igreja, caduca, triste, abatida, com duas portas em arco: uma tapada já a pedregulho e cal, como supérflua; a outra timidamente, medrosamente entreaberta” (p. 94). Não nos deve ser indiferente o facto de o quadro cultural em que emerge a personagem de Teodorico ter antecedentes culturais importantes, como nota, esclarecedoramente Said, estudioso atento e profundamente conhecedor dos relatos de viagens ao Médio Oriente:
“Todas as peregrinações ao Oriente passaram através das terras bíblicas, ou a isso foram forçadas; a maior parte delas eram, de facto, tentativas, ora para resgatar, ora para libertar do grande e incrivelmente fecundo Oriente uma parte da realidade judaico-cristã/greco-romana. Para esses peregrinos, o Oriente Orientalizado, o Oriente dos académicos Orientalistas, era um percurso obrigatório, assim como a Bíblia, as Cruzadas, , o Islão, Napoleão e Alexandre eram temíveis predecessores a serem reconhecidos. Esse Oriente aprendido não se limitava a inibir os prazeres e as fantasias privadas dos peregrinos; a sua posição prioritária coloca barreiras entre o viajante contemporâneo e a sua escrita, a não ser que, como era o caso de Nerval e Flaubert ao utilizarem os textos de Lane, a obra do Orientalista seja separada da biblioteca e integrada num projecto estético” (1995: 168).
De facto, a obtusidade de Teodorico parece provocar um contraponto demasiado gritante relativamente ao acervo cultural que antecede a sua observação, sobretudo quando a confrontamos com um texto como o de Chateaubriand que podemos ler no seu Itinéraire de Paris a Jérusalem, o qual é tanto mais impressionante quanto ele o faz preceder pela descrição de um historiador francês do qual cita, na íntegra, quatro páginas:
“Deshayes, tendo, assim, descrito, segundo a ordem das Estações, tantos lugares veneráveis, só me resta, agora, mostrar o conjunto destes lugares aos leitores. Vemos, antes de mais, que a igreja do Santo Sepulcro é constituída por três: a do Santo Sepulcro, a do Calvário e a da Invenção da Santa Cruz. A igreja do Santo Sepulcro propriamente dita está construída no vale do monte Calvário, e no lugar onde sabemos que Jesus Cristo foi sepultado. Essa igreja forma uma cruz; a capela do Santo Sepulcro constitui a nave central do edifício: é circular como o Panteão de Roma e só recebe luz através de uma abóbada, sob a qual se encontra o Santo Sepulcro. Dezasseis colunas de mármore ornam os contornos deste redondel; sustêm, ao demarcar dezassete arcadas, uma galeria superior igualmente composta de dezasseis colunas e dezassete arcadas, mais pequenas do que as colunas e arcadas que a suportam. Nichos correspondentes às arcadas elevam-se por sobre o friso da última galeria; e a cúpula nasce sobre o arco desses nichos. Estes eram, outrora, decorados por mosaicos que representavam os doze apóstolos, santa Helena, o imperador Constantino, e três outros retratos desconhecidos” (1968: 278-279)
Esta breve amostra do modelo de descrição reinante na literatura de viagens, provem de uma das mais marcantes figuras literárias do dealbar do romantismo, que imprimiu à prática da ecfrasis os traços marcantes que ela assume na literatura de viagens daí em diante. Tal prática propõe o objectivo de funcionar como enargeia, ou seja, como registo documental que produz uma representação de objectivos testemunhais acompanhando o relato, provando que o narrador ou o focalizador esteve lá e presentificando o objecto (normalmente cultural) tal como ele é, pelo que pode, como diz Chateaubriand, “agora, mostrar o conjunto destes lugares aos leitores” incluindo-os no acto perceptivo afirmado: “vemos”.
Percebe-se, comparando os dois textos, quanto os silêncios, as reduções, ou eufemismos ou, até, as depreciações de Teodorico significam profundamente, desenvolvem uma decisão estética cuja amplitude e consequências apenas podemos sugerir aqui. E a diferença que podemos registar não aparece apenas quando o texto de Eça é confrontado com o modelo canónico da prosa de Chateaubriand.
Mesmo quando comparado com autores geracionalmente mais próximos, como Nerval ou Flaubert, a mesma marca de diferença mantém-se, cabendo a Eça a ostentação de uma estética a que podemos chamar, provisoriamente, da elipse descritiva. Nerval, por exemplo, manifesta o prazer da descoberta dos espaços urbanos, das ruas e dos bazares, na sua chegada ao Cairo, todo o presente do Egipto com que se depara, aparece sob um registo de entusiasmo, podendo encontrar-se no seu texto imagens que poderiam ser vistas como inspiradoras de algumas que Eça usa nas suas notas de viagem publicadas postumamente com o título, O Egipto. Mas nada, ou quase nada dessa vontade descritiva aparece.
A primeira imagem que é dada de Alexandria, talvez a mais longa descrição de uma cidade que Eça conheceu muito bem e à qual se refere longamente noutros textos, é bem exemplo da estética da representação depreciativa ou da elipse descritiva que Eça usa, numa espécie de formulação da estética parnasiana às avessas:
“No cais faiscante, entre fardos de lã, estirava-se, banal e sujo, o barracão da Alfândega. Mais além as pombas brancas voavam em torno aos minaretes brancos; o céu deslumbrava. Cercado de severas palmeiras, um lânguido palácio dormia à beira da água; e ao longe perdiam-se os areais da antiga Líbia, esbatidos numa poeirada quente, livre, da cor de um leão” (p. 69).
Será possível maior esquecimento do presente, do percebido aqui e agora, em nome da evocação do passado, do longe e do esbatido, de uma Líbia distante no tempo e no espaço? E como difere uma tal visão disfórica do presente da vigília, daquela que caracteriza os momentos “vividos” do sonho! Não teríamos melhor maneira de terminar a exposição da nossa perspectiva de leitura do que a que nos oferece um dos olhares de Raposo, iluminado pela dinâmica do sonho ao apresentar uma paisagem pertencente a um passado distante.
O contraponto é feito pela própria personagem, no sonho, como já acima referimos: “Oh que diferentes se mostravam estes caminhos, estas colinas, que eu vira dias antes” (p.127-128). Com esta operação verbal, é o presente da viagem que se torna passado, sendo o passado evocado de um modo quase triunfal de omnipresença:
“Agora tudo era verde, regado, murmuroso e com sombras. A mesma luz perdera o tom magoado, a cor dorida , com que eu sempre a vira, cobrindo Jerusalém: as folhas do ramos de Abril desabrochavam num azul moço, tenro, cheio de esperanças com elas. E a cada instante se me iam os olhos nesses vergéis da Escritura, que são feitos da oliveira, da figueira e da vinha, e onde crescem silvestres e mais esplêndidos que o rei Salomão, os lírios vermelhos dos campos!” (p.128).
Mesmo atendendo às suspeitas que o texto explicita de que tudo corresponde a uma “Escritura”, fica ainda a sensação de que é no processo onírico que a presença do mundo se oferece como plenitude aos sentidos, sobrepondo-se essa fruição ao desencanto que era encontrar um presente das “coisas” em tudo conforme aos modelos banalizadores dos relatos de viagem.
Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora
Bibliografia activa
Chateaubriand, François-René de, 1968, Itinéraire de Paris à Jerusalem, GF /Flammarion, Paris
Queirós, Eça, 1992, O Mandarim, IN/CM, Lisboa (edição crítica de Beatriz Berrini com texto da edição de 1889 e do folhetim do Diário de Portugal,)
Queirós, Eça, s/d, A Relíquia, Livros do Brasil, Lisboa (texto fixado e anotado por Helena Cidade Moura de acordo com a edição de 1887)
Bibliografia passiva
Araújo, Luís Manuel de Araújo, 1987, Eça de Queirós e o Egipto Faraónico, Comunicação, Lisboa
Braudel, Fernand, 1989, Gramática das Civilizações, Teorema, Lisboa
Eco, Umberto, 1991, Apocalípticos e Integrados, Difel, Lisboa
Fouilloux, Daniel e outros, 1995, Dictionnaire Culturel de la Bible, Marabout, Paris
Segalen, Victor, 1986, Essai sur l’exotisme, Livre de Poche/Fata Morgana, Paris
Said, Edward W., 1995, Orientalism, Penguin, London
Thiner, G. e Agnés Lempereur, 1984, Dicionário Geral das Ciências Humanas, Edições 70, Lisboa
Todorov, Tzvetan, 1989, Nous et les autres, Seuil, Paris
Todorov, Tzvetan, 1990, A Conquista da América, Litoral, Lisboa
[i] Como sumária apresentação editorial transcrevemos a que consta na entrada “(O) Egipto na obra de Eça de Queirós” da autoria de Luís Manuel de Araújo, publicada no Dicionário de Eça de Queirós, organizado por Campos Matos: “Em 1926 saía finalmente a público, editado pela Livraria Chardron de Lello & Irmão, do Porto, o volume O Egipto, Notas de Viagem, obra póstuma cuja publicação se fica a dever ao empenho e dedicação dos filhos […]” (1993: 363).
[ii] “Um discours contraint”, in Poétique, nº16, Seuil, Paris.
[iii] Como resumo do problema aqui colocado, citamos, do texto referido de Barthes: “O artesanato do estilo produziu uma sub-escrita derivada de Flaubert, mas adaptada aos objectivos da escola naturalista […] A escrita neutra é um facto tardio, só será inventada muito depois do realismo, por autores como Camus, menos sob o efeito de uma estética do refúgio do que em resultado da busca de uma escrita que fosse, enfim, inocente” (1986: 59).
[iv] Cf. Greimas e Courtés, Dicionário de Semiótica, Cultrix, São Paulo, s/d, p. 410 (entrada: Semiótica)
[v] Para um aprofundamento desta questão, segundo pontos de vista próximos e complementares dos que aqui apresentamos, é muito útil o texto introdutório de Maria Alzira Seixo ao seu livro Poéticas da Viagem na Literatura (1998: 11-38).
[vi] Essas designações processam-se segundo uma nomenclatura que, ao especificá-los enquanto seres do lugar visitado os apresenta como autóctones, nativos, indígenas ou aborígenes – sendo esse indicativo da origem percebido como depreciativo. Não é inconsequente esse modelo classificatório, pois vai participando na elaboração de um imaginário que é o léxico privilegiado da ideologia da expansão, do império e do domínio global. Assim, e sumariamente, o espaço global pertence-“nos”, temos uma pátria de onde tiramos “valores universais”, mas “somos do mundo inteiro” – enunciado que pode perverter-se, num discurso que sirva de apoio às razões de domínio global, em “o mundo inteiro é nosso” expressão que não pode, por si, ser submetida à luz da razão, evidentemente – e os “aborígenes” são da Austrália, os “indígenas” são de África, os “nativos” são da Nova Guiné e das ilhas do Pacífico, podendo reservar-se um dos termos, autóctone, para uma utilização mais neutra, em que caibam indianos, índios, malaios … e surgindo sempre hesitações sobre o modo como designar chineses e japoneses segundo um tal paradigma de localizantes.
[vii] Tomamos como prática orientalista, parodiada, a que é utilizada por Eça ao apresentar o seu companheiro de viagem como “o alemão Topsius, doutor pela Universidade de Bona e membro do Instituto Imperial de Escavações Históricas, pois ele representa, no espaço alemão, a tradição da“actividade académica empenhada no estudo da Bíblia” que de acordo com Said “teve particular importância na emergência do moderno Orientalismo” (Said, 1995: 18).
[viii] Desenvolvemos esta matéria sobre o romance em causa, em Figuras do Tempo e do Espaço (Jorge, 2001: 53-70)
[ix] Referimo-nos, evidentemente, aos códigos básicos de escola, de filiação, de relação literária segundo os quais tem sentido ler Eça, num primeiro momento, os quais não se aplicam do mesmo modo a Verne que, embora se possa considerar integrado nos mesmos códigos, desenvolve uma produção que, editorialmente, se apresenta como a de narrativas de “viagens extraordinárias”. Com este reparo visamos apenas um delineamento dos processos segundo uma perspectiva comparatista, sem pretendermos, de modo algum, apresentar Eça como um autor datado, rigidamente arrumado numa compreensão histórico-literária conformista, em que surgisse, segundo o dizer de Barthes, como autor “legível”.
Quando, no dealbar da constituição das novas pátrias africanas, se procurava estudar as literaturas em língua portuguesa dos países emergentes do processo de descolonização, a tendência geral dos investigadores e especialistas, de algum modo comprometidos com os ideais independentistas (desde os inspirados pela democracia liberal até aos de raiz marxista), era a de considerar urgente a delimitação das literaturas nacionais dos novos territórios independentes. Procurava-se fundamentar, de modo forte, com claros delineamentos, o conjunto dos traços que fariam específicas e diferenciadas as novas literaturas emergentes.
Visando esse fim, era comum enfatizar o que constituiria a base da diferença entre as produções poéticas ou ficcionais das literaturas africanas (em língua portuguesa – mas, também, generalizando, em língua francesa, ou inglesa; em língua de uma potência colonizadora, enfim) e as equivalentes das metrópoles (pela época histórico-literária, pelos modelos poético-estilísticos, pelos modelos retóricos e/ou pragmáticos dominantes, como formações discursivas[i], na época) de que essas se iam afastando, sobretudo após o corte político e administrativo.
Ora, do nosso ponto de vista, embora aquela seja uma boa base para iniciar o entendimento das questões que são preliminares quando avançamos para o estudo das literaturas dos países que até recentemente estiveram sob o jugo colonial, parece-nos urgente reformular, pelo menos dentro de uma óptica comparatista, alguns dos princípios então estabelecidos.
Entendemos, por essa reformulação, não tanto a anulação dos conceitos, o seu esquecimento, ou mesmo a substituição de antigos por novos, mas o reordená-los segundo pertinências e regimes de dominâncias diferentes. Tal operação impõe-se porque, tal como os estudiosos de há uma década os agrupavam, quase se torna impossível o reconhecimento ou mesmo o estabelecimento conceptual dos termos da relação cultural que, inevitavelmente, instituem laços historicamente evidentes.
Antes de passarmos à abordagem breve da interdiscursividade, que procuraremos demonstrar através de um diálogo com as propostas de alguns estudiosos (sobretudo críticos e estudiosos do campo científico anglo-saxónico) que se posicionam na área dos estudos pós-coloniais, gostaríamos de comentar algumas concepções, vingando ainda como orientações positivas na investigação e teorização genológica e histórico-literária, relativamente a obras pertencentes às literaturas africanas em língua portuguesa. Aproximamo-nos, deste modo, de uma postulação como a que formula Jean-Marc Moura quando afirma no seu “livro” (que se intitula, exactamente, Littératures francophones et théorie postcoloniale) que o encontro de ambos os pontos de vista “poderia contribuir para renovar um pouco o estudo das letras de expressão francesa”, quando pretende mostrar como as noções de francofonia literária e pós-colonialismo “se esclarecem mutuamente” (1999: 1).
Adiando para outro momento a explicitação da nossa própria posição face à “lusofonia” (deslocando-a para “um nosso texto a vir”, portanto) ou aos estudos que se desenvolvem sobre literaturas das ex-colónias recorrendo à noção de “literatura lusófona”, preferimos assumir que os traços gerais dessas posições teóricas estão integrados na área disciplinar a que se tem chamado “literaturas africanas de expressão portuguesa” e que dentro desta (embora muitas vezes para rebater o que de colonialista em tais estudos pode haver) se têm apresentado os problemas fundamentais que desenvolve a perspectiva “lusofonista”.
Por esse motivo, parece-nos que a tarefa mais importante neste ponto da nossa argumentação é conhecer as posições dos autores que se nos afiguram como representantes mais significativos da área de estudos das literaturas africanas, quer como críticos quer como docentes académicos que praticaram as delimitações julgadas necessárias para o estudo dessas literaturas tendo em vista a constituição das histórias de cada uma delas. Para o efeito, baseamo-nos sobretudo nalgumas das postulações explícitas de Manuel Ferreira – atendendo, antes de mais, à sua posição de fundador coerente e eruditamente qualificado dos estudos sobre “literaturas africanas de expressão portuguesa [ii]”.
Ora, segundo este autor, o momento fundador das literaturas africanas não passa por uma rejeição linguística, mas sim pelo processo poético representativo segundo o qual “o escritor pensa a sua terra em termos de pátria, nação, rejeita o Outro – o colonizador –, e está determinado a uma prática literária integrada na nova situação, toda ela voltada, de vez, para a conquista da libertação nacional” (Ferreira, 1989: 32). Pensada deste modo, a demarcação literária nacional é profundamente político-cultural e não pode ser compreendida fora de um quadro ideológico claramente anticolonialista.
Por assim dizer, essas literaturas nascem, de acordo com o seu ponto de vista, quando podem ser objectos produzidos e historicamente seriáveis, dentro de fronteiras relativamente claras que as tornam geográfica e politicamente independentes. Nessa dimensão, a proposta de Manuel Ferreira articula-se, antecipando-as, com algumas das propostas que os investigadores a trabalhar na área do pós-colonialismo têm defendido, como adiante veremos.
