Originalmente distribuída pela rede de canais televisivos Showtime, em 2019, City on the hill é uma série norte-americana desenvolvida por Chuck Maclean, baseada numa história criada pelo famoso actor Ben Affleck, que, a par de Matt Damon, também a produz. Recordemos que esta dupla ganhou o Óscar Melhor Argumento em 1997 por O bom rebelde (Good will hunting), onde também se destacava o malogrado Robin Williams.
City on the hill é um drama protagonizado por Kevin Bacon e Aldis Hodge, tendo como cenários os anos 90 na cidade de Boston, com a premissa de uma cooperação em constante conflito entre o agente do FBI Jackie Rohr (Bacon) e o Procurador-Geral Adjunto Decourcy Ward (Hodge). Conta ainda, em destaque, com a participação de Jill Hennessy, no papel de Jenny Rohr, mulher de Jackie.
Bacon representa um agente veterano em final de carreira, cuja aprendizagem tem tudo de old school. Corrupção, abuso de drogas e maneirismos fazem de Jackie Rohr um polícia tão desprezível quanto necessário para a trama, onde a fronteira entre anti-herói e vilão se esvanece muitas vezes e só de quando em vez a moralidade aparece.
Já Hedge é o oposto: ainda jovem, é um idealista, incorruptível, mas ambicioso, havendo linhas que não cruza, embora sabendo que , por vezes, há que “fechar os olhos” para apanhar criminosos e trazê-los à justiça.
City on the hill não é, em todo o caso, uma história de detectives, nem um clichê típico de series de advogados. Junta sim dois aspectos conhecidos para criar um enredo bastante mais original e interessante, onde se explora a pobreza, o crime e até o racismo institucionalizado numa cidade como Boston.
Não é propriamente surpreendente que a acção seja passada em Boston, porque tanto Maclean como Affleck e Damon foram criados nesta cidade do Estado de Massachussetts – e o Óscar que arrecadaram com O bom rebelde também tem aí o seu cenário.
Disponível na plataforma HBO Max, City on the hill conta com três temporadas num tempo médio de 55 minutos por cada um dos seus 26 episódios. E se outros motivos não houvesse, aproveitem para assistir à brilhante representação da “decadência” de Kevin Bacon.
Originalmente distribuída pela rede de canais televisivos Showtime, em 2019, City on the hill é uma série norte-americana desenvolvida por Chuck Maclean, baseada numa história criada pelo famoso actor Ben Affleck, que, a par de Matt Damon, também a produz. Recordemos que esta dupla ganhou o Óscar Melhor Argumento em 1997 por O bom rebelde (Good will hunting), onde também se destacava o malogrado Robin Williams.
City on the hill é um drama protagonizado por Kevin Bacon e Aldis Hodge, tendo como cenários os anos 90 na cidade de Boston, com a premissa de uma cooperação em constante conflito entre o agente do FBI Jackie Rohr (Bacon) e o Procurador-Geral Adjunto Decourcy Ward (Hodge). Conta ainda, em destaque, com a participação de Jill Hennessy, no papel de Jenny Rohr, mulher de Jackie.
Bacon representa um agente veterano em final de carreira, cuja aprendizagem tem tudo de old school. Corrupção, abuso de drogas e maneirismos fazem de Jackie Rohr um polícia tão desprezível quanto necessário para a trama, onde a fronteira entre anti-herói e vilão se esvanece muitas vezes e só de quando em vez a moralidade aparece.
Já Hedge é o oposto: ainda jovem, é um idealista, incorruptível, mas ambicioso, havendo linhas que não cruza, embora sabendo que , por vezes, há que “fechar os olhos” para apanhar criminosos e trazê-los à justiça.
City on the hill não é, em todo o caso, uma história de detectives, nem um clichê típico de series de advogados. Junta sim dois aspectos conhecidos para criar um enredo bastante mais original e interessante, onde se explora a pobreza, o crime e até o racismo institucionalizado numa cidade como Boston.
Não é propriamente surpreendente que a acção seja passada em Boston, porque tanto Maclean como Affleck e Damon foram criados nesta cidade do Estado de Massachussetts – e o Óscar que arrecadaram com O bom rebelde também tem aí o seu cenário.
Disponível na plataforma HBO Max, City on the hill conta com três temporadas num tempo médio de 55 minutos por cada um dos seus 26 episódios. E se outros motivos não houvesse, aproveitem para assistir à brilhante representação da “decadência” de Kevin Bacon.
Originalmente distribuída pela rede de canais televisivos Showtime, em 2019, City on the hill é uma série norte-americana desenvolvida por Chuck Maclean, baseada numa história criada pelo famoso actor Ben Affleck, que, a par de Matt Damon, também a produz. Recordemos que esta dupla ganhou o Óscar Melhor Argumento em 1997 por O bom rebelde (Good will hunting), onde também se destacava o malogrado Robin Williams.
City on the hill é um drama protagonizado por Kevin Bacon e Aldis Hodge, tendo como cenários os anos 90 na cidade de Boston, com a premissa de uma cooperação em constante conflito entre o agente do FBI Jackie Rohr (Bacon) e o Procurador-Geral Adjunto Decourcy Ward (Hodge). Conta ainda, em destaque, com a participação de Jill Hennessy, no papel de Jenny Rohr, mulher de Jackie.
Bacon representa um agente veterano em final de carreira, cuja aprendizagem tem tudo de old school. Corrupção, abuso de drogas e maneirismos fazem de Jackie Rohr um polícia tão desprezível quanto necessário para a trama, onde a fronteira entre anti-herói e vilão se esvanece muitas vezes e só de quando em vez a moralidade aparece.
Já Hedge é o oposto: ainda jovem, é um idealista, incorruptível, mas ambicioso, havendo linhas que não cruza, embora sabendo que , por vezes, há que “fechar os olhos” para apanhar criminosos e trazê-los à justiça.
City on the hill não é, em todo o caso, uma história de detectives, nem um clichê típico de series de advogados. Junta sim dois aspectos conhecidos para criar um enredo bastante mais original e interessante, onde se explora a pobreza, o crime e até o racismo institucionalizado numa cidade como Boston.
Não é propriamente surpreendente que a acção seja passada em Boston, porque tanto Maclean como Affleck e Damon foram criados nesta cidade do Estado de Massachussetts – e o Óscar que arrecadaram com O bom rebelde também tem aí o seu cenário.
Disponível na plataforma HBO Max, City on the hill conta com três temporadas num tempo médio de 55 minutos por cada um dos seus 26 episódios. E se outros motivos não houvesse, aproveitem para assistir à brilhante representação da “decadência” de Kevin Bacon.
Celebrou-se em Março os 25 anos do filme The Big Lebowski (TBL), primeiramente lançado nos cinemas a 6 de Março de 1998 nos Estados Unidos, mas chegado a Portugal apenas a 30 de Outubro desse ano.
Dir-se-ia que foi só mais um filme, e perguntar-se-á o motivo de se escrever sobre este em particular quando tantos outros também celebram anos de existência. Pois bem: The Big Lebowski não é um filme qualquer, e os fenómenos que foi gerando à sua volta, ao longo dos anos, tornaram-se maiores do que ele próprio.
Jeff Bridges, o Dude, em The Great Lebowski.
Dois anos antes, os dois realizadores, os irmãos Cohen (Joel e Ethan), tinham dado à luz o aclamado Fargo, que venceu o Óscar pelo melhor argumento e melhor actriz, para uma magnífica Frances McDormand, a fazer de polícia grávida naquela pacata cidade do Dakota do Norte. A expectativa à volta do que viria a seguir era assim grande.
Porém, nas bilheteiras The Big Lebowski foi uma desilusão e as receitas mal cobriram as despesas. As críticas também não foram meigas e apareceram as bad reviews que pareciam confirmar ser este um filme a ficar sem História.
David Denby escreveu para a New York Magazine a defender que The Big Lebowski era filme demasiado incoerente para se poder explicar e que o protagonista, Jeff Bridges, se tinha sacrificado pelo conceito derrotista dos Cohen.
O falecido Roger Ebert disse, por sua vez, em 1998 que The Big Lebowski era um filme que corria em todas as direcções e acabava por não ir para lado algum. Peter Howell escreveu, no Toronto Star, ser difícil aceitar que os realizadores eram os mesmos de Fargo.
Daphne Merkin, na sua recensão para o The NewYorker era mais uma destas vozes negativas e, embora fizesse elogios à performance de Bridges, criticava a falta de estrutura narrativa, o exagero das referências ao judaísmo e a falta de senso comum de Joel e Ethan. Dave Kehr chamou-lhe uma ideia cansada e um filme episódico e despreocupado.
Enfim, tudo parecera falhar, e The Big Lebowski estava aparentemente destinado a ser um filme que os irmãos Cohen desejariam que o Mundo esquecesse.
Porém, é o tempo que cria os clássicos, e o hoje é um mau julgador.
Existe alguma ambivalência no que toca à definição de filmes de culto. Certo é que há filmes que criaram uma legião de “cultistas” que ainda hoje perdura – isto independentemente do seu sucesso ou falta deste, nas bilheteiras.
De qualquer forma, se a “alta cultura” inicialmente condenou The Big Lebowski, automaticamente também criou as sementes para uma “baixa cultura” que não se revê nas críticas de peritos ou nas expectativas de intelectuais.
Esta “baixa cultura” é normalmente formada por pessoas que vêem os chamados midnight movies que, como indica o nome, são filmes B, transmitidos a hora tardia, geralmente com o orçamento baixo, que tiveram origem nos anos 50, mas que depois do sucesso de filmes como El topo (1970) e mais tarde The Rocky Horror Picture Show (1975) começaram a atrair mais e maiores audiências.
Ainda assim, esta legião de fãs configura uma oposição à “alta cultura” e ao mainstream, vendo-se a si mesma como “transgressora” que visiona filmes nas zonas suburbanas dos Estados Unidos a horas também elas desobedientes dos horários ditos normais, criando assim uma ritualização.
The Big Lebowski foi um desses filmes transmitidos nos midnight movies, desde o New Beverly Cinema no ano 2000, Nickelodeon Theatre em 2002, e em 2007 no New York City’s Sunshine Cinema, Milwaukee’s Rosebud Cinema Drafthouse, e no San Francisco’s Clay Theatre, cruzando assim várias regiões dos Estados Unidos.
Em 2002 na cidade de Louisville, no Estado do Kentucky, foi assim criado o primeiro Lebowski Festival a partir da ideia de dois fãs, Will Russell e Scott Shuffitt. Não foi propriamente um grande festival, uma vez que só apareceram 150 pessoas e não se podia vender bebidas alcoólicas.
Mas a semente germinou, e actualmente é um festival organizado em mais de 30 cidades americanas, com a presença dos actores principais, e onde os participantes mascaram-se com as indumentárias das personagens do filme, jogam bowling e citam frases do filme uns aos outros.
No mesmo ano do primeiro festival foi feito o lançamento de DVD de The Big Lebowski em conjunto com outro filme que abordava o tema do consumo de marijuana. Três anos depois, em 2005, foi lançado o Collector’s Edition e o Achiever’s Edition, este último já com o nome que os fãs do filme davam já a si mesmos, certificando assim The Big Lebowski como um filme de culto.
No décimo aniversário saiu mais um DVD que vendeu perto de 2,5 milhões de unidades. No vigésimo aniversário, em 2018, essas vendas duplicaram. O estatuto de filme de culto estava criado. The Big Lebowski tinha ganhado mais que uma segunda vida, era agora um fenómeno. Talvez uma vida eterna.
Mainpage do culto Dudeism.
Mas as particularidades não se ficam por aqui. The Big Lebowski conseguiu a proeza de servir de inspiração para a “criação” de uma religião e filosofia de vida, que dá pelo nome de Dudeism – reconhecida pelo Governo norte-americano e conta com mais de 600 mil padres ordenados.
Oliver Benjamin, o seu criador, baseia esta religião no conceito de abiding, ou seja, viver no presente, sem se preocupar com o futuro, e vai buscar semelhança a filosofias orientais como o Taoismo, Budismo e Sofismo. Há apenas uma grande regra a seguir: “não sejas um idiota, trata bem as pessoas”. No website deste “culto”, por uns trocos pode tornar-se um padre, aceder a livros e até tirar um curso na Abide University.
A influência de The Big Lebowski faz-se sentir também no continente europeu. Desde restaurantes em Glasgow e Edinburgh, sob o nome Lebowskis, onde as bebidas têm o nome das personagens do filme, até ao Grand Café Lebowski em Utrecht, passando em Paris pelo Le Dude e em Dresden pelo Lebowski Bar.
É de salientar que alguns dos críticos originais de 1998 fizeram, entretanto, o seu mea culpa, e reviram os seus textos. Houve até quem dissesse, na sua revisão, que poderia ter sido consequência de falta de oxigénio e cansaço, que não lhe permitiu escrever uma recensão em condições.
Joel e Ethan Cohen, a dupla que realizou The Great Lebowski.
Hoje, The Big Lebowski integra o National Film Registry, que é um corpo que escolhe filmes todos os anos para preservação futura devido à sua importância cultural, histórica ou estética. Ganhou, portanto, um lugar na História do Cinema.
E sobretudo mostrou que um filme pode sobreviver ao seu tempo, às (más) críticas iniciais, e não obedecer a muitas regras para ser bom.
Por outro lado, mostra-se interessante observar as diversas catalogações deste filme. Agora, uns consideram-no uma comédia, outros metem-lhe um pouco de neo-noir. De qualquer forma, não é fácil dizer qual é o tema deste filme, até porque não é a sua história que tanto fã agremiou. Foram sobretudo as personagens, os seus diálogos e o bowling. E há mais o resto, que é tudo o que se quiser inventar.
O PÁGINA UM esteve a acompanhar o Fantasporto no renovado Cinema Batalha. Leia as impressões de uma semana de cinema fantástico no Porto sob o olhar de Frederico Duarte Carvalho.
Vamos ser claros: o Fantasporto não é um festival de cinema de terror, mas sim, como o nome o indica, é de cinema fantástico. Existe desde 1981, graças a dois nomes incontornáveis da cultura portuense: Mário Dorminsky e Beatriz Pacheco Pereira. Há terror nas salas, claro, pois o cinema é feito de emoções e o medo é uma das mais básicas de todas. Também há sangue, e muito. Mas ao ser mostrado numa tela, presumimos que é falso. É toda uma encenação a retratar a vida real, e um realizador não precisa de saber a quantidade exacta de sangue jorrado quando alguém morre na vida real: ele sabe que nunca será o suficiente.
Aliás, foi essa a pergunta que fiz ao realizador belga Karim Ouelhaj: se não haveria demasiado sangue em algumas das cenas do seu filme sobre os dois filhos de um serial killer que repetiam as façanhas do pai. Ele sorriu e respondeu, com ar de menino inocente, que pretendia apenas fazer uma “expiação” de sangue. No fundo, o que lhe interessava, como artista, era criar imagens. E a conversa seguiu depois para os quadros de Caravaggio e a cena final, onde, num sofá, a irmã segura um bebé recém-nascido enquanto é abraçada pelo irmão, que acabara de matar homens que a tinham violado, incluindo o pai da criança. Enfim, um dia normal no Fantasporto.
Megalomaniac, do realizador belga Karim Ouelhaj.
Naquela altura em que conversávamos, estávamos longe de imaginar que o filme Megalomaniac iria vencer os dois prémios mais importantes do festival: Melhor Filme e Melhor Realizador. Mas já se intuía que o de Melhor Actriz poderia ir para a “mãe” da criança, Eline Shumacher, como se veio a confirmar. “Houve muita confiança entre nós para fazer este filme”, contou-me Karim. Não era fácil fazer o papel de empregada de limpeza numa fábrica e violada por colegas e que tem de se manter discreta em casa, enquanto o irmão rapta e mata mulheres. A assistente social que é morta por fazer demasiadas – e inúteis – perguntas que o diga…
De origem marroquina, Karim é um realizador belga que, ao visitar o Porto durante a 43ª edição do “Fantas”, descobriu uma cidade pela qual se enamorou e onde gostaria de regressar: “Desta vez, para fazer uma história de amor”, como revelou. Ele não quer ficar preso a um género, como o terror que imprimiu em Megalomaniac.
A história que venceu a edição deste ano do histórico festival portuense é baseada no caso de um serial killer da vida real conhecido como O carniceiro de Mons, a cidade belga onde, entre Janeiro de 1996 e Julho de 1997, apareceram os corpos desmembrados de cinco mulheres. Um crime ainda por resolver e que levou Karim a imaginar: “E se o carniceiro morreu, mas teve filhos que, passados 20 anos, retomaram as mortes”? A ideia deu um filme premiado e, agora, o filme que Karim pretende fazer no Porto, se vier a ser uma história de amor, poderá, quem sabe, dar mais prémios.
Karim Ouelhaj
Em competição, embora sem ter vencido nenhum prémio – excepto a honra de ter estado presente na selecção oficial à primeira tentativa –, esteve o filme S.Ó.S, do jovem realizador português (33 anos) Tiago Santos. Nascido em Lisboa, mas a viver em Viseu há quase 30 anos, o realizador é músico profissional e freelancer na arte do vídeo. Fundador de “A Toca do Lobo”, fez, entre outros, a curta-metragem Alpha – história sobre lobisomens, filmada em Lafões (Viseu), “terra de Lobisomens também”, como destacou.
Para o Fantasporto, juntamente com os co-produtores João Silva – mais ativo atrás das câmaras, com efeitos visuais e concepção de arte e design –, e Ivo Saraiva, mais activo à frente da câmara, Tiago trouxe um filme com um título ambíguo – entre um apelo de emergência e a aventura de um homem sozinho num cenário pós-apocalipse – esta produção tem ainda a particularidade de ter sido feita com “zero” de orçamento: “O material de vídeo era material já usado por mim na minha vida de freelancer na videografia. Foi filmado com uma Sony a6400 e duas lentes, uma 16mm e uma 50mm. A caracterização do Ivo foi feita com roupas dele e outras minhas. Os acessórios foram emprestados por amigos que praticam airsoft. Filmámos literalmente em frente de minha casa, num parque da cidade – felizmente, Viseu tem bastantes. A casa é uma que está para venda, cedida pelo Luís Pinto, personagem principal do ‘Alpha’. Era do seu avô e fica relativamente perto do centro de Viseu”.
E assim se consegue ter o sonho de fazer cinema em Portugal…
João Silva, Tiago Santos e Ivo Saraiva
Ainda mais impressionante, visualmente, foi um dos cenários deste filme de Tiago: o parque aquático do Almargem, um espaço abandonado e que o realizador português caracteriza como “a nossa pequena Chernoby”. Pediu-se aos donos a autorização de filmagem, mas não chegou qualquer resposta.
Vai daí, não estiveram de modas: “Embora não tenhamos recebido qualquer resposta ao nosso pedido para filmarmos, enviámos um termo de responsabilidade e sentimo-nos encorajados com outros testemunhos nas redes sociais. Decidimos arriscar ao estilho de ‘guerilla filmmaking’ e filmar lá. Achámos um desperdício não filmarmos na nossa pequena ‘Chernobyl’, embora sem autorização oficial. Não consigo dizer grandes detalhes sobre o local, apenas sei que era um grande projeto para a região e que foi abandonado, felizmente para nós”.
Para provar ainda que é possível fazer produções cinematográficas em Portugal praticamente sem meios técnicos – e isto nem sequer se deveria dizer, pois depois ainda vão dizer que não se precisa gastar dinheiro na cultura –, temos o exemplo do trabalho do português Pedro Gil Vasconcelos que, com um telemóvel filmou a sua experiência num caminho de Santiago e também fez um pequeno filme nas férias na Turquia, tendo vencido já prémios de curta e micro filmes.
Mas houve um português que ganhou um prémio internacional. Tito Fernandes, natural de Barcelos, a viver entre Hollywood e o Reino Unido, trabalhou nos efeitos especiais de filmes bem conhecidos como Star Wars – The Force Awakens, Interstellar e o The Dark Knight. Só que ele quer ter o nome debaixo do título do filme, em vez de aparecer apenas nos créditos finais e ser reconhecido pelos amigos. Subiu ao palco na noite da entrega dos prémios para receber o prémio internacional de Melhor Curta-Metragem, pelo filme Incubus, onde, durante 16 minutos, uma mulher debate-se contra os seus medos.
O filme de Tito Fernandes demonstra um realizador já feito, do qual se espera com ansiedade o momento em que será possível aventurar-se em longas-metragens. No seu pequeno filme, o português usa efeitos especiais na construção de um monstro e fica-se a pensar como seria se a técnica evoluísse para uma ficção com assinatura portuguesa. O filme, que é também um alerta contra a violência doméstica – daí o trauma da mulher com os seus medos –, venceu ainda a categoria de melhor filme português.
O Fantasporto tem de ser visto do princípio ao fim. Desde a cerimónia de abertura até ao encerramento, uma semana depois. Há quem consiga estar todos os dias na sala principal, com três – ou até quatro – sessões diárias. Que o diga, por exemplo, Pedro Afonso, natural dos Açores, técnico de desenho e cinéfilo, que dedicou uma semana de vida para alimentar o seu site Laxante Cultural com os resumos e apreciação de todos os filmes que passaram na sala principal do Fantasporto.
Pedro Afonso, cinéfilo e autor do site Laxante Cultural.
Regressar ao cinema Batalha, leva-nos a um dito muito portuense que é o “bai no Batalha”, assim mesmo, à Porto. Mário Dorminsky não gosta da expressão, pois acha-a depreciativa, visto a expressão designar algo que é uma “treta” – a origem é do tempo em que o cinema Batalha, como grande sala, simbolizava todo o cinema da cidade do Porto e, quando alguém refutava uma história que lhe era contada como sendo exagerada ou digna de ficção, o interlocutor rematava com o dito “bai no Batalha”, expressando o seu sentimento de descrédito do relato, sendo mais parecido com a trama de um qualquer filme de ficção projectado na tela do Batalha. Mas para o portuense, para o amante de cinema, é sempre um prazer ir ao Batalha.
O novo Batalha recuperou – e bem – as pinturas originais de Júlio Pomar, mandadas esconder pela polícia do Estado Novo, contudo tem detalhes que precisam de ser revistos. O bar fecha a horas que não são as mais propícias ao ambiente de um festival. A zona dos corredores não permite um convívio após filmes. E os convidados internacionais, aqueles que irão depois falar bem ou mal da cidade, são confrontados com a sopa dos pobres à saída do edifício. A ficção da tela do “bai do Batalha” ganha outros contornos realistas quando se está na rua em frente. A lembrar-nos que esta é a sociedade que soubemos fazer.
Uma sociedade onde a guerra na Ucrânia é também uma realidade e que, nesta edição do Fantasporto, esteve presente, ainda que de forma discreta e menos mortal do que aquela que se passa no terreno. Nem todos os que estiveram no Porto entre os dias 25 de Fevereiro e 5 de Março saberão que o consulado da Ucrânia no Porto enviou à direcção do Fantasporto uma queixa formal pela exibição de uma curta-metragem russa.