Pelo modo como desenvolve as condições que lhe parecem necessárias para a afirmação de uma literatura nacional, liberta da metrópole colonial, convém apresentar o texto de Manuel Ferreira que imediatamente se segue ao que acabamos de citar, no qual ele procura caracterizar o “escritor” em geral de qualquer país que se torne independente dos valores culturais a que esteve submetido:
“Assume-se como homem inteiramente livre, repensa as suas raízes culturais, faz o reencontro consigo próprio e integra-se no destino colectivo da sua gente. Libertado interiormente, na sua qualidade de cidadão, como dissemos, mas enquanto escritor são ainda alguns e significativos os aspectos que impedem a destruição total da sua dependência e, consequentemente, não permitem a posse da sua inteira individualidade. Pelo menos em relação aos que ficaram na (…) situação de semiclandestinidade. A sua voz está condicionada por diversos liames, que lhe limitam o gesto e a expressão literária. É certo que ele, inclusive, busca nos valores populares e até nas próprias línguas maternas os elementos que há-de incorporar nos seus textos, o que contribui em grande parte para a sua libertação, mas ainda a não alcançou totalmente. Essa só virá a consegui-la com a independência nacional e a destruição completa do sistema colonial” (1989:32-33).
Compreende-se, de imediato, que, segundo tal ponto de vista, na base de uma literatura nacional em países constituindo-se a partir do estado de dependência colonial, é necessário estruturar-se um ethos do “homem novo”. O que parece ficar elidido em tal proposta é o quadro concreto do estatuto desse escritor, bem como a entidade texto completamente construída fora do colonialismo. Nessa óptica, o que se delineia é mais um programa carregado de projecções utópicas (o dever ser de um escritor a vir que, por estar em construção, não se pode descrever como aquilo que é), do que uma entidade abstraída de um conjunto de práticas efectivamente verificadas.
Decorre deste ponto de vista, que nem sempre foi fácil de construir para os primeiros estudiosos de literaturas nacionais desenvolvidas em espaços recém-descolonizados, a necessidade de estabelecer os princípios que deveriam permitir separar os escritores reconhecíveis como pertencendo às novas nações daqueles que não o são.
É ainda Manuel Ferreira quem mais ousada e cuidadosamente esquematiza o critério para tal distinção que ele próprio designa “destrinça”, considerando que ela tem de ser “implacável (…) para o entendimento da questão (…) que se coloca ao estudioso das literaturas africanas, sobretudo após a independência dos países africanos [que] é a de descortinar quem vai ter o direito à condição de escritor africano” (1989:216 – linhas 7 a 23).
Mantendo, quanto a este ponto, a posição de seu discípulo (entendendo nisso a continuidade e não a mera repetição), Pires Laranjeira estabelece como dicotomia de base a literatura colonial e a negritude (Laranjeira, 1995: 26-29). É atendendo a esta divisão que ele estabelece, desenvolvendo o estudo de Manuel Ferreira acima citado, sete grandes períodos para as literaturas nacionais, sendo o ponto discreto central, em torno do qual constitui “um antes e um depois”, aquilo que ele define como negritude.
No centro da sua conceptualização, que usamos pela sua simplicidade operatória e por nos parecer sumariar de modo claro as teses fundamentais que vão de Césaire a Fanon, está a ideia de que a negritude “nega a dominação sobre as culturas africanas, pelo poder imperial e colonial”, da cultura europeia, sem que, por essa negação, se ignorasse ou diminuísse “o valor das culturas europeias ”(Laranjeira, 1995:29).
Sugerem estes estudiosos que a existência de tais literaturas se constitui em plena igualdade quando as obras se afirmam independentes, libertas dos laços coloniais, ostentadoras dos símbolos e imaginários que assentam em dois grandes campos ideológico-culturais: na tradição dos povos ancestralmente naturais dos territórios que assumem como pátrias de origem; na adesão aos valores explícitos e representações emblemáticas da luta anticolonial.
Ora, mesmo admitindo que tais obras representam e “encenam”, nos sentidos que constróem textualmente, a evidência da sua nacionalidade e que, portanto, reconhecê-las como independentes (angolanas, moçambicanas…) não carece de uma operação pragmática em que o leitor e a sua interpretação as entende desse modo por contextualização e integração histórica do texto, o que se passa é que essa mesma encenação da nacionalidade dialoga com os discursos históricos que são produzidos a partir de uma matriz, funcionando como enunciado de facto na globalidade planetária, que afirma sempre a presença do colonialismo: quer como realidade presente, actuando política, económica e ideologicamente; quer como sombra de um sistema que se evidencia por sequelas e estigmas.
Como exemplo de que a observação dos factos literários mais actuais revela essas mesmas sequelas, resumimos o quadro (ele próprio brevíssimo) que Pires Laranjeira nos dá da produção literária angolana entre 1981 e 1993, lapso de tempo que considera 7º (e último, à data) período da literatura angolana. Entendendo esse período por o da “Renovação”, descreve-o como sendo o da criação da Brigada Jovem de Literatura, instituição “dependente sempre do apoio estatal” que “partiu em busca de certa autonomia decisória e estética”, mas que “se revelou herdeira do realismo social” (1995: 42).
Vê-se bem que todo o conjunto de movimento e deliberação, anunciados na decisão do corte, acaba por assumir, como temática central, a própria conjuntura sócio-político-cultural do estado política e administrativamente “pós-colonial”.
As circunstâncias assim evidenciadas levam-nos a pensar que, para formularmos com justeza uma área de estudos que desenvolva, a partir dos centros de produção intelectual e académicos europeus (as instituições do saber, enfim), o conhecimento das literaturas nos países outrora colonizados, temos de operar, na constituição dos nossos discursos, com os instrumentos conceptuais que inscrevam inequivocamente a presença do colonialismo (os seus discursos, os seus aparelhos ideológicos) nas práticas de produção dos textos que dela resultam e na retórica (ou na pragmática) que orienta a leitura ou recepção desses mesmo textos.
Assumimos, deste modo, com Ania Loomba que o “«discurso colonial» [nos estudos pós-coloniais, como se depreende do resto da sua argumentação], não é apenas um novo termo fantasioso a aplicar ao colonialismo; ele indica um novo modo de pensar o processo cultural, intelectual, económico e político, modo esse em que tais processos são perspectivados segundo o seu laborar conjunto na formação, perpetuação e desmantelamento do colonialismo.” (1998: 54).
Resulta, desta tomada de posição no plano teórico, que se manifesta um conjunto de conceitos, de noções, de instrumentos operatórios de análise a serem reavaliados, de modo a tornarem-se dominantes, nas abordagens de pendor anticolonialistas, ou a serem revelados, no caso de discursos de perpetuação da ideologia colonialista tornados objectos de tais análises. Desse modo, e ainda segundo Loomba, o pós-colonialismo não se caracteriza pelo que vem “depois do colonialismo”, se entendermos pelo prefixo “pós” a dimensão cronológica segundo a qual o que devemos ter em conta, predominante ou exclusivamente, é o que se segue ao pretérito, totalmente encerrado.
Devemos, sim, entender esse depois como uma temporalidade “mas, tornando o termo mais flexível, assumindo-o também como a contestação da dominação colonial e as heranças do colonialismo” (1998: 12). Pensado desse modo, o pós designa uma causalidade que, como no-lo ensinaria a teoria estrutural ao estudar a armadura da fabulação, se demarca da estrita sucessividade temporal. Afirma-se, assim, a causa como o processo complexo, desenrolado no plano cronológico, mas com fortes incidências quer no que o precede, quer no que lhe é coevo, quer ainda no que vem depois. “Pós”, usado como conceito operatório forte, permite pensar todo o campo literário, bem como o campo cultural que o envolve, no quadro amplo de um processo histórico complexo, onde o passado não é, forçosamente, pretérito, encerrado e causa permanente, mas pode, também, ser construção do que se lhe sucede.
Não pretendemos afirmar que assim é em relação a todos os conceitos que se formem com a associação do prefixo, mas, quando aplicado a um conceito periodológico de grande amplitude espacial e/ou temporal, como é o caso de colonialismo, não se nos afigura que as coisas se passem de outro modo. Quanto a esta extensão temporal e espacial, devemos ainda acrescentar que consideramos ser evidente o facto de muitos fenómenos que podem ser encarados numa perspectiva diferente, serem pensáveis numa óptica de estudos pós-coloniais como integrados numa conexão que lhes dá matizes peculiares.
O caso mais interessante, que nos parece de perspectivar aqui, é o que diz respeito à actual conjuntura que une/desune as literaturas dos novos países africanos entre si e relaciona, na mesma bipolaridade (união/independência) o conjunto destes com a “ex-metrópole”. O aspecto perfeitamente óbvio dessa relação é o que liga temática e formalmente escritores de origem africana ou portuguesa residindo em África, mas em países diferentes, entre si, ou qualquer deles a escritores que são originários de África (ou que nela “nasceram” literariamente) mas não vivem lá e optaram por ser portugueses.
Não só encontramos afinidades entre eles, mas também entre eles e escritores de países aparentemente sem sequelas coloniais, ou desligados de um processo colonial recente. Também as encontramos entre autores africanos e escritores que apenas estiveram em África de passagem, e entre qualquer deles e escritores de países com outra língua oficial. Mia Couto, por exemplo, está ligado formalmente a escritores como Guimarães Rosa, brasileiro e Amos Tutuola, nigeriano.
Encontramos afinidades entre os seus textos e os de Luandino Vieira. Percebemos que, nalguns aspectos pontuais, Lobo Antunes se aproxima de Luandino. A lista poderia continuar, se o espaço e o tempo para uma análise mais aturada fosse possível. Fiquemos por aqui, quanto a este ponto de contactos, para levantarmos outro tipo de aproximações: o que une, quanto à temática das vivências em tempo de guerra, escritores portugueses e escritores das ex-colónias.
Se atendermos à tónica que Loomba, a autora que acima citámos, coloca no facto de a abordagem pós-colonial “permitir incorporar a história da resistência anticolonial nas resistências ao imperialismo e à cultura dominante Ocidental” (1997: 12), percebemos que um vasto campo de investigações, sobre as representações literárias da guerra colonial travada entre o salazarismo e os movimentos de libertação, ganharia muito em ser perspectivado numa posição teórica que acentuasse a dimensão da relação. Poderiam revelar-se com mais segurança e proveito, sem com isso se estar a incorrer numa inclusão abusiva ou tendencialmente neocolonialista, as relações entre os escritores modernos dos novos países africanos e os seus homólogos europeus.
Do nosso ponto de vista só se ganharia em pensar o que de profundamente original há na negritude, por exemplo, associada ao surrealismo ou mesmo a outras vertentes das vanguardas europeias, ou a certas posições dos escritores independentistas africanos que, durante o regime salazarista, se aproximaram do neo-realismo português. É certo que Manuel Ferreira, por exemplo, apontou essas “aproximações”; mas fê-lo, quase sempre, para demonstrar quanto a necessidade da separação era importante.
Na sua peugada, Pires Laranjeira propõe o mesmo processo de valorização dos nacionalismos, mesmo culturais, proclamados pela valorização do homem negro na negritude, acabando por minimizar o lado universal e de relação intensa que se desenhava na atitude vanguardista dessa mesma negritude, ao partilhar valores temático-formais com o surrealismo e com várias correntes de modernismo ou das vanguardas históricas.
Neste ponto, parece-nos ser possível argumentar plenamente a favor de uma óptica que permita ler o conjunto dos autores “militantes”, segundo um aparato de noções e conceitos (instrumentos de observação e discernimento, enfim) capazes de abordarem os elementos semelhantes, comparáveis entre si, sem a deixarmos arrastar-se para uma posição em que umas das partes seja política e culturalmente dominante entre os elementos do conjunto em confronto.
A manutenção do estado conflitual dos elementos comparáveis estaria sempre assegurada pela própria evocação do estado litigioso das situações e dos discursos que as transmitem, pois esse mesmo estado é designado, como tópico supremo, pela convocação de tudo o que decorre do termo colonialismo (a relação entre dominadores e dominados), e pelo reconhecimento de uma situação que se perpetua, em repetições, sequelas e estigmas, assegurado pelo termo “pós”.
Resumindo com anuência a tese de Jorge de Alva sobre o sentido inovador que os estudos coloniais podem ter, Loomba sublinha a afirmação desse autor, que sumaria a compreensão da atitude teórica que aqui avaliamos, ao citá-lo: “a pós-colonialidade deve ser afastada do estado de dependência de um antecedente que seria a condição colonial, devendo o termo ser colocado no suporte pós-estruturalista que evidencia a sua emergência”.
Tal perspectiva leva-nos para leituras que têm em conta os jogos de “ desvio, transgressão, paródia e desconstrução dos códigos europeus tal como eles têm sido afirmados na cultura que está em causa” (Moura, 1999: 5), e não apenas evidências constatáveis em códigos civis, ou éticas pautadas por um patriotismo espectacular. Parece-nos que a razão mais ampla e profunda pela qual os estudos pós-coloniais e as concepções teóricas, que os consolidam na abordagem da literatura, triunfaram nos meios académicos anglo-saxónicos foi a de evitar “tratar [as literaturas dos países ex-colonizados] como simples extensões que não careceriam de serem situadas para serem compreendidas” (Moura, 1999: 7).
Contudo, um certo eurocentrismo condescendente pode esconder-se por detrás de tal atitude. Seguindo ainda Moura, poderíamos dizer que a concepção desenvolvida pelos estudos pós-coloniais desliza facilmente para uma “globalização” em perspectiva europeia, “incapaz de compreender a diversidade das práticas de escrita e das situações culturais” (1999: 7). Admitimos tal possibilidade, mas essa atitude não difere muito da que se revela sempre que pretendemos compreender um “Outro” qualquer, mesmo que nessa posição de desconhecimento da alteridade em causa não esteja pressuposta uma atitude de dominância.
E, do nosso ponto de vista, a perspectiva teórica do pós-colonialismo é mais correcta do que qualquer outra que não convoque explicitamente a dimensão globalizante do colonialismo exactamente por abrir o seu campo teórico à evidência incontornável do colonialismo como acto, quer em curso quer perpetuando-se em sequelas. É essa possibilidade que poderá levar a criar uma postura relativamente normal e “saudável” face à alteridade que se revela nos textos oriundos dos países ex-colonizados, ou a outras emergências culturais dentro do quadro afectado pelas dominações mais ou menos recentes ou pelas dependências relativamente a uma potência imperial.
Reconhecemos, ao assumirmos tal posição, que lidamos com um processo marcado por violências, violações e usurpações. Mas reconhecemos também que ele se inscreve num processo global que assim tem de ser encarado e pensado para, a partir dessa explicitação, podermos reordenar os factos e as sequelas graves e desestabilizadoras a que o colonialismo deu origem.
A atitude contrária, que seria, quanto a nós, a de um respeito por culturas inassimiláveis, levaria, quanto a nós, a um olhar de admiração pelo “exótico”, que teríamos de sacralizar na sua pureza. Para já não falar no processo de apagamento do outro, pela inclusão numa comunidade linguística de que ele seria o elemento subsidiário, sujeito às avaliações em que surgiria como menor ou imperfeito.
Ora, quando sabemos que a realidade institucional da cultura dos países que foram outrora colónias é a de uma dependência de “terceiro-mundo” face a um “primeiro”, não seria hipocrisia respeitar a pureza dos conteúdos, quando sabemos que os suportes materiais, e muitas das práticas socioculturais dependem dos países ex-colonizadores ou de franca dominância imperial?
Do nosso ponto de vista, a correcta continuação dos estudos que em Portugal foram iniciados por Manuel Ferreira implica o reassumi-los numa óptica pós-colonial. Não para tirar o sentido aos estudos das várias nacionalidades literárias que se manifestam, e que continuarão, independentemente das nossas considerações e vontades, a delinear-se e a circunscrever-se segundo princípios que cada nacionalismo cultural determinar internamente – sobretudo internamente. Mas não será operação de má-fé, hoje, agrupar cinco países africanos como constituindo uma literatura, ou um conjunto de literaturas, visto não podermos, hoje em dia, com toda a pertinência, ostentar os critérios militantes que norteavam os estudiosos nos primeiros momentos da descolonização?
Na ética subjacente a um conhecimento das literaturas africanas, julgamos ser mais justo, permitir maior discernimento, assumir a má-consciência teórica de nos inscrevermos num campo afectado pela expansão imperial do Ocidente – que se demarca, desde a primeira ocupação “legitimada” por códigos “internacionais” (mas nunca planetários), como pós-colonial. Ela permite-nos perspectivar fenómenos como o da edição, o da procura do público, o da definição de um “leitor” virtual, todos eles revelando uma franca e persistente dependência dos “autores africanos de língua (ou expressão) portuguesa” relativamente à ex-metrópole, sem que com isso tenhamos de construir “silêncios”, “não-ditos”, “eufemismos” ou acanhados circunlóquios.
Uma das dimensões que fica claramente estabelecida na abordagem às literaturas das ex-colónias segundo a posição teórica do pós-colonialismo é, para o bem ou para o mal, o sistema das relações, das dependências, dos confrontos e da busca da igualdade assente no longo processo das interacções culturais.
A construção de uma perspectiva baseada na evidenciação dos processos coloniais permite-nos tornar centrais aspectos que, de outro modo, seriam periféricos ou mesmo esquecidos, para não dizer silenciados. Sobretudo ela dá-nos a possibilidade de desenvolver o conhecimento dos processos de relação sobre problemáticas literárias que, de outro modo, em qualquer das histórias literárias que se constróem, se poderiam tornar adiáveis, matéria que, como já foi caso, seria objecto de uma disciplina de “estudos de literaturas marginais”.
Também beneficiarão dessa perspectiva os grandes escritores mundialmente reconhecidos que, por serem oriundos desses territórios periféricos, poderão deixar de figurar como modelos. Com efeito, por estarem, paradoxalmente, desprovidos de relação de paridade integral (integradora e integrada) com a série literária onde de processa a legitimação do grande “cânone”, a do país colonizador, poderão ser desfigurados como entidades dependentes, visto pertencerem a uma série dependente por inerência, se os perspectivarmos fora do sistema pós-colonial, tal como o temos definido.
Contudo, em vez de figuras inoperantes num cânone de “exóticos”, poderão ser pensados, numa perspectiva pós-colonial, no lugar de onde herdam valores e de onde activamente se inserem como mestres. Obter essa justeza de valoração já é razão suficiente para ter em conta, nem que seja a título de hipótese provisória, a perspectiva pós-colonial nos estudos literários.
Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora
Bibliografia
Adam, Jean-Michel, 1990, Éléments de linguistique textuelle, Madraga, Liège
Laranjeira, Pires, 1995, Literaturas africanas de expressão portuguesa, U.Aberta, Lisboa
Loomba, Ania, 1998, Colonialism/Postcolonialism, Routledge, London/New York
Ferreira, Manuel, 1989, O discurso no percurso africano, Plátano, Lisboa
Moura, Jean-Marc, 1999, Littératures francophones et théorie postcoloniale, PUF, Paris
Ricard, Alain, 1995, Littératures d´Afrique noire, CNRS/Karthala, Paris
[i] Designamos deste modo o produto resultante daquilo que Foucault nomeou, inicialmente, ordem discursiva. Os objectos resultantes dessa ordem, que sobredetermina, através de instituições político-sociais de dimensão retórica –desde a escola à instituição política, sendo, nesta, evidente a pragmática da oratória deliberativa –, as produções discursivas de uma época os aspectos que, num texto, se ligam mais directamente à história, constituem a formação discursiva. Como nota Ania Loomba, num texto a que voltaremos para redimensionar a questão na perspectiva dos estudos coloniais/pós-coloniais, o conceito foucauldiano de discurso (e os seus correlatos “ordem discursiva” e “formação discursiva”) permite abordar o conceito de “«discurso colonial» […] como um novo modo de pensar, no qual os processos cultural, intelectual, económico ou político são encarados como trabalhando em conjunto na formação, perpetuação e desmantelamento do colonialismo” (Loomba, 1998, 54). É evidente que, abordando a questão literária, a dimensão verbal do discurso se torna dominante, ou seja, o discurso é observado na sua dominante mais especificamente discursiva/textual, sendo o aparato institucional económico político o quadro que temos de considerar como “de fundo”. Entenda-se, desde já, que uma formação discursiva não delineia apenas o território da ideologia dominante, ou seja, a dos aparelhos que dominam politicamente um sistema – sobredeterminados por estes, pela sua “ordem”, emergem também, na formação, os contra-discursos, como se pode depreender das palavras da estudiosa acima citada. Para uma boa compreensão do conceito de formação discursiva são de considerar os desenvolvimentos que M. Pêcheux apresenta no seu artigo “Analise du discours, langue et idéologies” in Langage, n. 37, 1975. A análise do discurso nas suas várias formações com base nas instituições de dimensão cultural, de interacção social e ideológica é retomado, a partir dele, por Maingueneau referido por Jean-Michel Adam (1990: 20-21).
[ii] Inclinamo-nos, hoje em dia, para o uso do termo “língua”, em vez de “expressão”. É preciso que se note, no entanto, que a opção de Manuel Ferreira (que, aliás, “fez escola”: o manual de Pires Laranjeira, editado pela Universidade Aberta, por exemplo, tem como título Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa – exactamente o mesmo título do pequeno livro de Manuel Ferreira publicado na Biblioteca Breve – e é essa, também, a designação da cadeira que recentemente temos leccionado na Licenciatura em Português/Francês, na Universidade de Évora) se inspira no conceito hjelmesleviano de “expressão” como oposto a “conteúdo”. Evitava ele assim, com alguma razão, o uso do conceito de língua que, segundo algumas posições filológicas (não de todo desaparecidas, pois ainda se manifestam por detrás de alguns usos do termo lusofonia, por exemplo, que, por sua vez, busca fundamentos numa compreensão antropológica “lusotropicalista” das relações culturais asseguradas por uma espécie de “anima lusíada”, eventualmente “legítima” civilizadora, ou pelo menos aculturadora benéfica das possessões tropicais – ou atrás de expressões como a que frequentemente se atribui a Pessoa: “a minha pátria é a língua portuguesa”), seria representativa e até fundadora do “espírito” de um povo. Os conhecimentos mais actuais revelam-nos, no entanto, que a língua é um instrumento complexa e dialecticamente actuante que, se permite a fundação de uma visão do mundo, não fica ontologicamente ligada a ela – nem como produto de uma “alma” preexistente, nem como cimento imóvel de uma fundação de espiritualidade. A língua, como hoje a entendemos, não é portadora de essências imutáveis: permite criar espiritualidades diferenciadas sempre que o seu interagir o permite. Assim, a língua portuguesa, ao deslocar-se para outros espaços e outras vivências (africanas, por exemplo), e ao ser utilizada por pessoas que têm outras línguas de uso (maternas ou não), naturaliza-se. Se o nome da primeira pátria se mantém, a realidade das práticas torna a língua brasileira, ou angolana, ou passível de qualquer outra designação que a ligue ao espaço geopolítico onde atinge um determinado grau de representatividade cultural.
Um conjunto determinável e evidente de grandes vectores pode revelar-se, para quem tenha acompanhado a obra de Mário Cláudio como romancista, na engrenagem poética da sua criação ficcional[1]. Não funcionando todos os que consideramos mais pertinentes ao mesmo nível ou instância de discurso, não se revelando todos no mesmo plano textual, procuraremos apresentá-los de acordo com uma arrumação dentro desses planos. Tal discriminação apenas tem valor de matriz teórica, ou seja, apenas pretende conceptualizar hierarquizadamente um conjunto de mecanismos poético-narrativos pertinentes, que permitam tornar mais clara a formulação epistemológica tal como ela se gera enquanto verosímil na narrativa do autor portuense.
Para uma melhor orientação sistemática de leitura, é segundo os diversos planos, dentro dos quais conceptualizamos o funcionamento dos discursos e dos textos, que congeminamos arrumados os fenómenos mais globais que nos parecem pertinentes na poética de Mário Cláudio, salvaguardando sempre que essa discriminação apenas tem valor heurístico tendo em vista a análise da obra. Quando emergem como efeitos poéticos não é sob essa discriminação, mas sim como enunciados, que significam na globalidade sincrética da dinâmica simbólica e imaginária, que vários códigos regulam, quer na produção quer na leitura.
Mário Cláudio
No plano a que chamaremos do discurso romanesco (muito próximo daquilo a que Genette chama a narraçã0[2]) destacam-se, como processos dominantes da poética romanesca de Mário Cláudio, a ficcionalização do autor por um lado; e a articulação dos pontos de vista com as vozes que narram, por outro, numa dinâmica que não sendo propriamente a do paradoxo, é quase sempre a do desajuste. No plano da construção da narrativa propriamente dita, destaca-se a hipertrofia do descritivo, em claro diálogo/demarcação com os procedimentos do naturalismo oitocentista, acompanhada por uma usurpação do lugar do narrador linearmente épico por um sujeito poético que comenta e refracta as posturas e discursos das entidades da narrativa – narrador ou personagens.
Do ponto de vista da história ou fábula contada, ganham relevo dois aspectos que são talvez os mais evidentes e fascinantes na produção de Mário Cláudio: o narrado aparece ou sob a caução da personagem histórica, que não é ficcional mas “biografada”; ou como matéria que a narrativa fabula reportando-se, de imediato, à crónica, simulando a clara intenção de construir um discurso historicamente factual, seja a matéria abordada a privada ou familiar, seja a do discurso memorialístico ou do diário, ou seja, ainda, a do quotidiano que circula na comunicação de massas.
O conjugar destes diversos mecanismos, de forma original e cada vez mais bem regulada, permite a criação de um dispositivo poético a que chamaríamos aparato estético da escrita como espectáculo da enunciação, o qual funciona do seguinte modo: um sujeito enunciativo aborda o documento, pretexto da história a construir, e transforma-o numa equação em que o objecto de ficção se destaca pela relação que mantém com a História do seu tempo, mas sob os efeitos de transformação do discurso poetizante do autor. Completa o efeito da espectacularidade o facto de uma das posturas preferidas de Mário Cláudio ser a da contemplação do álbum (ou do suporte de documentos em geral), compondo a partir do instantâneo fotográfico ora a aura da pose[3], ora a digressão da pequena narrativa anedótica, ora a perífrase da ampliação descritiva.
A espectacularidade estética de que falamos tem em conta, sobretudo, dois factores dominantes na ficção de Mário Cláudio já aludidos acima: a importância da visualidade mesmo quando o discurso é argumentativo; e a passagem do instantâneo à pose e mesmo à composição descritiva por alongamento do discurso (a hipotipose). O início da narrativa que inaugura, por assim dizer, na obra do autor, o “ciclo romanesco[4]” propriamente dito, Amadeu, fornece-nos bons exemplos de ambos os processos segundo os quais a fábula se vai tecendo como romance ainda que, quase sempre, em constante de invenção poética, renunciando a ser linearmente narrativa[5]. Lemos, de facto, logo nas primeiras linhas:
“A Casa é uma teoria volumétrica por entre vegetação, maior do que todo o Mundo, impossível de arrumar. Por torres e telhados se levanta, paredes de cal alternando com panos de muralha, e um bestiário a habita, nela cirandando ou em torno lhe correndo, heráldicos bichos esguios, indistintos da paisagem. Na construção, que não obedece aos caracteres do meio, um pouco ao revés de certa convicção de sangue da família, a vida se concentra na cozinha que ele virá a pintar. É uma quadra enorme e enegrecida, trespassada de aromas que compõem uma história culinária remontando muito além do clã, ao horizonte de raças de loiro baço, olhos de verde sequíssimo, deuses que nas faldas do Marão apenas reclamam exíguos sacrifícios de bagas de arbusto, pequenos mamíferos amedrontados. Amadeu percorre a Casa a grande velocidade, na espécie de tontura que lhe dá a infância, ingénuo do destino a conferir ao fogo que a brincadeira não sabe extinguir” (1993: 11[6]).
Este excerto, que nos limitámos a “colher” das primeiras linhas da obra que nos parece ser fundadora da série que afirma Mário Cláudio como um dos grandes romancistas portugueses contemporâneos, é um perfeito exemplo dos vários mecanismos que estão na origem da arte (ou técnica) de composição que o caracteriza. Em primeiro lugar, é de notar a importância que ele dá à visualidade, patente pela própria abundância de um vocabulário que hiperboliza o visual, quase até à sua glorificação, quer pelo descritivo dominante, quer pelo uso do vocabulário típico das várias técnicas da construção do visual.
Em segundo lugar, patenteia-se a posição privilegiada de uma perspectiva narrativa que nunca se submete à necessidade de sequencializar a acção segundo a exigência de sucessivas actuações ordenadas pela cronologia e verbalmente expressas pelo domínio do pretérito perfeito – ao contrário, dominam as formas do presente e do futuro. Tudo se passa, enfim, como se a voz do narrador, caracterizada por uma forte expressividade linguística e um notável aparato cultural, transmitisse um poder de conhecimento que, em relação ao objecto apresentado, não conhece limites: move-se para a infância da personagem, prevê-lhe o futuro, conhece os fundamentos genealógicos da família, o quadro cultural antropológico e os fundamentos míticos e simbólicos do imaginário que determinarão o futuro da personagem.
Sem abdicar, em nenhum momento, dessa omnisciência de ponto de vista, o privilégio autoral de Mário Cláudio introduz, no entanto, uma imensa variação de sujeitos que colaboram com o narrador autoral, quer aparecendo como vozes independentes, quer fornecendo-lhe pontos de vista a partir dos quais a entidade mais recuada do discurso (a que se confunde com o autor enquanto enunciação primeira do discurso) desenvolve as suas digressões, por vezes em narrativas propriamente ditas, mas, mais frequentemente, em descrições e discursos argumentativos e avaliativos.
São bons exemplos dessa versatilidade os troços de narrativa em que um narrador homodiegético emerge, como diarista do trabalho do biógrafo de Amadeu que trabalha em Santa Eufrásia de Goivos. Alguns excertos desse diário permitem-nos acrescentar alguns traços esclarecedores relativos ao mecanismo de narração de Mário Cláudio.
“Considera-se um biógrafo. Reúne documentos, ouve quem ouviu do homem, acrescenta a tudo isso estâncias da própria existência. Este meu Tio Papi pretende justificar-se. A vida apenas se lhe torna inteligível na vida de outrem, e é isso quase tudo quanto o move. Falando do pintor Amadeu é de si que fala, por ele viaja até à infância, emerge à superfície das águas trazendo entre os dentes um pequeno tesouro cintilante. Mas é-lhe pouco exacto o itinerário, arrogante também. Vejo-o quando passo no corredor e esqueceu a porta entreaberta, de camisa impecavelmente alva, às vezes ao pescoço o foulard de seda natural, infantil ex-libris, a pena suspendida do papel, o braço esquerdo apoiado no cotovelo e sustentando o cigarro entre o polegar e o médio” (1993:16).
Embora antepostas, as considerações afectam como um comentário o olhar momentâneo: e, obviamente, a ideia de uma imagem captada no instante é apenas a máscara do documento, de um instantâneo divisado pela nesga da porta, que inscreve, de facto, a pose bem elaborada do escritor.
A recorrência do processo é notável, embora variem os mecanismos de perspectiva e os sentidos atingidos sejam diversificados. Por exemplo, em O pórtico da glória, o narrador, biógrafo da própria família, referindo-se ao seu tio-avô, refere-se-lhe como se o captasse numa fotografia de um álbum, tirando os efeitos temporais e de perspectiva mais surpreendentes, inclusivamente pela sugestão dos instrumentos de óptica que apoiam a visão:
“Vejo-o à distância, empenhadíssimo em fiscalizar o funcionamento da fábrica, utilizando os conhecimentos técnicos, proporcionados pelo curso de engenheiro mecânico, intencionalmente abraçado, no afã de corresponder às urgências da acção em que a tribo se implicava. E distingo, reflectidas nas lentes de aros dourados, que nunca abandonaria, o rol de uma estrita lista de encomendas, que não consigo precisar em que época se teria cumprido. A tinta negra, porventura pela mão do defunto guarda-livros Evaristo Nunes, decorre sob o vidro que os aumenta os itens seguintes [e seguem-se seis linhas de enumeração]. E uma mancha de tristeza parece toldar a face de José Bolet, abreviado nome, que reivindicaria, e não logro precisar donde provirá ela, se da folhagem de um plátano que se agita, na tarde de magro sol, se de alguma agrura da alma a qual não achou aquilo que desesperadamente procura, mas que percebe quão inútil lhe será a desistência da frustração” (1997: 168).
Compreende-se que, no horizonte deste processo, se revela a técnica naturalista, sobretudo se atendermos ao facto de que o biógrafo faz a “saga” (ou crónica, como o autor prefere chamar-lhe – e com razão, quanto a nós, pelo que iremos demonstrando) da própria família. Mas logo se patenteia como fundamento desta escrita a deriva para a fantasia através da qual se verifica quanto o processo do documento e da reconstrução do documento é uma impossibilidade para o narrador e um limite para o criador poético. Não teria de ser assim, forçosamente: não obstante as críticas dos seus detractores, o naturalismo procurava ser uma arte de representação do real e um discurso epistemológico de explicação dos factos documentados, exactamente através da descrição.
Seja como for, o procedimento de Mário Cláudio, lançando mão dos mesmos materiais a que os naturalistas recorriam, parece querer mostrar quanto, no documento, o pormenor (a perspectiva do olhar do tio-avô, os óculos, as letras vistas através das lentes, a referência ao guarda livros e a própria enumeração do que essa lista continha) apenas serve de húmus ao devaneio, que se vem fixar no pormenor incerto (a “mancha de tristeza”, equivocamente atribuída a uma folha de plátano), não podendo aspirar a demonstrar nada no plano da realidade referencial.
Quanto a este aspecto, Mário Cláudio, atento herdeiro dos pastiches camilianos, parece aproximar-se mais do espírito do nouveau-roman, fazendo do olhar que encaminha a descrição uma paixão dos sentidos, uma obsessão de onde parte a digressão poética. Curioso é que ela se exerça quase sempre como prospecção do passado, como um devaneio que procura reconstruir a vida como sonho, a partir dos dados que a crónica apresenta como factos na verdade ocorridos. O autor portuense parece estar inteiramente consciente disso, como o demonstram as linhas que em seguida transcrevemos, do romance também pertencente à “crónica familiar do autor”, Tocata para dois clarins, nas quais somos tentados a ver uma revelação, quase, de uma ars poetica:
“Inclino-me para estes dois retratos, agora, que constituem a prova visível, diria quase imemorial, daquela viagem de núpcias, num papel recortado, que o tempo, apesar de tudo, não tingiu do proverbial amarelo mitológico. E relembro-me, assestando a desmedida máquina «Kodak», em pleno Terreiro do Paço, a fim de colher, da Maria, a imagem que a retenha, em Lisboa, nos finais desse Novembro, soalheiro e frigidíssimo, de mil novecentos e quarenta” (1992: 77).