Sleeping Beauty, o filme em questão, tem a particularidade de ter sido filmada debaixo de água. Conta a clássica história da bela adormecida através apenas de música clássica e bailado. Não é uma novidade cinematográfica, mas garante sempre um belo efeito, sobretudo neste caso em que a realizadora, Jana Nedzvetskaya, é uma conhecida designer de moda e responsável da marca Miss Lo – da palavra inglesa para amor, “love”. A curta insere-se em anteriores trabalhos levados a cabo pela designer russa, que é conhecida por ter feito apresentações de moda com a mesma técnica de filmagem.
Acontece que para o consulado ucraniano no Porto, a exibição daquele filme russo suscitou “preocupação”, porque “o Kremlin usa várias armas, incluindo armas que matam as almas e destroem a consciência da gente. O Kremlin é conhecido há muito tempo por usar a cultura e o seu ‘poder’ de influência para manipulação e propaganda política. O Estado agressor faz amplo uso das ferramentas da diplomacia pública e cultural para expandir a sua influência nos círculos académicos e artísticos estrangeiros, bem com no público, em todo o mundo”, afima-se.
A carta enviada à direcção do Fantasporto ainda acrescenta que “enquanto continua a guerra russa contra a Ucrânia e continua o sofrimento dos civis, enfatizamos a importância de encerrar a cooperação com todas a instituições no campo da cultura, bem como representantes da Rússia no estrangeiro”.
Sleeping beauty, filme russo exibido, sob protesto do cônsul da Ucrânia.
Frisa ainda a carta assinada pela cônsul da Ucrânia no Porto, Alina Ponomarenko, que “a cultura russa ou se manifesta apoiando a guerra iniciada pelo regime de Putin ou não considera necessário expressar uma posição clara, silenciando a guerra na Ucrânia”, terminando com o apelo de que “agora é necessário limitar a influência da cultura russa no mundo”, pois esta é “uma cultura que lançou as bases ideológicas desta guerra, uma cultura que pode justificar furtivamente a agressão da Rússia, uma cultura que a Rússia sabe usar para os seus próprios objectivos”.
Em contraponto, a mesma carta expressava gratidão ao Fantasporto por ter exibido o filme ucraniano Sashenka, de Oleksandr Zhovna. Filmado a preto e branco, contrasta perfeitamente com o filme russo. Enquanto o primeiro é uma fábula colorida e conta uma história de príncipes e princesas, em “Sashenka” temos uma história centrada na União Soviética dos anos 70, sobre um rapaz obrigado a viver como se fosse uma rapariga – porque a irmã morrera antes do seu nascimento. Obra doentia, com uma interpretação igualmente perturbante do actor Dmitry Nizhelsky, deixou marcas, embora não o suficiente para garantir prémios.
Menos polémico, mas igualmente de Leste, mais concretamente da Polónia, houve a oportunidade de apreciar em estreia europeia o mais recente filme do polaco Krzystof Zanussi, Perfect Number. Uma obra simples e perfeita sobre temas complicados como Deus, sentido da vida, acasos e matemática. Um realizador que caminha anónimo pelas ruas do Porto, passando por pessoas que ignoram que aquele homem, por exemplo, já venceu um Leão de Ouro em Veneza, em 1984 – com o filme “A Year of the Quiet Sun” – ou que foi ele que, em 1981, fez o primeiro documentário sobre a vida do cardeal polaco Karol Wojtyla até se tornar no Papa João Paulo II.
Outra presença de peso cinematográfico neste festival – houve muitos mais, eu sei, mas que me perdoem os outros, como os participantes filipinos, japoneses, ingleses, húngaros, franceses, norte-americanos, colombianos, etc. –, foi certamente o britânico Anthony Waller. Digo britânico porque os seus pais são naturais da ilha das Brumas, mas ele nasceu em Beirute, fala alemão e russo e vive no Mónaco.
Anthony Waller foi mais uma daquelas boas razões para o Porto e o seu festival fazer muito sentido. É seu o filme de 1995 Lobisomem americano em Paris, a sequela ao filme de John Landis, Lobisomem americano em Londres. Durante o Fantasporto houve ainda a oportunidade de assistir ao seu filme de 1994, em cópia restaurada, Mute witness – Não falarás. Um thriller com rasgos de emoção digna de Hitchcook, passado em Moscovo, onde uma norte-americana, assistente de produção de uma equipa de filmagens norte-americana, é testemunha de filmagens proibidas da máfia russa – os chamados filmes snuff, onde as mortes são reais. Só que ela tem um problema: é muda.
Sashenka, filme ucraniano em competição.
Uma das maiores atracções deste filme de Waller, no entanto, é o facto de ser um dos últimos filmes do grande actor britânico Alec Guiness. E a razão disso daria mais um filme. É um prazer ouvir o realizador contar como conseguiu ter aquela estrela no seu filme. Uma lição.
Anos antes de fazer o filme, Anthony Waller estava a estudar cinema na Alemanha, graças a uma bolsa que vencera na escola de cinema do Reino Unido, como patrocínio do realizador John Schlesinger. Um dia aparece Alec Guiness a quem Waller diz que gostaria de o ter um dia num filme. O homem da Ponte do rio Kwai, o príncipe Faisal do Lawrence da Arábia e, finalmente, o Obi-Wan Kenobi do Star Wars, disse-lhe que isso até poderia acontecer, mas ele já estava com a agenda preenchida para os próximos dois anos. É então que Waller atira: “E amanhã de manhã, pode ser?”.
Perante aquele desafio, Alec Guiness disse que sim e, durante a noite, Waller arranjou uma equipa e material. De manhã, gravou três cenas dentro de um carro nos anos 30. Inicialmente, seria um filme com gangsters em Chicago. As cenas são de noite e Alec Guinness faria o papel de um vilão, o The Ripper, onde diria algumas falas sobre “onde estava a rapariga” e a importância de não deixar testemunhas. Aquelas filmagens estiveram guardadas durante quase dez anos, até que, finalmente, foram montadas para uma história em Moscovo. O material original com Alec Guiness permitiu que, com a inversão da imagem em algumas cenas e diálogos com intercomunicadores, disfarçando a voz do actor, servissem para o dobro do tempo na edição final. Lição de cinema.
Mute witness,…… do realizador Anthony Waller, em cópia restaurada.
Presente na qualidade de júri, Waller recebeu ainda o prémio de carreira, assim como o realizador da Estónia, Elmo Nuganen, cuja trilogia sobre o boticário da Idade Média, Melchior, fizeram as delícias de quem os viu. As obras do realizador da Estónia são marcadas por uma cinematografia de cores vivas e uma encenação cuidada. O próprio realizador é um reputado encenador e, quando subiu ao palco para receber o seu prémio, percebeu-se bem essa formação teatral. Sobretudo quando disse, na sua língua, como foi poder nadar no Atlântico. Mesmo sendo no Porto, em Março.
Muito mais haveria para dizer, mas este relato das impressões da 43ª edição do Fantasporto não poderia deixar de mencionar o filme L’órafo (O ourives) do realizador italiano Vincenzo Ricchiuto. Ficou de fora da competição por ter chegado já fora do tempo, mas ainda assim decidiu-se, e bem, incluir na programação aquele que é a primeira longa-metragem de um realizador com mãos experientes.
A história de um casal de reformados que monta uma armadilha a um grupo de três assaltantes, numa história com luz e fotografia cuidada, interpretações de algumas figuras conhecidas da cena artística italiana e com um guião que permite momentos de tensão e humor. Um filme bem conseguido e que mereceria ser visto por mais pessoas.
O ourives, um filme…… do italiano Vincenzo Ricchiuto
O filme da sessão de encerramento é outro momento de destaque. Desta vez, a honra coube à primeira mulher turca a realizar um filme de ficção-científica. Serpii Altin trouxe à Invicta o filme Once upon a time in the future: 2121, uma versão turca de um 1984. Vale a pena pela partilha cultural – pois muito do cinema que passa no Fantasporto tem esse condão universalista –, com uma cinematografia a fazer lembrar a simetria de um Wes Anderson, referência assumida da realizadora. Mas o mais perturbador é a ideia da história, onde o tema são os mesmos de todo o mundo, onde não há a esperança um futuro radioso, mas sobra-nos aquele onde a sociedade está cada vez mais controlada.
As pessoas vivem em habitações subterrâneas, submetidas à Lei da Escassez, onde o sistema controla a vida e a comida. O aspecto mais perturbador é que a sociedade culpa os mais idosos das guerras anteriores que destruíram o mundo e, as “novas gerações” – assim mesmo tratadas – são as mais protegidas. Aliás, quando nasce uma criança, a pessoa mais idosa da família é eliminada da sociedade.
Uma teoria de substituição avançada. Para pensarmos na hora da despedida e enquanto não chega a edição de 2024, marcada no mesmo Batalha, para os dias 1 a 10 de Março. Está já na agenda!
Os premiados de 2023 do Fantasporto
Cinema Fantástico
Grande Prémio – Megalomaniac, de Karim Ouelhaj, com produção de Florence Sâdi
Melhor Realizador – Karim Ouelhaj (Megalomaniac)
Melhor Actor – Tom Huges (Shephard)
Melhor Actriz – Eline Shumacher (Megalomaniac)
Prémio Especial do Júri – Demigod: the legend begins, de Chris Huang Wen-Chang
Melhor Argumento – Convenience story, de Satoshi Miki
Menção Especial – Stone turtle, de Woo Ming Jin
Semana dos Realizadores
Melhor Filme – Narcosis, de Martijn de Jong
Prémio Especial – Kaymak, de Milcho Manchevski
Melhor Realizador – Hans Herbots (Ritual)
Melhor Argumento – The game, de Péter Fazakas
Melhor Actor – Zsolt Nagy (The game)
Melhor Actriz – Thekla Reuten (Narcosis)
Menção Especial do Júri – The grandson, de Kristóf Deák
Orient Express
Melhor Filme – Kargo, de T. M. Malones
Menção Especial – Stone turtle, de Woo Ming Jin
Curtas Metragens
Melhor Curta – Incubus, de Tito Fernandes
Filme Português
Melhor Filme – Incubus, de Tito Fernandes
Melhor Filme Escola – Quando a terra sangra, de João Morgado
Menção Especial – The space in between, de Joana Dantas
Prémios não oficiais
Prémio da Crítica – Immersion, de Takashi Shimizu
Prémio do Público – Life of Mariko in Kabukicho, de Eiji Uchida e Shinzô Katayama
Cercada por mitos que a etiquetam, Florbela Espanca (1894-1930) é, intermitentemente, evocada pelo emblema que foi, como mulher, na Lusitânia, reprimida, e a poetisa desenquadrada e sem cânone.
O primeiro mito não pesa apenas no convite ao esquecimento da escrita, sobretudo da lírica, já que a diarística e a narrativa parecem ajudar a construir a imagem da pessoa com quem nos envolvemos, ao passar na rua, por ela ou pela sua memória: pesa no quadro hermenêutico que lhe criamos e nos horizontes (sem expectativas) com que lhe cerceamos os sentidos. O segundo mito, reiteradamente desconjuntado por novas leituras, nunca se poderá desmontar inteiramente, porque Florbela é, insistente e resumidamente, a que “não se integrou no modernismo” circundante e que, dos modelos clássicos, “retirou apenas a moldura restritiva do soneto, sem ter renovado a sua grandeza criativa”.
Contra este quadro irá a nossa intervenção actual, com a qual pretendemos reforçar argumentos em torno da alta qualidade e rigor na elaboração discursiva que a poetiza atinge, no trabalhar o modelo estrófico do soneto, segundo a disposição extremamente inovadora dos tropos, pelo cruzar de duas figuras enunciativas fundamentais: a elegia e a apóstrofe. Presumimos, basicamente, que a poesia de Florbela recolhida num só livro, que se tem designado, laconicamente, por Sonetos, sendo a que mais percorre a leitura, a atenção e a memória dos seus receptores (e, eventualmente, destinatários), estabelece um sortilégio de apelo que não passa, sobretudo, pelo conteúdo da mensagem, ou pelo estatuto de referencialidade vivencial que, daí, possa ser presumida. Emerge, sim, dos procedimentos poéticos que elabora, persistente e variadamente, numa recursividade que gera efeitos de vertigem pela omnipresença de um dispositivo enunciativo que funciona como o retorno da (quase) mesma mensagem a um(a) destinatário/a marcado por um destino. Tudo se passa como se a entidade apostrofada, um poeta, um destino poético fosse portador de uma palavra adereço, uma insígnia, MORRERÀS, reiterada, desdobradamente, em epitáfios.
Os dizeres que preenchem a sua poesia são lapidares e sentenciosos, marcados pela vontade de, ainda em vida, proclamarem o aqui e o sempre da morte, numa intimidade de autorreconhecimento em sombras e imagens especulares, que primam, já, pela marca da alteridade espectral, como se patenteia, inteiramente, em “Dizeres Íntimos”, por exemplo:
“É tão triste morrer na minha idade!/ E vou ver os meus olhos, penitentes/ Vestidinhos de roxo, como crentes/ Do soturno convento da Saudade!// E logo vou olhar (com que ansiedade !… )/ As minhas mãos esguias, languescentes,/ De brancos dedos, uns bebés doentes/ Que hão-de morrer em plena mocidade !// E ser-se novo é ter-se o Paraíso,/ É ter-se a estrada larga, ao sol, florida,/ Aonde tudo é luz e graça e riso !// E os meus vinte e três anos… (Sou tão nova !)/ Dizem baixinho a rir: «Que linda a vida ! …»/ Responde a minha Dor: «Que linda a cova!» (1980, p.45[1]
O que a voz declama, antecipadamente, é o estado da morte, a visão de si como outro, auto-revelação que se avança, como um quadro apresentado em prolepse. Poderíamos quase dizer que a apóstrofe, jogando numa intimidade de si para si, constrói, como epitáfio, a estátua da defunta antecipada pela voz do próprio sujeito poético, com a nitidez lapidar da elegia. Reconhecermos a elaboração de uma tal formulação poética exige, antes de mais, que nos alonguemos um pouco na caracterização das figuras que aqui evocamos, especialmente as que temos vindo a referir como dominantes. No entanto, devemos desde já anunciar que, além da elegia e da apóstrofe, as várias figuras que convergem para elaboração dos sucessivos êxtases e estases, variações da forma estática, deverão merecer, também a nossa atenção, através de um especial esclarecimento.
A elegia[2], no seu sentido mais geral, como o notam os autores da respectiva entrada no Dicionário de Princeton, “em sentido moderno, é poema curto, normalmente formal ou cerimonioso no tom e na dicção, ocasionado pela morte de uma pessoa” (entrada ELEGY, p. 322) . Não é, no entanto, apenas a expressão do lamento, como outras formas poéticas de expressão do pesar, nem se apresenta tão breve e seca como o epitáfio, pois revela-se, muitas vezes, portadora de uma referência ou uma atitude apaziguadora ou mesmo consolatória.
Numa perspectiva mais ampla, que pretenda apresentar um denominador comum da elegia nas suas variadas emergências ao longo da história, nas diversas literaturas ocidentais, pode dizer-se que é um poema de meditação sobre o amor e/ou a morte. Não é por acaso que a sua origem etimológica vem do termo grego “elegos”, que significa “lamento”, origem a que um tratadista francês do século XVI, Sébillet, faz referência: “Lamentos e deplorações parecem estar na elegia que não os expressa claramente. Porque elegia quer dizer lamento”. No entanto, definindo-a mais especificamente, diz o mesmo autor que a elegia é “triste e flébil: e trata com singularidade as paixões amorosas […]” (cf. in Goyet, 1990, pp. 140-141 e 128-129).
Amor e morte, sim, em conjugação, numa tonalidade pessoal de quem medita acerca de um “desgosto, quase sempre amoroso”, cavando em negrume “a nostalgia e a melancolia” que “são os temas apropriado ao tom elegíaco” (Aquien, 1993, p.120; entrada élegie[3]). Contudo, sobre os modos de essa temática se formalizar, de se pormenorizar em motivos, é um poeta como Boileau que, na sua Art Poétique, mais nos esclarece: “La plaintive Élégie, en longs habits de deuil./ Sait, les cheveux épars, gémir sur un cercueil./ Elle peint des amants la joie et la tristesse,/ Flatte, menace, irrite, apaise une maîtresse./ Mais, pour bien exprimer ces caprices heureux,/ C’est peu d’être poète, il faut être amoureux” (Art Poétique, Canto II, versos 39 a 44).
Toda a poesia de Florbela está cheia desses índices, desses motivos representativos do estado amoroso e do sentimento de luto e morte que lhe anda ligado: “No lânguido esmaecer das amorosas/ Tardes que morrem voluptuosamente/ Procurei-O no meio de toda a gente./ […] Em toda a nossa vida anda a quimera/ Tecendo em frágeis dedos frágeis rendas…/ – Nunca se encontra Aquele que se espera!…” (“Le Prince Charmant…” p. 88). Note-se, neste exemplo, o efeito declamatório do soluçar, representado por todos os processos de entrecortar do discurso, desde o encavalgamento, logo entre o primeiro e o segundo verso, e as suspensões, verdadeiras formas emblemáticas da prece desenquadrada do ritual, evoluindo enquanto pulsar anímico. Não se trata, fundamentalmente, de enunciar a melancolia, declamando estados anímicos de dor, sofrimento e angústia.
Fundamentalmente, é todo um cenário a evocar essa intimidade fúnebre, deslizando a ladainha para a enumeração macabra: “Poeiras de crepúsculos cinzentos. Lindas rendas velhinhas, em pedaços, […] meus cabelos, como brancos fantasmas, […] Monges soturnos deslizando lentos, […] Ergue-se a minha cruz dos desalentos !” (“Cinzento” p. 92); […] Traçaste em mim os braços duma cruz, […] Minh’ alma […] É nesta noite o nenúfar de um lago” (“Nocturno” p. 93); […] Castelos, um a um, deixa-os cair …/ Que a vida é um constante derruir e palácios do Reino das Quimeras!/ E deixa sobre as ruínas crescer heras./ Deixa-as beijar as pedras e florir!/ Que a vida é um Continuo destruir/De palácios do Reino das Quimeras” (“Ruínas” p.96).
Não está ausente, nesta poesia, uma terminologia abstracta para referir estados de espírito. No entanto, ela é quase sempre reforçada, no seu sentido pleno, por um décor complementar de motivos, que se tornam verdadeiros significantes fundadores do sentido. Verifica-se isso, por exemplo, num soneto como “Neurastenia” (p. 49), onde, depois de declarado o sentimento abstracto de “tristeza”, o sujeito poético declina toda a série substantiva que constitui o estado de alma:
“Um sino dobra […]/ a chuva, brancas mãos esguias,/ Faz na vidraça rendas de Veneza …/ o vento desgrenhado chora e reza/ Por alma dos que estão nas agonias!/E flocos de neve, aves brancas, frias,/ Batem as asas pela Natureza …/ Chuva … tenho tristeza! Mas porquê? !/ Vento. .. tenho saudades! Mas de quê? !/ Ó neve que destino triste o nosso I/ Ó chuva! Ó vento! Ó neve! Que tortura!/ Gritem ao mundo inteiro esta amargura, […]”.
Não obstante a imensa força poética com que esta figuração fecunda os sonetos de Florbela, dando espessura à postura elegíaca fundamental que a todos atravessa, a manifestação poética que deles emana não teria o asserto profundo de clamor cósmico, em busca de resposta sempre perdida ou sempre adiada, se a apóstrofe não se fizesse sentir irradiantemente como vociferação, vocalização da paixão. O poema “Este Livro…” (p. 37), que serve de frontispício ou proémio à sua obra, e a representa desde que foi poema de abertura da sua obra de estreia é revelador dessa vocação vozeante:
“Este livro é de mágoas. Desgraçados/ Que no mundo passais, chorai ao lê-lo!/ Somente a vossa dor de Torturados/ Pode, talvez, senti-lo… e compreendê-lo./ Este livro é para vós. Abençoados/ Os que o sentirem, sem ser bom nem belo!/ Bíblia de tristes … Ó Desventurados,/ Que a vossa imensa dor se acalme ao vê-lo !/ Livro de Mágoas … Dores .,. Ansiedades !/ Livro de Sombras … Névoas e Saudades!/ Vai pelo mundo … (Trouxe-o no meu seio … )/ Irmãos na Dor, os olhos rasos de água,/ Chorai comigo a minha imensa mágoa,/ Lendo o meu livro só de mágoas cheio ! …”
Patenteia-se aqui um excelente exemplo de apóstrofe, que Fontanier caracteriza do seguinte modo: “diversão súbita do discurso pela qual nos desviamos de um interlocutor (objet), para nos dirigirmos a um outro, natural ou sobrenatural, ausente ou presente, vivo ou morto, animado ou inanimado, real ou abstracto, ou para se nos dirigirmos a nós próprios” (1968, p. 371”). Todas as possibilidades enumeradas pelo retoricista francês do século XIX podem ser encontradas em Florbela: em “Castelã da Tristeza”, deparamo-nos com a figura ficcional, nascida da metáfora, tornada interlocutora: “Vivo sozinha em meu castelo: […] Castelã da Tristeza, vês? … […] Castelã da Tristeza porque choras […]?” (p.40); em “Dizeres Íntimos”, surge a entidade abstracta, quase em psicomaquia alegórica: “E os meus vinte e três anos … (Sou tão nova !)/ Dizem baixinho a rir: «Que linda a vida ! … »/ responde a minha Dor: «Que linda a cova!»” (p. 45); em “Pequenina”, o vocativo inflecte para uma interlocutora de acaso, presumível alter ego da entidade poetiza, ou projecção desta numa criança com a qual identifica a sua própria infância: És pequenina e ris … […] Pequenina que a Mãe de Deus sonhou,/ Que ela afaste de ti aquelas dores/ Que fizeram de mim isto que sou !” (p. 48); em “A Maior Tortura” dedicado “A um grande poeta de Portugal”, a entidade anónima designada em epígrafe é apostrofada: “[…] Não ser poeta assim como tu és”; em “A Flor do Sonho”, evoca-se o próprio ser da natureza, tornado objecto onírico: “Ó flor que em mim nasceste […]” (p.50); e ainda, como em “A Voz da Tília”, a reversão total da origem enunciativa permite que o ente inerte da natureza domine o discurso, onde a voz da “poetiza” é tão só pouco mais do que um verso contextualizante, ainda que a sua pessoa seja o destinatário:
“Diz-me a tília a cantar: «Eu sou sincera,/ Eu sou isto que vês: o sonho, a graça;/ Deu ao meu corpo, o vento, quando passa,/ Este ar escultural de bayadera …/ E de manhã o sol é uma cratera,/ Uma serpente de oiro que me enlaça…/ Trago nas mãos as mãos da Primavera …./ E é para mim que em noites de desgraça/ Toca o vento Mozart, triste e solene,/ E à minha alma vibrante, posta a nu,/ Diz a chuva sonetos de Verlaine … »/ E , ao ver-me triste, a tília murmurou:/ “Já fui um dia poeta como tu …/ Ainda hás-de ser tília como eu sou … »” (p. 147).
Deste circuito em que o anímico, o abstracto, o inerte e o humano se interpenetram, sobressai uma imensa figura matricial, uma espécie de Cibele que “ordena e dirige a potência vital” e que, “de forma quase delirante, simboliza os ritmos da morte e da fecundidade, da fecundidade pela morte” (cf. Chevalier e Gheerbrant, p. 331 – entrada CYBÈLE), que transforma a voz poética em mera intermediária e difusora do seu discurso. Presença que já Jorge de Sena observara quando afirma: “[…] não são as deusas helénicas da escultura, tornadas cânones de beleza, mas as deusas misteriosas da terra e do céu, as que viveram de facto no coração dos Gregos. Se quisermos um ciclo mítico da feminilidade de Florbela, podemos pôr: noite, terra, lago, sombra, noite, e o ciclo recomeça: «Mas eu sou a manhã: apago as estrelas»” (1988, p. 41). Sobre esta assunto, aliás, retomaríamos, sem grandes alterações, o que já escrevemos num outro lugar:
“A própria coquetterie, o jogo amoroso culto, civilizado, com processos de «salão», tem, na poesia de Florbela, uma representação selvagem, uma matriz substanciai fortemente impregnada de natureza, madeira, mater. Mas não é o campo que se torna palco da sociabilidade cortesã. Não são os elementos da natureza que se ritualizam no jogo do “fin amour”). É a árvore que se impõe como modelo de elegância airosa, que fornece os padrões do arrebatamento amoroso, num universo onde os elementos permutam a sua essencialidade que é, apenas, circunstancial” (in Lopes, Fernando, Martinho (e outros), 1997: 231).
Toda esta dimensão cósmica é propiciada, por assim dizer pela apóstrofe. No dizer dos teóricos e estudiosos da retórica e dos mecanismos da poética, a apóstrofe é uma espécie de provedora do lugar da mise en scène do arrebatamento, da entrada em contacto com as esferas apenas acessíveis à inteligibilidade, da comunhão com a ordem superior e misteriosa das coisas. Ainda no dizer de Fontanier, a apóstrofe “não é nem a reflexão, nem o pensamento despojado, nem uma simples ideia: é, sim, o sentimento, o sentimento excitado no coração, até explodir e expandir-se para o exterior, como que de si próprio” (1968, p. 372).
Primeira edição de “Livro de Mágoas”, a primeira obra de Florbela Espanca, publicada em 1919.
Em termos retórico-estilísticos, a apóstrofe, por modalidade vocativa, quase sempre sob a aspectualidade de exclamação, diz respeito à entidade que, explicitamente, actua como enunciador. Assim, a voz do poeta, face ao seu ouvinte/leitor, apostrofa quando, sem mudar de encenação enunciativa, ou seja, no contexto em que se dirige ao seu receptor postulado (ouvinte/leitor), inflecte o seu discurso na direcção de um destinatário ausente do espaço encenado, nomeadamente fazendo parte do universo diegeticamente referido.
No interior de uma narrativa, por exemplo, a apóstrofe pode vir de um narrador auto-diegético, que relata uma situação em que se insere, como personagem/actor vivendo os feitos que narra, mostrando a situação que se lhe apresenta aos sentidos a um destinador (narratário) a quem subitamente se dirige com um comentário ou com uma apreciação que não é para ser “ouvida” pelas personagens do contexto em que se encontra.
Com dirão Mazaleyrat e Molinié, “a apóstrofe só aparece como figura quando o contexto indica que se dirige a um alocutário puramente imaginário, mesmo em relação a seres ficcionais” (1989, p. 28[4]). É claro que, no texto lírico, a mais comum ocorrência é a de se tomar como contexto básico o que é composto por um enunciador/poeta e um enunciatário/leitor, sendo a inflexão, por norma, a da interpelação de um ser presente no universo referido como enunciado e não naquele em que processa a enunciação. Contudo, a espessura do jogo poético assenta na ilusão de se puxar para a dimensão da enunciação (miticamente a do real onde o autor e o leitor se encontram) os elementos fantásticos do imaginário.
Por essa razão, assume-se que um dos objectivos da apóstrofe é fazer comunicar os dois universos, ultrapassando a barreira que os torna absolutamente incomunicáveis, pelo menos segundo a exigência de um empirismo cauteloso e crítico, sob a vigilância da racionalidade positivista, que se processam com alheamento da hipótese metafísica da inteligibilidade, ou da possibilidade aberta pela verosimilhança poética, quando activa o processo da “suspensão da descrença” (Coleridge). Assim, percebe-se bem porque é que, no dizer de Jonathan Culler, as “apóstrofes” poéticas “podem complicar ou romper o circuito da comunicação, colocando questões sobre quem é o destinatário” pelo que se tornam “embaraçantes” (2001, p. 150).
A proposta que Culler faz é a de que se pode, até certo, ponto “identificar a apóstrofe com a própria lírica” (2001, p. 151) partindo do princípio de que a apóstrofe parece encenar o próprio sistema de enunciação do lirismo, chegando alguns críticos a apresentá-la como dominante, por vezes omnipresente, em quase todos os sistemas de lírica historicamente determinados.
Essa posição parece ser assumida, por exemplo, num enunciado como o de Northrop Frye, no seu Anatomia da Crítica:
“O poeta lírico normalmente finge estar conversando consigo mesmo ou com outrem: um espírito da natureza, uma das Musas (note-se a diferença com o épos onde a musa fala por intermédio do poeta), um amigo pessoal, um amor, um deus, uma abstracção personificada ou um objecto natural. […] O poeta, por assim dizer, volta as costas para seus ouvintes, embora possa falar por eles, e embora eles possam repetir algumas de suas palavras atrás dele” (Frye, 1973,p. 245).
Segunda obra de Florbela Espanca é de 1923, uma edição de autora.
É claro que o termo apóstrofe não é empregue. Contudo, parece evidente que a descrição que é feita, aqui, do acto de enunciação do poeta lírico corresponde, nos traços essenciais, à que é feita do acto enunciativo da apóstrofe, nos estudos e manuais de poética e de retórica. Lembrando-nos, quase ao acaso, de alguns dos mais belos e recordados poemas portugueses de todos os tempos, desde as cantigas de amigo, em que se interpelam as “flores do verde pino”, até aos poetas modernos, nomeadamente Pessoa, quando incita a rapariga distante, que não o ouve, a comer chocolates, em “A Tabacaria”, passando pelo modelo absoluto e arrebatado do soneto “Alma minha e gentil…”, de Camões.
Se acrescentarmos a este nosso elenco, colhido em rápida auscultação da nossa memória de leitores, a constatação, mais sustentada, de Laurence Perrine, A. W. Halsall e T. V. F. Brogan (inNew Princeton Enciclopedia[5], entrada APOSTROPHE), de acordo com a qual “134 dos 154 sonetos de Shakespeare contêm uma a. e que 100 são directamente endereçados a uma senhora ou a um amigo”, vemos que a apóstrofe é muito recorrente[6] e, como nos dizem os exemplos que apresentámos, fortemente ligada à elegia. Assim, a pergunta que se torna fundamental fazer, segundo Culler, sobre a apóstrofe é: “Que papel têm as apóstrofes no poema”. Cremos que, procurar responder, com ele, a esta pergunta, é formularmos a caracterização de um dos aspectos fundamentais que encontramos na poesia de Florbela Espanca e fundamento da sua grandeza poética.
É claro que, em primeiro lugar, deve notar-se que a percentagem de poemas de Florbela que apresentam, de modo evidente, a estrutura da interpelação, ao nível da enunciação, é bastante grande. No Livro das Mágoas, primeira obra que publicou e que constitui a primeira parte da sua obra recolhida em Sonetos, encontramos o claro enunciado apostrófico no primeiro soneto “Este livro”: […] “chorai ao lê-lo” […]; no quarto “Castelã da Tristeza: […] “vês? A quem?” […]; no sétimo “Torre de Névoa”: a resposta dos poetas, como inversão da apóstrofe; no nono, “Dizeres íntimos”, onde o mesmo mecanismo de reversibilidade aparece, tal como o apresentámos acima; no11º, “Neurastenia”: […] ”Chuva…tenho tristeza […]; no 12º,“Pequenina”: […] “És pequenina e ris” […]; no13º, “A Maior Tortura” […] “Sou como tu” […]; no 14º, “A Flor do Sonho”: […] “Ó flor que em mim nasceste” […]; no 15º, “Noite de Saudade”: […] “Porque és assim tão escura” […]; no 16º, “Angústia”: em reversão a pergunta da angústia […] “«O que te resta?…»”; 17º, “Amiga”: […] “Deixa-me ser a tua amiga” […]. Para abreviarmos esta contagem de simples indicação, enumeramos os poemas seguintes do livro em que aparece qualquer destas formas de vocativo, de discurso directo instituindo explicitamente um “tu”: 21º, 22º, 23º, 24º, 25º, 26º, 27º, 30º, 31º, 32º.
Num cômputo final, podemos dizer que 21 poemas com explicitação da apóstrofe, num conjunto de 32, é indicador que nos permite falar com segurança de uma imponente presença de um tal dispositivo de enunciação. E isto sem contarmos os casos em que, nos restantes poemas, a figura aparece disfarçadamente, sob a forma de um desdobramento da personagem poetisa, criando a solidão como o lugar que se defronta com a ausência, onde o outro não surge como ouvinte ou como voz, mas quase como instância transcendente, como se patenteia em “Eu” (3º soneto do livro): “Sou talvez a visão que Alguém sonhou,/ Alguém que veio ao mundo pra me ver/ E que nunca na vida me encontrou !” (p.39).
Este último caso é muito curioso, pois estabelece um horizonte cósmico de vastidão, no qual a afirmação do eu se processa sempre por desajustes de percepção, por desencontros e mesmo por impossibilidade transcendental de o “eu” se constituir, exactamente pela exclusão quase metafísica do “outro”, necessário como presença para formar os contornos do Eu. É claro que, nesta ontologia, existe um extravasar primário dos lamentos do eu, numa espécie de ladainha de adolescente face à “incompreensão do mundo onde nunca é inteiramente reconhecida”. Contudo, o interessante, em Florbela, é a habilidade de remanejar o filão de lugares-comuns estafados do ultra-romantismo, particularmente os bordões frásicos do lirismo declamatório (a que nem um Antero foi inteiramente imune, diga-se de passagem) para os redistribuir numa complexa proclamação do ser como objecto dos “outros”, ou lugar vazio para o grande “Outro” que o/a deveria constituir.
Esta constante tentativa de apresentação do Eu como entidade constituída, tem, no desenvolvimento da toada de ladainha, uma espécie de meta escritural. Em muitos dos seus poemas é óbvia a vontade de deixar patente a forma de um epitáfio, os dizeres necessários e suficientes para instaurar a morte como completude, única forma de o Eu, dissoluto por não ser encontrado, por não encontrar eco, achar forma final onde é despojo como ente, arrojado como uma natureza morta. Lapidares são, forçosamente, os elementos da sua morada. Di-lo por exemplo, em “A Minha Dor”:
“A minha Dor é um convento ideal/ Cheio de claustros, sombras, arcarias,/Aonde a pedra em convulsões sombrias/Tem linhas dum requinte escultural.//Os sinos têm dobres de agonias/Ao gemer, comovidos, o seu mal…/E todos têm sons de funeral/Ao bater horas, no correr dos dias”.
A passagem pelo mundo é, aliás, uma espécie de experiência ritual em que as pessoas, as coisas, os elementos da natureza com quem o eu se cruza, talham a sua forma final, forçosamente, pelo que a sua formulação tem sempre o tom lapidar do epitáfio. Voltamos a encontrar esse modelo expressivo, por exemplo, numa obra sua já de pleno desenvolvimento, O Livro de Soror Saudade. No soneto, “Mistério”, podemos ler: “Gosto de ti, ó chuva, […]./Pelo meu rosto branco, sempre frio,/Fazes passar o lúgubre arrepio…/Das sensações estranhas, dolorosas …/Talvez um dia entenda o teu mistério …/Quando, inerte, na paz do cemitério,/O meu corpo matar a fome às rosas!”
Se, de facto, apostrofar é, como afirma Culler, “desejar um estado de coisas, tentar fazer com que isso aconteça, pedindo aos objectos inanimados que se curvem aos nossos desejos” resultando daí que “a função da apóstrofe seria fazer dos objectos do universo forças que respondem: forças às quais podemos pedir que actuem ou deixem de actuar ou, ainda, que continuem a comportar-se como antes”, então, “o poeta que apostrofa identifica o seu universo com um mundo de forças sensitivas” (2001, p. 154). Ora, vendo bem, essa parece ser a constante construção da poesia de Florbela, como vamos encontrar, já plena maturidade de produção lírica, em “Noitinha”, soneto recolhido em Charneca em Flor:
“A noite sobre nós se debruçou …/ Minha alma ajoelha, põe as mãos e ora!/ O luar, pelas colinas, nesta hora,/ É água dum gomil que se entornou ..// Não sei quem tanta pérola espalhou!/Murmura alguém pelas quebradas fora…/F1ores do campo, humildes, mesmo agora,/ A noite os olhos brandos lhes fechou … //Fumo beijando o colmo dos casais…/Serenidade idílica das fontes,/ E a voz dos rouxinóis nos salgueirais,//Tranquilidade… calma… anoitecer … /Num êxtase, eu escuto pelos montes/ coração das pedras a bater …”
De tal modo é intensa evocação das vozes plangentes, em murmúrio, o tom geral interpelativo sustentado em cada um dos itens, para lá da sua forma superficial de constatação, que todo o soneto parece um sibilino circular de observações de um mundo que maravilha e provoca a exclamação, onde tudo parece expressivo e perceptivo, animais, plantas e próprios “entes” minerais. A dramaticidade, constantemente assumida por Florbela, patenteia-se, aqui, de modo quase retoricamente esplendoroso.
De facto, intensifica-se, neste trecho da sua poética, o apelo à “leitura onde o vocativo da apóstrofe é um mecanismo que a voz poética usa para estabelecer com um objecto uma relação que o ajuda a constituir-se. O objecto é tratado como um sujeito , um eu que implica, por sua vez, um certo tipo de tu. Aquele que invoca, com sucesso, a natureza, é alguém a quem a natureza deve, por sua vez, falar” (Culler, 2001, p. 157).
O universo que o discurso patenteia é aquele onde o poeta já não necessita de utilizar, explicitamente, o vocativo, para ostentar a sua íntima relação com as coisas e comunicar, mesmo com aquelas que, aparentemente, são insensíveis, incapazes de reacções, frémitos ou manifestações de vitalidade. Este poeta, que domina inteiramente a apóstrofe, que visiona a sua própria prostração na morte, vive já na pura intimidade de uma transcendência espiritual, é capaz de sentir as vozes e as palpitações dos próprio minerais, bem como perceber os sinais anímicos que todos o universo emite. A sua constituição como presença poética é tão forte que, habitualmente, é o tu a quem as vozes das pedras, das árvores, das bênção e das inclemências da natureza se dirigem.
Assumimos, em relação a Florbela, o funcionamento da apóstrofe enquanto afirmação da transcendência, por ela ser, em quase todos os momentos, a manifestação do desejo de permanência do poeta, ou mesmo do desejo enquanto afirmação da presença. Como diria Culler, “o poema nega a temporalidade” (200, p. 168) sobretudo pelo uso da apóstrofe ou da função interpelativa: “ A apóstrofe resiste à narrativa porque o seu agora não é um momento na sequência temporal, mas o agora do discurso, da escrita” (Culler, 2001, p. 168).
Citando De Man, ele vem lembrar-nos que “«a ameaça latente que reside na prosopopeia, nomeadamente porque, fazendo os mortos falar, a estrutura simétrica do tropo implica, da mesma maneira, que os vivos emudeçam, petrificados na sua própria morte»” porque a ficção da interpelação, como aquela que surge no epitáfio, “«adquire, desse modo, uma conotação sinistra, que não é apenas a da própria mortalidade, mas, também, a de entramos, nesse momento, no mundo petrificado dos mortos»” (Culler, 2001, p. 169).
Não seria demais sublinhar, com alguns exemplos, como essa reversibilidade está, quase sempre, presente em Florbela. Entre os seus primeiros poemas, poderíamos destacar “Torre de Névoa” onde se lê: “pus-me, comovida, a conversar/Com os poetas mortos, todo o dia.” Mas o tema da reversibilidade do estado de natureza inerte, quando se faz a evocação dos mortos, ou dos entes inanimados, é constante. Lemos, em Charneca em Flor, em “A Um Moribundo”, o consolo que vem, como promessa, da voz de um moribundo evocado. Nesse livro, ainda, a própria natureza inerte, a água da chuva, por exemplo, em “Mistério”, transmite, por contacto, as sugestões da “verdade”: “Pelo meu rosto branco, sempre frio,/ Fazes passar o lúgubre arrepio/ Das sensações estranhas, dolorosas…// Talvez um dia entenda o teu mistério…/Quando, inerte, na paz do cemitério,/ O meu corpo matar a fome às rosas!”.
Como todo o grande poeta, Florbela é, sobretudo, atenta ao ritual de enunciação em que discursa e mima para as fantasmáticas sombras dos destinatários, fantasias dos actos de comunicação e de contacto, representadas, como tal, no enunciado. Mesmo nos elementos do mundo ou imagens do corpo que escolhe, Florbela é, até certo ponto, uma herdeira, mais ou menos consciente, das grandes fontes do romantismo. Podermos pensar, ao ler o enunciado do seu poema, “As Minhas Mãos”, quando afirma, “mãos de enjeitada porque tu me enjeitas…/Tão doces que elas são! Tão a meu gosto!/Pra que as quero eu – Deus! – Pra que as quero eu?!/ Ó minhas mãos, aonde está o Céu?/Aonde estão as linhas do teu rosto ?//”, que, tal como afirma Culler, sobre o provável leitor de “This Living Hand”, de Keats, o receptor do poema da poetisa portuguesa “procurará ignorar a sua morte, será cego ao facto de” ela “estar mort[a]o através de um acto de imaginação” se formos capazes de “aceitar um tempo puramente ficcional no qual podemos acreditar que a[s] mão[s] est[ão]á de facto presente[s] e perpetuamente estendida[s] para nós, através do poema” (2001, p. 171).
Colocando a apóstrofe nesta dimensão discursiva, percebemos que, no fundo, Bakhtine, sem que disso fizesse explícita questão, não fez outra coisa senão teorizar a grande encenação lírica, quando, para quase todos os exegetas, esse era um género menorizado no grande grupo dos discursos monológicos. Nada menos verdadeiro! Percorrendo a apóstrofe e prosopopeia de Florbela, é o poderoso modelo dialógico de Bakhtine que nos ocorre para, mais cabalmente, podermos explorar o sistema enunciativo da poetisa. Como encerramento provisório desta abordagem (que, como se vê, não explora satisfatoriamente o seu objecto, pretendendo ser apenas introdução a um conjunto de problemas por explorar) deixamos expressa essa perspectiva bakhtiniana através da síntese que dela faz um seu exegeta:
“Quando o terceiro participante é puxado para o discurso através da personificação ou da apóstrofe, a segunda pessoa deve ser antiteticamente situada ou seduzida – assim, inscrita – como testemunha ou aliado. […] É interessante que, para Bakhtine, o diálogo é não dialógico […]. Este só pode existir mobilizado pela tentativa de usurpação de uma sempre imaginária posição de primeiro falante pelo Ouvinte (ou Leitor), através da qual aquele (o primeiro falante que, personificando o seu destinatário, apenas pode simular retrospectivamente a posição da primeira pessoa) é representacionalmente como que morto pelo acto de fala, tornando-se, por sua vez, uma terceira pessoa – antes da “sentença” (Cohen, 1998, p.85).
Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora
CHEVALIER, Jean e A. Gheerbrant, 1982, Dictionnaire des symboles, Paris, Laffont
COHEN, Tom, 1998, Ideology and Inscription, Cambridge, University Press
CULLER, Jonathan, 2001, The Pursuit of Signs, Londres, Routledge
FONTANIER, Pierre, 1968, Les figures du discours, Paris, Flammarion
FRYE, Northrop, 1973, Anatomia da Crítica, S. Paulo, Cultrix
GOYET, Francis, 1990, Traités de poétique et de rhétorique de la Renaissance, Paris, Le Livre de Poche
LOPES, Óscar, 1997, F. J. B. Martinho (e outros), Florbela Espanca – A Planície e o Abismo, Lisboa, Vega
SENA, Jorge de, 1988, Estudos de Literatura Portuguesa – II, Lisboa, Edições 70
[1] Citamos sempre os poemas de Florbela segundo a 18ª edição da obra, tal como foi publicada pela Bertrand em 1980.
[2] Apoiamo-nos amplamente no texto das entradas (ELEGIA, APÓSTROFE e outras, correspondentes a conceitos de poética e retórica aqui utilizados) de The New Princton Encyclopedia of Poetry and Poetics, publicado por Alex Preminger e T.V.F. Brogan, Princton Paperbacks, Nova Jérsia, 1993; do Dictionnaire de poétique et de rhétorique, de Henry Morier, PUF, Paris, 1989; do Vocabulaire de la Stylistique de Jean Mazeleyrat e George Molinié, PUF, Paris, 1989; do Dictionnaire de rhétorique, de George Moilinié, Le Livre de Poche, 1992; e do Dictionnaire de poétique de Michélle Aquien, Le Livre de Poche, Paris, 1993. Outras referências serão oportunamente indicadas no corpo do texto.
[6] Não só é recorrente como surge nos maiores poetas, em poemas de elevada importância: “o hipócrita leitor” de Baudelaire, no poema que serve de frontispício a Les fleurs du mal, o destinatário/leitor de Walt Whitman, nas “Inscriptions” com que abre o seu Leaves of Grass, “O my songs”… do poema “Coda” de Pound. Esta enumeração não pretende ser exaustiva: é apenas uma breve amostra de como se apresenta a possibilidade de a apóstrofe ser uma figura, ou melhor, um dispositivo discursivo, que se pode circunscrever como figura da enunciação, ou mecanismo estruturante do modo lírico, o qual enquadra e enforma a estrutura do modo de apresentação da lírica.
Entendemos o mecanismo conspirativo como uma sequência de três momentos: a deliberação de um objectivo – em princípio projecto de alteração de um estado de coisas, resultante das aspirações que visam atingir um indivíduo ou um colectivo; a afirmação do empenho em modelos de juramento ou conjuração, o que nos leva para dimensão ilocutória do performativo, sob a forma de injunção; e a acção conspirativa propriamente dita, em que se passa do falar ao fazer.
A dimensão epistemológica de um tal modelo merece ser evidenciada na medida em que é ela, aparentemente, que torna esse tipo de intriga tão apetecido pelos seres humanos, seja qual for a sua idade ou religião, sejam quais forem as suas identificações étnicas ou sexuais, independentemente dos seus princípios éticos, filosóficos ou ideológicos. Segundo o modelo conspirativo, os nossos desejos e crenças, emocionalmente geradas, tornam-se racionalmente explicáveis.