Será difícil não ver, na sequência do que vimos argumentando, quanto a própria problemática que procuramos desenvolver se torna central no troço da narrativa que acabámos de transcrever: um “cronista” evoca, na presença de uma fotografia, o momento em que ela foi obtida; o acto de captação é visto como uma tentativa de “colheita” de um momento (“instantâneo”) imemorial; no entanto, a atenção do observador é avassalada pela memória, a figura agiganta-se, no conjunto da paisagem, e não só o momento se eterniza numa pose – no recordar! – como a composição aumenta, como se o tempo decorrido, um pouco à maneira da imagem que Proust constrói no final da sua Recherche, incluísse na figura o tempo, tornado volume no espaço; e o devaneio histórico cultural desenvolve-se, nas linhas seguintes, até ao final do capítulo onde, num remate que retoma o instantâneo – já tão evidentemente permeado de observações e juízos de valor – se encerra o instante, e tudo o que o amplia, deste modo, onde se constrói o parêntesis pelo jogo do “anacoluto” narrativo corrigido:
“Ao encerrar este capítulo, porém, de uma espécie de privativa história universal, é como se me implantasse, de novo, defronte da minha noiva, ajustando o diafragma, medindo a distância, prevendo a incidência da luz, dentro em breve crepuscular. À invectiva da Maria, então, «Vamos lá, António, vê lá se te despachas», responderei com um segredo, balbuciando entre lábios, como nesse dia, duas palavras, apenas, «Um beijo», enquanto comprimo a molazinha do obturador” (p.80).
No entanto, como já o dissemos anteriormente, não é só do documento visual que parte o discurso perscrutador deste procedimento de narração lírica. Ainda em Tocata… podemos ver, no capítulo II, o aproveitamento do discurso político do “Estado Novo”, citado como documento, mas lentamente transformando-se, pelo desenvolvimento de uma voz que se neutraliza pelo que nela ecoa de vozes que a glosam, parodiam, parafraseiam e amplificam, numa espécie de estrépito de ideologias em choque, soando em simultâneo.
De algum modo, o documento artístico, em Rosa e Amadeu, sobretudo, e a correspondência pessoal (por vezes inventada), com especial ênfase em Guilhermina, sofrem tratamentos semelhantes como matéria de composição poética. O mesmo poderíamos dizer relativamente aos seus textos mais marcadamente históricos, As batalhas do Caia (1995) e Peregrinação de Barnabé das Índias (1998).
Neles, sobretudo no segundo, não é tanto o documento fotográfico (que, apesar de tudo, está presente na crónica de Eça escrevendo “A Catástrofe” tal como aparece em As batalhas do Caia) que funciona como matéria-prima, mas o discurso da crónica, da História como crónica, seja ela a de um relato inventado (“A Catástrofe, de Eça de Queirós), seja a de um relato de viagem ou diário de bordo (o Roteiro da viagem de Vasco da Gama, ou mesmo Os Lusíadas).
É neste contexto, evidentemente, que perspectivamos a galeria dos biografados. Eles são, tendo em conta o maior ou menor grau de veracidade histórica, documentos, a partir dos quais os discurso poético se desenvolve para interrogar sentidos da existência, dimensionar a problemática do humano como um sistema de tensões representadas como verosímeis – desde as personagens que indiscutivelmente viveram em épocas transactas (Amadeu Souza-Cardoso, Rosa Ramalho, Guilhermina Suggia, Vasco da Gama, Eça de Queirós) ou ainda estarão vivas (algumas das que coexistiram com as personagens historicamente mais recentes, o estudante que matou a namorada, no Porto, em 1994, designado por Henrique, em Ursamaior – 2000), até às que são “autênticas” na história familiar de Rui Barbot Costa, e que Mário Cláudio, personagem autoral[7] de Rui Barbot Costa, transfigura ao romanceá-las dando-lhes novos nomes e construindo um verdadeiro palimpsesto sobre a árvore genealógica real, constante em registos civis.
Interessante, em quase todos os casos, é que à história contada se acrescente, por meandros de variados processos criativos de mundos em coexistência com outros mundos, o conto do contar a história. Assim, de certo modo, todos os narradores, incluindo o autor Mário Cláudio, são personagens sob penas várias, sofrimentos e paixões que, ou dizem respeito directamente às histórias biografadas, ou vêm complicar o processo de contar vidas vividas. Uma imagem esclarecedora desse dramatismo surge claramente na caracterização do biógrafo Papi, que acima transcrevemos. De facto, tudo se passa como se “a vida só fosse inteligível, pela vida de outro” e, desse modo, percebe-se claramente que o acto de enunciação seja um dos centros fundamentais da poética romanesca de Mário Cláudio.
Essa importância dá-se a conhecer em todos os mecanismos já mencionados, a começar pelo processo de construção da espectacularidade estética que foi o que começámos por expor. No entanto, merece uma atenção especial o mecanismo verbal que constrói, em grande parte, essa espectacularidade. O sistema textual dominante para a construção do visual e para o engrandecimento aparatoso do documento é, quanto a nós, o descritivo. Evitando alongarmo-nos muito sobre as características de tal processo em Mário Cláudio, remetemos o leitor interessado para os dois artigos da nossa autoria que apresentamos na bibliografia.
No entanto, convém que sumariemos os efeitos fundamentais que nos parece que a ordem do descritivo instaura nos romances de Mário Cláudio. Em primeiro lugar, parece-nos que, perdendo as coordenadas mais evidentemente textuais da narrativa, os romances do autor portuense esquecem o “objecto que se faz por si próprio”, no encadear das acções, como que comandado pelos feitos que constroem a fábula – a qual se valida como exemplum, minimizando, por isso, o efeito da verbalização – enfatizando, ao contrário, o dizer, pela valorização do comentário. Em segundo lugar, eles esvaziam o sentido da descrição como auxiliar da narrativa, a servir apenas de “quadro” à crónica, ou seja, de fundo secundarizado, à forma significativa das acções encadeadas.
Quanto à primeira consequência, devemos constatar que ela arrasta resultados fundamentais de valorização poética da voz narrativa. Perdido o domínio da fábula – anulado o interesse do encadear de acções cujos resultados ora coroam os esforços, ora desafiam a personagem quando falha, fazendo apelo a mais acções – passa a dominar a surpresa do foco central do discurso: a enunciação. Deixa de interessar o que é contado – porque o narrador constantemente faz gorar as expectativas do leitor – para emergir sobretudo a luxuriância da narração.
Quase se poderia dizer, para usarmos os termos de Lubbock, no seu já clássico The Craft of Fiction, que o telling (o contar) se torna a própria matéria do showing (o mostrar). Isso é evidente, muito especialmente, em A Quinta das Virtudes, o mais romanesco dos romances de Mário Cláudio, não só pelo ambiente oitocentista que, nele, mima o romance na sua época “clássica”, como pelos esboços de intrigas amorosas e de percursos vitais que se representam. Na história de amor de conteúdo mais dramático que o romance contém, de João Manuel e Teresa, verifica-se esse pendor para minimizar a narrativa, pelo desinteresse que, a partir de um certo momento, o que se punha como horizonte dramático da narrativa, se banaliza numa série de eventos em que não surgem barreiras, não se verificam confrontos, não se desenvolvem conflitos, não se anunciam, como interessantes, nem peripécias nem desenlaces (cf A Quinta das Virtudes, p. 173-189).
O que se avoluma é o sentenciosismo da voz narrativa, o cerimonial da estrutura retórica que apresenta a fábula, a presença, enfim, controversa, mais ou menos ritual, mais ou menos inesperada, do narrador, e mesmo a pomposidade dos actos de enunciação em que o “autor” se dá a perceber. Quanto a essa vertente, não é descabido aproximar Mário Cláudio de Agustina Bessa-Luís – no entanto, não nos parece que a “colheita” do jeito do autor seja directamente feita na prosa da sua actual conterrânea: antes diríamos que ambos têm uma fonte inesgotável numa das mais marcantes entidades do romance oitocentista portuense – Camilo!
Finalmente, devemos acrescentar que esse sentenciosismo não é só o da enunciação de proveniência autoral. Há, nas personagens de o autor de Rosa, um pendor para o dizer de salão, de palco, ou de proscénio onde se enunciam dizeres que se tornam importantes, sobretudo pelo acto declamatório, para a posteridade – deixam de ser usos coloquiais para se tornarem sentenças ou dizeres, para ressoarem, em importância, pela sonoridade e solenidade. O pathos de tais palavras não está tanto no seu conteúdo, ou mesmo na sua forma verbal, como na pose declamatória, pelos silêncios ou vazios por onde irrompem, muitas vezes intempestivamente, ou sem grande relação lógica com a situação.
Os diálogos entre João Manuel e Teresa, no troço de A Quinta das virtudes já referido, são disso um excelente exemplo. Mas ainda é mais notório o efeito barroco da oratória nos discursos das personagens num romance como Ursamaior, que procura representar, pela captação de uma situação dramática das prisões, a dimensão problemática das vivências humanas nos nossos dias. É disso um exemplo o discurso do passante desconhecido que impede Jorge de se suicidar e lhe diz, ao agarrar-lhe no braço: “Não faça isso, jovem, olhe que a vida não são apenas maus momentos, ainda tem muitos anos à sua frente, Deus é grande, jovem, Ele olha por nós, nunca se esquece de nós, nem nas alturas em que parece abandonar-nos, não pense nessa loucura, jovem, pronto, pronto, já passou” (p.180).
A segunda consequência decorrente do uso da descrição, por sua vez, parece-nos apontar para o relacionamento do autor com a sua própria linhagem literária. Vemos nela, assim, um modo de Mário Cláudio citar, com ecos e consequências variadas, que podem ir do pastiche paródico à busca de linhagem literária, os modelos romanescos do século XIX. Poderíamos dizer, arriscando um pouco um juízo que colocará, eventualmente, importantes questões histórico-literárias que não conseguiremos deslindar aqui, que Mário Cláudio se propõe tomar os modelos do naturalismo, sobretudo os mais problemáticos (e, assim, deliberadamente, a descrição à moda do século XIX – em moldes mais ou menos paródicos, seguindo Camilo, mais ou menos empolgados, seguindo Júlio Dinis ou Arnaldo Gama) para instaurar a modernidade do seu lirismo romanesco. Curioso é que o recurso seja ao processo que, na crítica adversa, era considerado o maior prosaísmo do naturalismo.
O pendor para o pormenor inútil, para o detalhe insignificante, para a minudência algo escatológica torna-se o processo pelo qual a verbalidade se dignifica como objecto estético, criando o espaço onde o acto de enunciação se declara como suprema virtude.
No entanto, é preciso nunca esquecer que a valorização da palavra, a valorização do acto de proferir ou de escrever, instaura fáceis vaidades. Contudo, no fundo, o lirismo de Mário Cláudio não aspira uma pose ostensiva do eu escritor. E isso começa pelo Mário Cláudio que é e não é a entidade autoral.
O jogo do homem autor e das suas faces deliberadamente ficcionalizadas e, em certos momentos, parodiadas poderia encaminhar-nos para a sempre estimulante questão do eu da escrita. E, neste caso, não apenas a perspectiva de um narrador, como toda presença poética do autor e das suas tonalidades mais profundamente líricas. O Je est un autre, de Rimbaud, ganha, na ficção de Mário Cláudio um adensamento de sentido que, por si só, mereceria um aprofundado trabalho e, talvez, exaustivos alongamentos, na busca das implicações que a posição da subjectvidade na escrita, tal como ele a pratica, pode arrastar.
A aparente brincadeira instaurada logo em Amadeu, surgindo, na diegese, através da carta final do amigo do “autor” (qual?) a Mário Cláudio, enviada depois de uma recente ida à Quinta de Santa Eufrásia de Goivos, insere e eterniza a questão da autoria e o limite final da origem do discurso e da sua propriedade ontológica. É claro que, em grande parte, o problema só se pode colocar como paródia: daí que, entre as personagens que rodeiam Papi, “protagonista” parco em presenças na diegese relativa à escrita da “biografia” de Amadeu Souza-Cardoso, se anuncie já a referência a alguém que se prepara para biografar a Guillhermina; que Álvaro apareça como o correspondente do sobrinho de Papi; que quem conta em primeira mão a história do biógrafo de Amadeu, dirija, em Amadeu, uma carta final a Mário Cláudio com um manuscrito que se adivinha ser o de Amadeu, que esse mesmo Álvaro seja citado pela voz autoral em Guilhermina, como o autor da “biografia” de Guilhermina Suggia; e que Mário Cláudio lhe dirija uma carta, com a qual encerra Rosa e, mais amplamente, a Trilogia da Mão.
Faz parte da mesma ficcionalidade que se dissemina pelo exterior dos universos diegéticos, o estado confuso em que fica desenhada a entidade autoral, no meio de uma intriga de “roubos” textuais. Assim, em Rosa conta-se como Álvaro afirma que “escrevera ele [..] a rebuscada história de Gulhermina Suggia, violoncelista, de que suspeitava se houvesse outrem apropriado, entretanto, já que nem ousa confirmar a quem pertence o texto publicado, se a ele próprio, se a um certo vampiro de relatos alheios” (1993: 319).
No entanto, também parece certo que, a ser Mário Cláudio tal “vampiro”, não fica linearmente posto ponto final sobre a questão, pela admissão de que, como muitos outros autores, ele se ficcionalizou um tanto, incluindo-se, de modo pouco mais que alusivo, no universo que criou como ficção. Porque, nesse caso, temos de admitir que, por exemplo, esse mesmo Mário Cláudio, é uma entidade mistificatória que, do exterior da ficção – numa entrevista de 14 de Abril de 1985, no Jornal de Notícias, por exemplo –, compromete a verosimilhança de Guilhermina como bibliografia, ao dizer que é “um fantasma em termos de cartas, fotografia, recortes, e outras coisas desse tipo”, admitindo mesmo que usou muito pouco os documentos.
Entre outras coisas, então, Mário Cláudio é uma assinatura pela qual responde a entidade civil de Rui Barbot Costa. Tem o seu copyright sob aquele nome, dá entrevistas sobre os seus livros, escreve crónicas sobre factos aceitavelmente reais, e afirma que a sua segunda trilogia, a de A Quinta das Virtudes, Tocata para dois clarins e O pórtico da glória é da crónica da “família do autor” (cf., por exemplo, Revista Ler Outono de 1990) em peças jornalísticas que apenas referem Mário Cláudio, como autor ou como entrevistado. A entidade Rui Costa apenas assinou um livro, que não é literário nem de crónicas, mas sim um “estudo sobre o analfabetismo”.
Mário, pelo menos Mário, reaparece no último dos seus romances, aquele que não vive da ilusão “histórica”, ou da crónica historiográfica, mas se aproxima, antes, da crónica do quotidiano, Ursamaior. Aí, o preso transformista refere-se a outro preso a quem “o pessoal chamava «o escritor»”, o qual, segundo a sua observação era “um gajo sem nada de especial, nem alto nem baixo, barba grisalha, sobre o forte, mas com aquela barriguinha que aprecio nos homens maduros”. Face a uma gentileza desse «escritor», o transformista Cristiana baptizou o seu dedo do anel (tal como era seu costume – dar nomes de indivíduos de quem gostava aos seus vários dedos) “Mário” (2000: 91).
Sem pretendermos resolver ou adiantar grandes passos relativamente à questão do autor na literatura, em especial no romance, pensamos que é em torno dessa entidade que se desenvolve uma das mais lúcidas buscas de Mário Cláudio, na elaboração de uma poética inscrita na própria prática da criação. O autor, assim concebido, não é apenas um suporte mais ou menos histórico apenso a uma série escrita, revelando o homem, enigma existencial. O autor, Mário Cláudio, é uma construção da escrita, em toda a sua dimensão retórica.
Como tal, o seu ethos não é apenas a entidade civil, o cidadão que suporta, com a sua visibilidade social, política e ideológica o verosímil das suas obras. Ao contrário, a entidade que ganha foros de cidadania é o ente criado do interior da escrita. Não como poeta visto por outros poetas, como Pessoa foi com os seus heterónimos, mas o ser irreal, fundado como verosímil pela coerência que vai criando ao transitar por toda a sua obra e pelos ecos que dela ressoam noutros actos de escrita e de comunicação.
E é de dentro do virtual da ficção, das linhas do verosímil, que se constrói, aqui, o fundamento de uma ética e de uma praxis – uma voz que institui, com autoridade mas sem autoritarismo, os campos do possível. É aí que se constroem os quadros da crónica, onde é preciso reinstalar a História em cada momento, para que ela não surja como o cristal da verdade, rigidamente feita para sempre, lugar para não ser visto mas para dar a ver o sentido imposto de uma vez por todas.
Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora
Bibliografia
O corpus romanesco de Mário Cláudio que tivemos em conta para a elaboração deste nosso trabalho é constituído pelas seguintes obras:
Amadeu (1984)
Guilhermina (1986)
Rosa (1988)
Trilogia da mão (reunião dos três anteriores – 1993)
A Quinta das Virtudes (1990)
Tocata para dois clarins (1992)
As batalhas do Caia (1995)
O pórtico da glória (1997)
Peregrinação de Barnabé das Índias (1998)
Ursamaior (2000)
Deleuse, Gilles, 1983, Cinema I – L´image-mouvement, Minuit, Paris
Genette, Gérard, 1972, Figures III, Seuil, Paris
Jorge, Carlos J. F., 1991 – “A ordem do descritivo, na narrativa e a mudança de dominante no registo discursivo”, In Actas do Forum de Literatura e Teoria Literária da UTADT 1991 – “La Description depuis le Naturalisme: un Changement de Dominante dans le Discours du Roman” (A Quinta das Virtudes, de Mário Cláudio – complemento da anterior) In Dedalus n.º 1, (actas do Seminário O Pós-modernismo na Literatura Europeia)
[1] Temos em conta, aqui, apenas a produção de Mário Cláudio a que se tem chamado romanesca, até pela designação paratextual que acompanha, na capa dos seus livros, ou na bibliografia que antecede a obra. Não ficamos impedidos, no entanto, de citar o resto da sua produção, sobretudo quanto a aspectos que na crónica, no teatro ou na poesia se podem mostrar elucidativos dos traços que consideramos mais marcantes da sua ficção romanesca,
[3] Usamos aqui, de modo abreviado, os conceitos de instantâneo e de pose tal como Deleuze os desenvolve a partir de Bergson em Cinéma I – Límage-mouvement (cf. Deleuze, 1983: 13-15)
[4] Apresentamos no final do artigo a lista das obras que assim designamos. Fica desde já esclarecido, no entanto, que tal lista é composta por aquelas produções que Mário Cláudio publicou como “romances”, de Amadeu (inclusive) em diante.