Alexandre Dumas (1802-1870)
Na perspectiva de Falzon, subjaz uma certa apetência de tranquilidade e conforto, generalizados, a “uma visão do mundo que é confirmada”, através da fabulação conspirativa, “por todas as coisas que encontramos”, sendo também essa visão a “que pode explicar eficazmente todas as inconsistências com que nos deparamos[…]” (2002: 202). Segundo o mesmo filósofo, ainda, esse raciocínio completa-se, fechando-se, como um delírio paranóico:
“[…] Este é o erro em que é típico caírem os teóricos da conspiração. Para eles, tudo é parte da grande conspiração. Se não há provas de que existe a conspiração, ou pelo menos não se manifestam em quantidade suficiente, é óbvio que foram sonegadas para ocultar o que se está a passar. Se alguém critica o teórico da conspiração, esse alguém passa a fazer parte da conspiração” (Falzon, 2002:202)
Este modelo de raciocínio, a que os lógicos chamam “falácia da irrefutável hipótese”, também é conhecido pelo nome de “falácia da invencível ignorância”. Esta formulação, que opera segundo as exigências formais mais ostensivas do enunciado lógico, sobretudo o silogístico, é a matriz de quase todas as sentenças ou discursos assentes na crença ou mesmo na fé. De facto, como nota ainda Falzon, uma tal maneira de estruturar o discurso “envolve uma patente recusa” , por parte daquele que argumenta segundo esses princípios, “de ter em consideração provas que são contrárias à crença a que se entrega” (2002: 202).
O estatuto dado ao inimigo, segundo uma perspectiva conspiratória, assenta, frequentemente, numa teia de acusações de comportamentos “diabólicos”, ora hiperbólicos, ora ficcionais. A organização do inimigo assim “identificado” assume, quase sempre, a imagem de uma “conspiração” contra as instituições e os cidadãos dos países, dos grupos ou das organizações que desenvolvem o libelo acusatório. É difícil, por isso, não elaborar uma atitude conspiratória quando se delineia a conspiração que é atribuída aos outros (desenvolvendo, em relação a eles, uma definição da alteridade apoiadas nas formas mais ou menos míticas ou mesmo fantasmáticas do “OUTRO”).
No entanto, há uma dimensão neste vício lógico, presente também nos exemplos que extraímos da realidade política, que nos parece positivamente estruturante da construção ficcional, apesar de se organizar, enquanto mecanismo lógico, como “sistema fechado, dogmático e irrefutável, dentro do qual tudo o que encontramos parece confirmar as nossas crenças” (Falzon, 2002: 202). Essa dimensão de que falamos é muito parecida com a famosa “suspensão da descrença”, afirmada por Coleridge na sua Biographia Literária, que institui o pacto ficcional através do qual representamos um universo no qual projectamos desejos, medos, anseios e paixões.
Este processo, em que os lógicos vêem uma interpretação dos factos e das hipóteses, encaminhados, ou mesmo distorcidos, para fortalecer uma visão afectiva ou emocionalmente empenhada, é constante na ficcionalização. Pode ser pernicioso se o usamos para defender um objectivo político, camuflando motivações partidárias; mas pode ter uma função de emprego dialogicamente dinâmico do verosímil, caso o façamos evoluir como uma narrativa literária, teatral ou cinematográfica, de prioritários princípios poéticos, ou mesmo lúdicos.
Viria a propósito lembrar, em reforço da perspectiva que aqui apresentamos, o que nos diz Umberto Eco sobre a questão da presença dos códigos fortes, na construção da hipótese científica, e dos códigos fracos, na construção do verosímil. Entende-se, sobre este último termo, que ele fornece uma perspectiva das coisas, das ocorrências e das causas, enfatizando “as ligações” que “se fundam prioritariamente sobre as convenções e as opiniões estabelecidas” (1988: 49). A atracção que muitas obras narrativas exercem sobre os públicos que fidelizam, tem origem nesse mecanismo retórico de base. Os “thrillers teológicos” como o Da Vinci Code (que citamos, como exemplo privilegiado de fábula ou história – no sentido que lhes davam os formalistas russos e os narratólogos estruturalistas – por economia de exposição, quer na versão literária de Dan Brown, quer na cinematográfica de Ron Howard) assentam o seu êxito no facto de neles aparecer a “mitologia das sociedades secretas e o imaginário do complot,” que “desta forma continuam a manifestar-se materiais simbólicos privilegiados do romanesco popular” (Taguieff, 2005:54).
Relembramos, no entanto, que essa mitologia satisfaz (ou procura satisfazer, pelo menos) uma necessidade básica de busca de compreensão ou de certeza. Com algumas reservas, poderíamos chamar-lhe dimensão epistemológica, uma vez que essas narrativas fornecem “explicações” para enigmas que são fonte de preocupação para o indivíduo e para a comunidade em que se inscreve.
O que permanece como enigma teológico e institucional, na narrativa de Brown, é a justificação para existência e actuação das forças que se pretenderiam contra-conspiratórias, ainda que se apresentem elas própria como sociedades ou grupos tão enigmáticos e misteriosos como as práticas conspirativas que supostamente combatem: o “Priorado do Sião”, os “Templários” e outros agentes similares são entidades quase secretas, ou com amplos conjuntos de actuações pouco explicáveis, que se presume combaterem as actuações conspirativas da Igreja de Roma.
E isso acontece, por exemplo, porque, mesmo nos países católicos, sendo difícil explicar a ausência de figuras femininas nas hierarquias eclesiásticas, faz todo o sentido entender os motivos e as acções que instituíram tal limitação, segundo uma teoria da conspiração. E isso pode ser entendido assim se aceitarmos que “os acontecimentos históricos que são percebidos como opacos ou absurdos poderiam ser explicáveis por um ou vários complots e, em última análise, serem atribuídos a intenções e acções humanas” (Taguieff, 2005: 19) que visam concertar-se a favor dos interesses de um grupo, em detrimento, mesmo gravoso, de outro grupo considerado adverso.
Assim, a teoria da conspiração assegura uma espécie de encenação, a que poderíamos chamar complot, designando, desse modo, o esquema de disposição do conteúdo narrativo, ou de organização dafábula. A partir do nível estrutural em que nos achamos primordialmente, o da matéria controversa, dá-se a transformação operada pelo acto de dramatização poética que, manipulando a matéria do conteúdo, produz o mecanismo da intriga, ou narrativa, aquele em que pesa, sobretudo, o entretecer das acções e dos percursos ou objectivos contraditório que são contados. É a esse nível que a narrativa explica, ou procura tornar inteligível o mundo, numa estrutura dramática, embora sem descurar o seu desenvolvimento segundo um discurso em que muito contam os aspectos apelativos da composição poética textual criada pela voz épica ou pela perspectiva dominante.
Ao “explicar” e “unir” e conjuntos de eventos e aspectos historicamente reais que se revelam paradoxais, absurdos ou enigmáticos, a narrativa assume os foros e funcionalidade do mito, entendendo este no seu sentido canónico mais amplo. A definição que Lévi-Strauss nos oferece, na sua obra O olhar distanciado, poderia ajudar-nos a compreender melhor a função epistemológica que este género de narrativas proporciona: “O mito jamais oferece àqueles que o escutam uma significação determinada. O mito limita-se a propor uma grelha que se define pelas regras da construção” (1986: 210).
O mito oferece, com essa sua grelha, qualquer coisa semelhante àquilo que, segundo Umberto Eco, o discurso dos filósofos da linguagem, desde a Antiguidade Clássica, tem tratado como “signo fraco”, ou seja, aquele que, quando indicia o que se concebe como causa, não remete necessariamente para a determinação dos “efeitos possíveis (prognóstico)” ou, inversamente, aquele que, sendo percebido como efeito, não é necessário que tenha origem numa causa presumida (diagnóstico – cf. Eco, 1988: 48).
Eco faz ainda um reparo sobre a matéria em questão que nos perece de extrema importância para compreendermos a “lógica” do mito e, mais explicitamente, para o entendimento da narrativa empolgante, que explora a possibilidade complotista: “se o analisarmos mais atentamente, verificamos que mesmo este signo fraco [o de causa suficiente, não necessária] não está desprovido de uma certa «necessidade», apenas com a diferença que remete não para uma causa, mas para uma classe de causas” (p. 48). Passamos da certeza epistemológica, segundo as exigências científicas, para uma exigência de explicação que alimenta o mito e que poderíamos formular, hipoteticamente, da seguinte maneira: “Sabemos que tem de existir uma causa, e a nossa hipótese é…” ou “Alguém causou uma morte, ou praticou um acto reprovável e, pelos indícios de que dispomos, esse alguém, SÃO ELES”.
Tal designação, assim, amplificada e indeterminada, é o eixo central da teoria da conspiração, pois o conteúdo designado por “ELES”, a “causa do mal”, é o conjunto de pessoas, o grupo, a facção ou etnia que, de acordo com aquilo em que a opinião colectiva acredita, diz que é, uma vez que “a um nível retórico as relações de causa efeito se fundam, quase sempre, em convenções estabelecidas […] dependendo isso apenas dos códigos e guiões que essa comunidade regista como bons” (Eco, 1988: 49).
Já se vê que o mito funciona numa dimensão a que poderíamos chamar a da suposição de causas (“o que vem antes é causa do que vem depois” – cf. Barthes,1966:10) e das necessidades explicativas (para explicar tal fenómeno, o mais provável é ter-se verificado determinado antecedente). É pelo facto de, como diz Eco, “no plano semiótico as condições de necessidade de um signo” serem “fixadas socialmente, ora de acordo com códigos fracos, ora segundo códigos fortes”, que “um acontecimento se pode tornar um signo seguro, mesmo que cientificamente não o seja” (1988: 49). Vai um passo, epistemologicamente quase insignificante, desta construção retórica da verdade à outra, do mito, de que nos fala Lévi-Strauss, uma vez que todas as concessões à exigência epistemológica, em sentido lógico-científico forte, para compreender os factos e os eventos, já foram feitas antes:
“Um mito propõe uma grelha, somente definível pelas suas regras de construção. Para os participante numa cultura a que respeite o mito, esta grelha confere um sentido não ao próprio mito mas a tudo resto: ou seja, às imagens do Mundo, da sociedade e da sua história, das quais os membros do grupo têm mais ou menos claramente consciência, bem como das interrogações que lhes lançam esses diversos objectos. Em geral, esses dados esparsos falham quando tentam unir-se e, na maior parte das vezes, acabam por se contrapor. A matriz da inteligibilidade fornecida pelo mito permite articulá-los num todo coerente. Diga-se de passagem que este papel atribuído ao mito assemelha-se àquele que Baudelaire parece atribuir à música” (Lévi-Strauss, 1986: 210).
De facto, as narrativas de grande acolhimento popular, que encontram uma audiência de culto entre as massas, sobretudo pelas mensagens hipotéticas ou conjecturais que introduzem, fazem apelo a essa vontade de explicação, de compreensão “epistemologicamente acomodatícia” que parecem convocar. Assim, para o cidadão que se preocupa com o sentido da política mundial, sem ter conhecimento dos seus fundamentos, nem meios de acesso a fontes informativas para isso, a visão conspiracionista tende a tornar-se uma teoria que poderá fornecer um sentido holístico escondido o qual, por sua vez, explicaria o desconcerto observado.
O que se torna narrativamente produtivo é o facto de os detectores de complots buscarem um saber esotérico que, por sua vez, parece sustentar-se num mecanismo de iniciação, embora possa suscitar reservas a quem busque um percurso científico de compreensão dos fenómenos. Tal saber secreto, salvo raras excepções, teria sido desenvolvido, segundo as narrativas explicativas, por um grupo de conjurados, afirmados, muitas vezes, como conspiradores contra as instituições dominantes.
Procurando decifrar as aparências para conhecer a verdade oculta do poder, os esotéricos conspiram para aceder ao segredo, pois o culto do segredo, quer procuremos guardá-lo, quer desejemos descobri-lo, é o que une a conspiração do poder à conspiração dos gnósticos,ou investigadores esotéricos, que parecem contestar o poder por ele ser conspirativo. Uma tal compreensão do mundo, por assentar numa explicação cujo mecanismo de base é a confusão lógica entre a anterioridade e a causalidade (post hoc, ergo propter hoc – tal como argumentava Barthes, no texto da revista Communications que acima refertimos) por ser a lógica da ficcionalidade, não pode ser cientificamente satisfatória para estabelecer uma imagem credível do mundo em que vivemos. No entanto, ela estrutura-se enquanto lógica do verosímil. Se não configura uma possibilidade satisfatória no campo da episteme, compete com esta nos campos do possível em direcção a uma apetecida aletheia.[i]
Remo Ceserani, logo no início do seu estudo, “L’immaginazione cospiratoria”, publicado em 2003, afirma que é possível distinguir “três fases na longa história da imaginação conspiratória, correspondentes a três diversos tipos de organizações sociais e a três formas históricas diferentes de conspiração e das suas significações e significados” (in Synapsis, 2003: 7).
Esta perspectiva histórica é muito interessante, para o nosso ponto de vista, por duas razões: por um lado, estabelece, a partir de bases de investigação que não são as que desenvolveremos aqui, uma periodização que nos será muito útil para contextualizarmos tão coerentemente quanto nos é possível, o corpus e as concepções que, sumariamente, analisaremos adiante; por outro lado, reforça a nossa concepção de que a conspiração, além de ser forma histórica de actuação, cuja periodização pode ser determinável, apresenta-se como imaginação conspiratória, segundo os termos de uma poética da argumentação e da persuasão, independentemente de qualquer condicionante histórica.
Relativamente à primeira razão que apresentámos, é importante explicitar sua opinião quanto às fases e formas correspondentes, uma vez que nos propomos fazer uma breve abordagem da forma específica segundo a qual a conspiração foi posta em cena pelos escritores da época do Romantismo, no teatro e no romance. Em palavras do estudioso italiano, a “primeira é a dos regimes monárquicos legitimados pela tradição e pelo consenso” sobre os quais pesa a “estrutura familiar e restrita” que detém o poder; a segunda forma (correspondente a nova fase) é a da conspiração que nasce “dentro das sociedades mais modernas, nos tempos de transformação e democratização dos regimes políticos autoritários,” correspondente à expressão de grupos de oposição forçados à clandestinidade, pelos métodos policiais, e a contrapor reivindicações de liberdade contra os tiranos;” sendo a terceira, que ele designa por “pós-moderna e paranóica,” a das conjuras “temidas, reais, hipotéticas, sobredeterminadas, manifestações de grupos secretos e misteriosos, os quais presumimos obedecerem à lógica do puro poder” e que admitimos manterem relações pouco claras com “agências internacionais, associações secretas injustificáveis em regimes democráticos e até a serviços irregulares,” ou ainda “com grandes corporações económicas e financeiras” além de poderem manipular episodicamente “grupos de terroristas esquivos a qualquer controlo ou coerência ideológicas” (Ceserani, in Synapsis, 2003: 7). É evidente que os românticos, com Dumas pai à cabeça, em nosso entender, cabem inteiramente dentro da segunda época.
Acrescentemos ainda, para melhor compreensão desta perspectiva diacrónica, que, embora esteja presente em textos tão antigos como os do Velho Testamento (que Ceserani comenta no seu artigo), a formulação integral da atitude conspirativa parece ter nascido na europa do século XVIII, quer nos relatos que narram eventos mais ou menos verídicos, assumindo-se como crónicas, quer nos fantasiosos, que são entendidos como lendas ou mesmo ficções. As palavras liminares de Taguieffe, no exaustivo estudo que dedicou à questão da conspiração, devem ser aqui evocadas na íntegra:
“Na nova cultura de massas, um olhar exercitado discerne, com facilidade mas, ao mesmo tempo, com espanto, a presença de motivos que, até aos anos 70 do século passado, eram apanágio de uma extrema direita alimentada pelo grande mito político fabricado pelos escritores contra-revolucionários dos finais do século XVIII: o complot internacional dirigido contra a civilização cristã. Um complot maçónico e, depois, judeu-maçónico, do qual a lenda dos «Iluminados da Baviera (ordem historicamente fundada por Adam Weishaupt a 1 de Maio de 1776), generalizadamente designada como a dos «Iluminati», nunca deixou de ser uma da principais componentes. O «compolot dos Iluminati», empreendimento subversivo visando a instauração de um «Governo mundial único» é frequentemente denunciado desde a época da Revolução francesa” (2005: 13).
Entrosa-se com ela a perspectiva que o romance gótico (ou romance negro [roman noir] ou, por vezes, literatura ultra-romanesca, no dizer de André Breton no seu Les vases comunicants (1955: 134 – cf. Brun, 1982: 12) desenvolve nos seus enredos, pouco tempo depois, um pouco por toda a Europa de finais do século XVIII e princípios do século XIX (género contemporâneo do pietismo intimista e dos primeiros textos reconhecidos como românticos[ii]), que Annie le Brun afirma ser, em geral, “no que diz respeito à intriga”, o relato de como “uma jovem rapariga inocente e pura se encontra abandonada nas estradas pelos acasos da vida” o que dá “pretexto a uma formidável viagem ao país das infelicidades”, mecanismo narrativo que fornece ao leitor, segundo a mesma autora, a possibilidade de “conservar a recordação de um espaço de incerteza e de obscuridade, obsidiante como um pedaço de trevas arrancado à noite de que somos feitos” (Brun 1982: 11).
No limite, esse mecanismo fabulatório revela-se o autêntico modelo do próprio complot, ao “pôr em cena esse momento escandaloso em que o homem, que julgava ter conseguido os meios de se tornar sujeito, estaca, subitamente, face à evidência da sua condição de objecto, arrebatado pelo mesmo terror que qualquer ser tem face ao aspecto definitivo do cadáver” (Brun, 1982:). Não é por acaso, portanto, que paralelamente a toda a lógica do discurso revolucionário, a narrativa gótica (ou o roman noir) se sustenha como o grande modelo narrativo preferido do público em geral, de modo ingénuo, secreta e perversamente nalgumas escolhas dos grupos mais sofisticados, e de modo complexo, entre o público mais “esclarecido”, por “revelar”, sob os modelos do pesadelo, o mecanismo de tudo quanto parece secreto e obscuro: o poder, os valores e mesmo vida.
A própria História, enquanto relato dos factos marcantes de uma comunidade, ao humanizar-se e perder o seu escoramento nos desígnios engendrados pelo ser supremo, passa a ser objecto da controvérsia e das sucessivas leituras que dela fazem os seus narradores, que produzem uma “verdade” tranquilizadora” pelo encadear de actos sucessivos que parecem satisfazer uma lógica da pura acção.
Alexandre Dumas é um dos autores que mais eco faz dessa visão mítica dos factos que, desde então, começa a ganhar verdadeiros foros de uma teoria da conspiração. A sua visão da queda do “antigo regime”, em França, é reiteradamente formulada em termos de uma acção conspirativa. Essa perspectiva alimenta quase tudo quanto escreveu, quer se trate de narrativa ficcionais, quer resulte de um olhar de historiador para os eventos do dealbar da república. Sirva-nos de exemplo deste último tipo de actividade de escrita, o seu texto muito breve, apresentado como um relato resultante de uma investigação histórica, praticada no terreno dos eventos, intitulado La route de Varennes.
Aí, acompanhando, através de observações, nos locais, e inquéritos e entrevistas às populações das diversas localidades em que o Luís XVI e sua família fizeram paragens, quando se encontravam em fuga pela estrada referida em título, Dumas põe em xeque as teses realistas (que eram aceites como verdades mesmo pelos historiadores simpatizantes da república), segundo as quais o rei teria sido apanhado e conduzido às “autoridades” revolucionárias por indivíduos vingativos e marginais.
A sua contra-leitura é um verdadeiro modelo de argumentação segundo o processo de desmontagem de uma narrativa conspirativa (tendo como agentes – imaginários, segundo a sua investigação – “revolucionários” populares, de aparência ameaçadora), e construindo, provada a inconsistência desta, uma outra hipótese conspirativa, baseada no relatos e no cotejo dos documentos, segundo a qual teriam sido os monárquicos constitucionalistas os autores da detenção do rei, forjando um complot que, pelo que sugere Dumas, atacaria o legitimismo, ao promover a prisão do rei, desacreditando, ao mesmo tempo, os republicanos, expondo-os como autores de um processo que levou ao regicídio.
Relativamente à ficção, o dispositivo fabulatório da conspiração ganha foros de núcleo temático dominante do romanesco de Dumas, desenvolvendo-se, a partir dele, uma forte tendência para a construção persistente da intriga segundo o preceito da enfase na actuação dos conjurados, de que Joseph Balsamo é apenas uma, ainda que a mais forte, das encarnações. É a hegemonia desse enredo que engendra os cenários escolhidos privilegiadamente, a selecção das intrigas que recolhe dos dizeres e da opinião pública da época, bem como as que inventa, por prodígio da sua imaginação, com base na visão do mundo a que dá ênfase, segundo a qual os eventos de importância colectiva seriam devidos a intervenções de seres excepcionais, indivíduos extraordinários, capazes de controlarem as forças misteriosas do cosmos que fariam actuar para determinarem a ordem dos grandes eventos históricos, nomeadamente as revoluções.
Só para exemplo do modo como é encenado, espectacularmente, o acto de adesão de Joseph Balsamo à conjuração secreta, apresentamos três aspectos iniciais do modelo de ajuramentação: a assembleia dos dirigentes, o interrogatório, e as palavras de voto do iniciado. Fica apresentado um tipo altamente ritualizado de sociedade secreta, com vontade de intervenção política, cujos traços gerais caricaturam um modelo que poderia corresponder à divulgação massificada que se tem feito de algumas organizações ou ordens, desde a Maçonaria até aos Illuminati, passando pela mais controversa organização de cavalaria “empenhada”, a dos Templários.
No relato, é dada uma representação do ritual de adesão que poderia caber a qualquer das irmandades que, a partir do século XVIII, têm alimentado o imaginário complotista, ou os discursos mais retrógrados que se têm feito contra a revolução:
“Sept sièges étaient placés en avant du premier degré; sur ces sièges étaient assis six fantômes qui paraissaient des chefs; un de ces sièges était vide.
Celui qui était assis sur le siège du milieu se leva. […]
Puis se retournant vers le’ voyageur.
– Que désires-tu? Lui demanda-t-il.
– Voir la lumière, répondit celui-ci.
– […] Ne crains-tu pas de t’y engager?
– Je ne crains rien. […]
– Que demandes-tu, lui dit le président.
– Trois choses, répondit le récipiendaire.
– Lesquelles?
– La main de fer, le glaive de feu, les balances de diamant.
– Pourquoi désires- tu la main de fer?
– Pour étouffer la tyrannie.
– Pourquoi désires-tu le glaive de feu
– Pour chasser l’impur de la terre.
– Pourquoi désires-tu, les balances de diamant?
– Pour peser les destins de l’humanité” (s/d: 11-13).
Retemos, pela sua importância de componentes morfológicas de uma forma narrativa, os traços que Ceserani extrai da narrativa bíblica que analisa. Na sua opinião, o autor da história, inspirado pelos relatos constantes nos documentos de base, terá sido levado a tratar “os acontecimentos trágicos” como encenações dos “temas da lealdade, da traição, da intriga e do engano, enquanto estratagemas postos em acção”, não tanto inspirado por motivações políticas e partidárias, “mas pelo sentido artístico da potencialidade de uma trama dramática ou narrativa” (Ceserani, in Synapsis, 2003: 10).
Esses traços, categorias marcantes da construção da intriga, poderiam ser, igualmente, atribuíveis aos que predominam nas fabulações históricas dos relacionamentos, confrontos e manipulações cortesãs de Alexandre Dumas, cujos tópicos e dinâmicas actanciais acabam por ser o que domina, quase avassaladoramente, a sua obra. Dado o âmbito deste nosso trabalho, referiremos apenas pequenos exemplos que consideramos privilegiados.
O primeiro que nos merece destaque é a actuação de Joseph Balsamo, no princípio do romance que tem por título o nome da personagem – quase sempre publicado em vários tomos, ele próprio integrado num conjunto de romances que abordam o fim do antigo regime em França, numa série romanesca intitulada Mémoires d´un médecin – do qual, acima, demos um exemplo. Logo após as primeiras cenas, em que Joseph Balsamo é consagrado membro da ordem (que nunca é nomeada exactamente mas que reproduz, embora com bastante liberdade espectacular, os ritos de iniciação maçónicos, como transparece no exemplo que acima apresentámos), a narrativa apresenta-nos a personagem em viagem, atravessando uma região montanhosa de França, numa carruagem de amplas e complexas dimensões, uma espécie de habitação rolante no interior da qual o protagonista e um velho sábio manipulam enigmáticos frascos, fazem funcionar um forno alquímico no qual se prepara uma misteriosa transformação. À volta da carruagem desencadeia-se uma tempestade cujos aspectos e efeitos lembram uma inesperada e incontrolável fúria do Cosmos, resultando dela que um dos cavalos é morto e os viajantes têm de parar.
A descrição do acontecimento, embora obedeça aos princípios elementares do que é comum na visualização literária dos fenómenos da natureza, não tira qualquer consequência do facto de ela estar a ser observada, sentida, percebida e mesmo avaliada por dois seres de supremo saber. Os fogos celestes surgem como uma pirotecnia surpreendente de efeitos luminosos e a água torna-se numa ameaça que inunda o terreno. Para o velho alquimista a chuva apenas se manifesta como algo negativo por ameaçar apagar o fogo do forno onde se está a dar a grande transformação, pelo facto de a casa rolante não ter a chaminé devidamente coberta.
No entanto, quando, como que por acaso, o alquimista se dá conta da trovoada, é com a maior naturalidade que ele explica a Balsamo que é inteiramente possível domar as descargas eléctricas e fazê-las funcionar em proveito da técnica laboratorial. É tudo uma questão de tempo e de oportunidade. Os segredos de tal arte, porém, não são enunciados senão pela breve explicação de que “a chama eléctrica” pode “descer até ao forno”, por um sistema de “pontas” suportadas por um “papagaio artificial”. Dessa explicação, o genial discípulo, Balsamo, detentor de imensas sabedorias, não percebe nada (cf.Dumas, s/d: 46-47;vol.I).
O quadro que aqui se nos desenha é, até certo ponto, o de uma relação do homem com o Cosmos, com aquilo que poderíamos designar até, mais funcionalmente, como macrocosmo, manifestando-se tal relação, através de um sábio. No entanto, o processo surge como uma demonstração de que o desenvolvimento do saber é eticamente negativo.
De facto, o conhecimento contido pelas duas personagens, assente sobretudo numa espécie de manipulação de fórmulas tendentes a construir a transgressão, a arquitectar uma conspiração que altere um conjunto de elementos estruturadores da potência (essencialmente a política – o antigo regime é visto como uma determinada ordem emanada da transcendência, vigorando no universo imanente do perecível), não se move para lá de um quadro ou espaço fechado: o das fórmulas dos livros e dos instrumentos sagrados e/ou proibidos.
Tal saber encerrado, feito e dominado de uma vez para sempre, parece nada poder acrescentar à visão poética, ficcional ou mesmo cientificamente informada, do macrocosmo. Todo o conhecimento acerca deste permite apenas domínios parciais que podem ou não ser usados para perturbar a ordem humana estabelecida.
Dentro deste quadro epistemológico, o saber do sábio (o alquimista, o mação) é sempre um movimento perverso, surgindo no discurso como eticamente negativo. Dado que é indevido no interior do sagrado, torna-se uma actuação de sacrilégio ou de violação. O desenvolvimento da narrativa de Dumas vai revelar-nos que assim é. Quanto ao romancista, na construção das perspectivas que assume como narrador, nunca atribui ao saber das ciências quaisquer perspectivas complementares que lhe permitam desenvolver ou desenhar um quadro do Cosmos que ultrapasse a observação, razoavelmente empírica, das aparências. Tudo está feito pelo grande arquitecto, é ele que assegura a coerência do Cosmos e das suas manifestações.
Por isso, ao sábio compete-lhe aprender as fórmulas da manipulação, mas não o sentido dos fenómenos, que está estabelecido de uma vez por todas. A alquimia (em sentido lato e algo metafórico que lhe dão os traços quase caricaturais com que se busca a tipificação) não anda, neste caso, muito longe da teologia. O conhecimento da incomensurabilidade da transcendência visa, sobretudo, assegurar o terror e a piedade na acção ritual.
Aliás, na poética de Dumas, mesmo a descrição elementar de quadros do mundo, sobretudo da natureza, são, comparando-os com os diálogos e as narrações de acções, por exemplo, raros. Isso, possivelmente, porque a interrogação dos mesmos, da razão de ser das suas origens (as fontes, as causas – mas também, complementar e simetricamente, as interacções e consequências), não era material que interessasse a uma tal visão do mundo[iii].
O homem de Dumas não age sobre o universo natural, nem é por ele transformado. Move-se no seu interior sem um saber científico. Quando o saber emerge, apresenta-se como uma perversão face ao sagrado, uma acção de feitiçaria. De um modo geral, as relações são mais entre as personagens e os entes mágicos ou as suas manifestações intencionais, no que respeita ao Cosmos (um ente supremo desencadeia uma catástrofe, por exemplo), do que entre as personagens e os fenómenos da natureza.
Les Mohicans de Paris (1854-1859), outra obra que não podemos esquecer no que se refere à problemática do complot, pode ser considerada um dos exemplares mais acabados de narrativa conspiracionista que foram escritos até hoje. Todo o universo de Paris é encarado como palco de maquinações que têm a ver com o poder central, com as instituições sociais dele dependentes, mas também com as afrontas familiares, os desentendimentos e segredos no interior dos grupos relacionados por parentesco ou, ainda, nas relações existentes entre companheiros de boémia e amigos.
Várias organizações são convocadas no horizonte da intriga: os maçónicos, os carbonários e as quadrilhas de marginais (de “moicanos”, no fundo) que se aliam ou confrontam ao longo da imensa narrativa de cerca de três mil páginas. Seria justo dizermos que, se pretendêssemos classificar genologicamente este romance, segundo o seu traço temático dominante, a designação apropriada poderia mesmo ser a conspiração romântica.
De facto, ao lado do termo la bohème, proveniente da narrativa contemporânea de Henri Murger (o título do romance é: Scénes da la vie de bohème – 1851), a designação que usa Dumas, les mohicans, torna-se uma das insígnias mais popularizadas, para referir o universo mítico da vida marginal da Paris oitocentista, com os seus mistérios e os seus grupos, cuja tipificação por ele realizada tornou lendários. De facto, no título escolhido pelo autor de Le Comte de Monte Cristo[iv], ressoa, francamente, a dimensão mítica da marginalidade, que foi desenvolvida, também com estrondoso sucesso editorial, por Eugène Sue, no seu Mystères de Paris, e as não menos célebres insígnias épicas, da luta pela liberdade, presentes nos romances de James Fenimor Cooper, The Last of the Mohicans.
Do universo romanesco legendário de Paris oitocentista, até ao advento de Les Mohicans de Paris, faziam parte integral, junto às camadas populares atingidas pela miséria com maior intensidade (a legião de desempregados, de diminuídos físicos, de enjeitados, de pequenos proprietários e camponeses empobrecidos pelas catástrofes naturais e sociais), os grupos mais restritos da boémia, cujos membros, de origem burguesa e mesmo aristocrática, se diluíam na marginalidade, na defesa da actividade artística, desenquadrada das exigências de produtividade e submissão propugnadas pelas classes hegemónicas: a grande burguesia e a aristocracia. Neste último romance, o mais longo que escreveu, a esse submundo vem acrescentar-se a componente política.
Desse modo, muitos dos grupos que acima enumerámos passam a integrar-se na comunidade segundo uma orgânica politizada, começando algumas das personagens a ser reconhecidas não pelas características de grupo ou de classe de onde são originárias, mas pelo fazer em que se empenham afincadamente: a agitação política. Da importância dessa componente, apresentamos, em seguida, um exemplo.
“Bonapartistes, orléanistes, républicains, se trouvaient donc confondus, et, si M. Jackal avait eu les cent yeux d’Argus, il eût vu, sans doute, rayonner au fond des catacombes, dans quelque angle opposé à celui des bonapartistes, les torches des orléanistes et des républicains.
Chaque vente particulière, comme nous l’avons dit, avait un député.
C’était ce député, délégué par elle, qui formait la vente centrale.
La vente centrale, de même que la vente particulière, se composait de vingt membres, lesquels membres n’étaient autres que les vingt députés élus par vingt ventes particulières.
La vente centrale était organisée comme la vente particulière: à son tour, elle élisait un président, un censeur et un député.
Le député de cette vente était délégué près de la haute vente, laquelle se composait de toutes les notabilités militaires et parlementaires de l’époque.
Elle ne formait pas de réunion, et le député de la vente centrale n’était jamais ûélégué qu’auprès d’un de ses membres.
Aussi les affiliés eux-mêmes ne savaient-ils à peu près aucun des noms des membres de la vente suprême, et à peine, aujourd’hui, est-on certain d’en connaître la moitié.
Les principaux étaient : la Fayette, Voyer-d’Argenson, Laffitte, Manuel, Buonarotti, Dupont (de l’Eure), de Schonen, Mérilhou, Barthe, Teste, Baptiste Rouen, Boinvilliers, les deux Scheffer, Bazard, Cauchois- Lemaire, de Corcelles, Jacques Kɶchlin, etc. etc.
Finissons en répétant que les éléments dont se composait le carbonarisme étaient loin d’appartenir aux mêmes doctrines politiques, et que bourgeois, étudiants, artistes, militaires, avocats, quoique marchant dans des voies différentes, étaient dirigés par la même cause, c’est-à-dire par une haine ardente contre les Bourbons de la branche aînée.
Au reste, nous tâcherons de les montrer à l’ɶvre.
Et maintenant que nos lecteurs savent aussi bien que M. Jackal que l’orateur vient d’être délégué à la vente centrale comme député, reprenons notre récit.
Après le départ du député, ce fut un brouhaha effroyable; chacun des membres voulut parler sans attendre son tour; les uns, cherchant à se faire entendre, poussaient de cris féroces; les autres agitaient leurs torches comme si elles eussent été des sabres et des épées; enfin, ce fut une confusion terrible, el les rayons des torches agitées, en se dirigeant en mille sens divers, devinrent l’image des pensées confuses et divergentes de tous les membres de cette mystérieuse assemblée” (Dumas, 1998 : 1041-1042 – 1º vol).
Seríamos tentados a ver, nesta assembleia, o predomínio daquela figura, que, segundo Benjamim se tornou típica da sociedade europeia oitocentista, quando estava em causa o fazer política: o conspirador profissional. Esta figura, que Benjamin delineia a partir de Marx, parece encher o imaginário da época e prestar-se a equívocos que misturam os traços das agitações sociais que, de facto, marcaram a França, intensamente, com os enigmáticos rostos que a ficção deu às figuras da marginalidade (“miseráveis”, “moicanos”, boémios), em vários momentos marcantes da vida política daquele país, durante o século XIX, desde a Revolução republicana até à Comuna, passando pelas profundas agitações em torno de episódios contra-revolucionários, como o da Restauração, e golpes de estado, como o de Luís Bonaparte. As palavras de Marx, sobre as categorias a que temos vindo a fazer referência são muito elucidativas:
“Com o incremento das conspirações proletárias surgiu a necessidade de divisão do trabalho; os seus membros dividiram-se em conspiradores de ocasião (conspirateurs d’occasion), isto é, operários que se dedicavam à conspiração apenas como actividade paralela às suas outras ocupações, que só frequentavam os encontros para poderem ficar disponíveis para comparecer nos lugares de reunião a um apelo dos chefes, e conspiradores profissionais, que se dedicavam exclusivamente à conspiração e dela viviam … As condições de vida desta classe determinam desde logo todo o seu carácter… A sua existência periclitante, a cada momento mais dependente do acaso do que da sua actividade, as suas vidas desregradas, cujos únicos pontos de referência estáveis eram as tabernas – pontos de encontro dos conspiradores –, as suas inevitáveis relações com toda a espécie de gente duvidosa, situam-nos naquela esfera de vida que em Paris dá pelo nome de bohème” (in Benjamin, 2006: 13).
A narrativa romântica da época, quer a francesa, mais presa à actualidade da Revolução, quer a inglesa, preferencialmente presa ao gosto da evocação histórica, fixou-se de tal modo no modelo conspiracionista que, de entre a multiplicidade de temas e dispositivos narrativos percorridos pelo imaginário que elabora, sobressaem aquelas obras em que o referido modelo domina. Les Misérables, de Victor Hugo, Ivanhoe, de Walter Scott, e Splendeurs et misères des courtisanes, de Balzac, poderiam ser notáveis exemplos a acrescentar aos de Dumas que acima comentámos.
Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora
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[i] Para uma perspectiva mais desenvolvida da matéria apresentada nos parágrafos anteriores, remetemos para os nossos textos de 2005 e 2007 citados na bibliografia.
[ii] Rousseau escreve a sua última obra, ainda modelo de pietismo, em 1776, Ann Radcliff publica a sua primeira narrativa em 1789 e Chateaubriand publica Atala em 1801
[iii] É evidente que esta afirmação, relativa à gigantesca e irregular produção de Dumas não pretende ser verdadeira para toda a obra que lhe é atribuída. Temos na memória, de imediato, o ciclo de D’Artagnan, o de Joseph Balsamo (ou narrativa inicial da série Mémoires d’un médecin) e Les Mohicans de Paris – qualquer deles constituído um formidável relato de engenhosas insídias, conjurados e conspirações.
[iv] Também este um romance onde a conspiração domina, desta feita a que pesa sobre um homem honesto, cuja vida foi destruída pelas maquinações de um celerado. O herói, vilipendiado e inocente, é redimido pela herança da maior das figuras conspirativa de Dumas: Joseph Balsamo, aliás, Cagliostro, aliás, Monte Cristo…
A primeira impressão amplamente positiva que este livro de Lobo Antunes nos causa é de uma continuidade inovadora que parece afirmar-se como o traço mais marcante da capacidade inesgotável da sua criação.
Dentro dessa impressão muito genérica, um conjunto de aspectos a destacar liga-se, de imediato, à linhagem literária em que a obra, do nosso ponto de vista, se inscreve. Com efeito, tomando-a na continuidade, num primeiro momento, a criação romanesca de Lobo Antunes aparece-nos inserida, de modo muito forte, na decorrência de um cânone, de uma família literária, que constitui o núcleo central de profunda revolução desenvolvida no romance por algumas atitudes autorais.
Podemos chamar modernistas a essas posições criativas e de manifestos poéticos – mais ou menos ficcionais –, até pelo paralelo que encontramos entre elas e as criações, em outros campos artísticos, que são reconhecidas como tais. Essas atitudes, de um modo geral, têm a ver, sobretudo, com o questionamento da representação espacial na sua articulação problemática com os vectores do tempo. De facto, uma espécie de preocupação dominante marca a produção artística, desde os princípios do século XX e, de um modo geral, ela procura de resolver, de maneiras controversas e variadas, a inscrição da quarta dimensão nos horizontes de percepção, construindo objectos em que não só é representada a relação das três dimensões clássicas do espaço com o tempo, mas também a do observador com o observado.
Dentro dessa ordem de ideias, alguns romances fundamentais na produção literária ocidental, como os de Joyce, Proust e Faulkner, por exemplo, apontam claramente para a problemática dessa questão. Corroborando a importância de tal revolução modernista no romance, quase toda a produção do que se chamou o nouveau roman não faz mais do que reforçá-la. Para isso, instaurou como elemento dominante da criação romanesca o interesse explícito pela própria poética do romance, chegando alguns dos romances da “escola” a serem narrativas sobre a escrita de um romance.
Ora, não é por mero exercício de construção de um panteão que evocamos esses nomes e essas escolas: o começo do romance de que aqui falamos sobretudo convoca-nos, de imediato, duas das figuras centrais fundadoras desse modernismo: Joyce e Proust. A entidade voz que abre, por assim dizer, o discurso narrativo de Que farei quando tudo arde? não pode deixar de nos evocar o universo de caóticas incursões imagísticas do estado semi-onírico de Molly Bloom, em Ulysses, de James Joyce, ou o universo de devaneio, num despertar mais ou menos embriagado, que se desenha em imprecisos contornos de invenção lexical em Finnegans Wake, do mesmo autor; como também não nos deixa esquecer o estado errático da imaginação do narrador de A la recherche du temps perdu, de Marcel Proust, logo nas primeiras linhas do romance, quando procurava adormecer.
Se, por um lado, o despertar é francamente evocado, de imediato, nas primeiras linhas do último romance de Lobo Antunes: “Tinha a certeza que sonhara aquele sonho na véspera ou na antevéspera/ na véspera/ e por isso mesmo, sem acordar, pensava” (p.11) – por outro lado, o adormecer também aparece igualmente como importante momento do processo do discurso da voz atribuível à mesma personagem, no penúltimo capítulo do romance: “Quando morávamos juntos, me deitavam no colchão guardado debaixo da cama, o desenrolavam na cozinha a explicarem/ – É noite Paulo/ e ficava às escuras sentindo o que chamávamos o mar lá em baixo e não era mais que o rio, a foz do rio, o sítio onde o Tejo por alturas da ponte, cansado de tropeçar em montanhas, barragens, castelos, moinhos, planícies/ julgava eu/ desoladas chega finalmente ao oceano e se dissolve nele numa espécie de suspiro ou assim, quando morávamos juntos e ficava às escuras vendo a porta do quintal que surgia no halo do muro, pensava sempre que as lágrimas, as discussões acabavam, os meus pais/ vocês (…)” (p.611).
Esse é um dos processos segundo os quais o romance de Lobo Antunes estabelece aquilo que chamaríamos, aqui, o peculiar pacto de verosimilhança que o instrui. Segundo este, no vago do perceptível, na vacilação da racionalidade, o princípio da identidade dilui-se e o aqui e o agora dificilmente instauram fronteiras. Mas, note-se, a construção do momento do sono e do sonho como base em que se firma a origem das vozes, não é o único processo a dissolver os contornos em que é possível assegurar o efeito da realidade em causa e identificar os objectos de conhecimento; outros dois motivos reaparecem constantemente a incomodar a nossa “suspensão da descrença”: a evocação dos percursos das personagens pelas clínicas psiquiátricas e o facto de o consumo de drogas ou álcool ser frequente nalgumas delas.
Ora, se as vivências passionais são as fibras centrais das intrigas que se desenham e se o quotidiano das personagens é assolado pela própria marginalidade de algumas profissões ou modos de vida, como a prostituição, o transformismo (ou travestismo como também se diz muitas vezes) e a representação em circo como palhaços, completa-se o quadro da inquietante estranheza, no interior deste universo ficcionalmente construído, pela evocação permanente do momento da morte, do enterro, da perda dos parentes. Assim, enquanto ritual do enterro, ou a evocação do corpo morto, modulam a figura que se constrói com entidade perdida, a vacuidade das vidas que se apresentam como meras memórias, pela impossibilidade de lhes encontrar um esteiro de autenticidade, lança fortes colorações de suspeita sobre a verosimilhança das personagens.
Desse modo, o verosímil que se constrói não assenta sobre uma ética do socialmente instituído, do empiricamente reconhecido pelo grupo dominante, normativo, a que se chama todo social, como verdadeiro. Tendo o núcleo restrito da sociedade, representada fabulatoriamente, perdido as referências racionalmente aceitáveis que pautam os valores de verdade, – a heterossexualidade procriativa, a representação da autenticidade sexual, a vigília, a sobriedade e a sanidade mental – sendo as figuras dos mortos mais fortes afectivamente do que as dos vivos, podemos dizer que os processos de representação se constroem como perturbantes mecanismos de inquirição da verdade.
Lembraríamos, a propósito da importância que a evocação dos mortos e dos rituais de inumação tem no adensar da problemática da existência perspectivada pelos familiares amigos e conhecidos que lhes sobrevivem, As I lay dying, de William Faulkner, que se institui como modelo da narrativa do século XX exactamente pelo modo como usa o momento do enterro como cenário central e ponto nodal onde se tecem, em confrontos, as paixões e se visionam as acções em litígio.
Também é essa obra uma das que funda, pela criatividade que o autor americano com ela produz, a pluridiscursividade[i] dramatizada dos monólogos no romance. Resulta tal processo do facto de a narrativa avançar pelo entrecruzar, por vezes coerente, mas muitas vezes contraditório e mesmo paradoxal, dos vários discursos que, por assim dizer, representam o fluir de várias consciências em torno de um acontecimento central que unifica a acção. Com tal procedimento, Faulkner tinha intensificado e valorizado aquilo que já era notório, mas não dominante, em Dostoievski – dado que, neste, esse encontro de vozes, embora nem sempre em sintonia, concordância ou mesmo em coerência interlocutiva, ainda se assemelhava muito ao discurso do diálogo típico do romance oitocentista.
Ora, Lobo Antunes, que, desde o seu primeiro romance, se caracteriza por um processo narrativo que se desenvolve pelo cruzar de vozes que nem sempre entabulam diálogo umas com a outras, leva, neste romance, o desenvolvimento de tal tradição a um ponto limite a que poderíamos chamar a dominância absoluta da polifonia em ruptura (Bakhtine, 1970: 33), ou, para usarmos termos mais simples, a dominância das sentenças em co-ocorrência sem estabelecimento de diálogo. Explicando ainda melhor, tudo se passa como se as vozes, representando personagens – por vezes personagens evocadas por uma delas –, se quisessem fazer ouvir pelas outras sem, contudo, darem atenção ao que as outras dizem.
Paulo, por exemplo, parece ser a personagem suporte desta narrativa, visto ser a partir da sua que todas as outras emergem – e aquela cujo nome é mais frequentemente evocado como elemento central do drama que se constrói como intriga (cf. M.A. Seixo, 2002: 428-429). No entanto, não é inteiramente evidente que isso seja sempre assim. Por exemplo, um dos capítulos começa com uma voz que se deixa perceber como a da mãe de Paulo invectivando o sujeito da escrita: “O meu filho Paulo que o aldrabe se lhe der na gana/ e o senhor a acreditar nele e a escrever ou a fingir que acredita nele e a escrever ou nem sequer a acreditar nele e a escrever…” (p.495).
É claro que, desse modo, fica posta em causa – pela aceitabilidade do princípio da contradição de duas afirmações antagónicas relativamente aos factos apresentados – a autenticidade de todos os ditos, incluindo o escrever que se presume (embora ninguém o afirme) que é o do escritor. A dúvida sobre a actividade da escrita como registo da verdade, aliás, é lançada de modo ainda mais evidente quando uma das vozes se manifesta como repórter e se revela incapaz de escrever o artigo em que fala do travesti, pai de Paulo, e do seu enterro, não só pelo contraditório dos depoimentos como pela impossibilidade de fornecer os “pormenores” que lhe parecem necessários e que o chefe de redacção anula por os considerar uma “mania” que “estraga a prosa” (pp. 257-262).