[5] É de registar, no entanto, que o processo da visualidade como valorização do ponto de vista é extensível à produção de Mário Cláudio, sendo notável desde os primeiros momentos da sua produção – em Um verão assim, por exemplo – e parece-nos um dos mecanismos mais evidentes na sua poesia.
[6] Citamos no texto as datas da bibliografia efectivamente utilizada. Apresentaremos, no entanto, no final a lista das obras que são objecto central deste trabalho segundo as datas da primeira edição. No presente caso, a data remete para a edição de Amadeu incorporada no volume Trilogia da Mão, publicada em 1993, na qual estão também incluídas Guilhermina e Rosa. Estas obras, embora agrupadas por vontade do autor num título de conjunto, continuam a constituir, para nós, romances independentes, pelo que as citamos sempre em itálico.
[7] No seguimento deste nosso trabalho, a designação que aqui usamos ficará devidamente esclarecida.
O filme, Shane, realizado em 1953 por George Stevens, parece-nos uma obra extremamente estimulante para ser estudada de um ponto de vista comparatista. Em primeiro lugar, porque é em relação a criações surgidas dentro dos cânones dos sistemas artísticos, sobretudo literários, que a crítica muitas vezes procurou apreciar o filme, no que toca ao interesse estético, à valorização ética e à ponderabilidade ideológica e epistemológica – colocando-o entre as obras do género que aspiram a um estatuto artístico, mesmo atendendo a que tem origem nos padrões da produção “clássica” americana de cinema, altamente determinada pelos processos da cultura popular de massas.
Em segundo lugar, pela sua estreita ligação com a obra romanesca de Jack Schaefer – autor de qualidade pouco comum na produção literária que assumiu os temas e figuras do Oeste americano como matéria dominante –, que está na base do argumento a partir do qual foi elaborado o guião.
Quanto à primeira ordem de questões, é de assinalar que, desde a sua estreia, a obra cinematográfica foi pensada e avaliada pelos críticos, nomeadamente Bazin (1961[1]: 150), tendo como referência canónica os grandes modelos genológicos da literatura – nomeadamente o romance de cavalaria, pelo que neste há de continuação dos valores característicos da epopeia, ou seja, os propósitos e os feitos positivos do herói enquanto padrão supremo, representativo dos ideais mais caros à comunidade em que se integra.
Relativamente à valorização do filme, enquanto obra cinematográfica, dentro do universo cultural em que imediatamente emergiu, na época das suas primeiras exibições, é patente a perplexidade que gerou. No artigo de Bazin já citado, deparamo-nos com a problemática, numa compreensão quase formalista das determinações genológicas, segundo modelos que, só mais tarde, com o estruturalismo, se tornaram usuais. O eminente crítico francês começa por traçar as grandes linhas daquilo que era a nova tendência do western do pós-guerra, nos termos que se seguem, em que as motivações se explicitam em forma de modelo hipotético: “digamos que o ‘superwestern’ é um western que teria vergonha de se limitar a ser ele próprio e procuraria justificar a sua existência através de um interesse suplementar: de ordem estética, sociológica, moral, psicológica, política, erótica…para abreviar, por um qualquer valor extrínseco ao género, valor esse que, supostamente, o enriquece” (1961: 148).
E, poucos parágrafos depois, referindo-se ao filme em questão, não hesita em o colocar como exemplar supremo dessa variante, então, moderna: “Quanto a Shane, ele constitui, por sua vez, o ponto extremo (la fin du fin) da ‘superwestrnização’. Com efeito, propõe-se, aí, justificar o western pelo…western. Os outros empenhavam-se em fazer surgir mitos implícitos, teses muito explícitas, mas a tese de Shane… é o mito. (…) A ‘superweternização’ levou tão longe a sua ultrapassagem que volta a encontrar-se nas Montanhas Rochosas” (1961:150).
Podemos deduzir destas palavras, e atendendo ao que conhecemos do filme, que o efeito mítico, de um herói carregado dos símbolos da sua própria plenitude, emergindo das Rochosas e voltando a desaparecer nelas, permite pensar a obra de Stevens como um cruzar de todos os valores mito-poéticos da matéria relativa ao pioneirismo e os aspectos formais dos sub-géneros épico-narrativos, como veremos adiante.
Antes de voltarmos às considerações posteriores de Bazin, que nos conduzem, pelo que já se adivinha das citações anteriores, aos outros pontos que queremos desenvolver – respeitantes à relação do filme com os géneros e as obras literárias de prestigiosa linhagem – oiçamos um outro estudioso, mais recente, John Saunders, que, já com uma ampla distância histórica, enquadra o filme que aqui abordamos numa perspectiva sócio-cultural mais ampla no seu livro, The Western Genre.
Tal enquadramento revela, em consequência de ter como objecto de abordagem uma obra típica do cinema americano, além de outros aspectos, duas vertentes ferozmente concorrentes: o sistema de produção, com a sua dominante económica; e o processo de representação, sob controlo do sistema dos estúdios, nomeadamente através dos seus códigos ético-estéticos altamente esteriotipados, em interacção simultânea com uma tendência poética e estética, aleatoriamente situada e com um poder de decisão extremamente variável, entre a fragilidade e a quase inoperância. O que poderíamos generalizar, corroborando o que observa Raphaële Moine, na sua abordagem à genologia no cinema,
“ a produção de filme de género, que supõe, ao mesmo tempo, uma repetição de traços característicos e uma variação, inscreve-se numa dialéctica de standardização/diferenciação. Ela é uma das combinações possíveis entre a lógica normativa e a lógica de inovação que caracterizam a produção e o consumo de «bens culturais» na cultura de massas” (2002: 61).
Voltando aos pontos de vista do estudioso inglês acima referido, a questão parece colocar-se com toda a pertinência dentro dessa perspectiva, no que diz respeito ao filme de Stevens: “Shane é frequentemente recordado como o western arquétipo (archetypal), uma tentativa autoconsciente de reproduzir os temas e os caracteres familiares num estado clássico puro” (Saunders, 2001:13).
Assim, dado que o realizador, George Stevens, “não tinha qualquer crédito particular no western” (de facto, além de Shane, o único filme que realizou parecido com um western foi O Gigante, posteriormente, em 1956) e não era mais do que “um muito respeitado artesão”, Saunders regista como digno de especial reparo o facto de o realizador ser considerado um “especialista na produção de bons proventos para os investimentos do estúdio” (2001:13).
No que diz respeito segunda ordem de questões que nos propusemos tratar no início deste nosso trabalho, ou seja, a relação entre o filme e o romance de que é adaptação, pelo que nos confirmam os dados de investigação recolhidos pelo académico inglês que acabamos de citar, a fidelidade do primeiro à narrativa literária é bastante grande – nomeadamente os diálogos, no guião de A.B. Guthrie Jr., são, muitas vezes, ipsis verbis os do romance (cf Saunders, 2001: 14). Ora, tal fidelidade, cujos limites abordaremos seguidamente, tende a ser – além do que toca à mimesis dramática já referida – do nosso ponto de vista, uma homenagem ao discurso ético-avaliativo (ideológico, moral e mesmo de quase religiosa admiração da criança pelo vislumbre da aura do herói) que o romance desenvolve.
Não podendo ser marcadamente laudatório, segundo os processos verbais da retórica argumentativa, o filme (porque nele prevalece a acção e a ostentação dos traços físicos, como exigems as regras do género) desenvolve, para enaltecer positivamente o herói, o aparato dos adereços simbólicos, dos elementos ritualizados da acção típica e do emblematismo de certos traços icónicos.
George Stevens, realizador de “Shane”.
No que diz respeito ao dispositivo enunciativo também se encontram transposições. Assim, por exemplo, na obra verbal, toda a evocação do “homem que vem de longe” é feita através de um efeito de distância, não tanto espacial, como no filme se acentua, pela lenta aproximação do cavaleiro, na sequência inicial, mas temporal – do momento da narração para o momento evocado, no passado: “He rode into our valley in the summer of ’89. I was a kid, then…” (Schaefer, 1975: 1). Atendendo a que o romance é publicado em 1949, podemos aceitar que o discurso do narrador, confundindo-se com o da entidade autoral, coloca logo como abertura da história o cronótopo do western, enquanto rememoração nimbada de nostalgia: o homem maduro de hoje (tempo da escrita), com mais de cinquenta anos, evoca a criança que “in the clear Wyoming air (…) could see him plainly, though he was still several miles away” (1975: 1). De qualquer modo, o que se revela em ambas as obras é a estruturação de uma mensagem poética em que o Oeste se valida, como mito, pela evocação de um passado a que o herói pertence – e que, por essa pertença, só aí se valida plenamente.
É evidente que, esse mesmo dispositivo, no filme, como já o nota o próprio Saunders, sofre alterações: “a primeira pessoa narrativa da personagem que se torna Joey no filme dá aso, neste, a uma perspectiva mais objectiva, mas, apesar disso, vemos os eventos através dos seus olhos e os ângulos da câmara asseguram que, como ele, olhemos para cima, para Shane, em muitos momentos” (2001:14).
Quanto aos procedimentos enunciativos autorais, é respeitado, segundo Saunders, pela contagem que faz das sequências, o número de capítulos do romance do que resulta, grosso modo, dezasseis sequências, no filme, para dezasseis capítulos, no livro. A extensão do filme, comparativamente com os westerns típicos da época, apresenta-se mais longo, pelo que respeita das cenas do livro, inserindo na película uma ambiência mais romanesca do que a que é típica de outras obras cinematográficas do género, habitualmente mais marcadas pelo ritmo da acção – próximas, talvez, da dime novel de acção, que se publicava nos EUA desde segunda metade do século XIX.
Em contrapartida, os traços mais exteriores da figura do herói, tal como o filme no-la apresenta, afasta-se bastante da que sobressai do livro. De facto, neste, Shane “wore dark trousers…tucked into tall boots and held at the waist by a wide belt, both of a soft black leather tooled in intricate design. A coat of the same dark material (…).The handkerchief (…) around his throat was black silk. His hat (…) was plain black (1975: 2). Mas não são só as roupas a acusarem a persistente dominância da cor negra. Quando desmonta, o recém chegado tira o chapéu e penteia o seu longo cabelo negro (p. 4).
Traços do adereço e da aparência física que sublinham a obscuridade quase enigmática do seu semblante, longamente descrito na cinco primeiras páginas, de onde sobressaem “the man’s eyes (…) bright and deep in the shadow of the hat’s brim” (p.5). Tal brilho será evocado, ao longo do romance, em situações cruciais, como na cena de pancadaria no bar com Morgan e os seus homens, onde a acção de inesgotável energia parece ser um prolongamento do semblante do herói quando se preparava para a refrega: “His face was clear, is eyes bright. He was somehow happy, not in the pleased and laughing way, but happy that the waiting was over and what had been ahead was here and seen and realized and he was ready for it”(1975:89).
Shane, romance de Jack Schaefer, foi publicado em 1949.
Ora, no filme, os traços da personagem são bem outros. Os elementos luminosos, parecendo emergir da escuridão e do negrume sombrio, tal como erradia da fonte cintilante que são os seus olhos nem sempre perceptíveis, no livro, são substituídos por traços físicos, adereços e trajes brancos claros ou mesmo representativos da luminosidade, no filme. O herói, Shane, na versão cinematográfica é, segundo uma generalizada perspectiva da crítica especializada, com a qual estamos de acordo, uma espécie de virtuoso cavaleiro andante que emerge do fundo montanhoso e selvático com o aparato das vestes muito claras, e montada com uma grande malha branca na parte dianteira da cabeça, que parecem anunciar, como índices reconhecidos da matriz temática dos livros cavalaria, a missão de justiceiro que o norteia.
O intérprete, Alan Ladd, é loiro, de olhos azul-claros, traz uma pistola de coronha de marfim e luzidio cano prateado, por sobre a sua veste de peles de antílope (buckskins), a evocar as dos pioneiros das primeiras sagas da fronteira, tão caros ao romanesco americano das origens (cf. Saunders, 2001: 16).
De facto, é importante frisar um pormenor que foi muitas vezes esquecido: a literatura foi ela própria criadora do mito do western, com os seus procedimentos específicos. O passado e o mito que o filme convoca, de modo implícito, ao fazer emergir Shane sob os aparatos evocadores do primeiro pioneirismo, o dos caçadores de peles, parece querer assegurar ao herói uma densidade temporal e cultural simbólicas. Não só, pelo seu emergir da distância, ele nos surge como um senhor dos míticos espaços da liberdade, como se patenteia, também, carregado dos adereços dos homens que fundaram a marcha para o Oeste: os pioneiros vestidos de peles. Mas, com este acréscimo, Stevens adiciona um elemento cultural forte ao seu filme: a referência literária nacional. Porque, se o western se desenvolve, sobretudo, como complexa mensagem artística do cinema americano (tendo como antecedentes e contemporâneos, como narrativas verbais, quase só folhetins populares – a dime novel que, habitualmente, contava a saga de algum pistoleiro ou bandoleiro histórico, mais ou menos mitificado), o caçador pioneiro é uma das primeiras figuras emblemáticas da literatura americana. Ora, o que o filme parece evocar, com o aparecimento do seu herói, é esse passado de que, de algum modo, com espectacularidade ostentatória, o herói se reveste.
Assumimos, por isso, que Fenimore Cooper podendo ser visto como um fundador, quer da literatura dos EUA, ao narrar as aventuras dos heróis que participaram no desbravamento das terras e nos actos de afirmação da liberdade e da independência, quer da ideologia americana do horizonte aberto e a conquistar, introduz, com os seus romances, os primeiros elementos da matéria temática, de amplas ressonância culturais, da marcha para Oeste e do progresso da fronteira civilizacional.
Se, com a sua imensa saga dos caçadores de peles, não funda o Oeste como ficcionalidade (as terras selvagens eram, na época a que ele se refere, ainda muito a Leste) a acção de desbravamento, como prática do westerner, é iniciadapelo seu herói, Natty Bumppo, desde The Pioneers (1823). Ele é, assim, uma das mais importantes entidades mitificadas da cultura que constroem, com a sua acção, os conteúdos temáticos e as figurações expressivos que dão substância, posteriormente, quer como matéria narrativa, quer como figuras emblemáticas, às noções de pioneiro, fronteira, desbravamento. Sem elas, a expansão ideológica do mito do western e a sua integração profunda na cultura americana não teria tido a força que teve, ou não seria mesmo possível. Quase todos os motivos e desenvolvimentos temáticos que o western veio a ter estão, de algum modo, contidos, de modo mais ou menos embrionário ou desenvolvido, na obra do autor de The Last of the Mohicans.
Jack Schaefer (1907-1991)
Na deslocação do pioneiro, o Oeste é o seu horizonte e, de certo modo, o seu Graal (se quisermos manter a aproximação sugerida por outros críticos), pois é nele, enquanto além, que estão os fundamentos e os princípios mais sagrados da liberdade e da lei que dela emana – e é preciso notar que essa harmonia buscada era, então, “vivida” pelo herói “branco” das leather-stocking novels de Cooper, no seu convívio pleno com os Moicanos. A glorificação desse espaço além fronteira manter-se-á um dos conteúdos mito-poéticos mais fortes da literatura americana, por muito tempo.
Se a frase “Go west, young man…” vem de um político, Horace Greely, que assim pretendia oferecer um programa salutar para a resolução do problema do desemprego nas cidades de Leste, em 1837, o cantor do horizonte que ficaria lá para as bandas do Pacífico, em muito poemas, foi Whitman, no seu Leaves of Grass, de 1852.