Uma outra tradição que seria de evocar aqui é a do modernismo português de Raúl Brandão, dado que o terror e a piedade se revelam como a grande paixão deste romance, em simultâneo com a paródia e o espectáculo de circo que resultam do confluir das várias personagens e cenários do romance.
Esta passagem, que se liga à voz/ escrita da personagem do jornalista, falando do pai de Paulo que foi palhaço e transformista, pode servir de exemplo dessa dívida para com o autor de A farsa: “a criatura chama-se Soraia senhor, foi a sepultar anteontem (…)/ veja a Soraia nessa esquina/ um acento grave e uma maiúscula que a fita não imprimiu/ a regressar das discotecas da Rua da Imprensa Nacional, umas caves de degraus na penumbra e nos fins dos degraus a música, as bailarinas, a cerveja em conta, a empregada/ dona Amélia/ com um tabuleiro de chocolates, perfumes e tabaco americano, o paraíso dos puros de coração, homossexuais, viciosos, melancólicos, transformistas, lésbicas e solitários como eu que perderam o seu ideal há trinta e cinco anos” (p. 260). De Brandão, parece-nos, é, assim, o culto de uma situação obsessiva, permanente, recorrente, expressa no acumular hiperbolizante dos elementos de um universo de desregramento, dor em paroxismo e “espanto” face aos indícios surpreendentes do mundo.
No entanto, o modelo mais directo do recurso a essa cena-quadro, quase estática ou repetitiva, núcleo dramático, de ressonância trágica, em torno do qual se vai compondo o mosaico das imagens, parece-nos ser José Cardoso Pires, sobretudo o de O Delfim. É dele que virá o modelo que Lobo Antunes tão bem cultiva dos fragmentos de acções, frases enigmáticas, diálogos em desentendimento, quadros perceptivos pouco nítidos aglutinando-se em torno de um núcleo mítico-fabulatório, uma espécie de narrativa arcaica à qual se vêm juntar todas as fantasias, fantasmas e vivências. Tudo como se a dimensão afectiva desse núcleo perdido, apenas salvaguardado a custo e com imprecisão na memória, desencadeasse a intensidade da paixão e tornasse quase impossível o desenrolar seguro e aprazível da vivência e a sua fruição como realidade conquistada para a estabilidade do sujeito exactamente porque à nossa voz se opõe, perversamente, a voz do outro.
É assim que a voz de Paulo evoca o que há de inquietante na sua situação: “Se pudéssemos conversar não importa onde/na casa da praia, os Anjos, o Príncipe Real, a cave/um lugar onde fôssemos não os fantasmas de agora, mas as pessoas de dantes, fantasmas vocês que perdi e fantasma eu que os procuro entre sombras falando-vos como falam os mortos…” (p.477). Evocação de uma casa, um lugar de origem, uma família em que se revelaram os primeiros gestos do afecto e os estados emocionais fundadores, o romance desenvolve-se como um percurso pelos labirintos da memória e da fantasia, pelo reconstruir dos mitos e pela tentativa da melhor interpretação da situações dramáticas para fazer regressar o seu herói, eventualmente Paulo, filho do erro e do equívoco – uma mãe afectivamente abandonada, um pai palhaço e travesti (não era Laios homossexual, segundo algumas versões do muthos?), uns pais adoptivos sem grandes rasgos de espírito, uma sociedade despojada de ideais – a um humos original acolhedor.
A narrativa, desse modo, não se assemelha a um cursor linear, partindo de uma necessária carência, para a busca de uma etapa final de reencontro e plenitude ou, pelo menos, para uma compreensão do que no Cosmo é um enigma. Quase ao contrário, do que se parte é do turbilhão fundador do discurso, da evocação dos mortos como inevitáveis personagens do pesadelo, dos entes perdidos como obsessivos adversários no percurso do sujeito que busca a elementar verdade em que assenta o seu ser, e que parece poder resumir-se numa pergunta: “de onde venho?”.
O fascinante é que o que se lhe apresenta nos labirintos da memória, independentemente de ser verdade ou fantasia, não passa do teorema da impossibilidade da sua origem em conformidade com os valores do humano: a mãe violada, pagando um favor e não desejando um filho, e um pai desqualificado como “paternidade”. Palhaço ou travesti, ora a paródia do homem ora a sua inversão sexual (Carlos? Soraia?), a imagem do pai só se inscreve socialmente na marginalidade ou na perturbante diferença.
Recorrentemente são as franjas marginais que pautam o lugar da morte e o ritual do enterro do pai: os mulatos, os travestis, os palhaços, os cães vadios. Com a mãe anulada enquanto mulher não desejável, integrado na família insignificante dos pais adoptivos, lançado no mundo da droga, a voz que circula, fazendo emergir as outras – dos seus parceiros, entes queridos perdidos ou figuras ameaçadoras das instituições ou das sombras – o potencial protagonista só se pode exprimir pelo drama que monta sobre o fundo obcecante do terror de si próprio como morto: “falando-vos como falam os mortos e respondendo palavras minhas, não vossas, o que espero que digam sabendo que não diriam desse modo, se pudessem contar-me o que não conheço e talvez prefira não conhecer, o que sucedeu antes do meu nascimento ou quando era pequeno demais para entender que sucedera e apenas me permito inventar, conforme as cartas antigas inventam o passado” (p. 477).
E não será essa uma das forças maiores da ficção – ensinar-nos por entreposta experiência fantasiada como a nossa voz é inventada pela dos outros, voz pela qual nos criamos um eu mítico que só existe em plenitude ontológica como oposto aos outros que, até certo ponto, são fantasia nossa, tal como os delineamos pela nossa voz?
No emergir confuso das vozes em multidão, delineando-se e desaparecendo, por vezes no mesmo enunciado, uma das grandes figuras que nos parece tutelar a encenação destas vozes que dizem, repetem, reformulam e desdizem os factos é o ruído. Ora, como nos ensina tradicionalmente a teoria da informação, o ruído é uma tendência de perturbação da boa circulação da mensagem mas, inversamente, é o modo pelo qual se intensifica a informação, a nível semântico, quando ultrapassamos o nível meramente tecnológico da comunicação e a emergência da ambiguidade se afirma como elemento importante na produção de sentido.
Do ponto de vista da “boa clareza”, o ruído não deve existir: mas uma mensagem sem ruído corre, no entanto, o risco de se tornar transparente. No limite, não transmite informação, é imperceptível, por tanto repisar os elementos que a tornam redundante: o que é dito em acréscimo é exactamente igual ao que já foi dito. O ruído, ao contrário, concentra informação, na medida em que provoca um máximo de busca de conhecimento e uma quase perda dos apoios do reconhecimento.
Estas considerações em que resumimos de modo simplificado algumas das consequências das teorias de Shannon e Weaver[ii], permitem-nos adiantar uma suposição sobre este labirinto de vozes, tal como ele é usado por Lobo Antunes. Dividiríamos, para melhor compreensão, essa suposição em dois horizontes de possibilidade: um afirmaria que aumentando a indeterminação semântica, pela multiplicação das vozes em antagonismo e contradição, a fábula – que se resume a um número muito pequeno de factos que residem numa história traumática (e mesmo clínica) de um jovem drogado – adensa-se como enigma e espaço de interrogação existencial e antropológico – resultando que uma espécie de enigma da vida e da morte surge no amontoar de repetições, contradições e sobreposições em que se nega o desenrolar da intriga; o outro horizonte reforçaria o anterior pelo que dá de vislumbre de um dizer da multidão – não a vox populi, no entanto, mas antes a voz da massa, o acumular repetitivo do dizer ao qual já é indiferente a origem da fonte porque, se nenhuma é qualificada, todas se anulam – uma espécie de enigma do enunciar, uma vez que não é possível atribuir uma personalidade ao dizer.
Ora, assim, o enigma desloca-se, curiosamente, do dito para o dizer como acto, e não tanto pelo sentido do enunciado, mas pela forma da entidade que formula. A suspeita que cultivamos, assim, como interrogação fecunda, é a de que a prática do ruído produtivo, a ambiguidade que instaura a dúvida como entidade heurística ou figura epistemológica em Lobo Antunes, não se processa tanto ao nível das distorções semânticas, como ao nível das distorções (ou ruídos) de enunciação. O que nele se torna central e dominante, sobretudo neste romance, não é tanto a inquietação do sentido, pela indeterminação, fragilidade ético-psicológica das personagens, ou mesmo a sua duplicidade, que as tornaria pouco dignas de confiança, como a inquietação do sentido pela complexidade e distorção das instâncias de enunciação. Não se trata mais de interrogar que tipo de verdade ou falsidade cada personagem comporta, sobretudo a partir da validade dos seus fazeres ou dizeres – trata-se, sim, de questionar a própria possibilidade de representar ou de meter em cena (encenar, no sentido mais forte do termo) a voz.
Tudo se passa – para recorrermos ao exemplo do teatro e da semiotização do seu pôr em cena as personagens, dado o palco ser o lugar onde o encenar da voz é menos “equívoco” – como se as falas se deslocassem das didascálias a que pertencem e se infiltrassem nas que lhe são vizinhas e que, por vezes, numa lógica de empastelamento da presentificação cénica, as falas fossem produzidas pelos nomes das personagens às quais são dirigidas.
Desse modo, a enunciação resvala, em muito casos, de um sujeito que aparentemente a suportava – que era o sujeito da enunciação, responsável, aparentemente, do dizer, seu garante “psicológico”, “epistemológico” e semântico – para o sujeito do enunciado ou mesmo para o vocativo da frase, passando a responsabilidade da frase a ser, também, do “ele”, de quem se fala, ou do “tu” a quem se dirige.
As consequências mais evidentes de uma tal prática – que sumariámos através das suas ocorrências mais notórias, omitindo as variações de registos de enunciação que já eram formulações típicas de Lobo Antunes e mesmo procedimentos de narração similares dos autores que prefigurariam o seu cânone mais ou menos explícito (a que aludimos logo no princípio do nosso trabalho) – são, parece-nos: lançar uma opacidade significativa sobre o suporte mais evidente do discurso enquanto coerência lógica, inequívoca (ou unívoca – “univocal”, leia-se) e detentora de uma razão última das coisas; desenvolver uma cenografia do discurso romanesco onde a presença das vozes da narração e da narrativa se entrelacem numa evidência de fazer poético, sem que assista a nenhuma delas mais autoridade – no plano do conhecimento ou do interrogar dos enigmas (de uma epistemologia, tal como a vimos conceptualizando aqui) – do que às outras; e uma reinscrição do autor no universo poético da própria criação, enquanto ser textual, que estabelece com a História e com o real uma relação problemática, muito mais inserido, como parte no enigma que dá sentido ao acto poético, na obra do que seu condutor. Surge, desse modo, muito mais como joguete do enigma do que como detentor de um saber que poderia pretender dissolver o mistério e retirar ao acto poético a sua dimensão inquiridora central.
Acompanhamos aqui, inteiramente, o juízo de Maria Alzira Seixo formulado a propósito exactamente deste romance (embora com alcance para o conjunto da obra do autor – ampliação que, em linhas gerais, propomos de modo similar):
“a questão autobiográfica só tem sentido se o traço que remete para a figura do escritor, para a sua circunstância ou para a sua experiência, criar uma interpelação do texto em relação àquele que o lê, e obrigar essa interpelação a seguir um caminho de conjectura quanto aos labirintos da produção artística. Isto é: o que é importante, (no excerto do romance citado pela autora em que a voz ora se autonomeia Paulo – nome da personagem – ora António, nome do autor: António Lobo Antunes ) não é tanto que a personagem se nos comunique com o nome de António (…) mas que entre o nome da ficção, Paulo, e o nome do ficcionista, António, se crie uma hesitação de identificação (sobretudo num romance que tematiza a identidade), hesitação essa que é justamente o que faz ler um romance como «mundo possível», e que, na hesitação comungante entre o real (sensível, mas inapreensível) e o imaginário (apreensível, mas apenas sensível nos riscos que continuam a escrita e configuram a sua representação mental) do romance as imagens se desprendam para virem interferir com o real e o imaginário do leitor e com ele entrem em diálogo de problematização ou actuação do pensamento fecundante” (2002: 476).
Embora o tratamento do autor se coloque como questão central na estratégia da poética de Lobo Antunes, o espaço epistemológico que ela abre, a este nível da enunciação, reformula toda uma concepção do tratamento do saber e do conhecimento a que a literatura aspira. Muito especialmente no romance, sobretudo quando as suas formas são inquietadas até ao limite, como é o caso das obras de Lobo Antunes e desta muito particularmente, o modelo de mundo possível aberto retoma com a extrema veemência o postulado do verosímil, tal como Aristóteles o colocou na sua poética: não tanto como algo que se “concede” à literatura pela condescendência da filosofia (ou da metafísica, ou da epistemologia, como suas partes constituintes fundamentais) para o poético poder ter um direito de cidadania, mas como uma afirmação de valor, sendo o verosímil um importante processo de construção da verdade suprema, inteligível (aletheia), e não um equivocado percurso em concorrência com a verdade do logos racional (episteme).
Ora, para que o saber se represente no literário, parece-nos, há um lugar que tem de ser minimizado, para que a ficção (a suspensão da descrença, que leríamos como o verosímil, neste caso) ganhe força, e a ambiguidade se instale como mecanismo epistemológico: o do centro detentor do saber final. Na filosofia, é ao “primeiro” Platão, concretamente ao de Íon, mas mesmo o de Crátilo, por exemplo, que temos de nos reportar, para percebermos quanto “Sócrates”, o primeiro, representa esse autor sem “autoridade”, que circula entre o seus pares, buscando a inteligibilidade que está para lá dos saberes. E é contra uma autoridade como a do segundo “Sócrates”, o da República (do primeiro livro em diante, dizem-nos os especialistas), que o romanesco de Lobo Antunes se formula. E é nesse sentido que pensamos residir a grande força da encenação das vozes em torno de um centro que todos partilham mas ninguém assume em plenitude de direito.
Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora
Bibliografia
Bakhtine, Mikhail, 1970, La Poétique de Dostoievski, Seuil, Paris
Jakobson, Roman, 1963, Essais de linguistique générale, Seuil, Paris
Martinet, Jeanne, 1976, Chaves para a semiologia, Dom Quixote, Lisboa
Seixo, Maria Alzira, 2002, Os romances de António Lobo Antunes, Dom Quixote, Lisboa
[i] Reportamo-nos aqui, evidentemente, ao uso que Bakhtine faz do termo polifónico para falar das vozes do romance, sobretudo no de Dostoievski (cf. Bakhtine, 1970: 332-39)
[ii] Sobre esta matéria complexa, de cuja dimensão paradoxal tiramos fundamentos para algumas explorações na ordem do poético, remetemos para os textos de Jakobson e de J. Martinet constantes na nossa bibliografia, nos quais apoiamos as nossas hipóteses. Considerando que pode ser “«ruído» tudo o que é responsável pelo malogro de um acto sémico” Jeanne Martinet (1976: 36) abre-nos a perspectiva para pensarmos quanto o poético e o literário vivem exactamente do malogro do acto monossémico. E cremos estar correctos ao pensarmos quanto a compreensão do poético pelo ponto de vista da estilística deve às observações de Jakobson acerca da importância do “«barulho semântico»” (1963: 95), pelo que este permite de “ambiguidades ao receptor” que “caracterizam as ambiguidades da poesia e do jogo de palavras” (Jakobson, 1963: 94). Sem esse ponto de vista certamente que a famosa e fecunda “teoria” do desvio ou não existiria ou teria muito mais dificuldades em se sustentar.
Quase sempre a coloração do fantástico, em Fialho de Almeida (1857-1911), manifesta-se em regime realista, sob duas formas hiperbólicas dos traços disfóricos: a caricatura e a intensificação dos aspectos desagradáveis ou mesmo atemorizantes dos objectos e dos eventos – a primeira tendente à revelação humorística, o outro à catarse (piedade e temor, ou mesmo terror) quase de feição trágica.
Muitos leitores e comentadores da obra de Fialho reconhecem que, como diz Raul Brandão, “«as descrições perderam a proporção, as figuras e a realidade, transformadas em figuras de dor e de grotesco»” (in Coelho, 1969: 220), resultando que, segundo Jacinto Prado Coelho, “se denunciam, [nele] os reflexos das estéticas impressionista e pré-rafaelista” (1969: 220).
Fialho de Almeida
Reconhece-lhe este crítico, aliás, um “romantismo temperamental, condicionado pelo materialismo e pela nevrose decadente” que inclinaria o autor de Os Gatos a uma “inquietação impulsiva e fragmentária” e o tornariam, também, poderoso na sua expressividade “pelo sortilégio com que transmite sensações” (Coelho, 1969: 221-222). É partindo deste ponto, amplamente partilhado pela tradição dos estudos da obra de Fialho, que Óscar Lopes acrescenta o conceito de expressionismo para situar, periodologicamente, a obra do autor das crónicas de Lisboa Galante, na sua articulação com as tradições poéticas e as estéticas que enquadram a sua obra:
“Chamo aqui expressionista a uma técnica literária que em vez de uma tipificação da realidade bem reconhecível termo a termo (técnica naturalista), em vez de simples lampejos mais subjectivantes onde a análise costumeira se omite mas continua possível a identificação global do objecto (técnica impressionista, também utilizada por Fialho em Os Ceifeiros), se substitui o modelo do senso comum da realidade por um outro modelo que, na sua estrutura de conjunto, é aparentemente irreal mas nos faz sentir algo de importante [notando-se], antes de mais, que essa estética tem, quase sempre, um ar opressivo de pesadelo, de horror traduzido por situações irreais” (Lopes, 1987: 188).
A designação parece-nos justa e toda a tradição gótica (O. Lopes reconhece estar presente, em Fialho, a de raiz germânica) poderia considerar-se no escoramento do gosto de Fialho pelo macabro onde, sem dúvida, se anunciam as vesânias e as fulgurações de anomalias que marcam a sua obra, dimensão que lhe é reconhecida como decadente, decadentista ou, ainda, de romantismo tardio.
Pormenor de As tentações de Santo Antão de Jerónimo Bosch
Como termo de comparação, no campo da pintura, do gosto reinante, sobretudo nas suas crónicas, Óscar Lopes evoca Rembrandt e Goya. Reiteramo-lo quanto ao segundo, especialmente… já que de tempos mais remotos nos pareceria de evocar, mais do que o lado “negro” de Rembrandt, a alucinação alegórica de Bosch ou de Callot.
Um dos textos que o ilustre estudioso que acabamos de referir considera mais representativo dessa atitude expressionista é a crónica “O Enterro do Rei D. Luís” publicado no volume I de Os Gatos:
“… As fisionomias dos nossos homens públicos depõem desagradavelmente a sua favor. […] A maior parte são pequenos monstros de olhar estrábico, ou vago, ou fugidio, ou injectado; caras balofas, olheirentas, dissimétricas, com um estigma, algumas, do quer que é de inquietador, que a gente não sabe o que seja, mas lá está a servir de síndroma à maqueira, oculta, e a prevenir a opinião contra a boa-fé dos esforços deles, em prol da causa que juraram servir. […] Há uma mistura de porco e cão de fila, de malandro e de títere, em muitas daquelas faces de primeiros oficiais de secretaria, de governadores civis, de tenentes-coronéis, de generais, de bispos, de deputados, de conselheiros de estado e de ministros” (2006: 101-102).
Muitos dos Caprichos de Goya poderiam servir-nos de exemplo do elo que liga Fialho à iconografia fantástica. O “Porque esconderlos”, ou “Estan calientes”, poderiam ter como título complementar a frase de Fialho que acabemos de citar: “Há uma mistura de porco e cão de fila, de malandro e de títere, em muitas daquelas faces…”. Mas a composição pode ir mais longe, como podemos ver um pouco adiante, na mesma crónica, e a evocação inflectir para a fantasia terrífica que inspira As Metamorfoses de Ovídio, as maravilhas genesíacas de um Bosch ou as fantasias de Callott, bem como as ficções literárias, herdeiras deste último, de Hoffmann ou de Gautier, quando Fialho afirma sobre as verdadeiras caras que se revelam:
“quando a máscara lhes tomba, e por detrás do cortesão surge o carnívoro, tigre ou hiena, que do seu antro segue o fio de um plano tenebroso, sindicato ou emboscada política, venda da pena ou venda da palavra… […]. A passagem dos grotescos é uma ovação macabra e ininterrupta” (2006:102-103).
Relacionar Fialho com o imaginário gótico que acompanhou o emergir do romantismo na literatura ocidental, ou com a soturnidade de uma certa pintura carregada de melancolia ou de alusão ao terror e ao fantástico, não resulta apenas do que se patenteia, como figuração, quando analisamos os seus escritos de pendor mais ou menos fantasioso, ou com horizontes relativamente delimitados pelo jornalismo. Ele próprio evoca os mestres que o inspiram, face a imagens que percepciona e transmite, como, por exemplo, encontramos expresso na crónica “De Noite”, recolhida em Lisboa Galante:
“É assim um grande leque de casarões, de que a noite não deixa aperceber senão bocados, e de cuja sobranceria soturna a fantasia só evoca monstruosidades e tragédias. Naquela enorme mancha a preto e branco, semelhante a um pesadelo hugoesco que Goya e Rembrandt houvessem reproduzido a água forte, a vista, uma vez repousada do sobressalto da primeira visão, compraz-se agora em procurar, na tumultuosa embriogenia das formas, sítios familiares por ela conhecidos, como outros tantos pontos de referência para a apreciação geral do panorama” (1994: 123).
Ainda na mesma crónica, sobressaem outras evocações do mesmo filão:
“É o nocturno quem desde então se apodera da cidade, uma vez fechadas as lojas, escurecidas as ruas, os americanos e trens feitos mais raros, para dar larga aos seus caprichos, monomanias, análises e doenças; porque é ele que na chateza honesta da cidade ainda alimenta no peito a verde chama macabra do fantástico, que Edgar Poë tanto se compraz em ver bruxulear, como uma flor de civilização, podre e funérea, à superfície das grandes degringoladas sociais. […] Mas como o homem das multidões de Edgar Poë, outros caminham sempre de roda dos prédios fechados, farejando, retrocedendo, seguindo atrás de um, seguindo atrás de outro, em circuitos de angústia, agarrados à última esperança, e à caça sempre, condotières do vício, de apaziguarem a nevrose que desorienta e exaspera no mais recôndito das suas afectividades doentias” (1994:126 e 128).
The Two Pantaloons – Callot, 1616 Etching (British Museum, Londres)
De facto, não seriam despropositadas aqui, a completar esta perspectiva, as palavras de Hoffman sobre o desenhador francês, ao prefaciar os seus contos, ou “fantasias à maneira de Callot”, como ele diz em subtítulo:
“[…] Os seus desenhos são apenas reflexos das aparições fantásticas que a magia da sua invenção evoca […]. A ironia, que confronta o homem e a besta para tornar irrisórios os comportamentos humanos dignos de piedade, é sinal de um espírito profundo; e estas figuras grotescas de Callot, com uma parte humana e outra bestial, desvelam ao olhar perspicaz de um observador sério todas as alusões que se escondem sob a máscara da bufonaria” (1969: 18[i]).
É claro que o próprio Hoffmann, nas suas narrativas, em geral, usa sem parcimónia o imaginário fantástico, o qual acolhe o misto de bestiário e caracteriologia populares, bem como os esboços de monstros, que servem de signos semanticamente saturados no folclore, para estruturar uma visão do mundo, atenta sobretudo à orgânica da sociedade e das suas éticas.
O sistema narrativo que ele privilegia emparceira, em grande parte, com as raízes do gótico que Ann Radcliffe usa, mas é, também, devedor do imaginário dos contos populares e das figurações teriomorfas e infernais que este segrega. Ambas as vertentes transparecem no excerto do seu conto, “O vaso de ouro”, que em seguida apresentamos:
“Em frente da pobre rapariga ajoelhada, hirta como uma estátua de mármore, distingues [tu, leitor] neste momento, acocorada no solo, uma criatura descarnada, de pele acobreada, de nariz recurvado como o bico de um abutre e com uns olhos de gato, lançando chispas; do manto negro que lhe cobre os ombros saem braços esqueléticos e lívidos e, mexendo o caldeirão infernal o ente lança gritos de assustar no desencadear da tempestade. Perante o espectáculo agitado desta cena satânica, digna de um Rembrandt ou de um Breughel do Inferno, creio que os teus cabelos, amigo leitor, se terão eriçado, ainda que tenhas mostrado, até agora, uma coragem inabalável” (Hoffmann, 1969: 257-258[ii]).
Alongámo-nos na transcrição para demonstrar claramente como, em grande parte, a construção deste tipo de narrativa desenvolve essa técnica, tão cara aos expressionistas, de incluir, na sua mise en scène, o olhar e o pathos do espectador, patente em obras que se manifestaram, um século depois de Hoffmann ter publicado as suas narrativas, ao princípio na Alemanha, em variados sistemas expressivos como a arquitectura, as artes plásticas, o teatro e o cinema, sobretudo, embora tenha transparecido nas artes em geral.
A técnica que tem em conta a focalização do leitor ou espectador, incorporada nas narrativas, reforça as dimensões plásticas e os posicionamentos de perspectiva que se desenvolveu desde o romance gótico até ao film noir, passando pelo cinema expressionista. Assim, compreende-se melhor o alcance da hipótese colocada por Óscar Lopes, acima transcrita, sobretudo tendo em conta o que ele escreve em seguida:
“[…] Eu suponho que as criações mais originais de Fialho como ficcionista apontam a este processo, que as tradições de audácia fantasmagórica do Romantismo germânico (e já reconhecemos o interesse de Fialho por tal literatura de mistério e fantasmagoria) ajudaram a eclodir, mais tarde, sobretudo nos países de língua germânica. […] Notemos, antes de mais, que essa estética tem, quase sempre, um ar opressivo de pesadelo, de horror traduzido por situações irreais. Ora, em descrições do contista, tão frequentemente concebidas como quadros pictóricos, lá surgem repetidos, quase maníacos, os epítetos de rambrandesco, goyesco ou a evocação das gravuras de Doré, funcionando como uma espécie de símbolo estenográfico do belo horrível que o tenta […] onde […] o cronista desata «o bestiário da alucinação doida e disforme» com amplificações por vezes retorizadas, mas em todo o caso com garra alucinante. […] O autor mais ou menos mostra aperceber-se de estar utilizando a fantasmagoria como meio de expressão de coisas a que os processos naturalistas não chegam” (Lopes, 1987: 188-190).
O filão aqui referido constituiu-se, de modo mais ou menos sistemático, em paralelo com outras configurações reconhecidas como marcas diferenciadoras que caracterizaram a emergência e a formulação poética do romantismo: o apelo do irracional, a afirmação do eu como fonte e destino da verdade – mesmo quando se convoca o imaginário fantástico, a fantasmagoria e as percepções distorcidas do mundo empírico –, o confronto do bem e do mal com particular apreço pelas dimensões perturbantes, terríficas mas fascinantes, deste, bem como uma retórica da persuasão, toda ela assente na autenticidade de uma voz pessoal, que convoca a cumplicidade e compaixão do ouvinte ou do leitor, relativamente às representações elaboradas pela entidade enunciativa.
Talvez nunca a entidade autoral se tenha confundido tão completamente com a voz e o ponto de vista autodiegético, ou de enunciação lírica, como aconteceu com os autores que hoje reconhecemos como componentes da constelação romântica, nos espaços europeus e americanos. Mesmo os primeiros escritos que anunciam tendências que se viriam a revelar dominantes no romantismo, ainda no século XVIII, lidam com essa retórica em variados escalões de veemência, buscando, do leitor, não uma anuência, mas uma adesão arrebatada.
Leviatã, Doré (ilustração para a Bíblia)
Não é a crença, a convicção mais ou menos racional, que estabelece o pacto poético entre o público leitor e a produção de uma Radcliffe ou de um Hoffmann, mas sim o arrepio ou o estremecimento emocional que nos arrasta para o percurso das heroínas – sobretudo das heroínas, porque elas predominam, como vítimas do terror ameaçante – e ainda, também, a compaixão, a sintonia afectiva, a confabulação onírica, cujos mecanismos, motivos e componentes se agregam em torno da vítima, como um bastidor de dispositivos e hipóteses que, num registo de exigência racional e realista, teríamos dificuldade em aceitar ou mesmo conceber.
Abandonando as convenções poéticas que asseguravam a estabilidade da razão pela inclusão ou enclausuramento do fantástico no plano do mitológico, do religioso ou da licença poética da fabulação alegórica, apenas para efeitos de exempla, o romantismo vem colocar, como possibilidade do experienciável, a verosimilhança do fantástico.
O que é extraordinário, para as vivências e consonâncias perceptivas da comunidade, revela-se possível nos universos ficcionais e romanescos da produção literária que antecede e anuncia o romantismo, bem como numa boa parte da produção dos românticos e das posteriores gerações, desenvolvendo-se, a partir da época realista, num sub-género que as histórias e as genologias literárias vão arrumando sob o título de literatura fantástica.
O satanismo, que acompanha o gosto parnasiano de um Baudelaire ou de um Gautier, a efabulação do retorno dos mortos ou da emergência de entidades infernais, no quotidiano dos seres vivos habitando universos regidos pelos princípios de uma normalidade em que isso não é possível, invadem as narrativas como acontecimentos extraordinários ou, mais frequentemente, são sugeridos por sinais aos quais não se sucede o fenómeno extraordinário, que apenas o anunciam in absentia, mas que vêm lembrar aos humanos que a estabilidade e normalidade do mundo em que vivem podem ser ameaçadas pelos seres do outro mundo. Como diz Todorov, o fantástico nasce da ambiguidade gerada pela possibilidade dessa ameaça:
“[…] Realidade ou sonho? Verdade ou ilusão? Num mundo que é, efectivamente, o nosso, o que nós conhecemos, sem diabos, sílfides nem vampiros, produz-se um acontecimento que não se pode explicar pelas leis desse mesmo mundo familiar. Aquele que se apercebe do acontecimento deve optar por uma das duas soluções possíveis: ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto da imaginação e as leis do mundo continuam a ser o que sempre foram; ou o fenómeno aconteceu realmente, é uma parte integrante da realidade e, então, essa realidade é regidas por leis que ignoramos. […] O fantástico ocupa o tempo desta incerteza; uma vez escolhida a resposta, abandonamos o fantástico para entrarmos num dos dois géneros vizinhos: o estranho ou maravilhoso” (1970: 29).
Derretendo (possível auto-retrato?) de Rembrandt
Digamos, desde já, aproveitando esta cómoda arrumação proposta por Todorov (que é interessante por ser simples e nos ajudar a encaminhar a reflexão, através de um percurso que se revela, muitas vezes, resvaladiço), que podemos vislumbrar, como ponto de partida, para o entendimento da dimensão da obra de Fialho a que Óscar Lopes chama expressionista, fortemente marcada pelo gosto decadentista e pelo satanismo finissecular, o enquadramento de alguns dos seus textos no género estranho, de que fala Todorov. De facto, Fialho busca, quase sempre, a caricatura com objectivos críticos, ou a parábola em que o efeito hiperbólico do extraordinário produz um efeito de argumentação ética ou ideológica. O efeito derrisório causado por este procedimento não deve ser ignorado nem mesmo minimizado.
Não se trata, no entanto, de um maravilhoso como o que Flaubert constrói, num dos seus contos, ou mesmo em boa parte do seu Tentations de Saint Antoine, ou como aquele que Eça convoca nas suas parábolas bíblicas.
As distorções produzidas na caricatura ou na parábola crítica de Fialho, pelo facto de guiarem a imaginação através de um processo de metaforização, em que as analogias, os reconhecimentos e as enfatizações põem a percepção e o discernimento alerta, geram um modelo de representação que agudiza, pelo estranhamento (e, por isso, a designação de estranho, aplicada ao género, é tão adequada), a nossa capacidade de congeminar hipóteses sobre aspectos da realidade, da sociedade e dos valores humanos que, de outro modo, permaneceriam ocultos. Quanto a esse procedimento, ele está mais perto do visionarismo satanista dos românticos do que nalgum do imaginário feérico dos seus contemporâneos.
Podemos perceber essa proximidade num conto em que o espírito da vida boémia (parisiense por excelência, deve notar-se) se manifesta aberta e hiperbolicamente, “Le club des hachichins”, Théophile Gautier explora o filão já cultivado por Hoffmann e, embora o hiperbolize, procura tornar patentes as raízes do fantástico a que é devedor:
“Peu à peu le salon s’était rempli de figures extraordinaires, comme on n’en trouve que dans les eaux-fortes de Callot et dans les aquatintes de Goya : un pêle-mêle d’oripeaux et de haillons caractéristiques, de e formes humaines et bestiales; en toute autre occasion, j’eusse été peut-être inquiet d’une pareille compagnie, mais il n’y avait rien de menaçant dans ces monstruosités. C’était la malice, et non la férocité qui faisait tiller ces prunelles. La bonne humeur seule découvrait ces crocs désordonnés et ces incisives pointues” (Gautier, 1993: 180).
Como se vê neste texto de Gautier, a dimensão do fantástico e do terrífico pode aproximar-se francamente da caricatura, da alusão crítica pela via do inquietante, sem por isso se desligar inteiramente da estética do fantástico, tal como ela foi cultivada pelos românticos e pós-românticos, inclusive os realistas e naturalistas, sobretudo naquelas criações que os estudiosos das estéticas modernas têm designado por gótico. É esse filão que, muitas vezes, parece inspirar Fialho, mesmo quando, aparentemente, pretende fazer o mais puro naturalismo, como acontece nos seus primeiros contos.
Quanto a essa dimensão, poderíamos evocar aqui os trechos mais marcantes do seu conto longo, “A Ruiva”, do qual, só para exemplo, colhido quase ao acaso, apresentamos um trecho em que, ao efeito macabro, vem juntar-se o anelo de o macaquear, de o tornar caricatura do cenário do terror:
“Começou a amar principalmente os mortos que paravam à porta do cemitério em ricas berlindas douradas, entre filas de gatos-pingados lúgubres de tochas acesas, e puxados por seis parelhas cobertas de crepes. Visitava-os na casa da observação, acocorada a um canto com o olhar absorto, durante as vinte e quatro horas que os caixões ali passavam abertos, e onde contemplava, deitados na pétrea imobilidade derradeira, os que na sua vaidade egoísta, corruptos e miasmáticos, iam habitar em sepulcros de mármore, com figuras sentimentais na fachada e pomposas inscrições nas lápides. Pode dizer-se que aprendeu a ler no cemitério, quando curiosa na sua pobreza esfrangalhada queria saber os nomes e posições ocupadas no mundo pelos que habitavam aquela branca cidade de mármores, de que se julgava rainha” (2003: 16).
Na composição das figuras dignas de pasmo que enchem as suas narrativas, quer sejam do foro da crónica interventiva ou de costumes, quer sejam ficcionais, quer sejam, ainda, um pouco de ambas, cultivadas em textos de escopo memorialístico, verificamos que a tradição do conto maravilhoso e o estilo da narrativa estranha se conjugam, num hábil compromisso que possibilita a emergência de um fantástico sui generis, o qual parece apresentar-se a cada um de nós como fazendo parte do nosso quotidiano, presumivelmente presente se dobrarmos certas esquinas malfadadas, que o destino nos apresenta sem nos ter preparado para isso.
E é verdade que a estranheza inquietante, embora seja mais própria das grandes metrópoles, onde reina o anonimato e o desconhecimento mútuo entre indivíduos que, de súbito, convivem na mais estreita intimidade, pode surgir, igualmente, nas sociedades rurais, onde a crendice é mais cultivada. Pode surgir, por exemplo, nos traços fisionómicos de um conterrâneo, de um vizinho aparentemente normal na sua singularidade, sobretudo quando nele reparam mais atentamente. É o que acontece na crónica, com forte componente de fantasia, “O Anão”, de O País das Uvas, ao descrever a personagem que dá título à narrativa:
“Reparando bem, havia até nas feições dele alguma coisa de herbívoro, flagrante à vista. O focinho, aguçado e móvel, mascava sempre. As bosseladuras da testa tinham tendências cónicas de chibato. Era típico o ar espantadiço com que escutava os rumores dispersos pelo campo. Vinham a ele os rebanhos, como a um irmão de armas. Os mesmos bodes, com o seu espirituoso donaire mefistofélico, lhe reconheciam um ar de família. E roçavam-se-lhe amorosamente pelos ceifões as cabrinhas coquetes, como quem suspira: «Desposa-me!»” (s/d: 87).
A tentação de Fialho pelo fantástico da fisionomia é tão grande que lhe invade mesmo os textos onde seria de esperar a moderação retórica da argumentação ponderada, talvez exaltada das adjectivações de aprovação ou desaprovação, mas cautelosa no modo de fazer o retrato a pessoas que lhe mereciam respeito como, por exemplo, os seus confrades. Mesmo nos textos em que louva, como acontece com o que escreve sobre Malheiro Dias, não abandona o fascínio pelo bestiário: “Dois olhos pretos, stellares, d’animalzinho sagaz que ficasse infantil por um principio de graça, inherente ás espécies de felinos […]” (1923: 99). Não espanta, por isso, que, ao referir-se a Eça, com quem mantém um perpétuo contencioso, nem sempre fácil de entender, o seu fisionomismo recorra a um bestiário de inspiração satânica:
“Olhem bem essa masque de face cavada e nariz astuto, com olhos de myope alternadamente coriscantes e doces, bocca fina, que sob as azas do bigode, aos cantos se atormenta numa ironia que faz na sua conversa e na sua proza, um scintillar de espadas em duello. Ao premir na orbita o monoculo, as sobrancelhas negras estranhamente arqueadas approximam-se e palpitam, como remiges em azas de corvo, pondo na physionomia, o que seja de um cunho mephistophelico” (1923: 104).
É claro que Eça aparece, aqui, quase reproduzindo em pessoa o “senhor das trevas, do qual ele próprio propõe a imagem, o molde descritivo, de maneira algo hilariante, em O Mandarim:
“Toda a sua originalidade estava no rosto, sem barba, de linhas fortes e duras; o nariz brusco, de um aquilino formidável, apresentava a expressão rapace e atacante de um bico de águia; o corte dos lábios, muito firme, fazia-lhe como uma boca de bronze; os olhos, ao fixar-se, assemelhavam dois clarões de tiro, partindo subitamente de entre as sarças tenebrosas das sobrancelhas unidas; era lívido – mas, aqui e além na pele, corriam-lhe raiações sanguíneas como num velho mármore fenício” (1992: 89).
De facto, Fialho de Almeida parece ter levado às últimas consequências, de modo sistemático, refinado e original, o recurso à figura do animal, como “material” para a construção de metáforas, ou mesmo alegorias que procuram ser emblemáticos exempla das características humanas, sobretudo as instintuais, tendo servido, desde as origens da organização social da humanidade, quer para revelar as dimensões da animalidade no homem, quer para “tomar a diversidade das espécies para suporte conceptual da diversidade social” (Lévi-Stauss, 1986: 129)[iii].
Não andaria longe, por isso, dos mestres que evoca. Pela associação de imagens, a simples figuração de brilho e negrume – que costuma ser já, quase, uma catacrese da sinédoque com que se designam os olhos e as sobrancelhas: “pontos luminosos e traços negros” –, quando se evoca o corvo, é transformada na própria tonalidade infernal, sobretudo quando o movimento da “remiges”, gera a feição mefistofélica, sobrancelhas unindo-se, arqueadas sobre o olhar penetrante (muito aberto e fixo, como que para hipnotizar, como sugere o movimento do monóculo). O corvo surge aí, então, como a ave de mau agoiro, de missão necrófaga, que plana sobres os campos de batalha, para arrebatar os cadáveres, ou aparece como Malphas, figura infernal, que um demonólogo como Collin de Plancy define do seguinte modo:
“Vice-presidente dos infernos, que aparece sob a forma de corvo. Quando se mostra em figura humana, o som da a voz é rouco; constrói cidadelas e torres inexpugnáveis, derruba as muralhas inimigas, faz encontrar bons obreiros, fornece espíritos familiares, recebe sacrifícios e engana os sacrificantes. Quarenta legiões lhe obedecem” (2002: 291).
O manancial do simbolismo animal parece não se esgotar é repleto de versáteis composições. Como Durand diz sobre Goya:
“Dos Caprichos aos Desastres da Guerra, o pintor espanhol fez uma inultrapassável análise iconográfica da bestialidade, símbolo eterno de Cronos e de Tânato. Vamos ver sobrepor-se a esta primeira face teriomorfa do tempo a máscara tenebrosa que, nas constelações estudadas, as alusões à negrura do sol às suas devastações deixavam pressentir” (1989: 65).
Em boa verdade, esta tendência para uma fantasia aberta às hipóteses do fantástico é constante em Fialho, tornando-se uma tentação maior nas crónicas ou nas narrativas que se apresentam como registos de ocorrências pouco comuns mas que são publicadas em recolhas contendo textos que podem ser entendidos como reportagens ou notas de jornalista.
Podemos ler, em “A Condessa”, um desses textos que tanto nos sugerem a crónica de eventos reais como a ficção, contidos em Lisboa Galante, o seguinte:
“Entanto, à medida que ela ia embocetando, com lascívias de panterazinha domada, todos os proventos da sua galante profissão, impava o Chiado de não fazer a sua convivência. […] Eram gastrálgicos de ventre alto, trinta anos fanados com primeiros pés de galinha ao canto das órbitas; pequenos crustáceos de redacção, vilegiando na esteira das coristas da Trindade; jovens loiros de esporas e vincos cebáceos na copa mole dos feltros; enfim, dominadores ricos, herdeiros do alto comércio, aristocratas de nariz em bec: ou glaucos militarzinhos pobres, que o rumor dos breaks elegantes, ou o trote das parelhas em voga, não deixavam resignadamente aceitar a miserável vida que levavam” (1994: 84).
O que chama a nossa atenção e nos desafia a aprofundar, em mais amplas indagações, a desenvolver em lugar que possa acolher mais alargada exposição, o culto do fantástico e o uso da figuração terrífica em Fialho de Almeida, é o modo como ele se processa textualmente no conjunto da sua obra.
De facto, Fialho não é um autor de textos fantásticos: as construções das suas intrigas desenvolvem-se segundo a dominante naturalista, sob o pendão hegemónico do cientismo positivista, e as suas crónicas reportam-se a eventos que se revelam empiricamente reais, num cotejo com os noticiários do seu tempo e com as crónicas da historiografia que os subsumem.
Ele não pratica evasões ou escapadelas pelo imaginário fantasioso, como Eça o fez, através da alegoria, da história terrífica ou mesmo do género fantástico propriamente dito (como nas lendas de inspiração bíblica, no conto “O Defunto” ou em O Mandarim), ou como Ramalho Ortigão, quando acompanha Eça na fantasia romântica da “estrada de Sintra”.
Trata-se, efectivamente, de inserir a sugestão do terrífico, do anómalo ou do extraordinário no interior do mais chão e zeloso realismo, no registo da crónica em regime realista, por vezes com propaladas argumentações de teor positivista, quase em registo experimentalista de um Claude Bernard. Tudo se passa como se argumentasse que o universo é banal e repetitivo, de tal modo que o que de mais estranho nos ocorre cabe no território do previsível, nas regiões da catástrofe aniquiladora e da morte – mas que, contudo, as zonas terríficas, que estão para lá da nossa possibilidade experiencial, se fazem anunciar por sinais, por quadros prenunciantes da dissolução e do fim, que se revelam como coruscantes imagens ameaçadoras, implacáveis e medonhas.
De algum modo, é esse imaginário que está presente na cena de “Os Pobres” recolhido em O País das Uvas, no qual o próprio impulso sexual, a onda do desejo, se transformam num imaginário de pesadelo, num enredo cósmico que parece não ter fim, e que poderia emblematizar o horizonte de toda a obra de Fialho. Como encerramento desta matéria, citamos, na íntegra, a cena aludida:
“Já sob o império das raivas de multiplicação que radiam dela, o descalção se arrasta, de braços estendidos, à procura do centro histerógeno de pecado, enquanto da outra banda a fêmea se debate num desespero semelhante ao que lhe dá. Andam assim nas trevas procurando-se, de rastos como cobras, lacerando os farrapos, os torsos na espiral do mesmo adusto anseio; e afinal acham, o contacto das suas carnes dá na sombra uma crepitação de escamas de imundície, quando alfim ele, súbito liberto, pelas impunidades da treva, das suas preocupações de hediondez, ala sobre ela o monstruoso corpo de colosso, que fosforeja e estria, como um mastodonte cioso, os grandes músculos. E as unhas rasgam-lhe os rins, a cravá-la em si com fúrias de chacal. Cavas, opressas, ouvem-se as respirações suflar bestialidade, e de ambos os dois as sedes são vorazes, e o resfôlego das duas máquinas irmana-se, rimando os urros e sofreguidões das suas virgindades envelhecidas a pontapés, sob os desdéns carnais de toda a raça humana” (sd: 41).
Não poderíamos encontrar melhor exemplo, para ilustrar o processo de intromissão súbita e pontual do fantástico, recorrente e sistemático a pautar a sua obra, patente numa impressionante quantidade de textos que foram dados a lume em volume.
Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora
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[i] Traduzimos o texto francês, vertido do alemão para esta língua por Henri Egmont, com revisão final de Albert Béguin.
[ii] Traduzimos o texto francês, vertido do alemão para esta língua por André Espiau.
[iii] Sobre a matéria aqui tratada, relativa à amplitude a à força semântica do animal ou das variedades de animais evocadas, apoiamo-nos, além das obras referidas, nas entradas respectivas do Dictionnaire des symboles de Chevalier e Gheerbrant, 1982, Laffont, Paris.
[iv] Para citação de texto actualizado utilizamos a edição de 2003, publicada sob a direcção de Vasco Graça Moura.