Ora, se o filme constrói o seu horizonte histórico cultural, sugerindo o além de onde Shane emerge e, no final, desaparece, como região mítica de quase sacralidade, invisível para lá das montanhas, através do cenário ostentado pelas panorâmicas, isso deve-se, por certo, ao facto de o género, no cinema, rejeitar, por motivos ainda hoje justificados (a dominância da matéria específica icónica, em detrimento da verbal, que tende a ser substituída por aquela – por exemplo), o discurso ético-avaliativo e argumentativo que tão bem cabe no romance, mesmo que ele tenha como matéria lendária o justiceiro do Oeste, homem mais de acção do que de palavras, de suprema rapidez a disparar. Demonstram bem essa possibilidade os parágrafos finais da obra de Schaefer:
“He was there. He was there in our place and in us. Whenever I needed him, he was there. I could close my eyes and he would be with me and I would see him plain and hear again that gentle voice./ I would think of him in each of the moments that revealed him to me. (…) I would see again the power and the grace of a coordinate force beautiful beyond comprehension. I would see the man and the weapon wedded in the one indivisible deadliness. I would see the man and the tool, a good man and a good tool, doing what had to be done./ And always my mind would go back at the last to that moment, when I saw him from the bushes by the roadside just on the edge of town. I would see him there in the road, tall and terrible in the moonlight, going down to kill or be killed, and stopping to help a stumbling boy and to look out over the land, the lovely land, where that boy had a chance to live out his boyhood and grow straight inside as man should./ And when I would hear the men in town talking among themselves and trying to pin him down to a definite past, I would smile quietly to myself. For a time they inclined to the notion, spurred by the talk of a passing stranger, that he was a certain Shannon who was famous as a gunman and gambler way down in Arkansas and Texas and dropped from sight without anyone knowing why and where. When that notion dwindled, others followed, pieced together in turn from scraps of information gleaned from stray travellers. But when they talked like that, I simply smiled because I knew he cold have been none of these./ He was the man who rode into our valley out of the heart of the great glowing West and when his work was done rode back whence he had came and he was Shane” (150-151)
Não conhecemos nenhum comentário, quer ao livro quer ao filme, que se tenha interrogado sobre o enigmático nome do herói. No entanto, impõe-se-nos, perante este panegírico final, em que todos os processos retóricos da evocação estão atendidos (a distância temporal sublinhada, o empolgamento da afirmação da presença que a anula, a repetição que enfatiza o objecto de admiração, o uso do pretérito como processo narrativo concluso, da legenda e da figura lendária que se detém como entidade inteiramente dominada pela recordação – a ausência, enfim, do ente evocado, como processo de o tornar inteiramente captável pelo sujeito da percepção, que o presentifica como total interioridade da recordação), pensar que, de algum modo, é o brilho ofuscante, shine – shine, glow, bright, são propriedades constantes do seu estar, em modalidades quer substantivas quer verbais –, que se revela por detrás (ou vindos da sombra, como algumas descrições deixam transparecer) do seu nome – Shane.
De qualquer modo, em ambas as obras, a sugestão pode desenvolver-se com pertinência: porque, da figura aos actos, é como se o herói fosse a própria afirmação da presença enquanto força esmagadora da plenitude e da potência: o irradiar, shining, de Shane, no estar e no fazer. O que anuncia resume-se ao que dá a ver em si próprio, o seu brilho – o mistério ou enigma é o que fica para trás ou para além de si, num percurso em tudo similar ao de uma demanda arquetípica, como a do Graal, ofuscante.
O trilho da demanda de Shane, evidentemente, é o estabelecimento de um estado de ordem e de justiça, numa axiologia que, implicitamente, se assume como sendo de origem celeste. Após abater o bando de malfeitores, o cavaleiro desaparece no horizonte de onde emergiu – figurando assim uma harmonia entre o cosmos e a lei que parece reproduzir a conjunção entre a transcendência e a imanência que, numa perspectiva lukacsiana, por exemplo, seria o traço fundamental do herói épico.
No romance, o delineamento desse valor supremo, que parece pairar numa transcendência que só o herói sabe traduzir para a acção imanente – colocando o seu braço, numa espécie de ritual sagrado, do lado certo do litígio, transformando a sua acção e o resultado desta na esfera da harmonia cósmica como feito resultante da busca – é percebido, como que vislumbrado, pelo narrador, de modo que, literariamente, é possível elaborar com elegância segundo um processo consagrado na tradição da narrativa verbal: a memória evocativa.
De facto, a voz do narrador distancia-se, deixando transparecer, na maturidade, a evocação do seu perceber, enquanto criança, a acção das personagens adultas; e isso quer no que toca às observações mais elementares, relativamente aos comportamentos visíveis dos adultos cujas motivações se mantêm enigmáticas para a criança (que o narrador era, então, como personagem): “What happned in our kitchen that night, was beyond me in those days. But it did not worry me because father had said it would be all right, and haw could anyone, knowing him, doubt that he would make it so.” (p. 103); quer no que toca à persistência das imagens construídas como ícones de valores pela criança, que se reformulam aparentemente inalteradas: “This was the Shane of the adventures I had dreamed for him, cool and competent, facing that room full of men in the simple solitude of his own invincible completeness.” (p. 137)
Regressando ao texto de Bazin já acima citado, vejamos como ele se refere a duas dimensões que constituem ordens discursivas diversas a convergir no filme:
“seria um esforço gratuito reduzir a essência do westerna qualquer das suas componentes manifestas. Os mesmos elementos encontram-se noutros sítios, mas não os privilégios que parecem estar-lhe ligados no western. É necessário que este seja qualquer outra coisa, e não apenas a sua forma. Cavalgadas, lutas, homens fortes e corajosos numa paisagem de austeridade selvagem não chegariam para definir ou circunscrever os encantos dum género. Tais atributos formais, através dos quais se reconhece vulgarmente o western, são apenas os signos ou os símbolos da sua realidade profunda que é o mito. O western nasceu do encontro de uma mitologia com um meio de expressão: a saga do Oeste existia antes do cinema sob formas literárias ou folclóricas, e a multiplicação de filmes, aliás, não matou a literatura western que continua a ter o seu público e a fornecer aos argumentistas os seus melhores enredos. Mas não há comparação entre a audiência nacional e limitada das «westernstories» e a outra, universal, dos filmes que se inspiram nelas” (p.137).
É evidente que a crítica que segue as pisadas de Bazin se concentra nos elementos formais do conteúdo do mito para desenvolver a caracterização do “filme do Oeste” em aspectos fundamentais que o colocam em paralelo aos modelos da narrativa literária: os do herói épico, os do conflito trágico e os da intriga romanesca (cf. Glucksman, 1966: 71-88). A perspectiva é frutuosa, como poderíamos ver evocando alguns filmes de John Ford ou de John Sturges, por exemplo.
Em Shane (livro e filme), no entanto, o facto de todos esses aspectos se cruzarem, na sua vontade de “superwesternização”, como sugeria Bazin, não significa que todos aí se encontrem plenamente desenvolvidos, ou no máximo das suas potencialidades: a dimensão mítica tem algo de “revisitada”; o trágico perde-se na ambiência banal da família de acolhimento e na perspectiva excessivamente romanesca do narrador ou do seu olhar enquanto criança; e o romanesco nunca se completa como dominante plena porque nunca desfaz a dimensão mítica construída como evocação.
Assim, sem deixarmos de nos limitar ao filme e ao livro de que nos ocupamos aqui, vejamos como, sobretudo em relação ao western, a crítica, numa matriz em muito devedora a Hegel, tal como ela se reformula de Lukacs a Frye, desenvolveu algumas abordagens que se fundamentam nos grandes géneros miméticos estabelecidos para a literatura: o dramático e o narrativo. Segundo André Glucksman, são três, os níveis segundo os quais se pode ler o western: o épico, o trágico e o romanesco. No entanto, segundo ele, na origem coloca-se o mito: “o western é uma mitologia secularizada onde uma sociedade tenta reflectir as suas contradições na intenção de lhes compreender as origens” (1966: 71).
Ora, a primeira imagem, ou, pelo menos a mais forte imagem da primeira cena ou sequência de Shane (quer no livro quer no filme), é exactamente a saída do herói, dos horizontes desconhecidos, para o espaço humanizado dos “trabalhos quotidianos” de uma quinta. Nessa sequência de imagens, construindo-se como cenário, em cruzamento com o nó da acção que é o aparecimento do herói perante aqueles pelos quais se vai pôr à prova, expande-se toda a iconografia daquilo a que Gluksman chama, nesse mesmo texto, “o «comunismo primitivo»”, onde se processa “a humanização da natureza”, estado típico do “western épico” (1966: 71).
No entanto, não é ao mito ou ao universo mítico que Shane retorna. Se o toma como fundo, depressa nos apercebemos que o mundo ali patente já atingiu o “momento da instauração da lei, momento esse em que a sociedade se divide na separação de poderes” (Glucksman, 1966: 71). Tal separação é complexa, relaciona-se com as contradições existentes entre o local e ao global, o primitivo e o civilizado, a cidade clã e a cidade estado, o poder político e o judicial, os interesses nómadas e os sedentários, a industrialização e sociedade agrária e, sobretudo, o herói e a comunidade que serve : “o bem dividiu-se, o herói entra na cidade como cavaleiro solitário, pacifica-a e depois deixa-a, sendo marginalizado por sua vez” (Glucksmann, 1966: 73).
Quase todas essas contradições, que se cruzam patentemente em Shane, estão no cerne de outras importantes abordagens ao western que se desenvolvem a partir de Bazin, como a de Glucksmann, que temos vindo a citar, a de Bernard Dort, “La nostalgie de l´épopée” (1966) e revelam ainda a sua pregnância em estudos como os de Jim Kitses, Horizons West, de 1969, e de Will Wright, SixGuns and Society, de 1975, que ordenam mesmo esses elementos de modo a constituir uma matriz mítica, explicitamente elaborada a partir modelo de Lévi-Strauss (cf. Raphaële Moine,2002: 51-53).
A imagem desse contradição pode ser encontrada no plano histórico-civilizacional, na conturbada relação do pioneiro com o ianque, por um lado, e com o farmer do Sul, por outro lado. Como Diz Vianna Moog: “o nortista ampliava para Oeste o seu espaço vital; o sulista avançava para o Norte e para Oeste. O pioneiro, aborrecendo igualmente o Norte e o Sul, não via de momento outro recurso senão avançar sobre o território dos índios e dizimá-los às duas margens do Mississípi” (s/d: 189-190).
Mas já não é exactamente esse o estado da matéria, a ser reelaborada pelo mito, que se apresenta no território onde Shane toma partido. Os índios, ali, já são uma ameaça distante, para lá das montanhas. No entanto, a tensão verificada decorre desse “depois do índios”. Ainda para utilizarmos as palavras de um historiador da cultura americana, como Moog, podemos dizer que a formulação do mito subjacente à estrutura temática de Shane resulta de que “o pioneiro afastava-se da heresia de Calvino para cair na heresia de Rousseau abolindo o pecado original e a culpa, (transferindo-os) às sociedades em que o homem é compulsoriamente obrigado a viver a integral responsabilidade dos desacertos do mundo e dos males que o afligem” (s/d: 193).
Ora, o mito, sendo um material cultural trans-semiótico ( ou seja, representado e representável em diversas linguagens, por não ter forma fixa ou primeira em nenhuma língua ou sistema de representação – podendo apenas atribuir-se-lhe, por vezes, uma forma historicamente mais antiga), permite que o utilizemos como referência simbólica, pauta de valores e imagens poderosa, mesmo quando a matriz narrativa considerada primordial ( a versão conhecida mais antiga) não é aspecto dominante do texto concreto, ou mesmo o sistema de construção narrativa singular (ou recorrente, em vários casos singulares) que pretendemos observar.
Os atores Alan Ladd, Jean Arthur e Van Heflin posam para uma foto publicitária do filme “Shane”
Como diz Raphaële Moine, comentando a operação lévi-straussiana de definição do mito, fazê-lo é construir “uma estrutura” que “leva à desnarrativização dos mitos, à sua destextualização, reduzindo-os a paradigmas de elementos isolados, entre os quais são buscadas as oposições pertinentes” (2002: 50) – mas, diríamos nós, construir esses elementos e paradigmas é encontrar os pólos imaginários e simbólicos que nos permitem perceber melhor e valorizar mais os universos construídos pelas ficções.
André Bazin, no texto já citado afirma: “É fácil dizer que o western «é o cinema por excelência», porque o cinema é o movimento” (p.136). Procurando estabelecer o valor dos elementos constituintes dessa acção que, para a opinião consensual que ele analisa, são fundamentais, o estudioso francês enumera um conjunto que nos parece de reter: a cavalgada, a cena de pancadaria e a integração desses constituintes da acção num determinado quadro geográfico; desse quadro podemos ainda salientar alguns traços que constituem um cenário de reconhecimento: a cidade feita de casas de madeira, a pradaria, os rebanhos de bovinos que pastam, os condutores desses rebanhos.
A estes elementos que o crítico francês enumera, podemos acrescentar, por nossa conta, outros que nos parecem fundamentais para a nossa própria exposição sintética: os bisontes, os índios, a floresta quase virgem, os desertos, as armas pendentes dos cinturões dos vaqueiros, a cavalaria armada em movimentos de batalha.
O realizador George Stevens (de chapéu e óculos) no set de filmagem de “Shane”.
De facto, na paisagem, por detrás dos elementos que podem ser enumerados de modo estático, evocando um espaço idílico ou primordial onde os nossos sentidos se fixam e assenta toda a tensão dramática, surgem os sinais do conflito que pode ter duas dimensões fundamentais: a da ordem que assegura a paz e a da ameaça que pode originar o caos. O universo presente recorta-se com base em configurações discursivas que, poderíamos dizer segundo Greimas (s/d: 73 – entrada: Configuração), emergem como produções semióticas de níveis discursivos primários: o da história e o do mito.
No plano da história a paz e a ordem tem como equivalentes a civilização e o discurso jurídico; o espaço selvagem e os povos “pré”-históricos são a ameaça e o caos. No discurso do mito, no fundamento tópico que o alimenta, é o sistema da tradição fundado nos laços de sangue, a lei anterior à organização da cidade, o que representa a ordem; a legislação escrita, o exército, a estrutura civilizacional e tecnológica são a origem do mal.
O que incomoda Bazin, quando se refere, negativamente, a Shane (filme) como superwestern, talvez resulte mais do modo romanesco como o mito é posto em perspectiva, do que o facto de “a tese de Shane… ser o mito” (cf. citação de Bazin no início do nosso artigo). Ora a marca do romanesco não se evidencia, em Shane, apenas ao nível do enunciado narrativo (quer do livro quer do filme), mas enuncia-se, também, ao nível da narração, da própria marca autoral que o romanesco implica, sobretudo pelos traços de distância que cria entre o ponto de vista (anos decorridos, valores do quotidiano banal) e o herói vindo do horizonte distante e que a esse horizonte regressa (na memória do narrador ou no para lá das montanhas). Bellour, ao comentar o texto de Bazin que temos vindo a referir, toca no centro dessa mesma questão:
“o western, que Bazin tão justamente chamava o cinema por excelência, constitui-se de maneira autónoma numa arte da tradição em que tudo, a repartição dos filmes por géneros, o desenvolvimento prodigioso da indústria, o aparente apagamento dos autores por detrás de uma criação colectiva e das mitologias comuns, tudo isso dava o sentimento de um certo jogo… O western (…) aparece na aurora do cinema americano, quando a conquista do Oeste mal acabava de se realizar; e esse humor lúdico que em maior ou menor grau se anuncia nos filmes, na atitude do herói em relação à sua vida, estrepita na relação que o autor mantém com o seu próprio filme, objecto, em certo sentido, de uma aposta no real ainda próximo e numa tradição (1966: 15).
Ora, julgamos que, hoje em dia, perdidos alguns dos preconceitos “estético-poéticos” que alimentavam a crítica dos anos 50 do século XX, observar a relação, ou mesmo a contradição, entre o cenário mítico convocado de modo dominante por algumas obras, e a sua reavaliação como matéria evocada na problemática do romanesco, sobretudo a que revela a fractura entre o herói excepcional, quase celeste, e o universo da sociedade banal, do direito civil, não revela um pecado capital da actividade criativa.
Brandon deWilde (1942-1972), interpretou Joey Starrett em “Shane”.
Ao contrário, parece-nos que uma tal operação poética se revela, a essa observação crítica, extremamente produtiva para o redimensionamento teórico da “relação que o autor mantém com o seu filme”, problemática que parece ter sido considerada importante por Bazin, como o entendemos através das palavras de Bellour que acima citámos. Poderíamos perceber melhor o alcance e importância dessa operação, fazendo apelo à concepção de Jauss, segundo a qual a “experiência literária do leitor” (neste caso, “a experiência cinematográfica ou fílmica do espectador”, também) se move no interior de um “horizonte de expectativas”. Assim, autores, leitores e espectadores necessitam, para fazer funcionar o sistema comunicativo das obras artísticas, de um
“sistema de referências objectivamente formuláveis que, para cada obra, no momento da história em que ela aparece, resulta de três factores principais: a experiência prévia que o público tem género ao qual ela pertence; a forma e a temática das obras anteriores, das quais ela pressupõe o conhecimento, e a oposição entre linguagem poética e linguagem prática, mundo imaginário e realidade quotidiana” (Jauss, 1978: 49).
Talvez já não valha a pena insistir em todos os aspectos que, em Shane, são referências a um passado artístico-formal e expressivo que lhe substancia a estrutura significativa. Limitemo-nos a sumariá-los segundo grandes tópicos: os antecedentes culturais e literários da valorização do pioneirismo, do desbravamento, da instauração da ordem e da glorificação do espaço aberto da fronteira; a valorização da figura do herói como praticante de uma demanda; o cenário em que os espaço civilizado e o território virgem se confrontam, valorizando-se pelo acentuar das suas características e dos elementos que o exemplificam; a segmentação do horizonte vivencial em três zonas fundamentais – o agora do conflito, onde a civilização se elabora, onde Shane tem de enfrentar os malfeitores/ o espaço aberto e livre, com o limite natural das montanhas, de onde Shane emerge e onde desaparece/ e o além, invisível, onde a tradição e o mito se misturam com a história, na vastidão da Nação.
Ora, as determinações do género, segundo as quais os autores (romancista e realizador) fundamentam o seu discurso, tornam-se uma orientação para um público que tem das normas um conhecimento difuso, feito de aquisições culturais resultantes da repetição, não reflectidas. A forma e a temática constituem, também, uma sintaxe e uma semântica apreendidas da mesma maneira, estruturando um quadro de referências muito geral. O que fica em aberto, para outro sistema de relações, que é o reconhecimento da obra nova, é a oposição entre a linguagem prática e a poética, e o mundo imaginário e o da realidade quotidiana; e, sobretudo no caso do cinema, que é o que determina o género, no que diz respeito ao western, o que se torna equivalente a linguagem prática e realidade quotidiana, é a produção do passado: de algum modo, esta acaba por substanciar a realidade histórica, o discurso real e mesmo banalizado, com que se diz a matéria reelaborada pela expressão artística.