Partindo da proposta de Umberto Eco, segundo a qual, na “sociedade de massas, na época da civilização industrial, observamos de facto um processo de mitificação afim ao das sociedades primitivas e que, todavia, no início, procede muitas vezes segundo a mecânica mitopoética posta em prática pelo poeta moderno” (1991: 250), parece-nos interessante observar como nesta actualidade se apresentam alguns procedimentos ou figuras variantes das metamorfoses (a transfiguração, a camuflagem, o disfarce, a máscara ou a ocultação), quando elas se reformulam nos espaços modernos das cidades, numa partilha entre os mistérios nocturnos, da esfera órfica e infernal, e o bulício urbano, em que ao confronto tradicional do cidadão e do seu vizinho, desde a Antiguidade (o «ateniense», o «romano») até à Revolução Francesa (o «burguês») se opõe o face a face, entre o anonimato do próximo como ente emergente da multidão (a sempre ameaçadora hipótese de uma alteridade estranha e inquietante), e o sujeito que percorre esse turbilhão de estranhos, como transeunte indiferenciado: o indivíduo das massas.
A ideia de procurar compreender alguns fenómenos culturais, transpostos para textos literários ou fílmicos, à luz de uma unidade conceptual a que chamamos mitos urbanos, começou a seduzir-nos, francamente, a partir da sugestão do título de dois filmes americanos: Urban Legend de Jamie Blanks, de 1998, e Urban Legends: Final Cut de John Ottman, de 2000. Não pela qualidade dos filmes ou da matéria que eles focam, mas por apontarem para uma possível matriz de eventos terríficos que se tornaram casos[1]ou acontecimentos arrebatadores do imaginário social.
Os discursos que os celebram tornam-se, então, enunciados mitologizantes. Formulam figuras e acontecimentos que se caucionam no plano da ideologia, da exemplaridade ética ou axiológica.
Alguns estudiosos chamam a determinadas imagens ou narrativas recorrentes, relativas às cidades e à globalidade na qual se integram e pela qual são reproduzidas (a global village de McLuhan), “«lendas urbanas» ou «lendas modernas», para sublinhar o seu liame com os traços dominantes das nossas sociedades: a cidade e a modernidade” (Campion-Vincent e Renard, 2002: 10). Por esse substrato ser francamente convocado pelo nosso termo mito, preferimos utilizá-lo, para designar o mecanismo fabulatrório que ele propicia, o qual nos permite associar o evento singular, transformado em enunciado temático elementar ou motivo lendário, à narrativa que o inclui, literária ou jornalística e, sobretudo, por nos permitir ligar ambos os níveis com um mais vasto, o da “série legendária ou mitologia composta por le(ge)ndas que se tornam significantes pela sua própria acumulação” (Campion-Vincent e Renard, 2002: 10).
É a série mitológica, em nosso entender, que rege e regula o funcionamento dos outros elementos, tornando-os motivos ou relatos míticos, compreensíveis ou legíveis apenas num quadro cultural em que a matéria mítica tenha sentido. O mais banal dos eventos profanos cabe numa matéria cujo grande nódulo semântico é o próprio mitologema sagrado, a narrativa dos feitos e paixão, ou um mitema[2], pontual, de intensa densidade cultural, núcleo simbólico de forte irradiação semântica, pelo que se transforma num ícone emblemático – por exemplo, um quadro representando o momento mais pregnante[3] (p.e.: “a descida da cruz”, “a saída do túmulo” ou a “aclamação pelos fiéis”). Não é isso que se passa sempre, obrigatoriamente. Mas pensamos que a leitura das perspectivas míticas deve ser esclarecida por essa via.
O dispositivo dinâmico das metamorfoses pode ser abordado, com vantagem para a compreensão das suas variantes actuais, na perspectiva urbana dos mitos modernos. Enfatizamos, neste caso, os aparatos sociais, culturais e simbólicos que surgem representados, desde as primeiras formulações das atmosferas românticas do romance gótico, ou da sua variante francesa, a que os estudiosos das expressões literárias românticas também chamam roman noir. O quadro sociocultural é quase sempre delimitável por grandes filões semânticos ou topoi, que chegam a constituir subgéneros emergentes a partir das matrizes criadas em The Castle of Otranto (1790) de Walpole, nos romances de Ann Radcliffe (que publicou, entre 1790 e 1797, as suas principais obras) ou ainda em The Monk (1796) de Matthew Lewis.
Segredos subterrâneos ou a inquietante personagem da mitologia urbana, balizam esse universo temático, quase todo ele romanesco, mas que emerge em fulgurantes representações da grande poesia canónica ou sublimemente maldita, em poemas de Keats (“Belle Dame sans merci”), Byron (The Corsair), Baudelaire (“Le Vampire”), Lautréamont (Les Chants de Maldoror) ou Mallarmé (Hérodiade), para acolher apenas alguns exemplos maiores.
A cidade, ela própria um mito que se foi forjando, na modernidade, como estrutura dinâmica colectora do lendário e transfiguradora dos elementos que geraram as representações eufóricas das técnicas, das formações sociais e dos confrontos mais radicais entro o eu/próprio/nós e o ele(s)/outro(s)/de inquietante-estranheza, germina, com o seu cosmopolitismo, os imaginários da boémia, das convulsões sociais, do litígio entre os representantes da lei e do direito e os fora-da-lei e marginais, ou mesmo os assassino em série, sedentos de sangue, movidos por obscuros impulsos.
A amalgama de potestades pagãs, da cultura clássica, e de figuras oriundas das narrativas folclóricas desemboca nas mais ousadas épicas populares. De facto, a cultura de massas, sobretudo ao emergir na banda desenhada, produz figuras como Super-Homem, mistura de semideus ou titã (Héracles, Prometeu) e herói salvífico do conto maravilhoso ou de fadas, provido de dom ou de talismã, Batman, cuja personalidade entretece traços de Héracles, do mago com poderes quase sobrenaturais (mágicos e “científicos”) e do enigmático animal nocturno (o morcego, o vampiro…) ou Flash, onde transparece a iconografia de um Mercúrio, que usa a sua velocidade para actuar como um malicioso gnomo contra os malfeitores.
Podemos fazer sobressair com traço comum destes heróis populares a sua capacidade metamórfica, resultante da activação de um dom ou de um talismã, que os diferencia dos protagonistas de outras séries culturais, sejam elas populares (aventuras de pioneiros e exploradores, por exemplo) ou da produção canónica (a narrativa realista, o drama psicológico, por exemplo).
Alguns dos motivos mais fascinantes que dominam as narrativas populares nos nossos dias, nas produções para as massas que vão da banda desenhada ao cinema de culto, passando pela narrativa literária de géneros mais procurados (o policial, a novela de mistério, o thriller – misto de história de arrepios e melodrama, desde o romance gótico até ao film noir) já aparecem enunciados num texto anónimo, publicado em Inglaterra em 1797, intitulado Terrorist Novel Writing: “Um velho castelo, parcialmente em ruínas. Uma longa galeria, com muitas portas grandes, algumas delas secretas. Três corpos assassinados, recentemente. Igual número de esqueletos, em arcas e armários…”
Ao citar o ensaio a que pertence o excerto acima transcrito, Botting afirma que outros ingredientes fortemente recorrentes e fundamentais podem ser enumerados, em adenda à lista do autor anónimo setecentista: “escuras criptas subterrâneas, abadias em ruínas, florestas sombrias, montanhas escarpadas e cenários selvagens habitadas por bandidos, heroínas perseguidas, órfãos, e aristocratas malévolos” (1996: 44).
No fundo, o ar de família de todos esses elementos é a atmosfera de sombras e mistérios povoada por figuras sombrias, mas onde predomina o artefacto humano, a presença da concentração social moderna e a organização social dos nossos dias. É nesse pano de fundo que ganha força a dinâmica dos acontecimentos chocantes, dos incidentes sobrenaturais, superstições e crenças, “promovendo o sentimento de espanto e encanto sublimes que se cruzam com o medo e a intensa imaginação” (Botting, 1996: 44) num quadro cultural e civilizacional em que a ciência emerge como esforço sistemático de dissipar as fantasias e receios provocados pela ignorância e a técnica procura vencer a noite, nas grandes concentrações urbanas, através da iluminação pública. É aí que o confronto entre o conhecimento e o mistério, a razão e o irracional ganha novos contornos. Ao iluminar a noite lançam-se novas e inesperadas sombras, onde os defensores da ordem e da razão têm de usar os ardis da ocultação da sombra e do segredo, para enfrentar as ameaças do mistério, provenientes de ignotas e distantes paragens.
São as ocorrências desses confrontos que, quando narrativizadas, se tornam mitos, e isso acontece por se terem incorporado em discursos que os celebraram muito para lá da sua importância enquanto acontecimentos empiricamente controláveis, que normalmente não são, pelo que não cabem na dimensão da factualidade documental enquadrada pelas instituições políticas, jurídicas ou económicas. Assumimos que o mecanismo que subsume essa dinâmica é o da metamorfose, surgindo esta, em última instância, como o processo do sujeito em direcção a uma alteridade em conformidade com a qual ele interage de modo mais adequado com os elementos da intriga de repercussões cósmicas que o envolve.
Os discursos que os celebram tornam-se, então, enunciados mitologizantes. Segundo todas as aparências, as narrativas de estrutura fabulatória fantástica, apelando para a actuação privilegiada de personagens providas de perícias excepcionais ou mesmo de faculdades extraordinárias, buscam apresentar compreensões e soluções para os grandes problemas sociais, humanos e mesmo cósmicos, que resultam de uma leitura do universo como estrutura de uma intriga em desenvolvimento, e de uma hermenêutica em que as personagens funcionam como peças de gigantescas conspirações e contra-conspirações. Note-se que as polarizações entre o Bem e o Mal são uma constante nesse tipo de narrativas.
Um estudioso de Ovídio, autor clássico que podemos considerar criador do delineamento da dimensão densa e complexa do processo da metamorfose como facto mitopoético, diz-nos o seguinte sobre tal transformação:
“A crença nas mudanças de que podem sofrer os seres impotentes face à temível força oculta de um deus zangado, ou mesmo bondoso, de um feiticeiro malfeitor, de uma maga, ou de uma fada caprichosa, pertence a todos os tempos e todos os países. Convicção religiosa sincera, que vê nisso o exercício legítimo do direito soberano da divindade – doutrina filosófica defendida por um Pitágoras (não é a metamorfose a forma mais brusca e ostensiva da metempsicose?) que dela faz uma forma do perpétuo renascimento – credulidade irracional do primitivo, aterrorizado pelo feiticeiro da tribo – jogo encantador da imaginação, semi-consciente no caso da criança, deliberado no poeta, seja qual for o mobile profundo que a ela nos leva, outras tantas formas aparecem do nosso gosto inato pelo maravilhoso” (J. Chamonard, in Ovídio, 1966: 9).
Contudo, é um facto que a metamorfose, tal como a podemos encontrar, hoje em dia, já não corresponde ao mesmo quadro de crenças e ideologias que a enformavam na cultura clássica, tal como o reconhece Charmonard:
“Na verdade, a metamorfose só encontrou asilo, entre nós, em certas superstições populares, como a do lobisomem e, mais poeticamente, nos contos onde vemos as abóboras transformarem-se em carruagens e os lagartos em lacaios. As nossas religiões retiraram-na da lista das penas e das recompensas divinas, e os últimos traços que dela encontramos, na Lenda Dourada,são, quando muito, a transformação súbita, sob os olhos de um santo homem cheio de compaixão, de um mendigo sórdido numa personagem celestial, cintilando de juventude e beleza, ou, numa ordem de ideias próxima, a renovação do prodígio de Orfeu, escutado por animais e rochas. É, para nós, uma forma do milagre primitivo, já desactualizado. Ao contrário, para os gregos foi, ou tinha sido, uma das formas mais comuns. Se exceptuarmos a condenação severa a engenhosos suplícios infernais, não havia forma mais frequente do que a metamorfose, a seus olhos, de intervenção divina para vingar a moral violada, castigar a soberba humana ou as ofensas pessoais praticadas. Que parte desta crença devemos atribuir à fé sincera, à imaginação, ao desejo de explicar as virtudes de uma fonte, a forma de um rochedo, as particularidades dos costumes de um animal, a plumagem de uma ave, a folhagem de uma planta? Que reflexões despertaria aos espíritos mais livres a constatação de que a era das metamorfoses estava declaradamente encerrada e que todas as histórias que se contavam das metamorfoses reportavam-se a um período revoluto das relações entre os deuses e os homens?” (in Ovídio, 1966: 9-10)
Tenhamos em conta, complementarmente, que os modelos fabulatórios que se desenvolveram na Europa, nos espaços culturais resultantes da consolidação dos poderes que emergiram na área cultural dominada pelo cristianismo, proclamam-se à sombra de um culto cada vez mais forte de uma tradição “nacional popular” a que os românticos chamaram folclórica. Assim, o ente mágico ou maravilhoso desliga-se da contingência teológica ou religiosa, na tradição gótica que se desenvolve como narrativa de muito ampla aceitação popular na Europa e na América, quando o incremento da alfabetização e da escolaridade obrigatória começa a transformar a cultura popular, preponderantemente oral e folclórica até finais dói século XVIII, em cultura de massas.
O processo dessa ruptura aparece muito bem formulado na épica miltoniana, ao constituir Satã como poderoso antagonista da divindade cristã, ente terrífico, ameaçador mas, ao mesmo tempo, fascinante. A repercussão de Paradise Lost nas gerações pré-romântica e romântica emerge nas figurações, sobretudo romanescas, a que se tem chamado góticas.
O romance mais célebre que assume integralmente o tema do vampirismo é, sem dúvida, Drácula, de Bram Stoker. Aí, o morto-vivo aparece em toda a sua dimensão perturbante e ambivalente de “figura aterradora, emergente das narrativas do passado, da mitologia e do folclore, bem como entidade portadora de uma irrupção de inconfessáveis energias da ancestralidade primitiva da sexualidade humana” (Botting, 1996: 145).
No romance, é claro o confronto entre as forças desse passado mítico, longínquo e conturbado por guerras, terrores e violências intoleráveis aos valores civilizados já então, na Europa do século XIX, e a modernidade em que assentam e se entrincheiram os adversários do poderoso senhor das trevas. Um grande guerreiro, outrora defensor das fronteiras orientais da Europa contra os turcos, na Idade Média, assenhorando-se dos poderes da magia maléfica, regressa de entre os mortos com o poder de se transformar em animal predador (lobo, morcego, actuando sempre como vampiro, em busca do sangue das vítimas humanas) enfrenta um grupo de “modernos vitorianos”, assente na cosmopolita Londres e armado das tecnologias de comunicação, de registo e de intervenção médica.
O mecanismo que aparece obsessivamente evocado, ao longo da narrativa de Stoker, é o da circulação sanguínea. Dando continuidade à perspectiva mítica profundamente arreigada nas mais antigas e difundidas crenças populares, de que o sangue é a própria substância da vida, a dinâmica da história assenta, sobretudo, nos processos segundo os quais os mortos (certos mortos, pelo menos) procuram obter o retorno do sangue ao seu corpo, em conflito absoluto e cósmico (dizer mortal seria dizer pouco) com os vivos que se opõem a essa obtenção. A crença no efeito do sangue sobre os corpos inertes é milenar, na Europa. No canto XI da Odisseia, onde é relatada a descida de Ulisses ao Inferno, esse mecanismo é patenteado.
Um dos poderes do vampiro, senhor da metamorfose fundamental, a de se manter vivo na morte, é o de poder praticar metamorfoses secundárias, transformando-se em animais cujas perícias sejam úteis à sua actividade predadora. Por vezes essas transformações são disfarces, modos de não se dar a reconhecer, outras vezes são camuflagens ou utilizações talismânicas das formas adquiridas, para obterem velocidade e facilidade de aproximação das suas vítimas ou modos de escapar a perseguidores.
Embora herdeiro de formas míticas e configurações semânticas do passado, o vampiro, sobretudo a partir a figura de Drácula, infinitamente reinterpretada e reelaborada, torna-se ele próprio um mito de poderosa irradiação. Actuando, na formulação de Stoker, sobretudo por motivações egoístas, os seus objectivos complementares tornam-se tendencialmente conspirativos: ao grande mestre vampiro compete propagar a sua espécie.
O seu processo na multiplicação não depende da sexualidade resulta, antes, de uma acção epidémica, por contacto directo. A sexualidade, para o vampiro, é versatilmente distribuída pela erogénização de todo o corpo e das suas acções fundamentais: alimentar-se difundindo-se, simultaneamente. Por outro lado, com a sua dentada, a dor transforma-se em fonte de prazer constante. Alimentando-se em acto erótico não perde energias, antes as recupera, tornando-se cada vez mais vigoroso e fisicamente invencível. Quando está em acção o corpo imuniza-se contra quase todas as formas de agressão.
Embora Drácula tenha uma origem satânica, tal como a ficção literária o concebeu, as figuras que dele descendem, na cultura de massas, são quase todas defensoras das normas e princípios decorrentes dos Decálogo ou dos Evangelhos.
O submundo dos confrontos sociais das metrópoles modernas, a que os parisienses deram o nome de bohème, é a região oculta dentro das cidades, nessa zona onde o real dos confrontos e das ideologias funciona como que sob o efeito de uma lanterna mágica, projectando os eventos sob os contornos do imaginário e o regime da fantasia, a máscara e a ocultação, a duplicação sob disfarces é um factor de força. O poder dessa transformação pode ser incrementado se ela arrastar uma mudança qualitativa do próprio ser, pelo poder do dom, do talismã ou do apetrecho.
Um dos resultados mais esplendorosos, nas narrativas desenvolvidas segundo essa perspectiva, é o de os agentes em confronto, esquematizado segundo pólos maniqueístas de bem e de mal ou de justiceiros versus malfeitores, desgastarem nos litígios doses aparatosas dos seus efeitos especiais. Não é por acaso que o cinema se tornou o dispositivo preferencial de representação de tais confrontos.
Uma outra dimensão que a narrativa de Bram Stoker desenvolve de modo exemplar é a da dinamização do efeito de alteridade. Ao ser agredida, a vítima tende para transformação em vampiro, mas antes tem de passar pela morte, cuja chegada se anuncia claramente pelos sintomas e número de mordeduras. O retorno à vida é assegurado pelo número de transfusões. O impedimento da passagem a vampiro obtém-se pelo ritual da estaca, da decapitação. A autenticidade de ser vivo e integrado na ordem natural e divina é assegurado pela transparência da sua consciência tal como se revela inteiramente aos outros, pelo que, cada mentira tem de ser assumida e retractada, para evitar a integração no mundo ameaçador do outro, o vampiro.
O próprio vampiro tem uma existência de alteridade que necessariamente tem de ser delineada. A sua residência é a de um castelo maldito do qual não deve sair para não contaminar os outros. O seu castelo existe numa zona fronteiriça.
Como se percebe pela actuação do vampiro supremo, Drácula, na ficção stokeriana, o seu projecto, subentendido mas patente nas suas realizações e propósitos, é a expansão planetária. Sintomaticamente, a cidade por onde pretende começar a sua expansão, criando vítimas que, de imediato, pelo processo epidémico da sua mordedura, passam a prosélitos, é Londres…nem mais…a impressionante megametrópole, capital do maior império planetário existente até então. Estamos, assim, perante o impensado retorno da ameaça da invasão, não pelos “infiéis” ─ figura que, sob o domínio da expansão victoriana era ainda uma imagem do “mal” ameaçador[4] ─, mas do outro dos infiéis, seu cruel oponente, o heróico e bárbaro guerreiro romeno, o outro em nós, talvez o enigma da morte que retorna, o Outro-Fantasma.
A mutação dessa figura da mutação, não avatar da metamorfose, mas talvez, para aproveitarmos a terminologia que pusemos em jogo, avatar do avatar, parece-nos muito bem sugerido pelo filme de Cameron que se chama, exactamente Avatar.
A questão final que aqui se põe à metamorfose como avatar é a seguinte: pode um eu pertencente a uma comunidade abandonar o seu estar que o torna em um de nós, sem se transformar no euem outro da comunidade deles? Neste caso, a transformação foi possível, o corpo terrestre perdeu-se e o eu passou para o outro corpo idêntico aos dos que estavam a ser colonizados. E, nos desenrolar do processo, esse eu no outro corpo junta-se aos oprimidos que, com a sua ajuda, conseguem expulsar os poderosos invasores. É claro que a leitura sintomática de uma tal transformação não pode ser realizada no escopo deste nosso trabalho.
Ficará, certamente, para leituras em que abordarmos, em conjunto, outros processos similares, que vão aparecendo, por exemplo, em narrativas que nos mostram como a passagem a vampiro pode ser um passo de aperfeiçoamento da própria humanidade.
Carlos Jorge Figueiredo Jorge é professor emérito da Universidade de Évora
Bibliografia
Activa
Hugo, Victor, 1972, Les Misérables (3vol.), Le Livre de Poche – LGF, Paris
Ovídio, 1966, Les métamorphoses, Garnier-Flammarion, Paris
Perrault, 2007, Les Contes de Perrault, Omnibus, Paris
Passiva
Barthes, Roland, 1957, Mythologies, Seuil, Paris
Benjamin, Wlater, 2006, A Modernidade, Assírio & Alvim, Lisboa
Botting, Fred, 1996, Gothic, Routledge, Londres
Calvino, Italo, 2010, Sobre o Conto de Fadas,
Campion-Vincent, V. e J.- Bruno Renard, 2002, Légendes urbaines, Payot, Paris
Delgado, Manuel, 1993, Las palabras de otro hombre, Muchnik, Barcelona
Durand, Gilbert, 1983, Mito e Sociedade, A Regra do Jogo, Lisboa
Ducrot, Oswald e Jean-Martie Shaeffer, 1995, Nouveau dictionnaire encyclopédique des sciences du langage, Points/Seuil, Paris
Eco, Umberto, 1990, O Super-Homem das Massas, Difel, Lisboa
Eco, Umberto, 1991, Apocalípticos e Integrados, Difel, Lisboa
Jorge, Carlos J. F., 2001, Figuras do Tempo e do Espaço, Ulmeiro, Lisboa
[1] Reportamo-nos à categoria de Jolles que apenas sugerimos aqui em resumo. Ora o “caso” segundo este autor verifica-se quando “o crime e o delito significam de imediato a infracção de uma prescrição, a contravenção de uma norma” pelo que, ao contrário do que acontece na lenda, “o acto e o objecto não são a virtude ou a falta, o que se torna acto e objecto são, neste caso, a lei e a norma às quais são reportados os actos de toda a espécie” (Jolles, 1972: 140).
[2] Sobre o conceito de mitema, cf. Lévi-Strauss, 1958: 233; relativamente ao conceito de mitologema, cf. Delgado, 1993: 259.
[3] Referimo-nos ao conceito que Lessing desenvolve no seu Laocoonte, obviamente. Por ele designa-se o que no quadro “imóvel” existe de representação da temporalidade narrativa, captada em instantâneo mas tendo presente as linhas de maior dinâmica e força simbólica da fábula (cf. Lessing, 1990: 120-121 e 130).
[4] E não deixou de o ser, pelas imagens que, hoje em dia, são forjadas pela acreditada informação ocidental, sobre os agentes do “terrorismo” e líderes do “eixo do mal”…