Assim, é exactamente o modo como o filme e o romance se singularizam, dentro do género e das restantes tradições de onde decorrem, que suscita a produtividade do género, da tradição formal e da temática. É porque Shana retoma o mito e as suas figurações centrais para as colocar nas representações de um quotidiano banal, que o confronto entre o herói e os malfeitores e, muito especialmente, entre Shane e o pistoleiro contratado, reformulam não apenas o “confronto entre bons e maus”, ou o “ajuste de contas”, segundo as regras do género, ou segundo sintaxes previsíveis.
De algum modo, é o próprio horizonte mítico do western – tornado referência de grau zero, ou aquisição cultural estabilizada…e, portanto, “adquirida”, banalizada – que é reavaliado e reenquadrado. Ao contrário do que acontece com Ringo, em Stagecoach, de J. Ford (1939), por exemplo, o duelo não integra Shane na cidade – expulsa-o para o além de onde veio. O conflito, que, por tradição, se centrava na defesa da comunidade contra estranhos ou fora-da-lei é, agora, interno à comunidade, e é um herói de passagem que o resolve. Pale Rider (1986), de Clint Eastwood, retomará essa tradição, quase numa “citação” directa de Shane.
O espaço exterior à cidade é o da civilidade idílica, quase arcádica (sobretudo se pensarmos no conjunto de relações de ternura e mesmo de paixão em embrião, harmoniosamente resolvidas no pequeno rancho da família do narrador/Joey), sendo a cidade o palco das acções selváticas. Também são os pequenos ranchos que rodeiam a cidade onde se processa o quotidiano banal do trabalho benigno, opondo-se à ameaça do lazer preguiçoso e mesmo vicioso da cidade. E, para terminarmos este pequeno conjunto de observações sobre os aspectos característicos do género que são transformados inovadoramente em Shane, lembremos que o destinatário é incorporado, de forma muito criativa, na história – mais do que comparsa ou interveniente na acção, o narrador/Joey é o espectador in presentia.
E esse traço poético de um novo modelo de enunciação, demarcando-se, no filme, como inovação dentro do género é, em muito, devedora ao facto de, antes de ser filme, Shane ter sido um livro no qual o narrador evoca não tanto os horizontes do Oeste, tal como ele existiu – mas os do western, tal como ele emerge numa memória encantada.
Restaria dizer que o interessante, para nós, na abordagem do western sob a perspectiva de uma relação entre a literatura e o cinema, provém sobretudo do facto de, ao contrário de muitas outras grandes obras que estiveram na origem do cinema (D. Quixote, de Cervantes/Pabst, A Mãe, de Gorky/Pudovkin), os grandes momentos do género não terem assente a sua qualidade estética em obras literárias de reconhecido mérito cultural a servirem de “origem” ao argumento. Os textos literários, paraliterários ou escritos documentais que estiveram na base de quase todos os grandes westerns não provinham de cânones culturalmente reconhecidos.
A sua valorização não assentava, portanto, à partida, numa mais valia estética anterior, “originária”, que lhes servisse de caução ou auréola prestigiadora. Pensar o western como género narrativo poeticamente válido, em relação com a literatura, resulta de uma operação posterior, introduzida pela crítica, que procura olhar a linguagem da narrativa cinematográfica com os instrumentos conceptuais fornecidos pelas poéticas clássicas mais globalizantes (nomeadamente a de Aristóteles) e a própria teoria da literatura, como é entendida desde os formalistas russos (cf. Saunders, 2001: 8-12). Mas também é motivo estimulante, para nós, no caso de Shane, que uma criação romanesca, como o de Schaefer, tenha originado uma operação metapoética de tão interessante produtividade, ao desenvolver uma matriz narrativa, já poderosa no cinema, no campo romanesco que pouco ou nada a cultivava.
Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora
Bibliografia
Activa:
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Passiva:
Bazin, André, 1961, Qu’est-ce que le cinéma ? III Cinéma et Sociologie, Cerf, Paris
Bellour, Raymond, 1966, “Le grand jeu”, in Bellour,
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Dort, Bernard, 1966, “La nostalgie de l´épopée” , in Bellour,
Raymond (org.), 1966, Le Western, U.G.E-10/18, Paris
Gluksman, André, “Les aventures de la tragédie” in Bellour,
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Greimas, J. A. e J. Courtés, s/d [1979], Dicionário de Semiótica, Cultrix, São Paulo
Jauss, Hans Robert, 1978, Pour une esthétique de la réception, Gallimard, Paris
Moine, Raphaële, 2002, Les genres du cinéma, Nathan, Paris
Moog, Vianna, s/d, Bandeirantes e pioneiros, Livros do Brasil, Lisboa
Saunders, John, 2001, The Western Genre, Wallflower, London/NY
[1] A data do artigo, recolhido em Qu´est-ce que le cinéma? Vol. III, é, de facto, anterior. Foi publicado no número dos Cahiers de Cinéma de Dezembro de 1955.
O verdadeiro Pai Natal não nasceu na Lapónia, mas sim na Anatólia, actual Turquia. Tendo vivido nos séculos III e IV, o arcebispo de Myra de seu nome Nicolau andou por terrenos e tempos atribulados, ao longo do antigo Império Romano, que só com o imperador Constantino se tornaria cristão. A sua fama de benemérito inspirou em 1823 um professor norte-americano a “criar” o Pai Natal, que viria depois a ser aproveitado pela Coca Cola para uma campanha de marketing. Mais fantasiosa ainda é, contudo, a sua hagiografia – isto é, a sua vida em livro – escrita por um padre português do século XVIII, João Antunes Monteiro, prior da alfacinha freguesia de São Nicolau e influente conselheiro do rei D. João V. Nem contada nem lida se acredita.
Na véspera de Natal de 1822, o norte-americano Clement Moore, professor de grego contou aos seus filhos, através de um poema, a história de um certo Nicolau, por sinal santo homem da Igreja Católica do século IV, que viajava num trenó puxado por renas, desde o pólo Norte, e distribuía brinquedos pelas crianças, enfiando-se pelas chaminés.
A fábula pegaria bem de estaca nas décadas seguintes, alimentando-se também de aspectos do folclore alemão e holandês, que então celebravam a data da morte de São Nicolau – dia 6 de Dezembro – com a oferta de prendas.
Daí até se encontrar uma figura para o mais famoso e aguardado velhinho foi um pulo. Na segunda metade do século XIX, vários cartoonistas criariam uma iconografia, sempre em evolução: primeiro a preto e branco, mais tarde, já na terceira década do século XX – através de uma campanha de marketing da Coca Cola – com as suas inconfundíveis roupas vermelhas e brancas.
As primeiras versões do Santa Claus – a alteração fonética da fusão do alemão Sankt Niklaus e do holandês Sinterklaas – até foram pouco politicamente correctas: o velhinho, mais do que bonacheirão – na verdade, a barriga era descomunal –, promovia o tabagismo.
Os primeiros cartoons – desenhados por T. C. Boyd, F. O. Darley e, sobretudo, pelo anticlerical Thomas Nast – apresentavam-no quase invariavelmente com um fumegante cachimbo nos beiços.
A Igreja Católica, claro, não apreciou muito. E se, porventura, os autores da brincadeira tivessem vivido um século antes teriam tido problemas. Parodiar um santo do quilate de Nicolau de Myra seria então inadmissível; heresia, no mínimo, com direito, eventualmente, ao crepitar de lenha.
Ilustração de Thomas Nast de 1881 do Pai Natal
Se São Nicolau parece ter sido, de facto, um bom filantropo, as suas vidas – a terrena e a celestial – mostram que foi homem que, embora piedoso, não andou por aqui em grandes brincadeiras. O próprio diabo que o diga, que supostamente sofreu amarguras diversas sempre que com ele se cruzou. Pelo menos é o que mostram os biógrafos deste santo, em escritos fantásticos disseminados ao longo dos séculos. Uma dessas biografias – que bebeu inspiração a vários sermões seculares – até é bem portuguesa; publicada em 1720, pelo então prior da paróquia lisboeta de São Nicolau, João Antunes Monteiro.
Este padre foi, curiosamente, uma figura preponderante na Corte lusitana da primeira metade do século XVIII. Era para o rei D. João V, aquilo que porventura Vítor Melícias foi para o antigo primeiro-ministro António Guterres.
Ou seja, o prior da alfacinha paróquia de São Nicolau – no centro da Baixa, que foi freguesia até 2013, estando agora integrada na de Santa Maria Maior – era um dos conselheiros predilecto do Magnânimo, não apenas espiritual, mas também em negócios de Estado. Por exemplo, chegou a desempenhar funções de gestão em algumas fases da construção do Aqueduto das Águas Livres. A sua influência no Terreiro do Paço foi tanta que não admira que a dita biografia do nosso Pai Natal – pomposamente intitulada Breve compêndio da prodigiosa vida e estupendos milagres do glorioso Arcebispo de Myra S. Nicolao Taumaturgo, advogado universal de todos os peccadores – tivesse sido oferecida à Virgem Maria pela soberana, augusta e excelsa mão do magnânimo, generoso, esclarecido e sempre memorável monarca D. João V Nosso Senhor”, conforme consta no frontispício. Portanto, estamos perante uma obra escrita para ser levada a sério. Na verdade, muito a sério – naquela época, claro.
A linguagem usada pelo padre João Antunes Monteiro na biografia de São Nicolau torna-se deliciosa – alguns poderão dizer delirante – pela forma como descreve, em minuciosos e mirabolantes detalhes, a vida daquele santo. Embora não existam quaisquer documentos, as biografias apontam para o ano de 270 depois de Cristo, na antiga cidade marítima de Patara, uma região de Lycia, na actual Turquia. Na Anatólia, portanto – um tanto afastado da comercial aldeia do Pai Natal, na Lapónia.
E por falar em Jesus Cristo, saiba-se que as hagiografias dizem que São Nicolau teve um nascimento, supostamente a 15 de Março, com contornos semelhantes. Com efeito, remetendo para a biografia do padre João Antunes Monteiro, os pais do santo – Epifânio e Joana – “sendo casados em muita paz, concórdia e santos costumes” desejavam um filho. E tantas instâncias fizeram que a Virgem Maria “apresentou no Consistório da Santíssima Trindade” aqueles desejos paternais, pelo que, pouco tempo depois, “lhe enviou o Senhor do Céu um anjo que os certificou (…) que brevemente haviam de ter um filho muito mais santo e com muito mais préstimo para o serviço de Deus do que tinham desejado”. E assinalou-lhes ainda o dia e hora da chegada.
A Coca Cola “apropriou-se” do Pai Natal na década de 20 do século XX, dando-lhe o “formato” que hoje conhecemos.
O recém-nascido parece ter dado sinais de evidente santidade logo que viu a luz do dia. Estava a parteira para o lavar e “ele se pôs de pé com muita notável firmeza (…), com os olhos postos no Céu e as mãos erguidas e postas sobre os peitos”. São Vicente Ferrer – um clérigo do século XIV, actual patrono da Comunidade de Valência – diria que aquele prematuro acto era de agradecimento a Deus por “o ter feito criatura racional à sua imagem e semelhança e porque o tinha livrado dos perigos que poderia ter dentro do cárcere do ventre de sua mãe”.
Foi por este prodígio que São Nicolau se tornou também, em muitos países, o santo protector dos partos difíceis. Depois disto, o facto de ele, por “mais meiguices que sua mãe lhe fazia para tomar o peito”, ter jejuado, com precisão, às quartas e sextas-feiras, já não pode causar muita admiração ao mais cépticos…
O seu primeiro grande milagre estava, porém, reservado para a idade escolar, antes de completar os sete anos, segundo a biografia setecentista. Como os pais eram ricos, costumava ele levar dinheiro para distribuir pelos pobres antes de entrar na sala de aulas. Consta que, em certo dia, uma pobre aleijada chegou atrasada, devido à deformidade, e lastimou-se da sorte. Pois bem, o pequeno Nicolau condoeu-se e “levantando o coração a Deus”, fez o sinal da cruz sobre a cabeça da rapariga e disse: “Em nome do Senhor Jesus Nazareno, levanta-te e anda”. O resultado, claro, foi imediato!
Mas foi em artes da ressurreição que Nicolau de Myra deu cartas, de acordo com os seus biógrafos. E aqui bateu mesmo Jesus Cristo, que apenas fez Lázaro regressar à vida. O primeiro lote de ressuscitados ocorreu ainda na sua adolescência, durante uma peste na região de Lycia. O padre João Antunes Monteiro diz mesmo que “Deus o conservava para ressuscitar mortos” ou coloca como hipótese que “temeu a morte ter encontros com quem a podia consumir e sepultar”.
Mesmo assim, não teve dotes para salvar os progenitores, embora o prior lusitano informe que a Virgem Maria “lhe limpava as lágrimas e o consolava, mostrando-lhe no Céu as almas dos seus pais entre os coros dos Bem-Aventurados.
Herdada a fortuna dos pais, Nicolau pôde então dar largas à sua costela filantrópica, que está na base da fábula do Pai Natal. O seu lusitano biógrafo destaca sobretudo a história de um velho viúvo com três filhas donzelas, a quem o demónio tentava, a expô-las ao perigo de perder a castidade” – que é, como quem diz, a prostituí-las.
Biografia do padre João Antunes Monteiro, publicada em 1720, prior da freguesia de São Nicolau, então pertencente a Lisboa Ocidental.
Assim, certa noite, Nicolau decidiu deitar anonimamente, pela janela da casa do velho, uma bolsa de ouro suficiente para pagar o dote da primeira filha. Na segunda noite, repetiu a dose, para outra filha. E o mesmo sucedeu na terceira, para a última.
No entanto, desta vez, o velho fez uma espera e surpreendeu o benemérito, pelo que Nicolau fez-lhe prometer que não divulgaria a sua acção. A manutenção do segredo custou alguns dissabores ao velho, porque o seu tão repentino enriquecimento causou murmuração entre a vizinhança. Como é normal, estes “mais depressa se inclinaram a julgar mal do que bem”, pelo que, para salvar a honra do velho, Nicolau de Myra se viu na contingência de se denunciar como o obsequiador.
A sua entrada num mosteiro, em data desconhecia, teve como consequência um aumento dos seus milagres, que se sucederam em catadupa, quase sempre tendo o demónio por inimigo. Os seus sucessivos exorcismos até levam mesmo o diabo, certa vez, a lamentar-se: “Ai que Nicolau me vence em tudo e não me deixa executar meus intentos”, assim relata o padre João Antunes Monteiro.
E como o dito belzebu já não conseguia endemoninhar ninguém, decidiu, noutra ocasião, incendiar uma cidade, mas Nicolau interveio mais uma vez, pelo que o fogo se extinguiu sem deixar lesão alguma nos edifícios. À conta disto, Nicolau também se tornou o padroeiro contra os incêndios urbanos.
Pouco tempo depois, faria ele uma viagem até à Terra Santa, seguindo os passos de Cristo, tendo os anjos como cicerones, segundo o seu biógrafo. E pelo caminho foi curando enfermos, cegos, surdos, paralíticos e um ou outro endemoninhado. Regressado ao seu mosteiro, teve tempo ainda para multiplicar um pão para dar de comer a 70 operários que estavam construindo uma igreja. E como estes, mesmo de barriga cheia, não conseguiram mover uma grande coluna, Nicolau benzeu a gigantesca pedra e, com a ajuda de apenas dois clérigos, colocou-a no sítio exacto.
Pouco depois de ter sido nomeado arcebispo de Myra – cargo para o qual tinha recebido três premonições, a última das quais envolvendo Cristo –, houve de obrar mais uma fantástica ressurreição. Dois estudantes de Atenas, em peregrinação, acabaram na salgadeira de um estalajadeiro, cortados em postas. Nicolau, sendo avisado pelo Espírito Santo, obrigou o estalajadeiro a mostrar-lhe os despojos e, juntando-os, ressuscitou os jovens.
Situação similar terá ocorrido anos mais tarde, numa viagem até Roma. Neste caso, Nicolau descobriu a malvadez de outro estalajadeiro que lhe apresentou um prato de carne retirada de três mancebos, em vez do atum que lhe pedira. Nesta mirabolante viagem, conforme a descrição do padre João Antunes Monteiro, até os animais beneficiaram das suas artes.
Passagem da biografia onde se destaca a acção de oferta “furtiva” de São Nicolau de Myra.
Numa noite, perto de Bari, mais outro estalajadeiro foi tentado pelo demónio e, porque o arcebispo de Myra e o seu companheiro fizeram parca despesa, cortou as cabeças dos burros que os transportavam. Na manhã seguinte, ainda um pouco antes da aurora, perante aquele espectáculo, Nicolau mandou coser as cabeças aos respectivos corpos dos burros – ressuscitaram, claro. Com um pequeno percalço nesta operação sem luz, quase às cegas: os burros ficaram com as cabeças trocadas. Ou seja, o burro que era branco ficou com a cabeça do burro que era preto; e ao preto, claro, restou-lhe a cabeça do branco.
Ainda antes destas aventuras, Nicolau chegou a ser perseguido, preso e mais tarde deportado, durante a época de Lícinio, que liderou o Império Bizantino entre os anos de 313 e 324, quando então foi derrotado por Constantino, o Grande, que concedeu liberdade religiosa aos cristãos. A partir daí tudo se alterou para Nicolau de Myra; mandou arrasar templos pagãos – em especial os dedicados a Diana –, substituindo-os por igrejas. No meio deste processo, a biografia do nosso prior lisboeta diz que os demónios se lamentavam e berravam pelos ares, “testemunhando que iam vencidos pela virtude de Nicolau”.
Na biografia escrita pelo padre João Antunes Monteiro existem mais uns quantos prodígios obrados por Nicolau de Myra até à sua morte aos 65 anos, supostamente no dia 6 de Dezembro – aliás, a data em que o calendário litúrgico e alguns países o evocam. A causa é desconhecida, mas não terá sido mártir.
Cripta na igreja de Bari, onde estão depositadas as ossadas de São Nicolau.
Se a vida lhe cessou, os milagres não. Daí que a segunda metade do livro do padre João Antunes Monteiro, a partir da página 113, seja ocupada a detalhar a infindável quantidade de curas milagrosas e mais ressurreições, por via do maná que saía ininterruptamente do seu corpo, enterrado na zona de Myra.
Na verdade, eram dois, os manás: um que lhe brotava da cabeça, com a consistência de óleo; outro que lhe escorria dos pés, com aspecto aquoso. Na lista de supostos beneficiados pelos poderes desse santo maná, conforme o relato do seu lusitano biógrafo, constam mesmo duas portuguesas, que no início do século XVIII sofriam de supostas febres malignas.
Mas, nessa altura, as ossadas de Nicolau já há muito se encontravam em Bari, na Itália. Em 1087, umas dezenas de marinheiros e clérigos conseguiram, no meio de algumas peripécias, roubar as relíquias do santo da sua sepultura original em Myra, região entretanto perdida em 1071 pelo cristão Império Bizantino, no decurso da batalha de Manzikert, para o islâmico Império Seljúcida.
A chegada desta comitiva com as santas ossadas a terras italianas foi celebrada ao som de sinos, tambores e clarins. Mas essa alegria acabou em tragédia: como o bispo de Bari e os aventureiros não se entenderam quanto ao local para depositar as ossadas, entraram em vias de facto. E daí a pouco “houve pendência, e nela mortes e feridos”.
O nosso biógrafo lusitano do Pai Natal não esclarece se, após esta estapafúrdia batalha campal, houve ressurreições por intercessão de São Nicolau. Apenas informa que as ossadas acabaram transladadas pelo papa Urbano II para a actual Igreja de São Nicolau. Depois, a biografia é rematada com uma novena. Amen.
N.D. Uma primícia versão deste artigo foi publicada no final de Dezembro de 2006 na extinta revista GR-Grande Reportagem.
O verdadeiro Pai Natal não nasceu na Lapónia, mas sim na Anatólia, actual Turquia. Tendo vivido nos séculos III e IV, o arcebispo de Myra de seu nome Nicolau andou por terrenos e tempos atribulados, ao longo do antigo Império Romano, que só com o imperador Constantino se tornaria cristão. A sua fama de benemérito inspirou em 1823 um professor norte-americano a “criar” o Pai Natal, que viria depois a ser aproveitado pela Coca Cola para uma campanha de marketing. Mais fantasiosa ainda é, contudo, a sua hagiografia – isto é, a sua vida em livro – escrita por um padre português do século XVIII, João Antunes Monteiro, prior da alfacinha freguesia de São Nicolau e influente conselheiro do rei D. João V. Nem contada nem lida se acredita.
Na véspera de Natal de 1822, o norte-americano Clement Moore, professor de grego contou aos seus filhos, através de um poema, a história de um certo Nicolau, por sinal santo homem da Igreja Católica do século IV, que viajava num trenó puxado por renas, desde o pólo Norte, e distribuía brinquedos pelas crianças, enfiando-se pelas chaminés.
A fábula pegaria bem de estaca nas décadas seguintes, alimentando-se também de aspectos do folclore alemão e holandês, que então celebravam a data da morte de São Nicolau – dia 6 de Dezembro – com a oferta de prendas.
Daí até se encontrar uma figura para o mais famoso e aguardado velhinho foi um pulo. Na segunda metade do século XIX, vários cartoonistas criariam uma iconografia, sempre em evolução: primeiro a preto e branco, mais tarde, já na terceira década do século XX – através de uma campanha de marketing da Coca Cola – com as suas inconfundíveis roupas vermelhas e brancas.
As primeiras versões do Santa Claus – a alteração fonética da fusão do alemão Sankt Niklaus e do holandês Sinterklaas – até foram pouco politicamente correctas: o velhinho, mais do que bonacheirão – na verdade, a barriga era descomunal –, promovia o tabagismo.
Os primeiros cartoons – desenhados por T. C. Boyd, F. O. Darley e, sobretudo, pelo anticlerical Thomas Nast – apresentavam-no quase invariavelmente com um fumegante cachimbo nos beiços.
A Igreja Católica, claro, não apreciou muito. E se, porventura, os autores da brincadeira tivessem vivido um século antes teriam tido problemas. Parodiar um santo do quilate de Nicolau de Myra seria então inadmissível; heresia, no mínimo, com direito, eventualmente, ao crepitar de lenha.
Ilustração de Thomas Nast de 1881 do Pai Natal
Se São Nicolau parece ter sido, de facto, um bom filantropo, as suas vidas – a terrena e a celestial – mostram que foi homem que, embora piedoso, não andou por aqui em grandes brincadeiras. O próprio diabo que o diga, que supostamente sofreu amarguras diversas sempre que com ele se cruzou. Pelo menos é o que mostram os biógrafos deste santo, em escritos fantásticos disseminados ao longo dos séculos. Uma dessas biografias – que bebeu inspiração a vários sermões seculares – até é bem portuguesa; publicada em 1720, pelo então prior da paróquia lisboeta de São Nicolau, João Antunes Monteiro.
Este padre foi, curiosamente, uma figura preponderante na Corte lusitana da primeira metade do século XVIII. Era para o rei D. João V, aquilo que porventura Vítor Melícias foi para o antigo primeiro-ministro António Guterres.
Ou seja, o prior da alfacinha paróquia de São Nicolau – no centro da Baixa, que foi freguesia até 2013, estando agora integrada na de Santa Maria Maior – era um dos conselheiros predilecto do Magnânimo, não apenas espiritual, mas também em negócios de Estado. Por exemplo, chegou a desempenhar funções de gestão em algumas fases da construção do Aqueduto das Águas Livres. A sua influência no Terreiro do Paço foi tanta que não admira que a dita biografia do nosso Pai Natal – pomposamente intitulada Breve compêndio da prodigiosa vida e estupendos milagres do glorioso Arcebispo de Myra S. Nicolao Taumaturgo, advogado universal de todos os peccadores – tivesse sido oferecida à Virgem Maria pela soberana, augusta e excelsa mão do magnânimo, generoso, esclarecido e sempre memorável monarca D. João V Nosso Senhor”, conforme consta no frontispício. Portanto, estamos perante uma obra escrita para ser levada a sério. Na verdade, muito a sério – naquela época, claro.
A linguagem usada pelo padre João Antunes Monteiro na biografia de São Nicolau torna-se deliciosa – alguns poderão dizer delirante – pela forma como descreve, em minuciosos e mirabolantes detalhes, a vida daquele santo. Embora não existam quaisquer documentos, as biografias apontam para o ano de 270 depois de Cristo, na antiga cidade marítima de Patara, uma região de Lycia, na actual Turquia. Na Anatólia, portanto – um tanto afastado da comercial aldeia do Pai Natal, na Lapónia.
E por falar em Jesus Cristo, saiba-se que as hagiografias dizem que São Nicolau teve um nascimento, supostamente a 15 de Março, com contornos semelhantes. Com efeito, remetendo para a biografia do padre João Antunes Monteiro, os pais do santo – Epifânio e Joana – “sendo casados em muita paz, concórdia e santos costumes” desejavam um filho. E tantas instâncias fizeram que a Virgem Maria “apresentou no Consistório da Santíssima Trindade” aqueles desejos paternais, pelo que, pouco tempo depois, “lhe enviou o Senhor do Céu um anjo que os certificou (…) que brevemente haviam de ter um filho muito mais santo e com muito mais préstimo para o serviço de Deus do que tinham desejado”. E assinalou-lhes ainda o dia e hora da chegada.
A Coca Cola “apropriou-se” do Pai Natal na década de 20 do século XX, dando-lhe o “formato” que hoje conhecemos.
O recém-nascido parece ter dado sinais de evidente santidade logo que viu a luz do dia. Estava a parteira para o lavar e “ele se pôs de pé com muita notável firmeza (…), com os olhos postos no Céu e as mãos erguidas e postas sobre os peitos”. São Vicente Ferrer – um clérigo do século XIV, actual patrono da Comunidade de Valência – diria que aquele prematuro acto era de agradecimento a Deus por “o ter feito criatura racional à sua imagem e semelhança e porque o tinha livrado dos perigos que poderia ter dentro do cárcere do ventre de sua mãe”.
Foi por este prodígio que São Nicolau se tornou também, em muitos países, o santo protector dos partos difíceis. Depois disto, o facto de ele, por “mais meiguices que sua mãe lhe fazia para tomar o peito”, ter jejuado, com precisão, às quartas e sextas-feiras, já não pode causar muita admiração ao mais cépticos…
O seu primeiro grande milagre estava, porém, reservado para a idade escolar, antes de completar os sete anos, segundo a biografia setecentista. Como os pais eram ricos, costumava ele levar dinheiro para distribuir pelos pobres antes de entrar na sala de aulas. Consta que, em certo dia, uma pobre aleijada chegou atrasada, devido à deformidade, e lastimou-se da sorte. Pois bem, o pequeno Nicolau condoeu-se e “levantando o coração a Deus”, fez o sinal da cruz sobre a cabeça da rapariga e disse: “Em nome do Senhor Jesus Nazareno, levanta-te e anda”. O resultado, claro, foi imediato!
Mas foi em artes da ressurreição que Nicolau de Myra deu cartas, de acordo com os seus biógrafos. E aqui bateu mesmo Jesus Cristo, que apenas fez Lázaro regressar à vida. O primeiro lote de ressuscitados ocorreu ainda na sua adolescência, durante uma peste na região de Lycia. O padre João Antunes Monteiro diz mesmo que “Deus o conservava para ressuscitar mortos” ou coloca como hipótese que “temeu a morte ter encontros com quem a podia consumir e sepultar”.
Mesmo assim, não teve dotes para salvar os progenitores, embora o prior lusitano informe que a Virgem Maria “lhe limpava as lágrimas e o consolava, mostrando-lhe no Céu as almas dos seus pais entre os coros dos Bem-Aventurados.
Herdada a fortuna dos pais, Nicolau pôde então dar largas à sua costela filantrópica, que está na base da fábula do Pai Natal. O seu lusitano biógrafo destaca sobretudo a história de um velho viúvo com três filhas donzelas, a quem o demónio tentava, a expô-las ao perigo de perder a castidade” – que é, como quem diz, a prostituí-las.
Biografia do padre João Antunes Monteiro, publicada em 1720, prior da freguesia de São Nicolau, então pertencente a Lisboa Ocidental.
Assim, certa noite, Nicolau decidiu deitar anonimamente, pela janela da casa do velho, uma bolsa de ouro suficiente para pagar o dote da primeira filha. Na segunda noite, repetiu a dose, para outra filha. E o mesmo sucedeu na terceira, para a última.
No entanto, desta vez, o velho fez uma espera e surpreendeu o benemérito, pelo que Nicolau fez-lhe prometer que não divulgaria a sua acção. A manutenção do segredo custou alguns dissabores ao velho, porque o seu tão repentino enriquecimento causou murmuração entre a vizinhança. Como é normal, estes “mais depressa se inclinaram a julgar mal do que bem”, pelo que, para salvar a honra do velho, Nicolau de Myra se viu na contingência de se denunciar como o obsequiador.
A sua entrada num mosteiro, em data desconhecia, teve como consequência um aumento dos seus milagres, que se sucederam em catadupa, quase sempre tendo o demónio por inimigo. Os seus sucessivos exorcismos até levam mesmo o diabo, certa vez, a lamentar-se: “Ai que Nicolau me vence em tudo e não me deixa executar meus intentos”, assim relata o padre João Antunes Monteiro.
E como o dito belzebu já não conseguia endemoninhar ninguém, decidiu, noutra ocasião, incendiar uma cidade, mas Nicolau interveio mais uma vez, pelo que o fogo se extinguiu sem deixar lesão alguma nos edifícios. À conta disto, Nicolau também se tornou o padroeiro contra os incêndios urbanos.
Pouco tempo depois, faria ele uma viagem até à Terra Santa, seguindo os passos de Cristo, tendo os anjos como cicerones, segundo o seu biógrafo. E pelo caminho foi curando enfermos, cegos, surdos, paralíticos e um ou outro endemoninhado. Regressado ao seu mosteiro, teve tempo ainda para multiplicar um pão para dar de comer a 70 operários que estavam construindo uma igreja. E como estes, mesmo de barriga cheia, não conseguiram mover uma grande coluna, Nicolau benzeu a gigantesca pedra e, com a ajuda de apenas dois clérigos, colocou-a no sítio exacto.
Pouco depois de ter sido nomeado arcebispo de Myra – cargo para o qual tinha recebido três premonições, a última das quais envolvendo Cristo –, houve de obrar mais uma fantástica ressurreição. Dois estudantes de Atenas, em peregrinação, acabaram na salgadeira de um estalajadeiro, cortados em postas. Nicolau, sendo avisado pelo Espírito Santo, obrigou o estalajadeiro a mostrar-lhe os despojos e, juntando-os, ressuscitou os jovens.
Situação similar terá ocorrido anos mais tarde, numa viagem até Roma. Neste caso, Nicolau descobriu a malvadez de outro estalajadeiro que lhe apresentou um prato de carne retirada de três mancebos, em vez do atum que lhe pedira. Nesta mirabolante viagem, conforme a descrição do padre João Antunes Monteiro, até os animais beneficiaram das suas artes.
Passagem da biografia onde se destaca a acção de oferta “furtiva” de São Nicolau de Myra.
Numa noite, perto de Bari, mais outro estalajadeiro foi tentado pelo demónio e, porque o arcebispo de Myra e o seu companheiro fizeram parca despesa, cortou as cabeças dos burros que os transportavam. Na manhã seguinte, ainda um pouco antes da aurora, perante aquele espectáculo, Nicolau mandou coser as cabeças aos respectivos corpos dos burros – ressuscitaram, claro. Com um pequeno percalço nesta operação sem luz, quase às cegas: os burros ficaram com as cabeças trocadas. Ou seja, o burro que era branco ficou com a cabeça do burro que era preto; e ao preto, claro, restou-lhe a cabeça do branco.
Ainda antes destas aventuras, Nicolau chegou a ser perseguido, preso e mais tarde deportado, durante a época de Lícinio, que liderou o Império Bizantino entre os anos de 313 e 324, quando então foi derrotado por Constantino, o Grande, que concedeu liberdade religiosa aos cristãos. A partir daí tudo se alterou para Nicolau de Myra; mandou arrasar templos pagãos – em especial os dedicados a Diana –, substituindo-os por igrejas. No meio deste processo, a biografia do nosso prior lisboeta diz que os demónios se lamentavam e berravam pelos ares, “testemunhando que iam vencidos pela virtude de Nicolau”.
Na biografia escrita pelo padre João Antunes Monteiro existem mais uns quantos prodígios obrados por Nicolau de Myra até à sua morte aos 65 anos, supostamente no dia 6 de Dezembro – aliás, a data em que o calendário litúrgico e alguns países o evocam. A causa é desconhecida, mas não terá sido mártir.
Cripta na igreja de Bari, onde estão depositadas as ossadas de São Nicolau.
Se a vida lhe cessou, os milagres não. Daí que a segunda metade do livro do padre João Antunes Monteiro, a partir da página 113, seja ocupada a detalhar a infindável quantidade de curas milagrosas e mais ressurreições, por via do maná que saía ininterruptamente do seu corpo, enterrado na zona de Myra.
Na verdade, eram dois, os manás: um que lhe brotava da cabeça, com a consistência de óleo; outro que lhe escorria dos pés, com aspecto aquoso. Na lista de supostos beneficiados pelos poderes desse santo maná, conforme o relato do seu lusitano biógrafo, constam mesmo duas portuguesas, que no início do século XVIII sofriam de supostas febres malignas.
Mas, nessa altura, as ossadas de Nicolau já há muito se encontravam em Bari, na Itália. Em 1087, umas dezenas de marinheiros e clérigos conseguiram, no meio de algumas peripécias, roubar as relíquias do santo da sua sepultura original em Myra, região entretanto perdida em 1071 pelo cristão Império Bizantino, no decurso da batalha de Manzikert, para o islâmico Império Seljúcida.
A chegada desta comitiva com as santas ossadas a terras italianas foi celebrada ao som de sinos, tambores e clarins. Mas essa alegria acabou em tragédia: como o bispo de Bari e os aventureiros não se entenderam quanto ao local para depositar as ossadas, entraram em vias de facto. E daí a pouco “houve pendência, e nela mortes e feridos”. O nosso biógrafo lusitano do Pai Natal não esclarece se, após esta estapafúrdia batalha campal, houve ressurreições por intercessão de São Nicolau. Apenas informa que as ossadas acabaram transladadas pelo papa Urbano II para a actual Igreja de São Nicolau. Depois, a biografia é rematada com uma novena. Amen.
N.D. Uma primícia versão deste artigo foi publicada no final de Dezembro de 2006 na extinta revista GR-Grande Reportagem.